sexta-feira, 2 de março de 2012

As intenções do ambientalismo de mercado na Rio+20



Tendências da economia verde buscam na extrema mercantilização da natureza uma saída para o capitalismo em crise

Vinicius Mansur


Em 1992, governos de todo o mundo aterrizaram sobre o Rio de Janeiro para a Cúpula da Terra, também conhecida como Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento ou ECO 92. Ali estabeleceu-se pela primeira vez uma agenda global com o intuito de buscar a conciliação entre desenvolvimento e sustentabilidade. Foram criadas a Convenção sobre a Diversidade Biológica, a Convenção das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a Convenção de Combate à Desertificação e a Comissão de Desenvolvimento Sustentável, esta última responsável por dar continuidade à agenda assumida.
Passados quase 20 anos, foram realizadas 17 Conferências das Partes (COP) sobre mudanças climáticas, 9 COPs sobre desertificação e 10 sobre biodiversidade. Muitas promessas e medidas foram tomadas, mas os desequilíbrios climáticos se aceleram pelo mundo, a biodiversidade vegetal e animal está em regressão, os desertos crescem, as florestas e as zonas úmidas encolhem. Uma das explicações está na falta absoluta de mecanismos que determinem o cumprimento dos acordos estabelecidos nestes encontros e preveja punições aos infratores. Como aponta a pesquisadora e advogada da ONG Terra de Direitos, Larissa Packer, “a obrigação é mais moral do que jurídica”, uma vez que as decisões não são vinculantes, como são na Organização Mundial do Comércio (OMC), e não há uma espécie de Tribunal Internacional Ambiental, capaz de sancionar aqueles que descumpram os acordos assinados nas esferas da Organização das Nações Unidas (ONU).

Força empresarial
Apesar de valorosos esforços empreendidos nestas conferências, seja por representantes governamentais ou pelas inúmeras articulações sociais que clamam por mudanças, ainda que sem poder oficial de voz, a incapacidade de governança sobre os rumos do desenvolvimento prevaleceu. Ao fim e ao cabo, este poder paira sobre uma estreita, mas poderosa, rede de empresas transnacionais. Segundo um estudo publicado em julho de 2011 pelo Instituto Federal de Tecnologia da Suíça (ETH Zurique), com base em análise de 43.060 mil transnacionais, localizadas em 116 países, apenas 737 empresas controlam 80% do valor de todas elas, sendo 147 corporações controladoras de 40%.
Estas corporações não se mantiveram avessas, ao longo do tempo, ao problema ambiental. Ao contrário, o problema reside justamente na paulatina hegemonização destas conferências pelas soluções que mercantilizam os bens comuns e da natureza, conformando o que o discurso corporativo chama de “economia verde”.
“A alternativa para o cumprimento das convenções é – e eu ouvi isso do secretário da Convenção da Diversidade Biológica que é um brasileiro, Bráulio Dias, então secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente – nós convencermos o setor corporativo da importância da biodiversidade, do seu valor econômico. O ambientalismo de mercado prega que o valor da mercadoria não é só formado pelo gasto de energia, gasto com o trabalho, custos fixos, etc, também deve-se inserir neste cálculo o custo ambiental ou as “externalidades ambientais”. Por isso, estão desenvolvendo instrumentos de valoração econômica da polinização das abelhas, da captura do carbono e de outros serviços ambientais. Mas como calcular isso?”, indaga Packer.

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Economia verde e o capitalismo
A grande expectativa do ambientalismo de mercado na Rio+20 é avançar no reconhecimento internacional destes instrumentos de valoração da natureza e compatibilizar legislações mundo a fora que regulem o regime de propriedade e o comércio neste novo mercado, permitindo, sobretudo, a sua entrada nas Bolsas de Valores. Este processo não é essencialmente novo: desde 1968, a partir das novas regras de propriedade intelectual estabelecidas pela OMC e obrigatoriamente internalizadas em forma de legislação por seus países membros, as sementes são objeto de patentes, o que, tempos mais tarde, deu origem à realização mais bem acabada de propriedade privada sobre formas de vida, os transgênicos.
Não é por acaso que já circula nos grandes meios de comunicação que “está crescendo a ideia de se criar uma OMC ambiental”, proposta desenhada pela França e Alemanha, podendo ser este um dos “grandes feitos” da Rio+20.
Por trás das propostas corporativas, como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que oficializa o mercado de carbono como política de combate às mudanças climáticas, o REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) e o TEEB (A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade, por sua sigla em inglês, uma metodologia para estipular valor econômico à biodiversidade), estão a criação de instrumentos financeiros, num movimento que a pesquisadora Larissa Packer qualifica como uma “acumulação primitiva do capital”, no qual bens como ar, água e biodiversidade passam a ser novos lastros para o mercado financeiro gerar valor em cima de valor. “O mercado de carbono é uma primeira tendência de internacionalização de coisas que até então eram inapropriáveis pelo capital fictício”, destaca.
Com a bolha do capital financeiro em constante risco de estourar, especialmente depois de 2008, com a crise do subprime nos EUA, existem trilhões de dólares em busca de novos lastros para aterrissar. Não é por acaso que, enquanto a “economia verde” desenvolve suas bases legais, científicas e infraestruturais, os países em desenvolvimento vêm sofrendo nos últimos anos um ataque brutal sobre suas terras.
A assessora da Terra de Direitos, Larissa Packer, ressalta as consequências perversas da aplicação da lógica do mercado financeiro no combate a degradação ambiental. “Quanto mais escassa uma mercadoria, mais valiosa. A cada mudança climática, as bolsas de valores se adaptarão para valorizar os títulos. Quanto mais desmatamento, maior o valor dos títulos. Assim, vão inflar a bolha verde”, conclui.

Fonte: www.brasildefato.com.br

Islândia, a ilha-laboratório

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Por João Moreira Salles



Três anos depois de um colapso financeiro devastador, país é tido como exemplo por manifestantes europeus, economistas reputados e organismos internacionais. Na iminência da derrocada do projeto europeu, o país tem mesmo algo a ensinar?

O rapaz empunhou o megafone: "Esta é uma mensagem dirigida a todos os meios de comunicação!" Atrás dele, Jaime I, conquistador de berberes, dominava do alto de seu cavalo a Plaza de España, em Palma de Maiorca. O céu estava azul. "Há uma mudança em curso. Em nome dela, estamos nos reunindo em várias partes do mundo." Eram todos indignados naquela tarde de maio do ano passado e, como outras multidões de jovens em mais de cinquenta cidades espanholas, estavam ali para protestar contra a crise econômica.
Ao fundo, um manifestante começou a escalar a estátua equestre. "Temos o exemplo de um povo que iniciou este movimento soberano já faz tempo. O povo islandês soube agir em favor da justiça social. Eles se negaram a pagar a dívida pública contraída por terceiros e conseguiram punir os responsáveis pelos abusos. Tudo isso graças à união do povo que tomou as ruas. Nosso objetivo é seguir o exemplo deles e, por isso, damos a esta praça o nome de Plaza de Islandia!" O escalador fincou na mão erguida do conquistador a bandeira desfraldada da Islândia, que tremulou sobre a praça. Nas semanas seguintes, os indignados chegariam a quase 8 milhões e gritariam nas ruas: "Todos somos Islândia!"
Três anos antes, em outubro de 2008, o sistema bancário islandês entrara em colapso, levando de roldão a economia do país. Em novembro, 6 mil pessoas lotaram a praça do Parlamento, em Reykjavík, para exigir a renúncia do governo. Eram quatro horas da tarde, uma quase noite de céu carregado. Desprendendo-se da massa, uma pequena multidão marchou em direção à delegacia de polícia, disposta a libertar um jovem ativista preso na véspera. Seguiu-se um acontecimento inédito na Islândia, desde sempre um país mais afeito aos consensos do que aos conflitos.
Jovens começaram a esmurrar a porta do prédio. Espantosamente, a primeira reação da polícia foi apagar as luzes para fingir que não estava. Alguém perguntou:"Onde estão as pedras?" – e lamentou que a ausência delas fosse "típico da gentileza islandesa". Enquanto a porta cedia aos chutes, de uma das laterais do edifício, cozida à parede, surgia a tropa de choque. De braços entrelaçados, barrando a entrada, os policiais foram xingados de fascistas. "Se conseguirmos invadir e libertar o nosso companheiro, isso significará que o governo acabou!", urrou um rapaz, incendiando a massa. A fileira de policiais se abriu; do escuro, surgiu o preso, o rosto coberto por um gorro, e se atirou nos braços da multidão. Um manifestante ergueu o punho: "Agora somos franceses!"
A derrocada islandesa foi súbita e violenta. As correias de transmissão num país de 320 mil habitantes são eficientes e qualquer distúrbio dissemina-se com rapidez pela cadeia econômica. Um professor da Universidade da Islândia costuma brincar que o país é o paraíso dos macroeconomistas – tudo ali acontece mais rápido e de maneira concentrada. Se fosse possível criar um laboratório para testar os efeitos de um colapso financeiro, a Islândia estaria pronta para o papel. Eles quebraram antes, os protestos começaram antes, o governo caiu antes, o FMI foi chamado antes, a população se organizou antes e o país adotou, antes, uma estratégia para enfrentar a crise. É também ali que se vislumbram, antes, alguns desdobramentos possíveis da devastação provocada pelos colapsos financeiros.
Ísleifur Thórhallsson, ou Ísi, como é conhecido, está na faixa dos 30. A exemplo de boa parte de seus compatriotas, fala um inglês impecável, graças à excelência do sistema público de educação. Em meados da década passada, vendeu sua distribuidora de cinema a um dos maiores grupos de entretenimento do país. Foi nos escritórios da empresa, da qual se tornou funcionário, que em 6 de outubro de 2008, uma segunda-feira, ele e os colegas se aglomeraram diante da televisão para assistir ao pronunciamento do primeiro-ministro Geir H. Haarde: "Diante da tempestade que se inicia, exorto as famílias a conversarem entre si, a não se deixarem dominar pelo desespero..."
Ísi[1] relembra: "Quando ele encerrou com 'Que Deus proteja a Islândia', todo mundo pensou: 'Fodeu.'" Alguns saíram atrás de um caixa 24 horas para ver se o sistema ainda funcionava. Outros ligaram para casa e tentaram acalmar a família. Muitos pensaram em estocar comida. "Foi a semana louca", prossegue Ísi."Em sete dias, todos os bancos quebraram. Sem recursos externos, a Islândia talvez não conseguisse mais importar comida e, como quase nada cresce nessa terra gelada, nós passaríamos fome. Nunca tínhamos ouvido falar em 'segurança alimentar'." De um dia para outro, a carruagem virava abóbora. "Nem isso", reagiu um cidadão perplexo, "uma abóbora a gente come."
Entre os dias 30 de setembro e 9 de outubro de 2008, a Islândia sofreu o que um dos relatórios do FMI – geralmente escritos com a ênfase das paredes beges – descreve como "uma crise financeira de proporções catastróficas". Como relatado por piauí ("A grande ilusão", janeiro de 2009), o sistema bancário quebrou, a moeda perdeu metade do valor, a maioria das empresas ficou insolvente e a Grã-Bretanha, na tentativa de congelar em seu território os bens do Tesouro islandês, de modo a ressarcir os correntistas britânicos de uma das instituições falidas, incluiu o Banco Central islandês na lista de organizações terroristas, junto à Al Qaeda e aos talibãs.
Os antecedentes do colapso remontam a 2003, quando o país decidiu privatizar seu sistema bancário. Até o início da década de 90, a economia da Islândia era essencialmente extrativista, com forte controle do Estado. Farto em peixes e energia geotérmica, o país se guiava pela noção de bem comum. As riquezas naturais pertenciam à coletividade – pescar e aquecer-se eram direitos inalienáveis de cada cidadão. Engastado no sistema nórdico de bem-estar social, esse arranjo se traduzia numa sociedade igualitária, onde todos contavam com saúde, educação, comida e calor. Nação jovem que obtivera a independência da Dinamarca em 1944, a Islândia lograra dar a seus cidadãos o que lhes bastava para viver.
Para muita gente nascida no último quartel do século XX, isso veio a parecer pouco. Morria-se num país não muito diferente daquele em que se nascia, numa vida de poucas aventuras. A privatização dos bancos – culminância de um processo iniciado dez anos antes, com a venda para a iniciativa privada da empresa de pesca de Reykjavík – retirava dos políticos a capacidade de controlar o destino do crédito. Pela primeira vez, pessoas sem conexão com os poderes instituídos – e sem interesse em bacalhau – podiam abrir um negócio próprio e se arriscar na exploração das oportunidades.
Em pouco tempo, tomando dinheiro em moeda forte e emprestando em coroas islandesas a uma população disposta a investir e consumir, os três bancos recém-privatizados se agigantaram. A bonança de crédito beneficiou o país, cuja economia cresceu vertiginosamente entre 2003 e 2007: 25 por cento. Mais ainda cresceram os bancos, cujos ativos em 2007 correspondiam a mais de dez vezes o PIB nacional. Apareceram os helicópteros particulares, os camarotes VIPs, as vulgaridades.
Tudo começou a se desfazer no dia 15 de setembro de 2008, quando o banco de investimento Lehman Brothers pediu concordata. O mundo vivia o apogeu do que o economista Simon Johnson, do MIT, chama de "financialização da economia", "um neologismo horrível que exprime o fato real de que o sistema financeiro se tornou grande e perigoso demais". Grande demais, por se espalhar transnacionalmente sem jurisdição específica que o regule e limite. Perigoso demais, por se imbricar em todos os aspectos da vida econômica, desde o funcionamento dos Estados à hipoteca da casa própria – e, claro, criando instrumentos que permitem apostar na quebra de uns e de outros. Numa trama tão apertada, ao menor abalo as partes se recolhem numa súbita contração.
Foi assim com a Islândia. Com espanto, ela viu o mundo recuar, violentamente. Nas semanas que se seguiram à quebra do Lehman Brothers, instituições estrangeiras pediram seu dinheiro de volta e, nessa hora, a irracionalidade do modelo se revelou em toda a sua exuberância: dívida em dólar e euro, aplicação em moedanacional. A coroa islandesa em breve se desintegraria. Era um desses momentos que entram para os livros de história.
Nevava na última sexta-feira de novembro do ano passado. Às nove e meia da manhã, o dia ainda era noite. Estreita e íngreme, a Laugavegur, principal rua comercial do centro de Reykjavík, estava quieta de tanta neve. Num prédio discreto, Thórdur Jónasson, consultor internacional de crédito e risco, já dava expediente. Ele trabalhou no Banco Mundial e no FMI e dirigiu durante anos a agência islandesa de controle da dívida. Deixou o governo em 2007, antes do colapso.
Para Thórdur, a segunda-feira em que o primeiro-ministro Geir Haarde se dirigiu à nação foi o dia fatídico. À noite, o governo aprovou a Lei de Emergência que dispunha sobre como a Islândia enfrentaria a crise: "Diante da quebra iminente dos bancos, ficou estabelecido que os correntistas teriam prioridade sobre quaisquer outros credores – foi essa a medida mais importante." Além disso, as operações domésticas dos bancos seriam estatizadas. O governo garantiria apenas os depósitos das agências islandesas, não os das localizadas fora do país, que agora iriam à liquidação. "Sem a Lei de Emergência", explica Thórdur, "os correntistas islandeses perderiam todos os seus depósitos e também os cartões de crédito, que deixariam de ser aceitos, pois todos os ativos dos bancos seriam transferidos para a massa falida e tratados como garantia aos credores."
Não era de forma alguma uma opção trivial. Havia sérias implicações legais. Segundo a lei de falências vigente até então, não era permitido distinguir entre diferentes tipos de credores e dar prioridade a uns sobre outros. Os créditos não eram hierarquizados: tanto o Deutsche Bank, o correntista de Londres, como o aposentado de Reykjavík deviam receber o mesmo tratamento na hora de reaver seus valores.
Previam-se consequências políticas gravíssimas. Em suma, ao declarar que o correntista teria prioridade, o governo, no mesmo fôlego, mandava os credores internacionais – bancos, hedge funds, investidores institucionais – para o fim da fila. Dada a desproporção entre o sistema bancário islandês e a economia do país, a conclusão era uma só: os bancos islandeses, que, pela nova lei, tornavam-se bancos da Islândia, visto que administrados pelo Estado, não pagariam suas dívidas junto aos credores internacionais.
Jón Steinsson é um economista da Universidade de Columbia, em Nova York. Alto, com um sorriso cheio de dentes, tem 35 anos, mas não aparenta mais de 30. Foi convocado pelo primeiro-ministro no momento mais crítico: "No domingo, dia 5, alguns de nós insistiam em que essa era a decisão certa e que era preciso anunciá-la rápido." O governo, porém, não se decidia, temeroso das consequências. "Às três da manhã, me ligaram em casa: 'Vamos fazer o que vocês estão sugerindo.'" O governo deixaria que os bancos quebrassem.
A essa altura, técnicos do FMI já estavam no país, em conversas com as autoridades, mas o governo resistia em trazê-los para perto. "Na segunda-feira, explicamos a eles o que pretendíamos fazer. De um lado da mesa, eu e um colega; do outro, dois caras doFundo. Acho que foi só ali que eles souberam do plano: 'Hoje, depois que os tribunais fecharem, vamos propor uma lei com tais e tais características. Ela será aprovada à meia-noite.' A primeira reação deles foi nos chamar de loucos, como se estivéssemos prontos para produzir um apocalipse financeiro de consequências realmente catastróficas."
Na frase do economista americano Paul Krugman, quando todos diziam que a Islândia devia fazer zig, ela fez zag.
Se, em 2008, o quadro era incerto para o governo, para a população islandesa ele era francamente incompreensível. Na melhor hipótese, dizia um diplomata estrangeiro, todos teriam de reaprender a pescar; na pior, o país se tornaria um pária do sistema internacional e voltaria à década de 30 do século anterior.
Foi em final de outubro que começaram as manifestações, sempre aos sábados. No início de novembro, um rapaz de 22 anos escalou o prédio do Parlamento, chegou ao teto, arrastou-se até o mastro e içou lá no alto a bandeira de uma rede popular de supermercados, cujo símbolo era um porquinho. Todos compreenderam: o país estava à venda – e era barato.
Haukur Hilmarsson, ativista desde a adolescência, militava num grupo ambiental de tendência anarquista. Já fora condenado por uma ação contra uma usina de alumínio e sentenciado a quatro dias de detenção – cumpriria a pena quando o xadrez vagasse. Passadas duas semanas da ação do mastro, ele acompanhava uma excursão do colégio ao Parlamento quando um policial o reconheceu. Como a tensão crescia no país e no dia seguinte, sábado, haveria mais protestos, acharam melhor prendê-lo ali mesmo. Seria um incendiário a menos na praça.
Haukurtem hoje 25 anos. Brinco no nariz e na orelha, o cabelo louro caindo em dreadlocks sobre o rosto, é muito bonito, mas parece não ter consciência disso ou não se importar. O sorriso, matreiro, sugere que não só se orgulha do que fez, mas se diverte com o efeito que suas posições políticas possam causar no interlocutor: "Eu flerto com o primitivismo. Vamos todos nos foder, é questão de tempo. As usinas nucleares entrarão em colapso e o aquecimento global destruirá o planeta." Com voz delicada, torce pelo apocalipse – "Quanto antes, melhor" –, pois nas catástrofes o Estado se desfaz.
Na Islândia, presos sem periculosidade têm direito a uma hora de passeio fora da cadeia. No sábado, 22 de novembro, negaram a Haukur seu pedido para sair na hora da manifestação e ele, não tendo mais o que fazer, foi dormir, com a consequência de ter vivido os momentos mais radicais da limitada história insurrecional da Islândia entre os lençóis da prisão. Acordado por um homem que dizia estar lá para pagar sua fiança, recusou. Dar dinheiro para o Estado, jamais.
Foi quando lhe informaram que, do lado de fora, uma multidão ameaçava invadir a delegacia para libertá-lo; havia o risco de alguém se ferir. Haukur pediu um telefone e ligou para a mãe. Eva Hauksdóttir, militante como o filho, estava no hospital tratando dos olhos atingidos por gás de pimenta. Ela o aconselhou a aceitar, pois muita gente estava se arriscando por ele. Minutos depois, encapuzado, só com olhos à vista, Haukur era acolhido em triunfo na porta da delegacia, aos gritos de que, agora, aquela era uma nação de franceses insurretos.
Em novembro de 2011, sentado ao lado da mãe num café, Haukur não esconde o desprezo pelos acontecimentos daquele dia. "Não sou grande admirador do fetiche de fazer coisas cool, por isso usei a máscara. Todo mundo deu importância ao meu papel e ninguém entendeu nada. Prefiro ser cidadão de um supermercado barato do que desse Estado fascista", diz, com aprovação da mãe, para quem o supermercado tem ao menos a virtude de explicitar a que veio.
O governo responsável pela desregulamentação radical da economia ainda levaria dois meses para cair, mas para muitos a tomada da delegacia foi o ponto de inflexão, quando os modernos sans-culottes do Atlântico Norte se deram conta da própria força. Que este rapaz anarquista só tenha aceitado a liberdade depois de se aconselhar com a mãe é uma doce nota de pé de página sobre os modos suaves da Islândia, um país onde até carbonários ouvem os pais.
Poucas horas antes de Haukur ser solto, uma estudante de direito subiu no palanque da praça do Parlamento e fez o mais inflamado de todos os discursos daqueles sábados rebeldes. Era a primeira vez que Katrín Oddsdóttir sentia ódio. "Isso nunca tinha me acontecido", relembrou num fim de tarde de novembro passado. "Mas, quando peguei o microfone, eu vi o rosto dos velhos e era muito triste." De frente para o Parlamento, Katrín ergueu o dedo acusatório na direção dos políticos que não podia ver: se em uma semana o governo não renunciasse, haveria uma revolução no país. De um prédio vizinho, rolou até o chão uma faixa em que um enorme lobo chamado FMI devorava o país. No gradil do Parlamento, amarraram uma placa de VENDE-SE carimbada com as palavras Vendido: 2,2 bilhões de dólares – o valor do pacote do FMI.
Ah, o FMI...
O outono e o inverno islandês de 2008 estão repletos de ironias. Uma delas é o fato de um jovem radical que despreza todos os governos constituídos – à direita ou à esquerda, sem distinção – ter desempenhado o papel de militante número 1 do movimento pela renovação do processo político na Europa. Outra é que coube a um governo de esquerda implementar o primeiro programa do FMI num país do Primeiro Mundo desde a década de 70 – e o gabinete que substituiu o de Geir Haardenão só o implementou, como mereceu efusivos elogios. No derradeiro relatório de avaliação do programa, publicado pelo Fundo em agosto de 2011, lê-se: "Exemplar."
"Antes de virar governo, ele provavelmente dizia: 'Fuck the IMF!'", gargalha Katrín. Ele é o atual ministro da Economia, Steingrímur J. Sigfússon.
Em novembro de 2008, Steingrímur era o líder da Esquerda Verde, o maior partido de oposição a Haarde. Ia trabalhar de meia e sandália, provavelmente com dois propósitos: oferecer conforto aos pés e afirmar que, na melhor tradição dos anos 60, continuava a ser um espírito livre.
Em novembro de 2011, o ministro Steingrímur, agora de terno e sapatos comportados, defendeu sua atual posição: "Como muitos da esquerda, fui crítico do histórico do Fundo e não mudei de opinião. Teria preferido que a Islândia não se visse em situação de precisar do FMI, mas não havia outro jeito. Quando assumimos, eles já estavam aqui. Sem o Fundo, não voltaríamos a ter crédito para importar a comida e o petróleo de que precisávamos, e não teria sido possível estabilizar a economia."
Tamanho realismo causa perplexidade a uns e repulsa a outros. "O FMI jamais escondeu seus propósitos", rosna Kári Stefánsson, fundador da deCODE, uma empresa islandesa de biogenética. "O papel deles não é reconstruir a economia de países em dificuldade. É lutar para que as consequências internacionais de uma crise sejam as menores possíveis. Não critico o FMI por fazer seu trabalho. Critico o governo por ser tão subserviente ao FMI."
Thórdur Jónasson, o consultor internacional, está entre os perplexos. "Este é o primeiro governo de esquerda quimicamente puro da história da Islândia e eles colaboram com o FMI!", espanta-se.
"Traição!", sentencia Kári. Em 2008, no mais fundo da crise, sentado na mesma sala que continua a ocupar no último andar da deCODE, ele era das poucas vozes otimistas. Lamentava, sim, que a sua Islândia "das sagas e dos poetas" tivesse se transformado num país de especuladores – "eram vulgares e desinteressantes" –, mas, "agora que eles se foram", dizia, "nós nos ajudaremos e sairemos dessa situação como um povo melhor".
Professor de medicina em Harvard, Kári Stefánsson aproximara-se em meados da década de 90 do então primeiro-ministro Davíd Oddsson–arquiteto da liberalização sem peiasda economia, admirador de Milton Friedman e Margaret Thatcher – e o convencera a autorizar a fundação de uma empresa para explorar o extraordinário patrimônio genético da Islândia, um país onde todos são de alguma forma aparentados. Graças a essa herança comum, seria possível rastrear doenças ao longo de gerações e identificar eventuais causas genéticas. Com o patrocínio de Davíd Oddsson, foi promulgada uma lei que, em essência, privatizava os genomas humanos dos islandeses.
A empresa lançou ações na Bolsa de Nova York, e o governo, batendo o bumbo do patriotismo, estimulou a população a investir. Apesar do indiscutível sucesso científico – cerca de 70% das descobertas recentes que relacionam uma mutação genética a determinada enfermidade seriam feitas nos laboratórios comandados por Kári –, a empresa não foi capaz de gerar lucros. Milhares de islandeses viram suas ações virar pó.
O otimismo que Kári ventilara em 2008 deu lugar ao niilismo de 2011. Movendo-se hieraticamente, cruzou em absoluto silêncio a sala de espera onde o aguardava o entrevistador. Com seu mais de 1,90 metro, andava como uma estátua em seu pedestal, se as estátuas andassem. Minutos depois, ressurgia para buscar café e avaliar, com os olhos, o primeiro compromisso do dia: "Nada mais irritante do que um jornalista brasileiro a essa hora da manhã..." Era excelente teatro.
"O.k., esses três últimos anos provaram que eu estava errado. Está bem assim?", perguntou, irritado. "Se tivéssemos um governo conservador comprometido com a cartilha do liberalismo, eu entenderia as políticas que vêm sendo implementadas. Mas este era para ser um governo socialista... Eles pavimentaram o caminho da recuperação nas costas dos que não têm nada, tirando dinheiro da rede de proteção social. É um governo criminoso porque quebrou todas as promessas que fez."
Na mesma semana em que a Islândia anunciou que não socorreria os bancos, o governo da Irlanda se trancou numa sala para decidir como enfrentar a crise financeira de lá. Parecia um jogo de espelhos: a Islândia tinha três grandes bancos, a Irlanda também; a Islândia era ameaçada por uma corrida bancária, a Irlanda também; os credores internacionais haviam fechado a torneira para a Islândia, e para a Irlanda também.
O governo irlandês começou a se aconselhar aqui e acolá. Numa passagem que decerto entrará para os anais da parvoíce universal, o Ministério das Finanças encomendou ao banco americano Merrill Lynch um relatório sobre a saúde do sistema bancário do país. A ninguém ocorreu que o fato de a empresa ter como clientes dois dos três bancos irlandeses poderia, quem sabe?, influenciar o diagnóstico. Com confiança de beata em padre confessor, o governo irlandês acreditou na avaliação de que os bancos eram rentáveis e bem capitalizados.
Segundo o jornalista Michael Lewis, autor de Bumerangue: Uma Viagem pela Economia do Novo Terceiro Mundo, foi com essa convicção que se sentaram à mesa o primeiro-ministro e seus conselheiros na noite de 2 de outubro de 2008. Uma corrida bancária punha em risco os bancos e ninguém sabia se dali a 24 horas continuariam a existir. Nessa situação de fato desesperadora, o governo irlandês tomou uma decisão desesperada e agiu para restabelecer a confiança.
Um funcionário do Banco Central foi despachado para ir à tevê explicar a solução encontrada. A este senhor, podem-se imputar muitas coisas – a timidez, o ar de coadjuvante vocacional, o bigodinho –, mas ninguém lhe negará o dom de ser sincero. Numa voz fininha, ele disse: "O contribuinte garantirá os bancos."
Zig.
A Irlanda acabara de decretar que qualquer empréstimo a uma instituição financeira nacional pública ou privada era empréstimo ao estado irlandês. Tal garantia, supunha-se, jamais seria convertida em moeda sonante, uma vez que a mera afirmação de sua existência restabeleceria a confiança no sistema. A hipótese fracassou. O país assumiu uma dívida de 85 bilhões de dólares a seus credores – cerca de 40% do PIB –, valor que terá de ser recuperado à base de um programa brutal que inclui desemprego e corte de salário.
"Nossa situação era até mais crítica do que a da Irlanda", diz Jón Steinsson, de Columbia, "mas eles foram convencidos de que os bancos eram sólidos e cometeram o erro fatal de garantir tudo. Historicamente, em situações assim, os governos costumam pensar o seguinte: 'Se eu gastar só mais um pouquinho, salvo tudo.' E de pouquinho em pouquinho se chega ao abismo." Há meses, desesperados, os bancos islandeses vinham recebendo empréstimos do Banco Central para honrar os seus compromissos internacionais. "Na semana em que nós quebramos, os bancos continuavam a nos pedir linhas de crédito. Tínhamos muito dinheiro para gastar. Poderíamos ter queimado de 50 a 100% do PIB para tentar salvá-los – e de trás para a frente é claríssimo: teria ido tudo pelo ralo. Ainda assim, há quem diga que nossa única opção era deixar o sistema ruir. Olhe, eu estava lá e posso garantir que a impressão não era essa. Nós desistimos de ajudá-los três dias antes do ponto em que os outros países costumam jogar a toalha, e isso nos poupou uma quantidade enorme de dinheiro."
Esses três dias permitiram resguardar a parcela mais exposta da população islandesa. "Sim, a maioria dos cortes do programa de ajuste recaiu sobre a agenda social – saúde, educação, seguridade", explica Jón. "Acontece que nós tínhamos uma boa margem ao entrar na crise. O governo sempre funcionou no azul" – fato que desafia o argumento de que o contrato social nórdico seja insustentável –, "e o caixa estava abastecido com o dinheiro que não gastamos para tentar salvar os bancos. Isso foi decisivo para proteger o sistema social. Não tivemos de cortar tão fundo como outros países."
A inflação provocada pela desvalorização da coroa islandesa comeu os salários mais altos, enquanto os mais baixos foram parcialmente protegidos por reajustes. O sistema tributário, regressivo no governo conservador, tornou-se fortemente progressivo, com aumento de impostos apenas para as empresas e para os 40% mais ricos. Em 2009, no momento mais agudo da crise, o governo chegou a acelerar o repasse para os mais afetados. "Aumentar gastos sociais no pico de uma crise não é a medida mais óbvia do mundo", diz o ministro Steingrímur. "O consenso hoje é de que o programa do FMI para a Islândia foi extremamente heterodoxo."
Heterodoxo e duríssimo: o governo cortou o equivalente a 10% do PIB, o que corresponde ao valor que teve de gastar para reerguer o sistema financeiro local. É um dos maiores ajustes de que se tem notícia.
Stefán Ólafsson, sociólogo da Universidade da Islândia, afirma que, de tão singular, o ajuste islandês pertence a uma categoria só sua. Ao analisar os efeitos sociais do programa de austeridade, ele constatou, em síntese, uma reversão da tendência à desigualdade que vinha caracterizando os anos de liberalização econômica. O índice de Gini, que mede a distância entre os mais ricos e os mais pobres, mostra um país com menos disparidades em 2010 do que em 2007. Crises financeiras afetam primeiro aqueles que especulam, o topo da pirâmide, lembra o economista Jón Steinsson, sendo natural que, num primeiro momento, os mais ricos percam mais. No entanto, ele atesta que, de fato, as políticas adotadas pelo governo mitigaram a desigualdade.
O país empobreceu – a economia tem hoje o tamanho de 2004 –, mas chega a 2012 mais justo e, por isso, com mais chances de voltar a crescer. O próprio FMI sublinha esse aspecto. "Qualquer país pode experimentar pequenos surtos de crescimento, às vezes até intensos, mas eles não duram muito", disse Nemat Shafik, diretora do Fundo, numa conferência promovida em Reykjavík pelo FMI e o BC islandês em outubro passado. "Os dados mostram que os países que conseguem crescer de maneira constante e duradoura geralmente têm distribuição de renda mais equitativa."
O desemprego hoje na Islândia é de 7,3%, metade do da Irlanda, um terço do da Espanha. Projeções indicam um crescimento de 2,5% em 2012. A Europa do euro, segundo a revista The Economist, deverá sofrer uma retração. (A Irlanda permanecerá estacionária.)
O custo para a reputação islandesa, tão alardeado à época da decisão de não socorrer os bancos, aparentemente não se materializou, a julgar pelo único termômetro que o mercado respeita. Em junho do ano passado, pela primeira vez desde a crise, o país testou com a pontinha do pé as águas do sistema financeiro. Estava gostosa. A Islândia vendeu 1 bilhão de dólares em títulos de cinco anos, pagando abaixo de 5%. O mundo cobra 15% a mais da Irlanda, cujos bons modos receberam nota 10 do sistema financeiro internacional.
Não significa que a Islândia esteja com a casa arrumada. Num dos efeitos mais deletérios das crises, os ativos foram levados a um rearranjo caótico. Apanhadas no contrapé, endividadas, boa parte das empresas islandesas foi encampada pelos credores. Hoje, 60% delas pertencem aos bancos. É impressionante, mas há mais.
Dos três bancos nacionalizados, o Estado manteve o controle de apenas um, o Landsbanki [Banco Nacional]. Numa clássica conversão de dívida em participação, os outros dois foram repassados a grandes credores internacionais, aos quais não interessava gastar nem tempo nem dinheiro para reerguer instituições que acabavam de lhes causar prejuízos desastrosos. Semmuito choro, preferiram vendê-las a hedge funds americanos, aceitando 2 ou 3 centavos pelo valor de face de 1 dólar.
Passados três anos da crise, mais da metade do sistema financeiro islandês pertence a fundos cuja prioridade é recuperar, em curto prazo, o capital de oportunidade que puseram ali. Não são parceiros da retomada, não investirão no país. Pior: como controlam parte significativa das empresas e ninguém sabe o que pretendem fazer com elas, nada se move. Se for mais lucrativo, elas serão vendidas aos pedaços a quem oferecer um preço camarada. A esses fundos se dá o nome de vulture capitalists, operadores especializados no desmembramento de ativos alquebrados.
A Islândia não deu o calote. Ao contrário da Grécia, por exemplo, cujas dívidas são essencialmente públicas – foi o Estado que tomou dinheiro emprestado –, o governo islandês sempre zelou pelas suas contas. As dívidas foram contraídas por entidades privadas e quem emprestou assumiu o risco de fazer mau negócio. Perderam bancos internacionais, a maioria deles europeus, dos quais metade alemães. Extintas as esperanças de reaver os empréstimos à trinca islandesa, eles pegaram a caneta vermelha e deram por perdidos 63 bilhões de dólares.
No encerramento da conferência de Reykjavík, Martin Wolf, o mais proeminente colunista do Financial Times, resumiu o que acabara de testemunhar: "Passei anos cobrindo países em crise. A grande pergunta que aparece nessas horas, e que gera debates furiosos, é uma só: quem arcará com os custos? Na maioria absoluta das sociedades, as perdas acabam sendo pagas por gente relativamente pobre. Se isso não aconteceu aqui, então estamos diante de um milagre."
Em 31 de agosto de 2011, 33 meses depois do acordo, o FMI apertou a mão da Islândia – "Foi um prazer" – e voltou para casa. Turbulências, apenas uma. O ministro Steingrímur acredita que, não fosse por ela, o país teria saído mais cedo da crise. Ele se refere à turbulência como "essa coisa infeliz do Icesave".
Vários adjetivos seriam mais apropriados: rumoroso, afamado, façanhudo, memorável. O que o governo julga infeliz é visto, por boa parte dos islandeses, como o grande momento de afirmação democrática da nação. É essencialmente por esse episódio que se grita "Todos somos Islândia" nas praças espanholas.
O Icesave era um pequeno banco on-line aberto pelo Landsbanki, um dos membros da tríade islandesa. Sua especialidade era captar fora do país, principalmente na Grã-Bretanha e na Holanda. Donas de casa, assalariados, organizações filantrópicas e universidades depositaram ali parte de sua poupança, atraídos pelos juros mais generosos. Quando o sistema ruiu, cerca de 5 bilhões de dólares em depósitos desapareceram.
A Lei de Emergência sancionada naquele sombrio 6 de outubro determinavaque cada um dos três bancos fosse dividido em dois: um banco doméstico – responsável pelos depósitos em coroas – e um estrangeiro — responsável por todo o passivo em moeda forte. O governo passaria a administrar o banco doméstico, garantindo os correntistas; o estrangeiro, não encampado pelo Estado, seria liquidado. O governo britânico berrou: estavam discriminando seus cidadãos. Enquanto os islandeses tinham acesso à conta bancária, o pobre carteiro aposentado de Birmingham, que depositara suas economias, em libras, num banco eletrônico com sede na Islândia, ficava a ver navios.
Com a nacionalização parcial do Landsbanki, foi o caso de perguntar: Seria o Estado islandês responsável pelo carteiro de Birmingham? As autoridades julgaram que não. No momento da quebra, tanto o Landsbanki como o fundo garantidor da Islândia constituíam entidades privadas, logo, não havia por que socializar as perdas. Credores internacionais – sobre os quais os correntistas continuariam a ter prioridade – seriam ressarcidos com os ativos da massa falida.
Imediatamente, entraram em ação os mecanismos usuais da geopolítica. A Islândia precisava desesperadamente de dinheiro para estabilizar sua economia. O FMI assinara um protocolo de cooperação no valor de 2,2 bilhões de dólares e já pagara a primeira tranche. Faltavam todas as outras. Era simples: como membros do FMI, Grã-Bretanha e Holanda bloqueariam a transferência dos recursos.
Pressionado, o governo propôs um acordo: começaria a saldar a dívida a partir de 2017. Em 30 de dezembro de 2009, o Parlamento aprovou a lei que dispunha sobre o pagamento. Para entrar em vigor, bastava agora a assinatura do presidente da Islândia. Sendo o cargo essencialmente simbólico, tratava-se de mero protocolo. Deixou de ser quando o presidente Ólafur Ragnar Grímsson alegou precisar de tempo para refletir. A Constituição islandesa estabelece catorze dias para a assinatura da Presidência, a partir da sanção parlamentar; esgotado esse prazo, convoca-se automaticamente um referendo para que a matéria seja decidida pela população.
O ativismo político de 2008, àquela altura esmorecido, ganhava ali uma segunda vida. "A princípio, não tinha nenhuma relação com a dívida", esclarece Ólafur Elíasson, um dos criadores do InDefence, o grupo de pressão que viria a liderar os novos protestos. Músico e professor de piano, Ólafur estava cuidando da vida quando o país quebrou. Não tinha dívidas, e de súbito se viu tachado de terrorista por Gordon Brown. Convocou um grupo de amigos, e em pouco tempo circulava pela internet uma campanha em que velhinhas, crianças, moças, famílias, bebês e até cachorros islandeses apareciam ao lado de um recado: Eu não sou terrorista, senhor Brown.
Ólafur voltou à ativa ao saber do acordo em torno do Icesave, cujos detalhes os governos da Islândia, da Grã-Bretanha e da Holanda mantinham entre quatro paredes. O documento foi vazado para Ólafur. Ele o mostrou a um advogado que, depois de estudá-lo por uma noite, não teve nada mais brando a dizer senão que era preciso denunciar o governo por traição.
Durante meses, membros do InDefence tentaram convencer os parlamentares a rejeitar a proposta. Não conseguindo, resolveram acionar o dispositivo constitucional que previa veto presidencial com subsequente referendo. Desde a independência do país, o artigo 26 da Constituição jamais fora levado a efeito. Ólafur e sua turma pediram uma audiência com o presidente em 2 de janeiro de 2010, três dias depois de a lei ser sancionada.
Era um sábado. Às onze da manhã, algumas centenas de pessoas apareceram diante da residência presidencial, a trinta minutos de Reykjavík. Da neve, surgiu o núcleo duro do movimento, carregando uma pilha de páginas com 56 mil assinaturas contra o acordo, um quarto do eleitorado do país. Em semicírculo, um coral prorrompeu num canto patriótico. Era a senha para que dois monomotores decolassem de um aeroporto vizinho e viessem registrar o momento mais espetacular do dia.
À roda da casa, dezenas de pessoas ergueram o braço, cada uma delas segurando no alto um sinalizador vermelho. "Nós somos um país de pescadores", explica Ólafur. "Aqui todos compreendem o alerta de perigo no mar." O céu pareceu arder. A fumaça avançou sobre a casa, fazendo-a desaparecer detrás de uma espessa cortina vermelha. Foi essa a imagem estampada no dia seguinte na primeira página de todos os jornais. Até mesmo um paraguaio destituído de mar entenderia que ali se sinalizava urgência.
Logo depois, o presidente abriu a porta. Oito delegados do InDefence foram conduzidos a uma longa mesa. Sentaram-se de um lado, o presidente do outro. Por quase duas horas, argumentaram. O presidente escutou e pouco disse. "Honestamente, eu não tinha esperança", diria Ólafur. Três dias depois, em 5 de janeiro, o presidente anunciou que não assinaria.
O referendo se realizou dois meses depois, em 6 de março de 2010. O acordo foi rejeitado por 93% dos eleitores. Menos de 2% concordaram com o pagamento. Já seria o bastante para elevar a Islândia ao panteão das nações insurretas, mas havia mais.
Alarmado com a reação dos dois paísescredores – "Inaceitável", disse o ministro das Finanças holandês; "A Islândiaacaba de declarar que não pertence mais ao sistema financeiro internacional", aduziu um alto funcionário britânico –, o governo islandês se pôs a negociar discretamente um novo acordo, em termos mais favoráveis ao país.
Levou-o ao Parlamento no início de 2011. Nesse momento, já se sabia que o valor da massa falida dos bancos era bem mais substancial do que se imaginara – a dívida poderia ser paga sem grande sacrifício do Tesouro. A maioria parlamentar – favorável ao novo acordo – parecia refletir o sentimento do país. Ainda assim, uma vez mais, o presidente se negou a assinar. Dias antes do segundo referendo, em abril de 2011, pesquisas indicavam que a proposta seria aprovada. Uma reversão de última hora a derrotou.
Não espanta que 60% dos eleitores tenham votado não. Surpreendente é que os outros 40% tenham dito que era hora de pagar.
"Adotar o partido de não pagar é muito fácil", diz Gudmundur Jónsson, professor de história na Universidade da Islândia. "A escolha do presidente foi interpretar o humor da nação dizendo que havia uma cisãoentre o Parlamento e a sociedade. Não havia. Uns dias antes do segundo referendo, a maioria dos islandeses era favorável ao pagamento. Ele cruzou uma fronteira constitucional ao não respeitar o que o Parlamento havia decidido." A contundência da afirmação contrasta com a voz suave: "Pegue um táxi e pergunte ao motorista: 'Quer pagar uma dívida para estrangeiros?' É ridículo submeter uma pergunta dessas a referendo. O presidente é um demagogo."
"Em 2010, foi como dizer: 'Danem-se os estrangeiros, vamos salvar os islandeses'", resume Ísi, o produtor cultural. Ele votou não no primeiro referendo e, acompanhando os 40%, sim no segundo.
O jornalista Eiríkur Gudmundsson trabalha na Rádio Nacional da Islândia. Durante um bom tempo, foi dos poucos a atacar – com notável virulência – os excessos da liberalização econômica. Em 2011, mudando de alvo, leu no ar um editorial furibundo contra os referendos. "Aquilo foi puro teatro político. O caso Icesave é irrelevante, serviu apenas para desviar a atenção das questões essenciais. Em vez de discutir as razões da quebra ou o colapso do Banco Central, os islandeses ficaram dois anos em cima de uma questiúncula. Não foi à toa que o voto pelo não virou uma bandeira do mesmíssimo governo de direita que causou todo o estrago." Tempos irônicos.
Eiríkur votou sim. Para ele, era simples: "De um lado, os nacionalistas, os capitalistas, a turma da direita, todos dizendo: 'Somos islandeses, não fazemos acordos, não precisamos de ninguém.' Do outro, pessoas dizendo: 'Somos europeus, prejudicamos muita gente, devemos nos responsabilizar.' Eu não quis ficar com a primeira turma."
"Houve um custo associado aos dois referendos", afirma o ministro da Economia Steingrímur. "Cortaram empréstimos à Islândia. Nossa recuperação atrasou", argumenta. "Os números hoje mostram que o custo do segundo acordo vetado pelo presidente seria insignificante. Os ativos recuperados cobrem praticamente tudo. Quero lembrá-lo do seguinte: este caso ainda não acabou. Em função dos referendos, é possível que só termine nos tribunais internacionais. Ainda pode nos custar muito caro."
Na mitologia da crise islandesa, os referendos representam o momento político por excelência, quando o país, soberano, foi às urnas repudiar o pagamento de uma dívida que não contraíra. Mas, novamente, não se tratava de calote, como até Ólafur, do InDefence, insiste em sublinhar: "Nós jamais dissemos que a dívida deixaria de ser paga. Pedíamos apenas que esperassem até a liquidação do banco." Grã-Bretanha e Holanda – ironia – receberão seu dinheiro.
Como o governo temia, em dezembro passado, a Agência de Fiscalização do Acordo Europeu de Livre Comércio entrou com uma ação contra o Estado islandês por não honrar as contas Icesave.
"Foi daqui que o senhor viu os sinalizadores?" "Sim", respondeu o presidente da Islândia, Ólafur Ragnar, numa sala de sua residência oficial. À beira de um pequeno lago, a casa era uma antiga escola de línguas clássicas. Ali foi feita a primeira tradução da Odisseia para o islandês. O presidente é um homem de 68 anos, muito alto, dotado de cabelos alvíssimos, ornamentais. Veste-se e move-se com a dignidade e a pompa de um velho embaixador cioso de seu papel no mundo.
"Conheço a crítica que me fazem", disse. "Discordo dela não só como presidente da República, mas como cientista político que durante anos lecionou a Constituição islandesa." Em tom professoral – ouvir a própria voz não lhe desagrada –, passa a explicar o que houve na Islândia: "O choque que sofremos mostrou como o sistema financeiro é capaz de ameaçar os fundamentos de uma sociedade democrática e pôr em risco a coesão social. Diante da potencial calamidade, a Islândia tomou algumas decisões. A economia se recuperou mais cedo e melhor do que qualquer pessoa imaginaria. E também a sociedade se recuperou. Por quê?"
O velho cientista político elenca três explicações. Em primeiro lugar, a percepção, logo no início, de que o desafio não era apenas econômico. A crise devia ser compreendida nas suas dimensões políticas, legais e sociais. Foram convocadas novas eleições parlamentares, iniciou-se uma investigação criminal (por ora, uma só pessoa foi punida) e elegeu-se um comitê para propor mudanças na Constituição.
A segunda dimensão da estratégia islandesa foi "contrariar a ortodoxia financeira vigente nas economias ocidentais" e deixar que os bancos quebrassem.
A terceira dimensão é a que chama de "a dimensão democrática". A seu ver, pode-se resumir o caso Icesave como a transformação de uma dívida privada em obrigação soberana do país: "Eu submeti essa decisão ao povo islandês." Decisão difícil? "Sim. Forças poderosas pressionaram para que eu assinasse a lei – não só o governo, mas associações de indústrias, a maioria dos sindicatos, todos preocupados com as repercussões econômicas da recusa. E, claro, todos os governos da Europa foram contra. Para muitos, a Islândia viraria um pária no concerto das nações" – a "Cuba do Norte", alguém disse. O temor do presidente era outro: "O de virarmos o Haiti do Norte." "Demos prova de uma via democrática diferente do que se viu na Grécia, por exemplo, quando os governos europeus se uniram para dizer a eles: 'Não, vocês não farão plebiscito.'"
Oratória à parte, uma razão mais sutil parece amparar o episódio dos referendos. Em menos de uma semana, a crise substituiu o otimismo de uma nação eufórica consigo mesma pelo niilismo de quem enxerga o futuro como fracasso líquido e certo. Se, como sustentam alguns, os referendos mais latiram do que morderam, o ponto-chave talvez tenha sido exatamente o latido. "O país estava em choque", disse o presidente. "Não foi por isso que convoquei o referendo, mas ali, essa é a verdade, os islandeses sentiram que o destino da Islândia estava em poder deles. Ali renasceu a vontade da nação." Rituais de expiação, mesmo se custarem caro, têm sua serventia.
Jón Skafti Gestsson tem 30 anos. Alto, com cavanhaque de boêmio, graduou-se em história e faz mestrado em economia na Universidade da Islândia. Nos anos de bonança, deu aulas de islandês para estrangeiros, mas a crise espantou os alunos. Voltou à universidade nas asas de uma bolsa do governo, o que o ajuda com as contas da família – mulher e filhinha. Jón tem seu apartamento, tem sua rotina. Sabe que o Estado arcará com a escolinha da filha, com eventuais emergências médicas. Tudo parece no lugar, mas não: "Em termos materiais, eu não perdi nada com a crise. O que perdi, o que todo mundo perdeu, foi uma sensação generalizada de confiança. Ninguém confia em mais nada, e isso suga muita energia, te impede de ser feliz. Estamos paralisados."
"Não fazíamos ideia de como os interesses econômicos haviam se imiscuído na esfera política", diz Katrín Oddsdóttir, a jovem advogada que discursou contra o governo naquele sábado de 2008. "Políticos pegavam carona nos jatos dos bilionários. Criaram-se empresas de mídia para defender os interesses dos grandes conglomerados."
Em 2010, foi publicado um relatório sobre as causas da crise. Produzido por uma Comissão Especial de Inquérito Parlamentar, o texto em nove tomos causou tanto espanto que foi lido em voz alta, na íntegra e sem interrupção, ao longo de seis dias e seis noites no palco do Teatro Municipal de Reykjavík, com transmissão ao vivo pela internet. Poucos se salvaram. O presidente não foi um deles. Para Katrín, "de herói nacional, ele passou a vilão". Soube-se que, durante os anos de expansão, o velho professor de esquerda se mostrara um entusiasta dos novos capitalistas. "Ele viajava nos aviões particulares, falava maravilhas dos nossos bancos, fazia relação com as sagas e os vikings, dizia que iríamos conquistar o mundo."
O tema recorrente na Islândia, hoje, não é mais a quebra, a derrubada do antigo governo, a eleição do novo, os referendos ou o início da retomada. É a descrença, com seu corolário de desnorteamento. "É tudo um paradoxo", diz Bergsteinn Sigurdsson, repórter do Fréttabladid, jornal de maior circulação do país. "Por exemplo: pela primeira vez, temos um governo de esquerda, e a direita o acusa de estar a serviço do grande capital financeiro." Na véspera, a Standard & Poor's aumentara a nota do país. "Uma das consequências da crise é que a informação perdeu a credibilidade. Antes, nós diríamos: 'Sim, estamos saindo do buraco.' Agora é gritaria geral, todos contra todos, ninguém acredita em nada."
Kári Stefánsson, da deCODE, um dos descrentes, não vê mais diferença entre esquerda e direita e acha que o colapso confirmou a falência do modelo político tradicional. "Eu acabo de descrever para você a miséria moral do nosso atual governo. Ainda assim, se me perguntassem quem eu poria no lugar deles, não saberia responder."
"Nos Estados contemporâneos, o que acontece no âmbito das instituições, mesmo das mais consolidadas, tornou-se um aspecto quase periférico", diz o presidente da República, no papel de cientista político. A mobilização pelos referendos, a Primavera Árabe, os movimentos de protesto na Europa são, a seu ver, indícios de que as mudanças estão se dando ao largo do sistema, quando não contra ele. "É uma conclusão estarrecedora."
Mais uma vez, foi na Islândia que se viram as primeiras reações a esta brutal falta de fé no processo político. Em maio de 2010, Jón Gnarr foi eleito prefeito de Reykjavík, o segundo posto mais importante da hierarquia política nacional, atrás apenas do cargo de primeiro-ministro. Gnarr não veio ao mundo pelas vias normais: é criação de um satirista. Fazia tanto sucesso no rádio que o criador assumiu oficialmente o nome da criatura e se lançou na política. Ao partido que fundou, deu um nome que tranquilizasse a população. "Se não fosse tão bom", explicou na época, "o meu partido não se chamaria o Melhor Partido, mas o Partido Médio, ou o Pior Partido, e eu nunca militaria num partido desses."
O programa de Gnarr ancorava-se numa promessa: quebrar todas as promessas do candidato – dentre as quais, toalhas de graça nas piscinas públicas, transporte gratuito para "estudantes e pobres coitados", um Parlamento sem drogas até 2020 e um urso polar para o zoológico da cidade. Ele expôs com franqueza o cerne de sua motivação: "Preciso garantir um salário fixo para cuidar da minha vida, e também quero ter assessores e ganhar um monte de coisas de graça." Foi o escolhido de mais de um terço dos eleitores de Reykjavík.
"Não sei bem por que as pessoas votaram em mim", disse Gnarr, minutos depois de se filiar a um grupo taoísta, seu compromisso anterior naquela manhã miserável de neve e granizo. "Posso garantir que minha candidatura não nasceu como piada. O Melhor Partido está cheio de gente séria." Para comprovar, observou, sem ironia, que o vice-líder do partido foi um dos fundadores dos Sugarcubes, a banda neopunk que lançou Björk.
Jón Gnarr tem 44 anos, é corpulento e extremamente gentil. Aponta com orgulho uma imagem que, junto à máscara de Darth Vader, decora seu gabinete: a conhecida street art do inglês Banksy na qual um jovem mascarado atira um buquê de flores à guisa de coquetel molotov. "Foi ele que me deu", conta, feliz. Seu pulôver cinza estampado com o símbolo do anarquismo produzia uma dissonância cognitiva com a poltroninha rendada em que se sentou para conversar. "Sempre tive muito interesse em política, mas acho os partidos tradicionais um tédio. Filosoficamente, sou um anarquista."
Considera que, do ponto de vista simbólico, o fato mais relevante de sua eleição foi o que não aconteceu. O Melhor Partido se apresentou como alternativa viável num momento em que as pessoas estavam perplexas e furiosas. Ele usou essa fúria para o bem, garante. Os extremistas de plantão poderiam tê-la usado para o mal. "No norte da Europa, isso já está acontecendo, com a ascensão da extrema-direita."
"A eleição do Gnarr foi um fuck you na cara dos políticos, um atestado da nossa descrença generalizada", diz o jornalista Kolbeinn Proppé. "Mas bastou pisar na prefeitura para ele começar a agir de maneira convencional. Você se apresenta como o cara que vai mudar a política, forma o gabinete com músicos, cineastas e poetas, e aí, no primeiro dia, jogam na tua mesa os três calhamaços do Orçamento."
Com candura desconcertante, Jón Gnarr, autodeclarado libertário e surrealista, menciona como sua maior realização a reestruturação financeira da empresa municipal de eletricidade. Depois de um mês atracado a planilhas – "Mas que merda estou fazendo aqui?" –,montou uma complexa engenharia para capitalizar a empresa oferecendo como garantia títulos do próprio município – ou algo do gênero.
"Aqui, depois de 2008, governar virou sinônimo de controlar o estrago. Ninguém mais se dá ao luxo de realizar grandes coisas", resume Proppé. Reconhecendo essas limitações, os eleitores têm em alta estima o governo de Gnarr. Identificam nele um administrador dedicado e sincero. O prefeito elogia a Lei de Responsabilidade Fiscal, recentemente aprovada pelo Parlamento, e não está bem certo, mas desconfia que o FMI seja em parte o responsável pela recuperação. É Kropotkin no colégio Sion.
Ao longo desses últimos três anos, a Islândia perdeu as ilusões que tinha a respeito do funcionamento do mundo, e é por isso que avançou tanto, concluiu o economista Simon Johnson, ao encerrar sua participação na conferência de Reykjavík. "O mundo não é amigo de ninguém, o sistema financeiro internacional não é amigo de ninguém" – essas seriam as lições que o país aprendeu.
"Um conto de fadas", rebateu Gylfi Zoëga, professor de economia na Universidade da Islândia, no mesmo seminário. "Criou-se o mito de que agimos com independência, com valentia. Os contribuintes foram ouvidos, deixamos os bancos quebrar, protegemos nossos correntistas e decidimos não nos responsabilizar pelas dívidas estrangeiras. Ora, nós não protegemos nada. Não salvamos os bancos porque não tínhamos o euro. Foi sorte."
Sorte de ser um país pequeno, com capacidade quase nula de desestabilizar a economia mundial. Caso Itália, Espanha ou mesmo Grécia adotassem o modelo islandês, é provável que a economiados três não suportasse a pressão. Sorte de não ter o euro e, assim, poder desvalorizar a moeda. "A coroa é boa num ano de crise", avalia Jón Steinsson, de Columbia, "mas desastrosa, pelos próprios limites, em qualquer outro momento em que o país não esteja enfrentando uma catástrofe." Sorte, sobretudo, na excepcionalidade de sua loucura. "Se é para ter uma crise bancária, então que os bancos enlouqueçam de vez, para não haver mais nenhuma ilusão quanto à possibilidade de salvá-los", na síntese de Martin Wolf, do Financial Times.
Heroísmo por falta de alternativa deslustra um pouco o brilho do gesto. Katrín Oddsdóttir, que, desde o famoso discurso na praça do Parlamento, empenha-se em redefinir a Islândia – é uma das25 pessoas eleitas para propor uma nova Constituição –, teria dificuldade em transmitir algum entusiasmo aos jovens espanhóis. "A raiva passou, o que é bom. Impossível viver em estado de fúria permanente. Mas até agora nenhum grande responsável foi levado à Justiça, ou seja, o sistema continua falhando. Não vejo nenhuma revolução silenciosa por aqui. Quando meus amigos estrangeiros me perguntam, eu respondo: 'Revolução? Que revolução?'"
"Eles estão passando da insurreição para a reforma", lamenta Haukur, o anarquista, referindo-se a seus compatriotas.
Ou nem isso. Aos poucos, segundo Katrín, a população vai voltando no tempo. "Isso é tão2007", eles dizem, referindo-se a qualquer delito de luxo, dos menores (um vinho caro) aos grandes (uma Mercedes esporte). Nos primeiros anos pós-crise, o ativismo político revitalizou uma população que se deixara entorpecer pelo consumo, acredita o professor Gudmundur. Agora, a desesperança parece empurrar parte dos islandeses de volta à passividade das compras. "Frankenstein está reaprendendo a andar", diz Katrín.
Era sábado à noite e ventava. Também chovia e logo viria o granizo. A praça estava quieta. No gramado em frente ao Parlamento, estavam armadas duas tendas de protesto. Nada a ver com as manifestações de 2008, apenas a emulação do movimento Occupy Wall Street. Na barraca maior, à luz de duas lanternas a vela, dois grupos conversavam em voz baixa. No primeiro, gente mais velha, na meia-idade, levemente alcoolizada. No segundo, uma garotada silenciosa, fumando cigarros artesanais e passando uma garrafa de vinho de mão em mão. Iluminados por quase nada, lembravam Caravaggio.
Einar e Svavar têm 19 anos. Não fazem parte do protesto. Entraram na tenda só para conversar, porque parecia um lugar tranquilo. "Onde estão os manifestantes?" "Estão em falta", responde Einar.
Svavar fala com gestos largos, movendo os braços lentamente, como algas embaixo d'água. É um menino doce. Vem de uma família de pescadores desde sete gerações, mas não pode pescar. A privatização do regime de cotas, uma das primeiras medidas de Davíd Oddsson, concentrou as empresas de pesca e excluiu os barcos autônomos. "Virei guia turístico. Mostro o mar, as belezas. De vez em quando saio nos barcos como cozinheiro. É muito triste." Não participou das manifestações de 2008. "Aquele pessoal só protestava porque tinha perdido dinheiro."
A Islândia na qual Svavar gostaria de viver é feita de terra, mar e pouca coisa mais. "Eu quero me retirar da sociedade, não depender de nada nem de ninguém." É o sonho regressista de uma Islândia autossuficiente, de homens livres que não respondem a nenhum governo central. Svavar abomina a União Europeia, à qual o país pensa em se juntar. "Se não quero depender de uma decisão de Reykjavík, que dirá de Bruxelas." É o mesmo argumento de Davíd Oddsson, o líder de direita a que Svavar presume se opor. "O diabo tem boas ideias", responde.
A natureza que ele tanto ama também sofre e caminha para a dissolução. "Se você quiser falar de aquecimento global, eu posso passar a noite inteira aqui..." Rejeita a ideia de crescimento econômico – "significa apenas mais coisas"–, pois julga que o mundo chegou ao limite. Svavar pensa em ir embora.Lamenta com muita tristeza que a Islândia já não lhe ofereça oportunidades. Quer juntar dinheiro para pagar um curso de botânica em alguma parte do mundo, de preferência numa floresta tropical.
Einar, ao contrário de Svavar, participou ativamente dos protestos de 2008. Invadiu a delegacia para soltar Haukur, a quem atribui, em parte, o despertar da sua própria consciência política. "Foi com o colapso que eu e meus amigos começamos a pensar como filósofos de verdade." Ele diz isso de uma maneira muito bonita, sincera. "Foram dias lindos...", rememora, como se não fosse um adolescente de 19 anos. "Hoje, tudo é pura apatia."
Alguns colegas talvez o achem petulante, com sua figura de um menino inglês privilegiado do entreguerras, bochechas vermelhas, nariz afilado, traços delicados, boné de tweed. É extraordinariamente articulado e se expressa num inglês impecável, cheio de maneirismos britânicos antiquados. Num filme, estaria a caminho de Oxford com versos de Shelley nos lábios. A realidade é bem outra. Einar abandonou a escola. Depois, decidiu voltar, e agora pensa em largar de novo. Quer ser cineasta.
Ísi, o produtor cultural, havia dito: "Por um lado, não descemos ao fundo do poço – ninguém passou fome, continuamos a ser um dos países no topo do mundo –, mas, por outro, nada de muito importante acontecerá por aqui durante muito, muito tempo. O que temos agora é isso, e pronto."
Isso é muito pouco para Einar, e também para seu amigo Svavar. Estão ambos desencantados, mas por razões opostas: Svavar teme o tumulto do futuro, e Einar, o tédio.
À medida que o tempo passa, mesmo o referendo vai perdendo suas tintas heroicas. Tudo parece se reduzir a um pragmatismo exasperado. "Os estrangeiros depositaram o dinheiro nos bancos islandeses e agora querem de volta." Einar consegue compreender isso. "Mas eu não quero viver feito um cão porque um banqueiro islandês viveu uma vida louca. Então, fuck it: não pago." Svavar acha que Einar se tornou um pessimista: "O que ele queria é aperfeiçoar o sistema, e não o pôr abaixo, mas chegou à conclusão de que isso é impossível." É um eco do suspiro de Eiríkur Gudmundsson, o jornalista da Rádio Nacional: "Capitalismo: nada além no horizonte."
São riscos que a Islândia corre. De um lado, o nacionalismo, com sua defesa do país profundo, de matriz nostálgica, antimoderna e isolacionista; do outro, o desengajamento político, o desdém. Num caso, o país entregue aos extremistas que melhor souberem modular o discurso; no outro, aos oportunistas que ocupam o vácuo deixado pelo desinteresse.
No centro, todos aqueles que, embora cansados, ainda acreditam no processo democrático. "E olhe", diz Katrín, do comitê da reforma constitucional, "a gente agora está precisando é de um pouco de confiança e de amor. Pode parecer cafona, mas esse lugar nunca foi muito ensolarado, então um pouquinho de amor faz falta. Senão nós vamos ser sempre essa ilha árida perdida no Atlântico Norte."
Thór Jóhannesson descobriu sua santa chama insubmissa no episódio da tomada da delegacia. Afora o nascimento do filho, foi o momento mais intenso dos seus 36 anos de vida. Foi ele que perguntou pelas pedras e inflamou a multidão, ao dizer que libertar o prisioneiro significava derrubar o governo, e que, ao ver Haukur livre, cerrou os punhos e gritou que agora a Islândia era a França da Marselhesa.
Na época, estava concluindo a universidade e em breve faria o concurso para o magistério nacional. Seu sonho era lecionar literatura no ensino médio. Chegou a ser contratado em regime de experiência, mas o Estado o incluiu na lista de demissões do programa de austeridade. De lá para cá, vive do seguro-desemprego. Fez pequenos papéis em alguns filmes e pensa em mudar de carreira, mas no momento está quebrado. Mora de favor na casa do irmão, numa cidade vizinha a Reykjavík.
O ardor revolucionário se extinguiu. Thórvotou no Melhor Partido para a prefeitura de Reykjavík, mas anularia o voto em eleições nacionais. A esquerda que está no poder é um desapontamento. No máximo, melhor do que o governo anterior. "Entre Satã e o Diabo, você escolhe Satã, que é o melhor. Sóque é o Diabo quem manda." É uma variante de um tema recorrente no país: mudaram as pessoas, a ordem permaneceu intacta. Thór se sente congelado, sem poder se mover. Sonha com uma Islândia de trinta anos atrás. "O que existe é a desesperança. Perdi completamente a fé na democracia. Está provado que ela é tão perniciosa quanto a ditadura. Então, se existe uma saída, eu não conheço. Se soubesse qual é a terceira via, eu seria o rei do mundo." J
[1]Com raras exceções, sobrenomes são proibidos na Islândia. Os sufixos sone dóttir significam filho de e filha de, e compõem os patronímicos de cada islandês. É impróprio referir-se a alguém pelo patronímico, pois seria tão somente afirmar que uma pessoa não nomeada é filho ou filha de João ou Pedro. Do presidente ao desempregado, todos são tratados pelo nome próprio. Adotaremos o critério islandês neste artigo. Só serão referidos pelo sobrenome aqueles que de fato o tiverem, o que é fácil de constatar pela ausência dos sufixos mencionados acima. Por exemplo, no parágrafo anterior: Thórhallsson é patronímico, Haarde é sobrenome.


Fonte: www.diariodaliberdade.org


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Revolução na Islândia à Margem Esquerda da Europa

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Gramsci e a análise das crises por Giuseppe Vacca

O texto que propomos foi extraído dos Cadernos do cárcere (Caderno 15, § 5) e foi escrito em fevereiro de 1933. É um texto chave para a interpretação do pensamento político de Gramsci, mas não é esta a razão pela qual o republicamos. Pensamos em repropô-lo porque pode ser um ponto de referência útil na discussão atual sobre aquela que é comumente definida como “crise financeira”, começada nos Estados Unidos em 2007 e transformada progressivamente em crise econômica global. Por isso, limitamo-nos a comentar alguns pontos do escrito de Gramsci que nos parecem particularmente significativos para refletir sobre a crise atual.
Queríamos antes de tudo observar que, quando nos encontramos em presença de uma crise econômica de proporções mundiais, é errôneo e enganoso isolar um dos seus aspectos ou buscar para ela uma só causa; deve-se, ao contrário, buscar reconstruir todo um período histórico no qual as manifestações econômicas da crise, que variam no tempo e se diferenciam de país para país, possam ser explicadas de um modo útil para resolvê-la. Em outras palavras, é importante não isolar os aspectos puramente econômicos do fenômeno a não ser por comodidade analítica, sob a condição de que sejam enquadrados numa reconstrução histórica de conjunto em que se possam definir os atores e as estratégias necessárias para criar novos equilíbrios mundiais e uma nova estabilidade.
Aplicando este critério ao andamento da crise entre 1929 e 1932, Gramsci apontava sua origem no contraste entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política e, por isso, propunha inscrever aqueles quatro anos num período histórico muito mais longo, caracterizado pela manifestação daquela contradição e pela incapacidade das classes dirigentes de resolvê-la no único modo possível, isto é, adequando as formas e os espaços da regulação política àqueles de uma economica cada vez mais plenamente mundial. Desde 2007, os paralelos entre a crise atual e a de 1929 são muitas vezes recorrentes, mas quase sempre impróprios e superficiais, porque as explicações da crise atual são resumidas em slogans do tipo “a globalização da finança expropria a política”, ou se reduzem à denúncia do enorme crescimento das desigualdades redistributivas como causa dos desequilíbrios da economia, ou, por fim, à acusação feita à “especulação” de criar as crises das dívidas soberanas.
No entanto, para dar só um exemplo, como se faz para explicar com um ou outro daqueles slogans a explosão das dívidas soberanas na Europa, quando é inteiramente evidente que a valorização ou a desvalorização do euro, para não falar do spread entre os títulos da dívida alemã e os da dívida de outros países europeus, dependem da política do governo alemão? Portanto, refletir sobre o escrito de Gramsci pode servir para ativar algumas defesas imunológicas contra aquelas narrativas ou, pelo menos, eliminar os aspectos contraditórios de representações nas quais pode acontecer que se ouçam, no mesmo discurso, uma reconstrução minuciosa do modo unilateral e agressivo pelo qual a Alemanha exerceu sua liderança na Europa do euro, até provocar sua crise, e explicações da crise geral baseadas num suposto, fatal predomínio da economia sobre a política.
Houve um breve período, em 2010, no qual as vicissitudes da economia mundial foram representadas como “guerra das moedas”. Esta também era uma interpretação inadequada, mas pelo menos estimulava as mentes a se perguntarem: quando começou a “guerra”? Quem está em guerra contra quem? E como se pode sair dela? Em síntese, era um modo de narrar os acontecimentos mais próximo de uma interpretação histórica e, portanto, do senso comum dos cidadãos, que gostariam de compreender e não se sentirem oprimidos pela impotência diante de fantasmas indecifráveis como “a economia que expropria a política”, “a especulação internacional” que ameaça a soberania dos Estados e coisas semelhantes. Mas aquele período terminou justamente quando tal abordagem deveria ser aperfeiçoada para investigar a crise do euro.
Se o contraste entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política era uma chave explicativa das crises internas e internacionais da primeira metade do século XX, ele aparece ainda mais explosivo num período histórico em que a globalização da economia mundial é muito mais extensa, as classes dirigentes imputáveis de nacionalismo são bem mais numerosas e, ao mesmo tempo, estão propensas antes a um “neomercantilismo continental” do que ao nacionalismo político ou econômico tradicional. Portanto, a chave de leitura do comportamento delas poderia ser extraída da reconstrução dos seus sucessos e dos seus fracassos ao governar as interdependências e as assimetrias de poder que caracterizam a estrutura do mundo de quarenta anos para cá.
No entanto, não me parece que se possa propor o paralelo entre a crise atual e a de 1929 sob outros aspectos. O primeiro é que os países protagonistas do conflito econômico mundial de então podiam recorrer à guerra, ao passo que, para o bem da humanidade, esta possibilidade parece hoje definitivamente vedada. Mas, paradoxalmente, o número maior de partners da economia mundial hodierna torna ainda mais imprevisíveis a duração da crise e as possibilidades de acordo que produzam um novo equilíbrio mundial estável e progressivo, como foi aquele das três décadas sucessivas à Segunda Guerra Mundial.
Além disso, um ano depois de ter escrito este texto, Gramsci ordenou as notas dedicadas ao “americanismo” e apontou o taylorismo e o fordismo como as alavancas de um novo industrialismo, que poderia expandir-se mundialmente e subverter as estruturas antiquadas da velha Europa. Podia indicar, assim, um novo modelo de organização das massas e da economia que, difundindo-se no mundo mais desenvolvido, modificaria e levaria adiante aquela contradição, com efeitos incrivelmente progressivos. Não me parece que, na crise atual, possa distinguir-se algo comparável a que possamos nos aferrar.
Muito mais plausível, no entanto, parece o paralelo com um outro aspecto da análise gramsciana: a ênfase na estabilidade monetária internacional como solução da crise da economia mundial. É o elemento hoje evocado por todos aqueles que favorecem “um novo Bretton Woods”. Naturalmente, uma moeda ou uma cesta de moedas de reserva negociadas em nível mundial não poderiam coincidir com nenhuma moeda nacional, e isso também, somado ao número dos atores e às assimetrias de poder que originam suas tensões, não permite prever se e quando se poderá alcançar o objetivo. Incidentalmente, pode-se observar que as economias do Atlântico Norte, no seu conjunto, constituem o maior agregado de recursos que poderiam ser postos à disposição de uma nova ordem mundial e são a parte mais integrada e interconectada do globo. Mas não se vê como elas poderão convergir para criar novos equilíbrios e uma nova estabilidade da economia mundial, sem superar preliminarmente o dualismo entre euro e dólar, cujo antagonismo talvez seja a verdadeira causa das crises paralelas, americana e europeia, da última década. 

 

Caderno 15 (1933)
§ 5. Passado e presente. A crise. O estudo dos acontecimentos que assumem o nome de crise e que se prolongam de forma catastrófica de 1929 até hoje deverá atrair atenção especial. 1) Será preciso combater todos os que pretendam dar destes acontecimentos uma definição única ou, o que é o mesmo, encontrar uma causa ou uma origem única. Trata-se de um processo, que tem muitas manifestações e no qual causas e efeitos se interligam e se sobrepõem. Simplificar significa desnaturar e falsear. Portanto: processo complexo, como em muitos outros fenômenos, e não “fato” único que se repete sob várias formas em razão de uma causa e uma origem únicas. 2) Quando começou a crise? A questão está ligada à primeira. Tratando-se de um desenvolvimento e não de um evento, a questão é importante. Pode-se dizer que a crise como tal não tem data de início, mas só algumas de suas “manifestações” mais clamorosas, que são identificadas com a crise, de modo errôneo e tendencioso. O outono de 1929, com o crack da bolsa de Nova Iorque, é para alguns o início da crise; e, como era de supor, para os que pretendem ver no “americanismo” a origem e a causa da crise. Mas os eventos do outono de 1929 na América são exatamente uma das manifestações clamorosas do desenvolvimento da crise, e nada mais. Todo o após-guerra é crise, com tentativas de remediá-la que às vezes têm sucesso neste ou naquele país, e nada mais. Para alguns (e talvez não sem razão), a própria guerra é uma manifestação da crise, ou melhor, a primeira manifestação; a guerra foi precisamente a resposta política e organizativa dos responsáveis. (Isto mostraria que é difícil separar nos fatos a crise econômica das crises políticas, ideológicas, etc., embora isto seja possível cientificamente, ou seja, mediante um trabalho de abstração). 3) A crise tem origem nas relações técnicas, isto é, nas respectivas posições de classe, ou em outros fatos, como legislações, desordens, etc.? Decerto, parece demonstrável que a crise tem origens “técnicas”, ou seja, nas respectivas relações de classe, mas que, em seus inícios, as primeiras manifestações ou previsões deram lugar a conflitos de vários tipos e a intervenções legislativas, que jogaram mais luz sobre a própria “crise”, não a determinaram, ou acentuaram alguns de seus fatores. Estes três pontos — 1) que a crise é um processo complicado; 2) que se inicia pelo menos com a guerra, ainda que esta não seja sua primeira manifestação; 3) que a crise tem origens internas, nos modos de produção e, portanto, de troca, e não em fatos políticos e jurídicos — parecem ser os três primeiros a ser esclarecidos com exatidão.
Outro ponto é que se esquecem os fatos simples, isto é, as contradições fundamentais da sociedade atual, em favor de fatos aparentemente complexos (mas seria melhor dizer “artificiosos”). Uma das contradições fundamentais é esta: que, enquanto a vida econômica tem como premissa necessária o internacionalismo, ou melhor, o cosmopolitismo, a vida estatal se desenvolveu cada vez mais no sentido do “nacionalismo”, da “autossuficiência”, etc. Uma das características mais visíveis da “crise atual” é, apenas, a exasperação do elemento nacionalista (estatal-nacionalista) na economia: quotas de importação e de exportação, clearing, restrição ao comércio de divisas, comércio equilibrado apenas entre dois Estados, etc. Então se poderia dizer, o que seria o mais exato, que a “crise” é tão somente a intensificação quantitativa de certos elementos, nem novos nem originais, mas sobretudo a intensificação de certos fenômenos, enquanto outros, que antes apareciam e operavam simultaneamente com os primeiros, neutralizando-os, tornaram-se inoperantes ou desapareceram inteiramente. Em suma, o desenvolvimento do capitalismo foi uma “crise contínua”, se assim se pode dizer, ou seja, um rapidíssimo movimento de elementos que se equilibravam e neutralizavam. Num certo ponto, neste movimento, alguns elementos predominaram, ao passo que outros desapareceram ou se tornaram inativos no quadro geral. Então surgiram acontecimentos aos quais se dá o nome específico de “crises”, que são mais ou menos graves precisamente na medida em que tenham lugar elementos maiores ou menores de equilíbrio. Dado este quadro geral, pode-se estudar o fenômeno em seus diversos planos e aspectos: monetário, financeiro, produtivo, de comércio interno, de comércio exterior, etc.; e não se pode excluir que cada um destes aspectos, em consequência da divisão internacional do trabalho e das funções, possa ter aparecido, nos diferentes países, como predominante ou como máxima manifestação. Mas o problema fundamental é o produtivo; e, na produção, o desequilíbrio entre indústrias dinâmicas (nas quais o capital constante aumenta) e indústrias estacionárias (nas quais conta muito a mão de obra imediata). Compreende-se que, dado que também no campo internacional ocorre uma estratificação entre indústrias dinâmicas e estacionárias, foram mais atingidos pela crise os países nos quais as indústrias dinâmicas existem em abundância, etc. Disso resultam variadas ilusões, decorrentes da incompreensão de que o mundo é uma unidade, queira-se ou não, e de que todos os países, se se mantiverem em determinadas condições de estrutura, passarão por certas “crises”. (Sobre todos estes temas, deve-se ver a literatura da Sociedade das Nações, de seus especialistas e de sua comissão financeira, que servirá pelo menos para que se possa dispor de todo o material sobre a questão, bem como as publicações das mais importantes revistas internacionais e das Câmaras de Deputados.)
A moeda e o ouro. A base áurea da moeda se tornou necessária em razão do comércio internacional e do fato de que existem e operam as divisões nacionais (o que leva a fatos técnicos particulares deste campo, dos quais não se pode prescindir: entre os fatos, está a rapidez da circulação, que não é um fato econômico menor). Dado que as mercadorias se trocam por mercadorias, em todos os campos, a questão é saber se este fato, inegável, ocorre num tempo curto ou longo e se esta diferença de tempo tem importância. Dado que as mercadorias se trocam por mercadorias (compreendidas, entre as mercadorias, os serviços), é evidente a importância do “crédito”, ou seja, o fato de que uma massa de mercadorias ou serviços fundamentais, isto é, que indicam um completo ciclo comercial, produzem títulos comerciais e que tais títulos deveriam se manter constantes a cada momento (com igual poder de troca), sob pena da paralisação das trocas. É verdade que as mercadorias se trocam por mercadorias, mas “abstratamente”, ou seja, os atores da troca são diferentes (ou seja, não existe “escambo” individual, e isto exatamente acelera o movimento). Por isto, se é necessário que no interior de um Estado a moeda seja estável, tanto mais necessária se mostra a estabilidade da moeda que serve às trocas internacionais, nas quais “os atores reais” desaparecem por trás do fenômeno. Quando num Estado a moeda varia (por inflação ou deflação), ocorre uma nova estratificação de classes no próprio país; mas, quando varia uma moeda internacional (por exemplo, a libra esterlina e, em menor medida, o dólar, etc.), ocorre uma nova hierarquia entre os Estados, o que é mais complexo e leva a interrupção no comércio (e com frequência a guerras), ou seja, há transferência “gratuita” de mercadorias e serviços entre um país e outro, e não só entre uma classe e outra da população. A estabilidade da moeda, internamente, é uma reivindicação de algumas classes e, externamente (para as moedas internacionais, nas quais se assumiram os compromissos), de todos os que comerciam. Mas por que elas variam? As razões são muitas, certamente: 1) porque o Estado gasta demais, ou seja, não quer que suas despesas sejam pagas diretamente por certas classes, mas por outras, indiretamente, e, se possível, por países estrangeiros; 2) porque não se quer diminuir um custo “diretamente” (por exemplo, o salário), mas só indiretamente e num prazo prolongado, evitando atritos perigosos, etc. De qualquer modo, também os efeitos monetários se devem à oposição dos grupos sociais, que nem sempre se deve entender no sentido do próprio país em que o fato ocorre, mas no de um país antagonista.
Este é um princípio pouco aprofundado, mas que é decisivo para a compreensão da história: que um país seja destruído pelas invasões “estrangeiras” ou bárbaras não quer dizer que a história desse país não esteja incluída na luta de grupos sociais. Por que aconteceu a invasão? Por que se deu determinado movimento de população, etc.? Do mesmo modo como, em certo sentido, num determinado Estado, a história é a história das classes dirigentes, assim também, no mundo, a história é a história dos Estados hegemônicos. A história dos Estados subalternos se explica através da história dos Estados hegemônicos. A queda do Império Romano se explica através do desenvolvimento da vida do próprio Império Romano, mas isto sugere que “faltam” certas forças, ou seja, é uma história negativa e, por isto, insatisfatória. A história da queda do Império Romano deve ser buscada no desenvolvimento das populações “bárbaras” e até mais além, porque os movimentos das populações bárbaras eram frequentemente consequências “mecânicas” (isto é, pouco conhecidas) de outro movimento inteiramente desconhecido. Eis por que a queda do Império Romano gera “peças de oratória” e se apresenta como um enigma: 1) porque não se quer reconhecer que as forças decisivas da história mundial não estavam então no Império Romano (mesmo que fossem forças primitivas); 2) porque não dispomos dos documentos históricos de tais forças. Se há enigma, não se trata de coisas “incognoscíveis”, mas simplesmente “desconhecidas” por falta de documentos. Resta ver a parte negativa: “por que o Império se deixou vencer?”; mas precisamente o estudo das forças negativas é aquele que menos satisfaz, e com razão, porque pressupõe de per si a existência de forças positivas e nunca se quer confessar que estas são desconhecidas. Na questão da formulação histórica da queda do Império Romano, também entram em jogo elementos ideológicos, de vaidade, que estão longe de ser desprezíveis.


Fonte: Tamtàm democratico & Gramsci e o Brasil.