sábado, 25 de fevereiro de 2012

O fim da leitura?




Há um texto de Jorge Luis Borges, um de seus contos fantásticos, intitulado "Utopia de um homem que está cansado", que julgo bastante apropriado para ilustrar algumas das engrenagens profundas que influenciam a nossa relação com a leitura. O conto relata o encontro inadvertido de um ancião com um homem que vive no além do futuro antevisto. Algumas das passagens do conto assombram pelo modo como profetizam o fim da leitura, naquele que é o sentido que pretendo abordar aqui.
A passagem do conto de Borges que vale o resgate diz respeito à interpretação que aquele homem do futuro efetua acerca do destino da leitura, especialmente aquela que se nutre do espírito niilista do nosso tempo (sobre isso, devo preparar em breve um artigo que se ocupará da interpretação do niilismo brasileiro). A personagem borgiana "relembra" um passado no qual "Tudo se lia para o esquecimento, porque em outras horas o apagariam outras trivialidades".
Como isso afeta a nossa relação com a leitura? Ora, nós precisamos de uma distinção clara aqui. Nós desde sempre compreendemos leitura como interpretação. No entanto, a interpretação pode acontecer em diferentes níveis. Eu gosto de pensar nesses níveis categorizando-os no campo da semântica e da pragmática (no sentido linguístico). Interpretar um texto à luz da semântica significa ser capaz de compreender a relação dos sinais (palavras) com as coisas. Isso promove um nível de relacionamento fundamental com a leitura, na medida em que se pode captar o texto, ou seja, ser capaz de compreendê-lo enquanto tal, e até mesmo reproduzi-lo. Nesse caso, o objeto da leitura é apenas o texto em si. Já no caso da pragmática - que trata do uso da linguagem, tendo em conta a relação entre os interlocutores e a influência do contexto -, a leitura acontece para além do texto. Esse modo de leitura leva em conta o leitor, o escritor, a época em que o texto foi escrito, a época em que o texto é lido, o arranjo dos sinais promovidos pelo escritor, o conhecimento prévio do leitor diante das construções lógico-semânticas do texto, o valor semântico dos sinais etc. Nessa perspectiva, não somente podemos reproduzi-lo como podemos recriá-lo. Assimilar um texto, assim, é ser capaz de reinventá-lo continuamente. Admito, porém: ler desse modo parece exigir demais de uma sociedade que está ávida por se distrair.Pensemos o mundo atual, essa dinâmica de relações superficiais com os objetos do mundo, incluindo-se ainda o outro, esse outro que também é tido como objeto. Usualmente, nós nos relacionamos temporariamente com os objetos. Cada circunstância relacional cumpre apenas o papel de nos distrair. Até que se prove o contrário, tudo é descartável. Que importa guardar, cuidar, manter? Que importa qualquer fato ou história quando a qualquer momento podemos acessar o Goodleou a Wikipedia para saber mais a seu respeito? Os fatos, as pessoas, os objetos do mundo agora só possuem valia se podemos usá-lo de algum modo para os fins que nos interessam. Parece que, enfim, como dizia Schopenhauer, todas as ordenações que fazemos são de modo que o traço trágico e sem sentido da vida não seja sentido: "A vida comum é distração".
Quando falo do fim da leitura, refiro-me à indisposição de nossa geração de leitores e escritores para praticar interpretações no nível pragmático (sempre no seu viés linguístico). Essa indisposição nos remete à mera leitura semântica. É raro que alguém, nos dias de hoje, se demore sobre um texto. Isso é uma pena, pois como a personagem de Borges nos ensina: "Não importa ler, senão reler". É no hábito da releitura de um texto bem escrito que acontece a produção de sentido. A transformação que um texto pode promover no modo de percepção do mundo só acontece quando alguém lhe dedica tempo. E dedicar tempo não significa esperar encontrar construções semânticas já conhecidas. É preciso reconstruí-las, repensá-las em suas dimensões associativas e conectivas. Para tanto, não se deveria revigorar o apreço pelo trivial. Seria preciso rejeitá-lo.
Lamentavelmente, a sociedade do século XXI parece-me indiferente a tudo isso. Observo essa tentativa desenfreada de alcançar a comunicação integral e imediata com o outro como uma gradual destruição da capacidade criativa de escritores e leitores. Há essa crença recalcitrante de que, para alcançar os jovens leitores, é preciso se aproximar da linguagem deles. Contudo, creio que há mais aí do que uma tentativa de salvação da leitura. Acho que a mediocridade estimula a mediocridade, pois como diz o Prof. e filósofo alemão Vittorio Hösle, "A mediocridade tem medo de tudo aquilo que é melhor do que ela".
A minha pauta para o problema da leitura, enquanto editor, escritor e filósofo, movimenta-se na recuperação de algo que estamos perdendo: o compromisso com a obra. Em meus artigos recorro insistentemente a esse tema por se tratar de um caminho que não pretende ser alternativo, mas concomitante e necessário. Eu não acredito em valor sem esforço. Essa tendência mórbida de se compor e oferecer textos fáceis de serem absorvidos é perniciosa. Os textos devem exigir esforço de todas as partes envolvidas. E há uma razão para crer nisso: a beleza habita na sutileza, mas ela só nos abre as portas quando descobrimos, nas entranhas do texto, a composição que inclui o leitor, o escritor, os sinais e a história. Somente ali, onde a leitura alcança a perspectiva pragmática, ocorre a produção de novos sentidos e, consequentemente, a liberdade.

*Cassio Pantaleoni é escritor e filósofo - www.8inverso.com.br
cassio@8inverso.com.br

A Grécia e a oportunidade da história: o que fazer?

Milton Pinheiro e Sofia Manzano[1]


A revolução é o freio de emergência para conter a barbárie

Walter Benjamim
A Grécia e a oportunidade da história: o que fazer?. 16476.jpegEstamos vivendo um momento histórico em que o aprofundamento da crise sistêmica, que se configurou em grave crise econômica e social, deixa claro a posição do grande capital financeiro, na tentativa de recuperar suas altas taxas de rentabilidade, a partir da relação com os fundos públicos. Na Europa e em outras partes do mundo, integrados na ideologia da colonização global que se encontra em curso, o aparato político da burguesia tenta operar um grande ajuste fiscal. Partem com voracidade sobre o Estado como instrumento para resolver os problemas dos balanços dos bancos privados. E as contradições da luta de classes avançam.

 
O cenário grego, no fulcro da crise, é desolador. O Banco Central Europeu, pressionado pela Alemanha e França, age dentro da lógica de rapina do Imperialismo tentando tirar da Grécia todos os recursos necessários para salvar seus bancos. Todas as medidas propostas têm levado ao desemprego, à informalidade no mercado de trabalho, a precarização e intensificação do trabalho no setor público, ao corte de investimentos e custeio na máquina pública de saúde, educação e previdência. Processam um conjunto de privatizações e desenvolvem uma cruel política de demissão em massa no serviço público. Só a última lei aprovada permitiu a demissão de mais de 30 mil trabalhadores públicos.
A Grécia não tem como sair da crise e a questão da burguesia européia não é tirar a Grécia da crise, é operar um conjunto de medidas de profundo corte e ajuste fiscal sem precedentes que sirvam como inspiração ideológica para os próximos acontecimentos. O capitalismo é uma "jaula de ferro", onde a burguesia naturalizou o mercado e aprisionou os trabalhadores. Criou um mundo sem perspectivas, gerou a perda da liberdade humana através da alienação, do fetiche, da coisificação do homem. É o culto ao dinheiro, é o tempo do mammonismo que está parindo uma outra "civilização". Portanto, não serão políticas reformistas de corte social-democrata que resgatarão a perspectiva dos trabalhadores na sua luta pela emancipação humana.

A social-democracia grega e o seu partido no governo barlaventeou e capitulou, como é de praxe, à política da burguesia, para os períodos de crise. Só que agora a crise é sistêmica e os trabalhadores foram para as ruas em toda a Grécia.

A cena política grega é de luta diretas das massas. A disputa está em todas as ruas de Atenas, as manifestações são gigantescas, as greves são cada vez maiores. Os trabalhadores, a central sindical PAME e o KKE estão marchando à frente das manifestações juntamente com outros movimentos sociais e forças políticas. Nesse momento da história da Grécia, se consolidou uma hegemonia de classe e o bloco histórico dos trabalhadores está em movimento. O que fazer?

A Grécia é um país que tem parte significativa de seu Produto Interno Bruto baseado nos serviços - só o turismo, que recebe 17 milhões de pessoas por ano, representa 15% do PIB e emprega 17% da população. O país tem uma população de 11 milhões de pessoas, sendo 5 milhões os trabalhadores e uma taxa de desemprego que atualmente chegou à 17% da força de trabalho. O segundo setor econômico grego é a marinha mercante, a segunda maior do mundo, atrás do Japão. Os gregos contam com 4.000 navios de carga, que empregam cerca de 250.000 trabalhadores e geram 5% do PIB. O fato pitoresco é que este setor não paga impostos na Grécia.

Pelos levantamentos de 2010, o PIB grego é de € 230 bilhões, concentrado no turismo, transporte marítimo, construção civil, pesca, agricultura e indústria extrativista. Todavia, a perspectiva da dívida pública grega, pelos levantamentos atuais atingirá 161% do PIB em 2012. Cabe esclarecer que, ao contrário do que alardeiam os meios de comunicação burgueses, esta dívida pública, como todas as dívidas dos demais países, foram contraídas em virtude de socorro ao sistema financeiro e ao pagamento de altos juros aos detentores dos títulos públicos.

O capital financeiro, detentor desses títulos, está pressionando o governo grego, via a 'troica', ou seja, os inspetores do Banco Central Europeu, do FMI e da Comissão Européia, a encontrar recursos para continuar a sugá-los para a burguesia. Como o Estado grego não tem mais condições de arcar com estas despesas, os representantes do grande capital exigem: privatizações - da rádio estatal, do aeroporto de Atenas e a quebra do monopólio estatal do jogo através da venda das loterias; ajuste fiscal, aumento da tributação sobre a população, corte de salários e corte dos direitos sociais. Se não bastasse este brutal pacote, a 'troica' exige que todas estas medidas sejam efetuadas e controladas por agências externas.

A partir desses dados, podemos perceber que a economia grega é periférica, dentro do sistema capitalista, o que faz da Grécia, o elo fraco da corrente. A burguesia que controla a zona do Euro não vê mais importância na Grécia, por isso se utiliza de ações tão violentas como forma de testar, política e ideologicamente, seu projeto que é de construção de um novo ciclo do capital para ampliar a sua acumulação. Todavia, as contradições objetivas estão dadas pelo quadro de crise sistêmica que se estabeleceu no processo grego. Mas, o mais importante é percebermos que as condições subjetivas estão em franco processo de consolidação.

Há vários meses os trabalhadores estão nas ruas para impedir os pacotes do governo. Fizeram comícios, lutaram com pedras nas mãos nas barricadas por toda Atenas, cercaram o parlamento, paralisaram os transportes, fecharam o comércio, fizeram greves e tudo isso com uma grande presença de trabalhadores.

Chegou o momento de dar o salto de qualidade na luta política, o bloco histórico dos trabalhadores demonstra força e organização. A questão central é levantar bandeiras que captem as contradições da relação capital-trabalho.

Essas bandeiras devem estar centradas na moratória da dívida, na saída da Grécia da zona do Euro, no retorno ao Dracma (antiga moeda), com sua conseqüente desvalorização cambial, estatização do turismo, da logística, do sistema financeiro, e a tributação da marinha mercante. Galvanizado por estas bandeiras, a questão imediata é levantar a justa palavra de ordem: todo poder aos trabalhadores em luta.

Os trabalhadores gregos fizeram o seu ensaio geral, os ecos do padrão histórico da revolução proletária ressoam por todas as ruas da Grécia carregados pelos turbilhões humanos nas grandes manifestações. A luta chegou a um impasse. Ou a vanguarda e seu bloco histórico se utilizam da perspectiva clássica e assumem a luta pelo poder, ou essas batalhas que ocorrem hoje em toda a Grécia não encontrarão uma perspectiva real de saída, levando os trabalhadores derrotados, de volta para suas casas.

As bandeiras são concretas, está faltando a ação da vanguarda para lançar a palavra de ordem: Todo poder aos trabalhadores em luta!


[1] Milton Pinheiro é professor de ciência política da UNEB (mtpinh@uol.com.br) e Sofia Manzano é professora de economia na USJT (sofiamanzano@hotmail.com).

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A Injustiça Passeia Pelas Ruas com Passos Seguros por Bertolt Brecht



A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.


Os dominadores fazem planos para dez mil anos.

O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são

Nenhuma voz se levanta além da dos que mandam

E em todos os mercados se proclama a exploração;

Isto é apenas o começo.

E entre os oprimidos muitos dizem:

Não se realizará jamais o que queremos!

O que ainda vive não diga: jamais!

O seguro não é seguro. Como está não ficará.

Quando os dominadores falarem

falarão também os dominados.

Quem se atreve a dizer: jamais?


De quem depende a continuação desse domínio?

De nós!

De quem depende a sua destruição?

Igualmente de nós.


Os caídos que se levantem!

Os que estão perdidos que lutem!

Quem reconhece a situação como pode calar-se?

Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.

Os dominadores fazem planos para dez mil anos.

O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são

Nenhuma voz se levanta além da dos que mandam

E em todos os mercados se proclama a exploração;

Isto é apenas o começo.

E entre os oprimidos muitos dizem:

Não se realizará jamais o que queremos!

O que ainda vive não diga: jamais!

O seguro não é seguro. Como está não ficará.

Quando os dominadores falarem

falarão também os dominados.

Quem se atreve a dizer: jamais?


De quem depende a continuação desse domínio?

De nós!

De quem depende a sua destruição?

Igualmente de nós.


Os caídos que se levantem!

Os que estão perdidos que lutem!

Quem reconhece a situação como pode calar-se?

Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.




Berthold Brecht

Dia 23 de Fevereiro: Dia do Exército Vermelho

Exército Vermelho salva a humanidade do monstro nazifascista




Por José Levino


No capitalismo, as guerras são fruto da concorrência entre as classes dominantes de diferentes nações pelo domínio do planeta. Na primeira guerra mundial, formaram-se dois blocos imperialistas opostos: Alemanha, Itália e Japão, vencidos, de um lado; Grã-Bretanha, França e EUA, vencedores, do outro.
O sol nasce vermelho
Algo novo, entretanto, surgiu durante a 1ª guerra mundial: a revolução socialista de outubro de 1917, na Rússia; nova cisão ocorria no mundo, agora dividido em dois sistemas adversos: o capitalismo e o socialismo.
Os dois blocos capitalistas passaram a ter um objetivo comum: a destruição do primeiro estado operário-camponês da história, em vista da restauração do capitalismo em escala global.  Esse fim é que levou o bloco vencedor, especialmente os EUA, a investir na economia alemã 15 bilhões de marcos em seis anos (1924-1929).
Quando o hitlerismo se firma na Alemanha e explicita seu intento de domínio mundial, as potências capitalistas dominantes não tratam de combatê-lo. Ao contrário, fecham os olhos às suas agressões e até incentivam o monstro nazista a direcionar seu ataque para a União Soviética (URSS).
Em 1939, a URSS propôs a Inglaterra e França um pacto para ações militares conjuntas se os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), bloco nazifascista, iniciassem a guerra na Europa. Não houve rejeição formal, mas nenhum passo foi dado por parte dos países capitalistas para concretizar o pacto. Ao contrário, França e Inglaterra firmaram com Alemanha e Japão acordos de não-agressão. Deixada sozinha, em agosto de 1939, a URSS assinou com a Alemanha um tratado de não-agressão. Os dirigentes sabiam que mais cedo ou mais tarde Hitler romperia o acordo, mas conseguiram ganhar algum tempo para reforçar melhor sua capacidade de defesa.
De 1938 a 1941, Hitler ocupou  Áustria,  Checoslováquia, Polônia, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Noruega, Grécia, Iugoslávia e finalmente a própria França.   Na Europa central e oriental, a Alemanha fascista adquiriu imensa quantidade de material de combate, freios de transporte, matéria- prima e materiais estratégicos, tornando-se forte o suficiente para atacar a URSS.
A invasão hitlerista foi impiedosa. ’’Fuzilavam em massa as pessoas (mulheres, crianças, idosos, montavam campos de morte, deportavam para trabalho forçado na Alemanha. Por onde passavam, não deixavam pedra sobre pedra’’. Era a política do extermínio. “Eu tenho o direito de destruir milhões de homens de raça inferior que se multiplicam como vermes’’ (Hitler).
Em resposta, o governo, o PCUS, o povo soviético lançou a palavra de ordem: ’’Morte aos invasores fascistas, tudo para a frente! Tudo para a vitória!“  Às fileiras do Exército Vermelho se integraram milhões de homens. Criaram-se também inúmeros regimentos de milícia popular contando 2 milhões de combatentes.
Formou-se, ainda na retaguarda uma força guerrilheira massiva. A dedicação e bravura do povo soviético comoveram o mundo e foram decisivas para quebrar a resistência capitalista (EUA,Inglaterra,França). Formou-se finalmente o bloco aliado, antifascista, a frente única dos povos pela democracia.
Caíra por terra a idéia de Hitler de que a ocupação da URSS seria um passeio uma ‘’guerra relâmpago’’ Os nazis não imaginavam a resistência que encontrariam nas principais cidades: Leningrado, Stalingrado, Kiev e Moscou, entre tantas.  Homens, mulheres, idosos e crianças ergueram-se como muralha inexpugnável.
Os feitos do povo soviético repercutiram no mundo inteiro, levando um jornal burguês como o STAR, de Washington, a publicar: ”Os sucessos da Rússia na luta contra a Alemanha hitleriana revestem-se de grande importância não só para Moscou e o povo russo, como também para Washington, para o futuro dos Estados Unidos. A história renderá homenagens aos russos por terem suspendido a guerra relâmpago, pondo em fuga o adversário”.
Em junho de 1942, os invasores avançam,  mas encontram uma barreira instransponível em  Stalingrado. Durante quatro meses de combate, os invasores perderam 700.000 soldados e oficiais, mais de mil tanques, 2 mil canhões e morteiros, 1.400 aviões. Os invasores eram tecnicamente superiores, mas em novembro de 1942, os números já se invertiam em favor dos soviéticos. Os alemães estavam com 6.200.000 soldados, os soviéticos com 6.600.000; 5.000 tanques invasores contra 7.000 soviéticos; 51.000 peças e morteiros contra 77.000.
Na derrota do Stalingrado, os nazis perderam 1,5 milhões de soldados e oficiais. ’’… Do ponto de vista moral, a catástrofe que o exército alemão sofreu nos acessos de Stalingrado teve um efeito sob o peso do qual ele não pôde mais reerguer-se’’ (A segunda guerra mundial, B.Lideel Hart).
Depois, ocorreu a vitória do Cáucaso e se iniciou processo de expulsão em massa dos ocupantes nazistas. ’’A União Soviética pode orgulhar-se das suas heróicas vitórias”, escreveu o presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, acrescentando: “…os russos matam mais soldados inimigos e destroem mais armamentos do que os outros 25 estados das Nações Unidas no conjunto”.
O final de 1943 marca a virada na frente soviética e na Segunda Guerra em geral. O movimento contra o nazifascismo consolidou-se e ampliou-se em todo o planeta. A guerra estava decidida, embora os hitleristas ainda tenham resistido um ano e meio.
Em junho de 1944, com o exército nazi batido em todas as regiões da URSS, as tropas anglo-americanas desembarcaram no Norte da França, dando início à 2ª frente proposta pelo governo soviético desde o início da invasão.
Pode-se dizer que a essa altura a guerra estava decidida, diante da derrota alemã na Rússia. O próprio Winston Churchil, primeiro-ministro britânico, reconhece o papel fundamental dos soviéticos, no discurso pronunciado na Câmara dos Comuns em julho de 1944: ’’… Considero meu dever reconhecer que a Rússia mobiliza e bate  forças muitíssimas maiores que as enfrentadas pelos aliados no Ocidente, que há longos anos, ao preço de imensas perdas ela suporta o principal fardo da luta em terra’’.
Um Exército Libertador
Apesar de imensas perdas, o Exército Vermelho avançou no encalço dos alemães pela Europa Oriental a dentro, fustigando os nazistas e auxiliando as forças populares da resistência a derrotarem os ocupantes e seus colaboradores internos. Repúblicas democrático-populares foram instaladas com os partidos comunistas à frente na Polônia, Hungria, Iugoslávia, Checoslováquia, Romênia, Bulgária.
Para Berlim’’! Era a palavra de ordem do exército libertador. Não foi um passeio. A resistência nazista, embora enfraquecida, produzia encarniçados e sangrentos combates.
Os russos vitoriosos, não mataram, não pilharam, não se vingaram dos crimes cometidos pelo exército alemão no solo soviético. Ao contrário, alimentaram os famintos, organizaram a assistência médica, o funcionamento dos transportes, a distribuição de água e de energia elétrica. A 2 de maio de 1945, o Comando Supremo alemão assinou o ato de capitulação incondicional das forças armadas.
Sob novos céus
Terminada a guerra na Europa, era preciso voltar-se para a Ásia. O Japão, aliado dos nazistas dominavam milhões de pessoas na China, na Coréia, nas Filipinas. Apesar de as forças armadas dos EUA e da Inglaterra vir imprimindo sucessivas derrotas, as forças japonesas ainda eram numerosas e fortes. De vez em quando, elas atacavam as fronteiras da URSS e torpedeavam navios soviéticos em alto-mar.
No dia 8 de maio de 1945, a União Soviética declarou guerra ao Japão e começou a ofensiva  de 8 para 9 de agosto. Nesse mesmo dia, o primeiro-ministro japonês, Teiichi Suzuki afirmou: “…A entrada da URSS na guerra hoje de manhã põe-nos definitivamente numa situação sem saída e torna impossível continuar a guerra”. Estava certo. No final do mês, o Exército nipônico havia perdido 677 mil soldados e oficiais: 84 mil mortos e 593 mil prisioneiros.
Ao contrário do que muitos pensam, e a historiografia burguesa busca difundir, não foram as bombas estadunidenses lançadas no início de agosto contra Hiroshima e Nagasaki que provocou a capitulação japonesa. A guerra continuou normalmente depois do ataque bárbaro e covarde. A rendição resultou do destroçamento do exército nipônico pelas tropas soviéticas.
Se alguém duvida, leia o testemunho do general Chenault, que chefiou as forças dos EUA na China: “…A entrada da URSS na guerra contra o Japão foi o fator decisivo para o fim da guerra no Pacífico, o que sucederia mesmo sem o emprego de bombas atômicas. O rápido golpe desferido pelo Exército Vermelho sobre o Japão fechou o cerco que pôs finalmente o Japão de joelhos”.
O Exército Vermelho contribuiu ainda para a expulsão dos nazistas da China e da Coréia. O sacrifício do povo soviético foi inestimável. Mas valeu a pena porque livrou a Humanidade da besta nazista. Foi também a vitória do socialismo que saiu da Segunda Guerra triunfante em toda a Europa Oriental e na China.
Por todos, valeu a carta de agradecimento enviada pelo povo coreano a José Stalin, comandante supremo das forças soviéticas: “…Os combatentes soviéticos chegaram não como conquistadores, mas como libertadores. Emancipada da escravidão, a nossa pátria respirou livremente. O céu apareceu-nos radioso. A nossa terra floresceu. Jorraram canções de liberdade e felicidade…
José Levino, historiador

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

As Escolas de Samba no Rio de Janeiro e o atual debate sobre cultura popular

Da fama individual, do prestígio do sambista, monta-se o quadro de valoração da comunidade, agora era Mangueira, Oswaldo Cruz, Estácio entre outras. Um elemento novo surge, conforme já citamos, e queremos aqui chamar a atenção para este fato, o surgimento das Escolas de Samba vai representar, entre outras coisas, a oportunidade das comunidades a elas ligadas de mediarem seus interesses frente a uma estrutura política que até então pouco as incorpora.



Por Guilherme Vargues

O olhar folclórico para com o povo e suas manifestações culturais pode desembocar naquilo que Roger Chartier chama de uma visão elitista ou exótica, marginal, insuficiente da cultura popular. O autor chama a atenção para a problemática dos dois tipos de apreensão mais comuns em voga acerca do tema:
"O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e carências em relação à cultura dos dominantes. Temos, então, de um lado, uma cultura popular que constitui um mundo à parte, encerrado em si mesmo, independente, e, de outro, uma cultura popular inteiramente definida pela sua distância da legitimidade cultural da qual ela é privada." (Chartier: 1995)
Esta é exatamente a dualidade que acompanha a temática. E pode ser vista funcionando ao mesmo tempo em um mesmo autor, enfatizando ora, uma autonomia simbólica da cultura popular, ora a sua dependência frente a cultura dominante. É exatamente este referencial que nos traz a discutir as Escolas de Samba no Rio de Janeiro, a luz de um perspectiva teórica que problematize o que consideramos visões ora elitistas, ora românticas acerca da cultura popular.
O popular deve aqui ser caracterizado por sua essência, e não somente por sua posição em relação às classes hegemônicas. Fica clara a necessidade de fugir de um maniqueísmo que reduza a relação entre hegemonia e subalternidade a um mero conflito bipolar. Percebemos em nossos estudos, que somente alguns registros parciais podem diagnosticar uma espécie de autonomia e resistência das classes populares pura, isto é, dar continuidade a suas tradições (como que em um combate) em oposição a cultura e as ideologias dominantes. Percebemos no mais, a oposição dos defensores da cultura pura, a percepção de um moderno hibridismo cultural e as diversas estratégias de defesa, legitimidade e mesmo superação impostas pelos setores populares.
Nos parece bastante apropriada a visão de Cahrtier aqui, ao argumentar sobre a possibilidade da existência de uma cultura livre, viva e profusa que teria sido recriada a luz da vontade dos setores hegemônicos, conforme o autor recriando o imaginário cultural da modernidade européia: "Ao impor disciplinas inéditas e novas submissões, ao inculcar novos modelos de comportamento, os Estados e as Igrejas teriam destruído em suas raízes e seus antigos equilíbrios um modo tradicional de ver e de viver o mundo?" (Chartier:1995) O autor está a rebater a visões que compreendem o popular e sua reorganização cultural como um processo meramente orquestrado pelas elites. A par da modernização conservadora que toma foco no reboliço político e social brasileiro nos arredores do movimento político de 1930, negligenciar o papel dos populares a mera submissão e adequação a ordem, ou mesmo de resistência pura de suas tradições, é negligenciar o papel do povo na formatação do novo regime que estava por ser formar. O estudo das Escolas de Samba no Rio de Janeiro a luz da problemática dos estudos sobre cultura popular é elemento fundamental para entender não só as particularidade da nossa modernidade, mas também do comportamento do povo frente ao cenário político e social que as elites tentam invocar ao país, mesmo quando estas optaram por mudar as atitudes e valores do resto da população ou por suprimir, ou ao menos purificar, vários elementos da cultura popular tradicional.
O que acontece a cultura dita popular é o que acontece com todo fenômeno cultual, tradição e renovação se afirmam dialeticamente, incorporando em seu patrimônio elementos que aos olhos "folcloristas" podem parecer estranhos a sua formação.
Para ilustrar o debate vou me remeter ao início do século passado na cidade do Rio de Janeiro. Estamos na época da reforma urbanística de Pereira Passos. O que acontecia é que o governo destruía os cortiços, ou na expressão de Aluísio de Azevedo, "as pequenas repúblicas" (um público autônomo) sem integrá-las numa república maior que englobasse todos os cidadão da cidade. Nesse sentido, enquanto ia aumentando a segmentação social e o distanciamento espacial (em vias do deslocamento das habitações para subúrbios e morros cariocas) as "repúblicas" da cidade iam aos poucos forjando novas realidades sociais e culturais bastante ricas e por vezes mais intensas que os verso parnasianos e simbolistas que compunham as referências européias das elites. Cada vez eram mais fortes eventos como a Festa da Penha e as rodas de samba de terreiro ao redor da Praça Onze, onde se firmou parcela da população desalojada pelo "bota abaixo" do prefeito. Tal como acontecia também ao futebol, esporte das elites cada vez mais apropriado a sua forma pelos marginalizados. Dessa forma, "o mundo subterrâneo da cultura popular engoliu aos poucos o mundo subterrâneo da cultura das elites". Do liberalismo excludente foram surgindo os elementos que formariam uma primeira identidade coletiva da cidade, "materializadas nas grandes celebrações do carnaval e do futebol" (Carvalho, J.M, 1987: 39-41) Celebrações que comporiam em suas atividades novos e antigos elementos culturais, oriundos ou não da mediação entre povo e elite.
Se é verdade que o samba passa a ocupar um espaço especial na sociedade carioca do início do século passado este se dá com transformações em suas práticas que se dão em sentido de mediação com agentes externos a sua formação. Ao mesmo tempo em que percebíamos o fortalecimento de uma contínua criação/recriação da identidade afro-brasileira, integração social por parte das comunidades e solidariedade, onde esta última aparece como fruto histórico das relações estabelecidas para a sobrevivência entre as camadas pobres da população. Percebemos também que as culturas estão em relação, havendo trocas entre elas, não existindo cultura pura, "e que o outro não é nunca absolutamente o outro e que há sempre algo de nós nos outros" (Cuche, 1999:243).
Este processo fica cada vez mais evidente com o "sucesso" dos desfiles carnavalescos. Sua legitmidade, aceitação e transformação. Julgo aqui necessária mais um citação de Chartier, acerca da relação cultura popular x cultura hegemônica:
"Nem a cultura de massa do nosso tempo, nem a cultura imposta pelos antigos poderes foram capazes de reduzir as identidades singulares ou as práticas enraizadas que lhes resistiam. O que mudou, evidentemente, foi a maneira pela qual essas identidades puderam se enunciar e se afirmar, fazendo uso inclusive dos próprios meios destinados a aniquilá-las". (Chartier:1995)
Podemos então perceber, que as relações de poder que estão em jogo nas incursões acerca da cultura popular não podem mais ser compreendidas somente como, nas palavras de Nestor Canclini, "em uma ação dominadora exercida verticalmente sobre os dominados, ela passou a ser considerada como uma prática descentrada e multi-determinada nas relações políticas, cujos conflitos e assimetrias são moderados pelos compromissos entre os atores colocados em posições desiguais". (Canclini, 201: 2003). Isto é, não nos parece possível uma manipulação onipotente das relações sócio culturais.
A escola de samba não foge ao tema e toma relevo quando pode ser compreendida dentro desta perspectiva analítica, não foi assaltada nem tão pouco "dirigida" para o processo que culminou nos desfiles monumentais de nosso tempo. Simplesmente a Escola de Samba como processo cultural complexo ampliou seu patrimônio social, transformando-se e transformando suas comunidades, o fazer política dos cidadinos, enfim, a própria cultura política e social da cidade. Ao incorporar-se como porta voz do povo pobre da cidade, a Escola de Samba desloca a legitimidade exclusiva de alguns compositores para a legitimidade da comunidade. Ao ampliar sua capacidade de negociação modifica a realidade comunitária, tal como modifica-se complexizando-se cada vez mais.
Porém, retornando ao debate acerca da cultura popular, podemos continuar afirmando, que a cultura popular não é pura, por vezes a tentativa de assim faze-la está mais próxima de uma invenção com fins políticos. E ademais, como salienta Gilberto Velho: "o fenômeno da diferenciação é identificado tanto dentro das camadas populares como das elites" (Velho,1993:59). Isto é, a hibridização cultural é para alem do popular, manifesta-se em qualquer aparição cultural. Vamos afirmar então, que não só, não existe cultura pura, como concordamos com Canclini quando este afirma que "o popular não é monopólio dos setores populares [...] a preservação pura das tradições não é sempre o melhor recurso popular para se reproduzir e reelaborar sua situação" (Canclini,1992:205). As tradições podem ser modificadas, como nas palavras de Hermano Vainna: "a 'promiscuidade' entre 'elite brasileira' e 'povo brasileiro' - que foi fundamental para a valorização das 'coisas brasileiras' - não foi um acontecimento sui generis do Brasil do início do século, mas algo que ocorreu com todas as sociedades, em todas as épocas" (Vianna, 1995: 171) Assim não interessa aqui recolocar qual é o popular mais autêntico, ou ainda "isolar" o popular do hegemônico e vice-versa.
O processo cultural é um processo do tipo toma lá, toma de cá. Seria porém ingênuo de nossa parte menosprezar o poderio cultural e político da cultura hegemônica. E acho que em Vianna - ao não separar os dois terrenos - podemos chegar a esta confusão. "Não interessa aqui definir o que é popular, ou ainda diferenciar o popular do hegemônico". Os interesses das elites, o poder da moderna indústria cultural, a opressão para com o povo, o restrito acesso a informação e educação, tal como os próprios valores e tradição do grupo, ao meu entender forma ainda uma pauta bastante desigual na capacidade de cada grupo interferir e se manifestar.
Podemos, a par das relações entre popular e erudito. Entender as particularidades da cultura popular como local de produção cultural. Não me parece bom o caminho de que já que os limites da interferência de uma em outra são bastante intensos cair na idéia de que é impossível visualiza-las. Uma visão que pode nos ajudar aqui é a de Marilena Chaui, onde a cultura popular não deve ser vista como uma totalidade em oposição antagônica à totalidade dominante, (tal como destacamos) mas reconhecida num "conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência que possuem lógica própria" (1996: 25), onde estão presentes o conformismo, inconformismo e a resistência à cultura dominante, que é o que distingue cultura popular da cultura dominante.
Ou na visão de Ginzburg no seu Queijos e Vermes: "Os populares não aceitam tal discriminação (por parte das elites), investindo toda a sua energia em manifestações culturais, garantindo a expressão de suas necessidades, anseios e aspirações, nisto que a cultura configura-se como o principal veículo de coesão e de construção de uma identidade própria, especialmente num contexto que lhes exclui do reconhecimento de direitos. Inclusive, desde muito cedo, desenvolveram-se as trocas culturais, interpenetrando-se suas manifestações com aquelas dos segmentos mais elevados" (1997).
A par desta polêmica tendo a aproximar-me destas últimas visões que independente do sistema de trocas que se estabelece entre as diversas manifestações culturais (ou mesmo entre as diferentes culturas) estas tomam elementos particulares em suas estratégias de difusão, preservação, afirmação que estão intimantes ligados a realidades social do agente. Por mais que está relação de troca esteja ativa, a cultura das elites é muito menos permeável ao elemento popular que o contrário.
E.P. Thompson tenta nos chamar a atenção para com generalizações. A cultura é uma arena de elementos conflitivos que sob pressões imperiosas assumem a arena de um sistema. Falar em consenso pode distrair a nossa atenção para com as contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto. (1998: 17)
Porém, a afirmação de Ginzburg é bastante pertinente em um cenário que já destacamos, isto é, de isolamento da população marginalizada na cidade o que levou o reforçamento dos laços de identidade cultural e sociabilidade destes grupos, construindo forte identidade e solidariedade, tal como "desenvolveram-se as trocas culturais, interpenetrando-se suas manifestações com aquelas dos segmentos mais elevados".
Porém este é um processo que não é fruto de iniciativa só do elemento popular. Desde o interesse de intelectuais ensaboados pela lente modernista, até de políticos que percebem estes novos estratos como fundamentais para construir alguma esfera de poder político(o tradicional político da bica de favela). Inevitavelmente, depois do crescimento das comunidades e de suas representações culturais o "consenso polítco" deveria se ampliar passando por lá também. Principalmente quando este percebe sua força.
Percebemos então que são trocas mediadas. E entendemos por mediação cultural a ação dos indivíduos e grupos, ou o local de realização, que efetiva uma relação de troca entre indivíduos, grupos, espaços, de culturas diferentes. A força da cultura popular leva diversos intelectuais a se aproximarem do mundo do samba1. Atenuando pela flexibilidade cultural dos bantos o Rio de Janeiro, por volta de 1920, era a própria imagem da autonomia popular associada à crescente atração que seus intelectuais exerciam sobre diferentes estratos sociais - primeiro, acolhendo-os em seus redutos sagrados (do que o terreiro da Tia Ciata é um dos exemplos mais festejados) -, e, ao longo do tempo, redefinindo, efetivamente, a produção intelectual de literatos, jornalistas, músicos e publicistas, cuja imaginação não mais desconheceria o ambiente dos subúrbios e cortiços, os tipo populares, os plots alternativos à representação ficcional do ethos burguês (Carvalho, 2005:41).
Mais do que partir ao conflito o popular abriu seu mundo aos interessados de fora. Acusado de selvagem, desordeiro e violento deu tônica mais ordeira ao seu mundo. As Escolas de Samba já são uma representação de um tempo onde a ordem sobrepõe a desordem. Uma espécie de vitrine das transformações do mundo do samba que quer legitimidade, que quer inserção social. Neste sentido aponto as Escolas de Samba como elemento fundamental na transformação das relações entre comunidades carentes e poder público. Tal como também na disseminação da cultura afro-brasileira.
No final dos anos de 1920 o samba do morro mostra a sua cara, e ele e suas comunidades começam aos poucos a ganhar notoriedade. Conforme o escritor Nei Lopes: "esse samba só começou a adquirir os contornos da forma atual ao chegar aos bairros do Estácio e de Osvaldo Cruz, aos morros, para onde foi empurrada a população de baixa renda quando, na década de 1910, o centro do Rio sofreu sua primeira grande intervenção urbanística. Nesses núcleos, para institucionalizar seu produto, então, foi que, organizando-o, legitimando-o e tornando-o uma expressão de poder, as comunidades negras cariocas criaram as escolas de samba". (Lopes,2005)

Da fama individual, do prestígio do sambista, monta-se o quadro de valoração da comunidade, agora era Mangueira, Oswaldo Cruz, Estácio entre outras. Um elemento novo surge, conforme já citamos, e queremos aqui chamar a atenção para este fato, o surgimento das Escolas de Samba vai representar, entre outras coisas, a oportunidade das comunidades a elas ligadas de mediarem seus interesses frente a uma estrutura política que até então pouco as incorpora.
Tal como nas palavras de Sérgio Cabral ao relatar o surgimento da "primeira escola de samba", "o Deixa Falar além de reunir os jovens e revolucionários compositores do bairro, pretendia também melhorar as relações dos sambistas com a polícia". (Cabral,1996:41) Evidente que a incorporação do samba pela sociedade carioca tinha reduzido bastante a perseguição ao sambista, porém não podemos dizer esta caminhou em paralelo a exclusão social e a discriminação violenta da população negra carente.2 O processo de formação da Deixa Falar, seguido logo por Estação Primeira de Mangueira (junção de diversos blocos situados no morro de Mangueira) e Oswaldo Cruz (a "futura" Portela) mostram a tendência a organização em busca da legitimidade3 de suas agremiações, e é nesse momento que a ordem começa a sobrepor a desordem. O relato da impressa, de pesquisadores do assunto, de cronistas de época demonstra uma preocupação grande destes sambistas em mostrar-se ordeiros, "civilizados", para uma sociedade que os olha politicamente com bastante receio e preconceito. Por outro lado, formaliza-se - nos anos que envolvem 1930 - também por parte do poder público e pelas elites culturais um processo que já tinha se desencadeado alguns anos antes de valorização, mesmo que de forma mediada e por vezes "folclorizada" de raízes e manifestações "puras" e autênticas da cultura popular brasileira.
Dessa forma concordamos com Fenerick ao afirmar que: "o samba moderno não poderia ser feito apenas pelo (ou no) morro, ou apenas pela (ou na) cidade, ele precisava dos dois universos culturais agindo mutuamente para a sua criação e difusão." (2002) Exatamente assim se dá a integração, o patrimônio se amplia, as tradições se recriam e se constrói uma manifestação cultural que tem a marca da mediação entre comunidades carentes, Estado, outras instituições, industria cultural e ainda de uma diversidade de 'mediadores culturais' oriundos de diversas outras classes sociais.
Este processo se radicaliza no pós 1930. Podemos dizer que ai se firma um novo pacto entre populares e Estado. O novo governo volta-se para o povo4 fortalecendo a idéia de integração e valorização do sentido nacional, busca das tradições mais puras, onde o povo coloca-se como base de uma nação a se construir. Valorizam-se as culturas populares anunciando um rompimento com a política de isolamento da República Velha.
As Escolas de Samba são um elemento bastante forte da expressão popular. O que vai acontecer com mais força a partir de agora é, por um lado, a afirmação dessa expressão, os populares se afirmam nas 'escolas', pois encontram nelas formas alternativas de organização, sociabilidade, solidariedade, legitimação de sua identidade, maior acesso a um público mais integrado, por outro lado, o Estado busca nesta a ampliação da sua legitmidade, beneficiando-as aproxima-se do povo que pouco o conhece. O relacionamento aquece entre estes segmentos.
Estado, imprensa vão passar a organizar, financiar e promover desfiles. Estes meio que 'montam' o regulamento (adaptando ora ali, ora aqui como era antes) e negociam a tônica do processo. Eles, os sambistas, tem a legalidade e o reconhecimento cada vez maior do seu espetáculo, logo, da sua comunidade, da sua cidadania, do seu respeito e auto-estima individual e etc.
Inicia-se um processo de concessões mútuas, de aproveitar todas as brechas criativamente. "Desfazendo-se de imagens anteriores de um comportamento rixoso e insubmisso, pode-se interpretar esta colocação de Paulo da Portela: devemos impor a cultura e a arte de nossa raça, respeitando e fazendo respeitar as normas e leis. O sambista deve ser responsável e correto, cultivando a união e evitando a violência. Paulo da Portela seria exemplo de diplomacia, atuando como uma espécie de relações pública da escola [...]. Nesse movimento para conquista de espaços podem ser entendidas as homenagens prestadas aos líderes políticos, como o prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, em cujo governo se deu o reconhecimento oficial as escolas de samba". (Soihet, 2003: 317)
Os desfiles agora (1936) já eram oficiais e patrocinados pela prefeitura e imprensa. Esse não foi um ultimato do poder público, mas me parece mais uma estratégia dos sambistas em busca da sua ascensão. No entanto o patrimônio cultural das escolas de samba e sua produção artística vai se transformando, mediando desejos e interesses que estão para além da motivação original, a tradição se recria e se estabelece como original novamente. Tradição inventada que envolve poder político e social. As Escolas de Samba (porque o samba vira Escola de Samba lá pelos anos 50/60) vão tornando-se o símbolo da nacionalidade.
Monique Augras traça uma importante análise do papel dos concursos de escolas de samba, para a autora, "do ponto de vista do controle social, os concursos são sem dúvida eficazes. Premiar o desempenho de determinado grupo permite reforçar padrões de representação e dissuadir outros grupos de seguir rotas desviantes. Sob a aparência de valorizar a produção desses grupos, o concurso institui uma hierarquia de valores, estéticos alguns, ideológicos quase todos, que, ao legitimar certas atuações e desqualificar outras, acaba assegurando a manutenção de um modelo estável e de fácil fiscalização. E o primeiro passo para tanto é a regulamentação do desfile" (Augras, 1998:31).
Mas temos que deixar claro que esta é uma ação para além do poder público. Antes mesmo do Estado obrigar as escolas a desfilarem com temas nacionais estas já o faziam, seja por boa conduta, seja por envolvimento no rebuliço político e cultural que invade o país. E poderíamos argumentar, que causa estranhamento, os ideólogos do Estado Novo teriam escolhido logo este gênero marginal como grande expressão cultural brasileira, contra argumentamos dizendo que esse êxito, do mundo do samba, se deveu muito mais a ação dos populares, para os quais o carnaval se constituiu naquele momento via prioritária de afirmação de sua identidade no que Soihet caracteriza como um processo conflituoso, caracterizado por lutas e negociações contínuas, com avanços e recuos que se redimensionaram e se reorganizaram mútua e dialeticamente.
E ademais, o interesse nascido de dentro para fora isto é, dentro de suas comunidades para a sociedade fortalece aquilo que Roberto Da Matta chama de garantia de sua autenticidade e permanência.
Olha, vocês vão preservar as cores da nossa escola. Vocês vão amar a Mangueira e nunca deixá-la, porque esse verde que tem nela simboliza o futuro, a esperança e vai brilhar muito, como uma estrela brilhando, e esse rosa é o amor.
Vocês tem que primeiro amar a vocês mesmas para depois passar a amar essa bandeira, para nunca deixem ninguém colocar lama nela.5
Neste sentido as Escolas de Samba tornaram-se poderosos mediadores de seu patrimônio cultural de sua identidade e de suas comunidades. Funcionaram diversas vezes como grandes associações de moradores negociando os interesses que rondavam seus locais de origem, ora cedendo, ora crescendo, mas produzindo um processo cultural híbrido que só pode ser compreendido através das essências culturais, das interações entre a diversidade dos interesses e agentes colocados em questão. Estas construíram uma dimensão privilegiada e até então inexistente na cidade, a da cidadania cultural.

Notas
1- Para Hermano Vianna, o samba teria sido elevado ao status de símbolo nacional favorecido por um contexto cultural em que se ganhava força o interesse por "coisas brasileiras". Dentro deste cenário, o samba teria chegado à sua condição destacada, o que teria sido possibilitado, também, pela ação de "mediadores culturais", que levariam elementos da "cultura popular" a uma "cultura de elite" que a desconhecia em boa parte. Em nosso estudo percebemos que um processo por si só conduzido por este tipo de mediação levaria a uma "folclorização" do samba, o que evidentemente não aconteceu.. Vale aqui lembrar a letra de um samba de época: Samba de partido-alto / Só vai cabrocha que samba de fato / Só vai mulato filho de bahiana / E gente rica de Copacabana
2- Por mais que estejamos afirmando aqui que pelos anos de 1920 o samba do morro começa a ganhar cenário, uma matéria de jornal de 1929 mostra que este ainda é visto com muito preconceito frente as outras manifestações carnavalescas, veja só: "Pernas finas e tornas escolhem sempre calções curtos e camisetas que deixam ver pobres peitos deprimidos. Tem-se a impressão de esqueletos cobertos com uma camada lacônica de pele e carne mumificada. Por outro lado, indivíduos de origem muito recente na Ethiopia, com as mesmas camisetas de meia, axilas à mostra onde parecem localizar-se ninhos de rato". (Poubel, 2004) Não podemos confundir as coisas, afirmação mesmo, só lá para 1940/50 em diante. A condição melhora, mas não é um mar de rosas.
3- É importante entender que este desejo por legitimidade não é só pressão das "autoridades". A idéia de morro 'ordeiro' nas entrevistas e textos que pesquisei me parece também um processo que atinge a vontade da comunidade. Quanto mais ordeiro, mais aceito, e, me parece, por ambos os lados.
4- Não estamos dizendo que o governo Vargas amplia a participação popular, mas o povo amplia seu poder de barganha no consenso político que se formava. A alcunha de pai dos pobre tem este sentido. Concessões e trocas, favores e apoio.
5- Cartola faz um pequeno discurso para o "povo" da Escola quanto a preservação e defesa da Mangueira.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

As Malvinas e a sujeira por baixo do tapete

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Elaine Tavares - A vinda do príncipe William às Malvinas para treinamento militar, e o anúncio da Inglaterra de que enviará o moderno navio de guerra HMS Dauntless para patrulhar as águas do arquipélago detonou uma série de denúncias sobre a militarização do Atlântico Sul e trouxe a tona uma série de questões não resolvidas do conflito sobre a retomada da soberania das ilhas levada a cabo pelos militares em 1982.

Charge de Carlos Latuff
Naqueles dias, já na agonia do regime militar, a ditadura enfrentava problemas demais. O modelo econômico estava esgotado, havia um reboliço social, a inflação alcançava patamares altíssimos, a miséria assomava. A saída encontrada pela junta militar foi o apelo ao patriotismo. E desde aí, o chamado para a guerra contra a Grã-Bretanha no sentido de recuperar as ilhas que haviam sido invadidas em 1833 durante o período em que os ingleses fizeram da América Latina o seu espaço de poder colonial. A primeira ocupação do arquipélago aconteceu em 1690, pela Espanha, então invasora oficial, e desde aí França e Inglaterra lutavam pelo comando até que em 1833, quando a América Latina terminava seu processo de libertação colonial, a Inglaterra consolidou seu poder sobre as ilhas. Os argentinos, depois de finalizado o processo de libertação, sempre reivindicaram aquele espaço como seu. Assim, o motivo da disputa era mais do que justo, embora o momento e a forma só servissem para desviar a atenção dos problemas internos. O resultado só poderia ser o desastre.
Nesse sentido, a jogada dos militares foi, na verdade, o começo do fim do regime. A guerra durou dois meses apenas, com a Argentina sendo solapada pelo exército britânico. Morreram 649 soldados argentinos, 255 britânicos e três civis das ilhas. E, ao final do conflito, com o governo militar sendo deixado sozinho pelas demais nações, quem acabou pagando caro, como sempre, foi o povo, tanto o argentino que sofreu o terror da guerra em sua porta (com a vinda de bombardeiros nucleares para a costa), quanto o inglês. A Inglaterra vivia naqueles dias um processo eleitoral e a guerra foi a hora perfeita para aprofundar as medidas de arrocho que já vinham sendo praticadas pela dama de ferro, Margareth Tatcher.
Hoje, perto do aniversário de 30 anos do conflito, a militarização na área das Malvinas faz acender o pisca alerta. Aquela não é uma região qualquer. Geopoliticamente é a entrada para a região Antártica e estratégica no que diz respeito ao tráfego marítimo no espaço austral. Além disso, fala-se em prospecção de petróleo por parte da Inglaterra. Do ponto de vista da lógica, não há argumento para que o arquipélago continue na mão dos ingleses, uma vez que historicamente, na América Latina, o colonialismo já teria acabado. Assim, nada mais justo que aquele território voltasse para as mãos do povo argentino. Esse é um debate que mexe com as entranhas de qualquer cidadão do país vizinho.
Assim, os últimos acontecimentos soam como uma provocação ao governo argentino, que vive uma conjuntura bem diferente da época da guerra. Já não há mais uma ditadura militar e sim um governo que não é bem visto pelo grupo dos poderosos. Cristina Kirchner faria parte do chamado eixo-do-mal (governos de esquerda) que governa hoje o continente latino-americano.
Para os argentinos, esse seria um bom debate, pois há uma grande parte da população que não colocaria na presidente essa etiqueta de esquerda. Basta ver os constantes conflitos e a feroz repressão que os trabalhadores vêm enfrentando nas grandes cidades, no campo, na luta contra as mineradoras, na questão indígena, sem que Cristina assuma uma posição favorável à maioria.
De qualquer sorte, a presidente pegou a pauta apresentada pelos ingleses e tem feito duras declarações e denúncias sobre a militarização das Malvinas, exigindo, inclusive, uma posição da ONU com relação a isso. A crise reacendeu também um pouco do patriotismo que andava apagado e os veteranos da guerra voltaram à cena, fazendo manifestações e se colocando do lado da presidente.
Mas, nesse universo de gente que lutou contra a Inglaterra naquela guerra quase absurda, pois visava muito mais o fortalecimento da ditadura, gente há que até hoje não foi reconhecida pela lei como veterana de guerra. São os soldados que estiveram em alerta e a postos no continente. Segundo a lei que definiu indenizações e pensões aos veteranos de guerra, apenas aqueles que participaram do campo de batalha nas ilhas e no mar tiveram direito de ser reconhecidos. Os soldados que ficaram no continente não foram considerados veteranos, coisa que se colocou inaceitável por toda uma juventude que viveu o terror por dois meses, sempre em alerta contra uma possível invasão pelos ingleses: "nós vivemos todo o estresse de uma guerra real. Nós esperávamos a cada minuto que um avião bombardeasse nossas cidades, nós estávamos em prontidão, sofrendo e vivendo todas as angústias das batalhas. Não é justo que nos abandonem agora”, afirma Luis Gianini, do Acampamento Toas da Plaza de Mayo, que representa mais de 400 ex-soldados.
Esse acampamento foi erguido há quatro anos exigindo o reconhecimento destes soldados, reivindicando que sejam incluídos no orçamento das aposentadorias. Todos os dias, a presidente Cristina os vê de sua janela, faça chuva ou faça sol. Mas, passado todo esse tempo nada foi conseguido, como se a governante fosse incapaz de ver e ouvir o clamor das famílias que se revezam no acampamento. O governo segue dizendo que os soldados que ficaram no continente não participaram da guerra e por isso não teriam direito. Para os manifestantes, essa posição é absurda e ninguém está disposto a desistir dessa luta.
Agora, na última semana, com a retomada do tema pela grande imprensa eles decidiram fazer uma manifestação na 9 de julho (principal rua de Buenos Aires), para que seus argumentos pudessem ser ouvidos, mas foram duramente reprimidos pela polícia com caminhões lança-água e bombas de gás. Vinte e quatro pessoas foram presas. Para os manifestantes, essa é só mais uma brutalidade do governo que já os pune por não reconhecê-los. Mas, isso não os fará calar nem desistir da luta. Nos últimos anos, os veteranos das Malvinas conquistaram aposentadorias bastante polpudas (cerca de 1.500 dólares) e esses 400 soldados que viveram todos os terrores da guerra, ainda que não tenham entrado em batalha, querem fazer valer seus direitos. "Para nós, muito mais do que o dinheiro é o reconhecimento. Nós estivemos na guerra, nós sofremos tudo aquilo e a nação argentina não pode nos excluir dessa triste página da história”.


Elaine Tavares é jornalista do Instituto de Estudos Latino-americanos

Fonte: www.diariodaliberdade.org