sábado, 11 de maio de 2013

Para além da maioridade penal


Mídia e conservadores reabrem debate oportunista e vazio, com objetivos eleitoreiros. Esquerda precisa preparar-se para propor segurança cidadã

Por Luís Fernando Vitagliano | imagem: Carlos Bassan

Uma dentista assassinada por bandidos que atearam fogo em seu corpo por ter somente 30 reais em sua conta bancária; um garoto assassinado com um tiro a queima roupa na cabeça por não entregar sua mochila. A crueldade dos crimes praticados por menores de idade chama a atenção midiática nesses dois casos. Somados a isso, os índices divulgados na semana passada só vêm comprovar o que a percepção da população já havia expressado: o aumento significativo da criminalidade em São Paulo, principalmente de assassinatos e latrocínios.

Voltou à tona uma discussão – casuística e rasa – sobre a maioridade (ou menor idade) penal. Com 18 anos uma pessoa está perdida o suficiente para ingressar no sistema penitenciário brasileiro? As casas de menores são instituições que não recuperam nem geram outras oportunidades para jovens infratores. Fato. Mas, os criminosos e assassinos menores de idade são minorias e casos à parte – tratar o todo pela exceção não resolve, só piora o problema. Falar, portanto, de redução da maioridade penal sem discutir recuperação penitenciária, ou as causas que levam às praticas do menor infrator, ou medidas como aumento das penalidades para quem usa menores como cúmplices é um debate viciado e oportunista. Ainda mais quando se explora meia dúzia de casos expostos pela mídia.

Em vez de aceitar esta armadilha, é mais útil examinar a consequência direta do debate sobre a violência em São Paulo: as eleições. Já sabemos que o desgaste natural, a falta de opções de renovação em seu partido e as ultimas derrotas políticas colocaram o governador Geraldo Alckmin na berlinda. Mas enganam-se aqueles que defendem que as eleições são apenas propaganda e popularidade, desprovidas de conteúdo político. Alguns temas que tomam a agenda de campanha são muito importantes para a ascensão ou queda dos candidatos. E a crescente violência urbana no Estado tornou-se o calcanhar de Aquiles do governo que já foi cobrado a dar uma resposta urgente aos eleitores. A segurança pública será certamente o tema mais explorado do debate paulista do próximo ano e neste ponto há de se destacar que as esquerdas patinam.

São Paulo é um caso especial de conservadorismo e desenvolvimento que tem uma dinâmica única eleitoral. Os eleitores paulistas vivem uma polarização própria: os tradicionalistas que querem manter a ordem e o progresso e os inovadores que defendem políticas liberais. Vai-se do “rouba mais faz” à defesa consequente dos direitos humanos – sendo que, no interior do estado, as forças conservadoras são muito presentes. Conformou-se um colégio eleitoral que majoritariamente apoiou o “estupra, mas não mata”, ratificou a frase “bandido bom é bandido morto” e aceita as recentes declarações do próprio governador em exercício sobre uma ação criminosa da polícia: “esta vivo quem não reagiu”.

O mais dramático é que as esquerdas não têm uma plataforma clara sobre o tema específico da segurança pública. Não há uma proposta na agenda para além da ausência de propostas. Desde a ditadura militar – quando se denunciava o uso do tema segurança pública para perseguir, prender e torturar –, a oposição de esquerda, não demonstra preocupação com as instituições policiais. Além disso, a ideia de uma ruptura da ordem, presente em várias concepções de esquerda, tem levado a não considerar essas instituições como legítimas. Oposições ao exército e às forças da ordem reforçam a noção de que essas instituições são repressivas e opressivas, o que leva muitos militantes a desconsiderar a esfera da segurança pública. Na base do silêncio e da resignação, frustrou-se a possibilidade de construir uma proposta de segurança cidadã, baseada nos direitos humanos. Isso impede o diálogo com parte importante das frações médias da sociedade paulista.

A ideia vulgar, hoje predominante, é que só os “humanos direitos” merecem direitos humanos. Ou seja, tais direitos não se aplicam aos criminosos. Promove-se um escândalo de capa de revista quando um cidadão de classe média sofre violações físicas, mas não são dignas de nota as torturas e violações de direitos praticadas constantemente em delegacias de polícia e presídios. Parece haver carta branca contra aqueles que são indiciados como criminosos. Nesse ambiente, as esquerdas tendem a se opor às instituições policiais e a despreza a necessidades de reformar e reorganizar o sistema com base nos direitos humanos. Isso pode servir ao próprio governador, que procura identificar-se com os pontos de vistas conservadores – e majoritários – sobre o tema.

Sem uma plataforma séria, que responda às ondas crescentes de criminalidade urbana com propostas práticas e efetivas de redução da violência, as esquerdas vão perder espaço. Sem um sistema policial com respeito aos direitos humanos, formação de policiais com capacidade de fazer cumprir os direitos cidadãos e possibilidade de cumprir sua missão e garantir a segurança da população, as esquerdas desperdiçarão a oportunidade de renovar sua própria relação com instituições políticas que serviram a ditadura em outra época, mas hoje devem servir a sociedade democrática de direito baseada na cidadania.

Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor.



sexta-feira, 10 de maio de 2013

Dois anos antes de renunciar, CEO do Santander foi condenado por enviar inocentes para a prisão

Ex-CEO do Santander, Alfredo Saénz, que renunciou no dia 29 de abril. / Wikicommons


Por Eva Belmonte

Imagine que um executivo de alto escalão em um dos bancos mais importantes do mundo manda empresários para a prisão, em artimanha combinada com um juiz corrupto, para chantageá-los e cobrar algumas dívidas. Imagine que o engodo é descoberto e que o banqueiro é condenado, mas os sucessivos governos de seu país – todos, das mais diferentes cores – fazem e desfazem conforme sua vontade para evitar que ele cumpra a pena. Imagine que ele continue no cargo durante mais de dois anos, inatingível, apesar de seus antecedentes criminais. Imagine, além disso, que por esse cargo ele recebeu € 11,604 milhões em 2011 (mais de US$ 15 milhões), remuneração superior a do CEO do Morgan Stanley (US$ 13 milhões), por exemplo.

Parece uma história de filme, de poderosos modificando as leis de acordo com sua vontade, reescrevendo as normas do Estado de direito em seu próprio benefício. Mas esse homem é Alfredo Sáenz, o CEO do banco Santander – o maior banco da zona do euro – até sua renúncia neste 29 de abril. A saída “voluntária” do braço direito de Emílio Botín deu-se momentos antes do Banco da Espanha decidir se ele deveria ser impedido de exercer o cargo, em um processo que pôs fim a uma longa história de favores políticos destinados a garantir a posição do executivo depois de uma sentença judicial que o havia tornado inabilitado para dirigir bancos.

Chantagens através de denúncias falsas para cobrar uma dívida

 

Já faz mais de dois anos que Sáenz foi condenado por mover falsa acusação e denúncia. Pode parecer um delito pequeno, mas este enredo é complicado e complexo desde o primeiro minuto. Em 1994, Sáenz utilizou documentos manipulados para incriminar um grupo de empresários. Seu objetivo era chantageá-los para que pagassem uma dívida contraída com Banesto, empresa da qual era presidente.

Suas táticas mafiosas contaram com um cúmplice de luxo: o juiz Luís Pascual Estevill, que durante anos utilizou sua posição para extorquir, condenar inocentes e dar sentenças em troco de quantidades apetitosas de dinheiro. Os investigadores mostraram que, juntos, denunciante e juiz, e outros altos executivos do Banesto, conseguiram enviar injustamente para a prisão três empresários: Pedro Olabarría, Luis Fernando Romero e Modesto González.

O plano daquele que se tornaria o número dois de Botín teria sido perfeito se não fosse o fato de os empresários não cederem à chantagem, e da Procuradoria Anticorrupção ter descoberto o crime logo depois do desmantelamento da rede de corrupção do juiz Estevill, protagonista de uma das histórias mais obscuras da justiça espanhola (foi condenado por suborno, extorsão, transgressão e detenção ilegal).

Após a denúncia dos empresários, David Martinez Madero (um dos fiscais anticorrupção mais agressivos da Espanha, morto recentemente) se juntou à causa e conseguiu uma vitória parcial: o Tribunal Provincial de Barcelona sentenciou Sáenz a seis meses de prisão e desqualificação (inscrição no registro criminal), uma pena que teria sido muito maior se tivesse sido demonstrada uma conexão direta entre o juiz corrupto e o empresário bancário, ou seja, se os investigadores tivessem encontrado provas dos pagamentos do banqueiro ao magistrado por seus serviços. Quando veio a sentença, Sáenz já era conselheiro delegado do Santander. Emilio Botín não o demitiu.

Sáenz recorreu da decisão ao Supremo Tribunal, que reduziu sua sentença para três meses por razões formais, mas manteve a desqualificação, chave nesta história. O problema não eram os três meses de prisão (que não cumpriria se não tivesse antecedentes criminais), mas a sua inscrição no registro penal de presos e rebeldes. A lei espanhola não permite que pessoas com antecedentes criminais exerçam funções de alto escalão nos bancos. A regra é clara, a “reconhecida honorabilidade comercial e profissional” exigida não poderia incluir uma condenação.
 
 Enquanto os espanhóis perdem suas casas, ex-CEO denunciado na Justiça recebe aposentadoria milionária. / Foto: Portal Aqui Brasil
O banqueiro deveria ser expulso de sua função como conselheiro delegado do Santander. Mas não se deu por vencido e, logo depois de falhar na tentativa de se esquivar da pena através do poder judicial, solicitou indulto ao poder Executivo. Em paralelo, também pediu que paralisassem seu processo de expulsão do cargo até que o governo decidisse se concederia a graça ou não. Ainda assim, a Procuradoria Provincial de Barcelona decidiu, num exemplo de firmeza judicial, inscrever seu nome no registro de condenados.

Primeiro favor: o indulto do governo socialista

 

O governo da Espanha, liderado então por José Luís Rodríguez Zapatero, do Partido Socialista Trabalhador Espanhol (PSOE, na sigla em espanhol), foi muito mais indulgente que os juízes. Em 25 de novembro de 2011 concedeu um indulto ao número dois do Santander. A decisão foi tomada no último Conselho de Ministros do governo socialista, reunido depois de perder as eleições.

 O CEO do Santander foi indultado e poupado pelo PSOE de Zapatero e pelo PP de Rajoy. / Foto: Gustavo Bravo

Como o governo fundamentou essa decisão de última hora para o representante do Santander? “Entendeu-se que era razoável. E pronto”, argumentou Zapatero na época.

O indulto na Espanha é fruto de uma lei assinada em 1870 intitulada “Medida provisória do exercício do direito da graça”. Mas o texto da norma – que nenhum governo se atreveu em reformar – deixa claro que se trata de uma medida excepcional. Ou deveria sê-lo.

Desde 1996 os governos espanhóis concederam mais de 10 mil indultos, conforme indica o Indultômetro da Fundação Cidadã Civio. A medida de concessão de graças já foi aplicada também a policiais condenados por torturas, a políticos corruptos e a juízes transgressores, entre outros.

Assim, o governo se utilizou mais uma vez de uma prerrogativa que deveria ser usada em raras ocasiões para salvar Sáenz da desqualificação. Mas o Supremo Tribunal, uma vez mais, se interpôs no caminho do banqueiro. Em decisão inédita, o juiz determinou que o governo não tinha poder para remover a desqualificação implícita na sentença e o acusou de “extrapolar” suas funções. Os argumentos eram claros e consistentes com a lei: o governo pode indultar a pena de prisão, mas não pode evitar que seu exercício como banqueiro fosse proibido, pois não pode apagar os antecedentes criminais do condenado.

Segundo favor: como as leis mudam, graças ao PP

 

Quando a sentença do Supremo chegou, o governo da Espanha já estava nas mãos do Partido Popular (PP), de Mariano Rajoy. Se o PSOE fez o que pôde para salvar Sáenz logo antes de deixar La Moncloa, o que faria o PP? Reescrever as leis, sem mais nem menos.

No último 12 de abril, o Conselho de Ministros aprovou um Decreto Real para que os antecedentes criminais não interfiram na declaração de honorabilidade de um banqueiro. Se até o momento os banqueiros de alto escalão com antecedentes criminais eram expulsos imediatamente, agora é o Banco da Espanha que decide se a sentença imposta fere a honorabilidade do personagem em questão.

Se o PSOE não apresentou motivos para o indulto de Saénz, as razões que o PP apresentou para mudar a lei foram, no mínimo, falsas. A vice-presidenta do governo espanhol afirma que a reforma foi imposta por uma mudança na legislação europeia. Na verdade, as regras europeias mudaram, mas apenas para permitir que os Estados-Membros decidam autonomamente os critérios sobre a honra de um banqueiro. E o governo espanhol tomou sua decisão livre e voluntariamente: antecedentes criminais não ofuscam a reputação.

A bola passou então para o telhado da entidade que controla o mercado financeiro espanhol, mas diante da possibilidade do Banco da Espanha decretar sua cassação, Sáenz abandonou voluntariamente o cargo no dia 29 de abril. A diretoria o dispensou com um “apreço e agradecimento ao trabalho extraordinário” que ele tinha feito durante os seus quase 20 anos de trabalho para a entidade.

A influência do Santander

 

Mas que influência tem o Banco Santander para fazer com que os dois partidos políticos que chegaram ao poder nos últimos anos na Espanha reescrevam leis e assinem indultos para salvar um executivo?

A empresa, a mais importante da Espanha, é uma das muitas que já perdoou, durante anos, dívidas de partidos políticos. Quanto, em dinheiro, o Santander já perdoou ao PP e ao PSOE? Impossível saber exatamente. O Banco da Espanha se recusa a fornecer informações e, no momento, as negociações entre o banco e os partidos são fechadas mesmo com o questionamento dos cidadãos sobre o assunto por meio do site Seu Direito de Saber e pelo Tribunal de Contas.

De acordo com relatórios do Tribunal de Contas, tanto o PP como o PSOE somavam cada um cerca de 60 milhões de dívidas com o banco em 2007, data do último relatório.  O perdão das dívidas aos partidos, em uma época marcada por despejos diários na Espanha para aqueles que não podem pagar hipoteca, agora tem alguns limites: uma reforma legal limita as isenções em 100 mil euros por ano, ainda assim uma cifra que está longe de ser desprezível.

Amigos nos governos e na monarquia

 

Além de ser habitué nas reuniões em La Moncloa (o palácio do governo espanhol), o Banco Santander também tem boas relações com a monarquia espanhola. De fato, seu vice-presidente, Matías Rodríguez Inciarte, também é presidente desde 2008 da Fundação Príncipe de Asturias, criada para vincular a imagem do herdeiro do trono com atividades positivas, como o esporte, a cultura e a paz. Como um dos patrocinadores – junto com a Telefonica, Cepsa, Repsol, El Corte Inglés – o Santander colabora com o financiamento da entidade, que em 2011 teve uma receita de € 6.314.104 (mais de US$ 8 milhões). Nesse orçamento, 63% vêm de doações privadas, ou seja, da contribuição de seus patrocinadores, embora o montante pago por cada um deles seja um mistério. Além disso, Emilio Botín é um dos acompanhantes habituais do rei em suas viagens e reuniões, públicas e privadas.

Graças a esses apoios políticos, Sáenz tem sido, há mais de dois anos, o único executivo em um cargo de alto escalão em um banco espanhol que possui antecedentes criminais. E o Santander é o único banco que teve em suas fileiras um CEO condenado por enviar inocentes para a prisão.

A renúncia de Sáenz põe fim a esta história, mas é apenas o começo de uma era de ouro para a aposentadoria do ex-CEO, que irá cobrar uma pensão por conta do Banco Santander no valor de € 88.174.000, a maior do grupo, ainda muito mais substancial do que a de seu patrono e protetor, Emilio Botin (€ 25.566.000).

 * Eva Belmonte é jornalista e diretora de projetos na Civio (www.civio.es), uma fundação espanhola que trabalha pela transparência e  pela abertura de dados públicos.


Fonte: Pública

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Ponha-se na Rua: há 200 anos é assim que o governo lida com as comunidades cariocas

Comunidade após as remoções por conta do Metrô-Mangueira (Foto: Paula Paiva Paulo)


Por Andrea Dip

Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, 10 mil casas foram pintadas com as letras “PR”, de Príncipe Regente, abreviatura que significava na prática que o morador teria que sair de sua casa para dar lugar à realeza. Logo, a sigla “PR” ficou popularmente conhecida como “Ponha-se na Rua”. Hoje, as casas removidas no Rio de Janeiro são marcadas com as letras “SMH”, de Secretaria Municipal de Habitação. A população também criou um apelido para a sigla: “Sai do Morro Hoje”.

Essa associação entre as duas eras de despejo – que afetam sempre a mesma população – é feita em “Do ‘Ponha-se na Rua’ ao ‘Sai do Morro Hoje’: das raízes históricas das remoções à construção da “cidade olímpica”, trabalho de conclusão de curso da jornalista Paula Paiva Paulo. Em entrevista à Pública, ela fala pela primeira vez sobre o estudo que revê as transformações no espaço público carioca e as remoções compulsórias que preparam o cenário. E afirma: Os despejos não acontecem por  “falta de planejamento” urbano. “É simplesmente privilegiar a especulação imobiliária ao invés do direito a moradia”, explicita.

Por que você escolheu esse tema para o trabalho de conclusão?

Quando comecei a pensar sobre o tema da minha monografia, não foi difícil, o tema da habitação sempre me atraiu. A minha ideia inicial era abordar tudo: um histórico de políticas públicas para habitação, o que diz a Constituição sobre direito à moradia, qual o déficit do país, o que esse déficit causa, o descaso do governo, o sonho da casa própria, e as histórias de pessoas afetadas – pelo menos um relato de um morador de rua, um de ocupação urbana e um de área de risco.

Em março de 2012 comecei a participar do Grupo de Trabalho (GT) Remoções do Comitê Popular Rio para Copa e Olimpíadas, organização civil que reúne representantes de ONGs, de movimentos sociais, estudantes e qualquer pessoa que queira discutir e pesquisar sobre as violações de direitos humanos na preparação para os megaeventos no Rio de Janeiro. Ao entrar em contato com os moradores de comunidades ameaçadas, como Arroio Pavuna e Vila Autódromo, achei o meu gancho. O meu trabalho seria uma grande reportagem sobre as remoções que estavam acontecendo em razão da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas em 2016.

Das comunidades removidas para os megaeventos, qual ou quais você acredita serem as mais emblemáticas desta época?

Considero duas bem emblemáticas: a Restinga, no Recreio dos Bandeirantes, e o Metrô-Mangueira, na Mangueira. Na Restinga aconteceu todo o processo que tem sido padrão de reclamação dos moradores das comunidades removidas: falta de informação relativa ao projeto, falta de participação durante as remoções, oferecimento de alternativas desinteressantes para as famílias e truculência policial no ato da remoção. Essa última queixa é que torna a Restinga emblemática. O dia da remoção, dia 17 de dezembro de 2010, uma sexta-feira, foi considerado muitíssimo traumático pelos moradores. Sem aviso prévio, com forte aparato policial, remoções acontecendo madrugada adentro, sem as famílias terem sido indenizadas. Para o defensor público que atendeu a comunidade na época, Alexandre Mendes, foi a comunidade que mais sofreu nesse processo.

Já o caso do Metrô-Mangueira, que fica a 500 metros do Maracanã é emblemático pela situação que alguns moradores ficaram durante um ano e meio. Após as primeiras remoções, as casas eram demolidas, e quem ficava tinha que viver entre os entulhos, que não eram retirados, e acumulavam lixo, água parada, ratos.Como me disse um ex- morador, Eomar Freitas: “Se você conseguir entrar em alguma casa que ainda está de pé, vai ver o odor de merda que tem, e a gente tinha de almoçar, a gente tinha de jantar, a gente tinha de conviver com esse cheiro”.

O que mais te chocou ou entristeceu durante a pesquisa?

O que mais me entristeceu foi o tratamento recebido pelas famílias removidas. É tudo feito com muita brutalidade, desde o anúncio da remoção. É pressão o tempo inteiro, e os moradores são tratados como “ilegais”, independente de sua situação fundiária, mesmo com os direitos adquiridos que nossas leis nos reservam.

 Casas demolidas nas proximidades da estação de metrô Mangueira (Foto: Paula Paiva Paulo)

A moradia vai muito além de quatro paredes, ela está ligada ao direito ao trabalho, ao lazer, à saúde. É um processo muito traumático, e no qual não se faz nada para que ele seja menos traumático, muito pelo contrário. O ideal seria que esses processos fossem acompanhados de assistência psicológica aos moradores. Na verdade, ideal mesmo é que se buscassem outras soluções em vez da remoção forçada.

Apesar de não ser novidade na história do Rio de Janeiro, agora vivemos situação específica inaugurada por dois megaeventos esportivos e pelas transformações urbanísticas que eles impõem à cidade. E há um grande agravante: as remoções estão acontecendo de forma sistêmica e integrada nas 12 cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa da urgência e com uma paixão nacional como bandeira. É praticamente um herege quem vai de encontro a um projeto desses.

Em seu estudo você fala de várias outras transformações no espaço público carioca. Quais foram as principais? Elas também removeram muita gente?

Acredito que a principal tenha sido a reforma realizada pelo engenheiro Francisco Pereira Passos, nomeado prefeito do Rio de Janeiro pelo então presidente Rodrigues Alves, em 1904. Inspirado em Haussmann, o prefeito de Paris responsável pela sua reforma urbana no final do século XIX, a reforma de Pereira Passos teve como principais características o alargamento das principais artérias do Centro, a criação da Avenida Beira Mar para melhorar o acesso da Zona Sul ao Centro; a construção do Teatro Municipal; a ligação da Lapa com o Estácio; guerra aos quiosques e ambulantes; inauguração de estátuas imponentes e arborização no centro. Na maioria dos casos, a prefeitura desapropriou mais prédios do que eram necessários para depois vender o que ficou valorizado. Em paralelo às obras da prefeitura, a União também realizou grandes obras, como a construção da Avenida Central, atual Rio Branco, que demoliu de duas a três mil casas, o novo porto do Rio de Janeiro, e a abertura das avenidas que lhe davam acesso, a Francisco Bicalho e a Rodrigues Alves. É a partir daí que os morros do Centro (Providência, Santo Antônio, Castelo e outros) até então pouco habitados, passam a ser rapidamente ocupados. Ainda assim, a maior parte das pessoas que perderam suas casas não foi para as favelas centrais, e sim para o subúrbio, principalmente Engenho Novo e Inhaúma.

O que você chama de era das remoções?

Esse termo foi retirado do excelente livro do historiador Mário Brum, “Cidade Alta – História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro”.

Ele se refere ao período de 1963 a 1975, no qual foram removidas mais de 175 mil pessoas somente no Rio de Janeiro. O então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, trabalhou com as duas perspectivas, primeiro, com o criado Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (Serfha), com a perspectiva da urbanização. Depois, com a extinção do Serfha e a subordinação dos órgãos habitacionais à Secretaria de Serviços Sociais, criada em 1963, a política habitacional passou a trabalhar com muito empenho com a perspectiva remocionista, já que, com a especulação imobiliária, políticos e construtoras tinham interesse na “desfavelização” da Zona Sul.

De acordo com Mário Brum, as primeiras remoções foram em áreas de obras, como as favelas da Avenida Brasil, removidas para a construção do Mercado de São Sebastião, e a favela do Esqueleto, retirada para a construção da UERJ, no Maracanã. Em um segundo momento, as remoções visaram favelas em terrenos de alto valor imobiliário, como o caso da Favela do Pasmado, em Botafogo.

 Casas demolidas nas proximidades da estação de metrô Mangueira (Foto: Paula Paiva Paulo)

Com o financiamento americano (Usaid), entre 1962 e 1965, foram construídas a Cidade de Deus e as Vilas Kennedy, Aliança e Esperança. Por outro lado, algumas favelas foram urbanizadas. Em 1964, com o golpe militar e o início da ditadura no Brasil, o fechamento dos canais democráticos criou as condições necessárias para as remoções arbitrárias. Além disso, na conjuntura da Guerra Fria, o favelado era um revolucionário em potencial aos olhos do governo.

Nesse mesmo ano foi criado o Banco Nacional de Habitação (BNH), órgão financiador e responsável por programas habitacionais. As construções dos conjuntos habitacionais acompanhavam a remoção de favelas. Em 1964, 2273 famílias perderiam suas casas com a remoção completa de comunidades em Botafogo, Leblon, Ramos, Duque de Caxias; e despejos parciais no Humaitá, na Gávea, no Caju.

E as remoções continuaram no ano seguinte, sendo a maior delas a da comunidade do Esqueleto, no Maracanã. Segundo dados da Cohab, no governo Lacerda foram removidas 6.290 famílias, sendo 4.800 de janeiro de 64 a julho de 65. Até 1965, 30 mil pessoas foram removidas, o que foi pouco perto do que estava por vir.

Em 1968, a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg) ainda realizou seu 2º Congresso. No entanto, com traumáticas remoções na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, a resistência perdeu espaço para o receio: a resistência dos moradores da Praia do Pinto, por exemplo, terminou com um misterioso incêndio na favela. Nese mesmo ano, o governo federal criou a Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), com o objetivo de criar uma política única de favela para o Rio. A Chisam definia a favela como um “espaço urbano deformado” e sua missão declarada era erradicá-las. Na ditadura, a Chisam virou a “autoridade” do programa remocionista. Era ela quem decidia quais favelas a serem removidas e onde ficariam os conjuntos, pois muitos terrenos eram do governo federal. E, na prática, quem executava as coisas era o governo do Estado.

 Criança brinca num campinho improvisado na Vila Autódromo (Foto: Paula Paiva Paulo)

A Chisam, extinta em 1973, removeu mais de 175 mil moradores de 62 favelas (remoção total ou parcial), transferindo-os para novas 35.517 unidades habitacionais em conjuntos nas zonas Norte e Oeste. A construção desses conjuntos habitacionais nem de longe resolveu o problema da habitação popular, mas modificou substancialmente a forma-aparência dos subúrbios, além de levar uma demanda grande de pessoas para onde não havia a infraestrutura necessária.

Após esse período, houve o esvaziamento do programa de remoções que tinha um alto custo político pela resistência dos moradores e que já tinha cumprido sua função de desocupar áreas de grande valor imobiliário e desmantelar a organização política dos favelados. Com a redemocratização do país, houve a revalorização da “moeda voto”.

O que você vê de diferente entre este histórico de remoções no Rio e o que está acontecendo agora? Há diferença de abordagem?

Antes era imperativa a ideia de remoção total das favelas como solução para a cidade. Isso foi superado depois da grande força dos movimentos sociais dos anos 80 e da nossa Constituição de 88. No Plano Diretor do Rio de Janeiro de 1992 se consolida o pensamento de integração das favelas à cidade; o Plano prevê a urbanização e a regularização fundiária, e a favela é definida por características técnicas de sua estrutura, e não mais por características morais dos moradores. Sem dúvida isso é uma evolução e deu partida a projetos como o Favela-Bairro.

No entanto, os movimentos que lutam pelos direitos humanos, sendo o direito à moradia um deles, não conseguir garantir esse direito na prática. E esse é um grande passo para trás. Outro passo para trás: apesar de não haver mais a justificativa da remoção como solução urbanística, ela está mais mascarada. E há um grande agravante, que são as remoções acontecendo de forma sistêmica e integrada nas 12 cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa da urgência e com uma paixão nacional como bandeira. As obras para mobilidade urbana e construção de equipamentos esportivos não são consideradas questionáveis, e quem questiona é chamado de “do contra, baderneiro”.

A que você acha que se deve este histórico?

A primeira coisa que me vem à cabeça é “falta de planejamento urbano”. Mas na verdade o que não faltou foi planejamento. Acho que esse histórico se deve a predominância do interesse do capital na construção e ocupação da cidade. Preferiu-se e ainda se prefere privilegiar a especulação imobiliária ao direito à moradia.



Fonte: Pública

terça-feira, 7 de maio de 2013

Os limites internos da cor

Por Giso Amendola | Trad. UniNômade Brasil

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Resenha de La razza al lavoro [A raça ao trabalho] (org. Anna Curcio e Miguel Mellino, manifestolibri 2012).

Traduzido de I confini interni del colore, publicado na UniNômade Itália.

As raças não existem. Nenhuma pessoa com um mínimo de bom senso democrático sonharia hoje em negar essa afirmação. Por isso, há tempos, contra o obscurantismo dos racismos, o irracionalismo feroz deles, tem sido contraposta uma boa e civil pedagogia antirracista, que considera a raça um buraco negro ideológico, uma noção cientificamente infundada. Bastaria, segundo essa pedagogia, difundir as luzes honestas da razão, esclarecer as trevas da ignorância, revelar a série irrefutável de fatos científicos que evidenciam a todos como o dogma da desigualdade racial não é outra coisa que uma mentira feroz. O considerado “paradigma antirracista da Unesco”, desenvolvido no segundo pós-guerra, concebeu dessa maneira a prática antirracista: como um bom exercício iluminista de educação cívica.

Um dos motivos que faz La razza al lavoro (manifestolibri, 2012, pp. 172), organizado por Anna Curcio e Miguel Mellino, um livro inteligentemente provocativo, capaz de colocar em discussão terrenos consolidados, está em abrir o campo à experimentação de novas práticas políticas na luta antirracista, e que seja urgente arruinar a mencionada pedagogia iluminista. A raça não é um resíduo irracional do passado, curável por meio de discurso cívico “progressista” e esclarecedor. Que as raças propriamente não existam, não significa em nada que sejam redutíveis a simples engodo ideológico. Contra toda redução “culturalista”, Curcio e Mellino insistem em vez disso sobre a dimensão material e estruturante do racismo: o discurso da raça, agregado desde o início à dominação de classe, é um dispositivo de comando central de todas as formações capitalistas modernas.

A ilusão iluminista

Daí errarem de alvo as tendências que, frequentes na sociologia e na antropologia, adotam como instrumento de crítica da raça e do racismo um simplório antiessencialismo construtivista. Insistir, ainda uma vez, sobre o fato que dentro da raça não haja alguma realidade, fazendo da raça nada mais do que uma “construção social”, repete, em certa maneira mais sofisticada, o mesmo erro da velha pedagogia iluminista. Termina por confundir “construção social” com mera “ficção”. Mas o construtivismo não deveria esquecer o fato que a realidade ser construída socialmente não significa que os dispositivos que a constituam não sejam dispositivos materiais, que ajam segundo específicas relações de força, e que, portanto, somente a partir de uma análise radicada pelo materialismo possam ser eficazmente criticadas e transformadas.

Do ponto de vista político, ainda, a pedagogia iluminista, com a ilusão de dissolver pela força do racionalismo o mito da raça, tem se mostrado gravemente contraproducente. Ao relegar o racismo às margens da modernidade capitalista, como elemento secundário e não constitutivo, e reduzindo-o a fenômeno a uma mera recusa do progresso, essa pedagogia acabou por absolver, em larga medida, a própria modernidade e sua ideia de desenvolvimento. Desse modo, o antirracismo pedagógico não somente revelou a própria natureza eurocêntrica, assim como, sobretudo, serviu aos europeus como mecanismo de consolação e reforço da confiança em sua própria identidade antirracista, como aliás bem sabem os “italianos brava gente”. Batizar o racismo de fenômeno de atraso cultural ou mera mistificação leva a crer que consista numa patologia, onde a cidadania como instrumento de integração poderia ser a cura. Eliminam-se assim todos aqueles aspectos pelos quais a própria cidadania, em realidade, aparece como um problemático campo de batalha entre a inclusão e a exclusão. Nesse aspecto, um dos autores dos artigos, Costanza Margiotta recorda, indagando a disciplina jurídica das migrações, como o direito contemporâneo, a partir da construção mesma da cidadania europeia, participa amplamente dos processos de racialização hoje atuantes na Europa. Fariam bem os juristas, então, tomar plena consciência da presença do discurso racial na cultura da maioria das instituições jurídicas. Usando um termo tomado emprestado da psicanálise de Lacan, os organizadores sintetizam a posição da raça na ordem do discurso contemporâneo: em posição de foraclusão. Não simplesmente reprimido ou suprimido, o discurso da raça está excluído do âmbito do dizível e do simbólico. Mas, exatamente através da exclusão do elemento “imundo” que a acompanha, o discurso civil e aparentemente antirracismo consegue fabricar para si a estabilidade, ou pelo menos um semblante dela. Ainda uma vez, a exclusão constitutiva, contra o que o próprio afirmar explicitamente a persistência da raça, significa fazer agir uma potente política da memória, uma capaz de forçar essa foraclusão, e de fazer emergir aquilo que não deveria ser dito. Diversos artigos, no livro, experimentam no corpo vivo da história italiana essa política da memória. A raça está verdadeiramente foracluída, por exemplo, nas celebrações da Unidade Italiana, uma foraclusão operante desde a origem espúria dessa Unidade; e também aqui, jamais nas margens, ou em qualquer espaço do irracionalismo reacionário, mas, sim, no positivismo “científico” de um Alfredo Niceforo [1]. Este, com sua teoria das duas raças, “ariana” no Norte e “negróide” no Sul, traduzia na linguagem do determinismo biológico as práticas concretas de produção de subalternidade que haviam caracterizado o imediato período pós-unidade italiana. Um positivismo que, como assinala Caterina Miele, terá não pequeno papel na construção da linha de cor nas colônias italianas.

Inclusão excludente

Antissulismo e colonialismo estruturam em profundidade a mesma constituição material da unidade italiana. Assim, a raça reemergiu prepotentemente como dispositivo de gestão das migrações internas do segundo pós-guerra, quando a construção abertamente racista da “alteridade” dos sulistas [meridionali] se torna instrumento fundamental para o controle dos fluxos de uma força-trabalho que jamais foi verdadeiramente bloqueada, porque sempre foi necessária, ao mesmo tempo em que era inferiorizada, e sempre temida. E temida por boas razões, uma vez que sempre foi capaz de resistir contra os dispositivos de exploração. Nas lutas dos anos 1960, protagonistas e jovens sulistas demostraram isso (vide a atenta análise das migrações internas por Enrica Capussotti). Portanto, hoje, de várias maneiras, a raça continua a funcionar como dispositivo de controle e gestão da força-trabalho. A raça, verdadeiro “suplemento interno na construção do mercado de trabalho” (Queirolo Palmas), certamente não divide linearmente os excluídos dos incluídos. O racismo se articula, em vez disso, sobre processos mais complexos e estratificados de gestão, no sentido de uma “inclusão excludente”. A complexidade dos dispositivos de racialização é presentemente tamanha, que se apropria com frequência do próprio discurso igualitário: como acontece com os discursos sobre a igualdade de gênero e orientação sexual. Retraduzidos não poucas vezes em chave racista e nacionalista, como sublinha Chiara Bonfiglioli, recordando as pesquisas feministas no tema do macho-nacionalismo. Mas essa governança contemporânea continua só porque costuma encontrra na raça não um simples suplemento psicológico ou cobertura ideológica, mas um dispositivo concreto de fabricação de subordinação e exploração.

O livro, no entanto, não se limita a mapear o papel da raça em sua longa duração, seguindo-o até os desembarques de Lampedusa [2], onde, quase sintetizando a história italiana da raça, antissulista e colonial, se vê em ação um verdadeiro e próprio racismo em dobro: contra os imigrantes internacionais e os sulistas, representados como “incapazes” a conter-se. A racialização não é redutível a uma dimensão exclusiva e linear de exploração e dominação: antes disso, é um campo de batalha, atravessado continuamente por lutas que também sabem retomar o significante “raça”, para transformá-lo, de dispositivo de assujeitamento em dispositivo de subjetivação. A raça é também resistência, e como ensina a abordagem pós-colonial, de subjetivação. Não se trata então de um uso desconstrutivo e crítico da raça, mas também positivo. Este certamente se arrisca fracassar, e no livro há quem, como Renate Siebert, não esconde a sua posição crítica, considerando o uso positivo como potencialmente perigoso do significante raça.

Viradas paradoxais

Os conflitos ensinaram, por exemplo, como o escancaramento do estereótipo para ultrapassar o próprio estereótipo seja uma das armas irônicas mais produtivas, para evidenciar os processos de racialização e miná-los do interior: tal como o Django Livre do diretor Quentin Tarantino, um tapa na cara, levando ao extremo e virando-a do avesso, paradoxalmente, toda a sua “raça”. Mas, também, além dos usos irônicos, é fato que o significante raça move as lutas, põe-nas em uma diferença específica, em uma parcialidade concreta, crítica de todo universalismo abstrato e de qualquer tipo de recaída nas retóricas da integração (Grappi). A aposta autêntica consiste agora em orientar esses movimentos, essas práticas de subjetivação — como escrevem os organizadores — não em direção a uma “simples reivindicação da diferença”, mas, sim, da “produção do comum”. Este é o problema crucial de um antirracismo não-retórico e não-pedagógico: conjugar juntas a especifidade das subjetivações imigrantes e a articulação de “novas configurações de igualdade e liberdade” (Mezzadra). Trata-se de aprender a ler a parcialidade insuprimível das lutas de subalternos e racializados, não como significado fechado e identitário, mas como significante aberto, signo da heterogeneidade do trabalho vivo contemporâneo e motor de sua recomposição possível.


Tradutor: Bruno Cava

Notas do tradutor:

[1] Criminólogo italiano (1876-1960), adepto do “racismo científico”, de escola lombrosiana, sustentava que todo ser humano possui um “ego profundo” que remete aos tempos pré-históricos e que é a fonte de uma perversidade obscura e sombria. Argumentou, por exemplo, que a composição social do norte da Itália era etnicamente marcada pela raça ariana (euroasiática) e o sul pela negróide (euroafricana).

[2] Ilha no meio do Mediterrâneo, entre o sul da Itália e a Líbia, onde funciona um famoso centro de detenção (“recepção”) de imigrantes do governo italiano.


segunda-feira, 6 de maio de 2013

O terrorismo israelense e o conflito sem solução na Síria



Estes últimos atos de terrorismo israelense são, no entanto, medidos para irritar Assad, presidente da Síria, e forçá-lo a retaliar, causando dois efeitos perigosos para si e para a Síria.

Por Raphael Tsavkko Garcia

Os recentes ataques aéreos israelenses contra alvos sírios, inclusive nas proximidades de Damasco, capital do país árabe, coroados com constantes invasões do espaço aéreo sírio só podem ser chamados por um nome: Terrorismo.

O último ataque com mísseis nas proximidades de Damasco tinha como objetivo, afirmam fontes israelenses, um carregamento de mísseis iranianos destinados ao Hezbollah libanês e são injustificáveis por três razões principais.

 

Em primeiro lugar, não há qualquer prova de que tal carregamento, que se encontrava nos arredores de Damasco, a centenas de quilômetros da fronteira libanesa, iria para o Hezbollah ou qualquer outro grupo, o que nos leva ao segundo ponto, que é o fato de não ser da alçada israelense intervir, sem mandato internacional, dentro da Síria, em carregamentos militares, mesmo que este fosse efetivamente destinado ao Hezbollah.

Caberia ao governo libanês se movimentar contra a iniciativa se fosse de sue interesse e não Israel se imiscuir nos assuntos de dois Estados soberanos.

Terceiro ponto é a hipocrisia que chama atenção no caso, quando Israel e aliados (notadamente EUA) financiam e mesmo equipam guerrilhas islâmicas anti-Assad na Síria, intervindo indevidamente e mesmo ilegalmente em um conflito interno sírio, buscando desestabilizar o governo central.

E desestabilizar é o que Israel faz de melhor, haja visto as invasões ilegais ao Líbano no passado, levando à morte centenas de civis com bombardeios "cirúrgicos" a alvos supostamente militares, em geral escolas, hospitais e residências. Além disso, não podemos esquecer as pressões políticas aos vizinhos, a insistência por parte de Israel em manter o controle sobre as Colinas de Golã (território sírio ao norte de Israel) e que Israel manteve por anos o controle sobre porção significativa do sul do Líbano.

 

Estes últimos atos de terrorismo israelense são, no entanto, medidos para irritar Assad, presidente da Síria, e forçá-lo a retaliar, causando dois efeitos perigosos para si e para a Síria.

De um lado, Israel explora a batida tática de dividir para conquistar, ou seja, enquanto a Síria busca se defender dos ataques de diversos grupos guerrilheiros e terroristas, com o maior deles, a Frente Al-Nusra, ligado à Al Qaeda e sendo pesadamente financiado pelos EUA, Israel pressiona para que Assad abra uma nova frente, conta Israel. Este conflito, aliás, tem ainda o entusiasmo da Arábia Saudita que, como os EUA, financia a Frente al-Nusra e a Al Qaeda.

Mesmo a preocupação em se defender das agressões israelenses impõe um dilema a Assad, que teria de desviar atenção e recursos para se defender. Do outro lado, e como consequência, Israel provoca sabendo que qualquer reação síria seria pequena em comparação ao poderio militar israelense e que, caso atacada, ganharia ainda mais apoio internacional, ou ao menos dos EUA e União Europeia, fazendo-se de vítima, no que continua sendo o principal recurso do teatro retórico vitimista israelense.

Os EUA continuam em sua posição comodista e cúmplice. De um lado apoiam a Al Qaeda na Síria, do outro defendem e garantem sustentação à retórica e aos ataques israelenses. De quebra, conseguem, via propaganda, acusar o Irã de estar ligado, mesmo que indiretamente, por ser o responsável por suprir a Síria e o Hezbollah de mísseis.

Israel mantêm-se confortável, atacando um inimigo livremente, fazendo sua economia bélica girar e, caso haja resposta, poderão intervir mais diretamente contra um inimigo histórico.

Tanto Obama quanto representantes do Reino Unido manifestaram seu apoio ao "direito israelense de se defender", sem explicar de que forma Israel estaria se defendendo ao atacar a síria em sua capital e sem qualquer tipo de provocação.

É a velha desculpa dos "ataques preventivos" que serviram para justificar ataques, invasões e guerras americanas pelo oriente médio sem que houvesse efetivamente nenhum perigo aos EUA ou qualquer aliado.
A crise síria não tem solução fácil e, na verdade, sequer tem uma solução, se isto pressupõe uma saída pacífica ou que resulte em menos derramamento de sangue.

Uma vitória de grupos ligados aos EUA, Israel, Arábia Saudita e a Al Qaeda - acreditem, não há contradição nesta aliança - provavelmente abririam caminho para um banho de sangue imenso, com perseguições às minorias cristãs, drusas e alauítas (grupo ao qual pertence Assad) e uma crise humanitária sem precedentes aliada à possível imposição de um regime islâmico no país.

 

Isto, bem ao gosto dos EUA e Israel, poderia facilitar uma intervenção e imposição de governo simpático aos interesses "ocidentais", como no Iraque (que, por sua vez, continua em franca escalada violenta). A acusação - até o momento infundada - por parte de Israel de que a Síria teria armas químicas vai nesta direção, na preparação do terreno para uma invasão.

Uma vitória de Assad significaria a perseguição aos remanescentes dos grupos que lutaram para derrubá-lo e talvez um recrudescimento do regime, assim como um aumento de animosidade contra Israel e a ampliação do financiamento do Hezbollah e outros grupos anti-Israel.


 
Os caminhos para a vitória de um ou outro lado são todos sangrentos, violentos e extremamente complicados e mesmo improváveis. E a situação se complica quando, em uma guerra civil, diversos interesses estrangeiros colidem e resultam em terrorismo e declarações veladas de guerra.