sábado, 21 de setembro de 2013

A ESTRANHA HISTÓRIA DE ROBERTO FREIRE


Por Sebastião Nery


O único político brasileiro da oposição (que se diz da oposição) que aplaudiu José Serra, o Elias Maluco eleitoral, por ter anunciado que agora é hora de destruir Lula, foi o senador Roberto Freire, presidente do Partido Popular Socialista (PPS, a sigla que sobrou do assassinato do saudoso Partido Comunista, melhor escola política brasileira do século passado). Disse: "Serra presta um serviço à democracia".
Para Roberto Freire, "desconstruir", destruir, eliminar o principal candidato da oposição e das esquerdas (com 42% nas pesquisas) é um "serviço à democracia". Gama e Silva nunca teve coragem de dizer isso. Armando Falcão também não. Nem mesmo Newton Cruz. Só o delegado Fleury. Ninguém entendeu. Porque não conhecem a história de Roberto Freire.
Aprovado pelo SNI

Em 1970, no horror do AI-5, quando tantos de nós mal havíamos saído da cadeia ou ainda lá estavam, muitos sendo torturados e assassinados, o general Médici, o mais feroz dos ditadores de 64, nomeou procurador (sic) do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) o jovem advogado pernambucano Roberto João Pereira Freire, de 28 anos.
Não era um cargozinho qualquer, nem ele um qualquer. "Militante do Partido Comunista desde o tempo de estudante, formado em Direito em 66 pela Universidade Federal de Pernambuco, participou da organização das primeiras Ligas Camponesas na Zona da Mata" (segundo o "Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro", da Fundação Getulio Vargas-Cpdoc).
Será que os comandantes do IV Exército e os generais Golbery (governo Castelo), Médici (governo Costa e Silva) e Fontoura (governo Médici), que chefiaram o SNI de 64 a 74, eram tão debilóides a ponto de nomearem procurador do Incra, o órgão nacional encarregado de impedir a reforma agrária, exatamente um conhecido dirigente universitário comunista e aliado do heróico Francisco Julião nas revolucionárias Ligas Camponesas?
Os mesmos que, em 64, na primeira hora, cassaram Celso Furtado por haver criado a Sudene, cataram e prenderam Julião, e desfilaram pelas ruas de Recife com o valente Gregório Bezerra puxado por uma corda no pescoço, puseram, em 70, o jovem líder comunista para "fazer" a reforma agrária.
Não estou insinuando nada, afirmando nada. Só perguntando. E, como ensina o humor de meu amigo Agildo Ribeiro, perguntar não ofende.
Sempre governista
Em 72, sempre no PCB (e no Incra do SNI!) foi candidato a prefeito de Olinda, pelo MDB. Perdeu. Em 74, deputado estadual (22.483 votos). Em 78, deputado federal, reeleito em 82. Em 85, candidato a prefeito de Recife, pelo PCB, derrotado por Jarbas Vasconcellos (PSB). Em 86, constituinte (pelo PCB, aliado ao PMDB e ao governo Sarney). Em 89, candidato a presidente pelo PCB (1,06% dos votos).
Reeleito em 90, fechou o PCB em 92, abriu o PPS e foi líder, na Câmara, de Itamar, com cujo apoio se elegeu senador em 94 e logo aderiu ao governo de Fernando Henrique. Em 96, candidato a prefeito de Recife, perdeu pela segunda vez (para Roberto Magalhães).
Agora, sem condições de voltar ao Senado, aliou-se ao PMDB e PFL de Pernambuco, para tentar ser deputado. Uma política nanica, sempre governista, fingindo oposição.
Agente de FHC
Em 98, para Fernando Henrique comprar a reeleição, havia uma condição sine qua non: impedir que o PMDB lançasse Itamar candidato a presidente. Sem o PMDB, a reeleição não seria aprovada. Mas o PMDB só sairia para a candidatura própria se houvesse alianças. E surgiram negociações para uma aliança PMDB-PPS, uma chapa Itamar-Ciro.
Fernando Henrique ficou apavorado. E Roberto Freire, agente de FHC, o salvou, lançando Ciro a presidente. Isolado, o PMDB viu sua convenção explodida pelo dinheiro do DNER, Itamar sem legenda e a reeleição aprovada.
Durante quatro anos, Roberto Freire saracoteou nos palácios do Planalto e da Alvorada, sempre fingindo independência, mas líder da "bancada da madrugada" (de dia se diz oposição, de noite negocia no escurinho do governo).
Quinta-coluna
No ano passado, na hora de articular as candidaturas a presidente, o PT (sobretudo o talento e a competência política de José Dirceu) começou a pensar numa aliança PT-PPS, para a chapa Lula-Ciro. Itamar disse que apoiava. O PSB de Arraes também. Fernando Henrique, o PSDB e Serra se apavoraram. Mas Roberto Freire estava lá para isso. Novamente lançou Ciro, para impedir uma aliança das oposições com Ciro vice de Lula.
Fora dos cálculos de FHC e Roberto Freire, Ciro começou a crescer. Mas, quando o PFL, sem Roseana, quis apoiar Ciro, dando espaços nos estados e na TV, Roberto Freire, aliado em Pernambuco de Marco Maciel, o líder da direita do PFL, vetou o PFL com Ciro. Como se chama isso? Uns, "agente". Stalin chamava "quinta-coluna".

Fonte: Brasil 247

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O dia em que Chico Buarque virou Geni

Perplexos com apoio do compositor a Genoino, entre refletir e linchar, leitores escolhem o caminho fácil das pedras. Noves fora, Juca Kfouri e Beth Carvalho assinaram; adesões passam de 7 mil.

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O linchamento de Chico não preocupa. Mas e as outras Genis
que são apedrejadas todos os dias?

por João Peres


Raras vezes se vê uma notícia perdida neste mundo de sobreinformação causar tamanha perplexidade. A informação da RBA de que o compositor e escritor Chico Buarque aderiu ao abaixo-assinado em defesa do deputado José Genoino, réu da Ação Penal 470, o mensalão, expôs na internet uma enxurrada de sentimentos que falam muito sobre como os brasileiros enxergamos os políticos e desconfiamos do funcionamento das instituições democráticas – por consequência, da democracia em si.
Entre os quase 300 comentários feitos até ontem apenas em torno da reportagem da RBA, desconsiderando manifestações publicadas em outras páginas, xingamentos dominam, seguidos por elogios à atitude do cantor. Nas manifestações negativas reside o objeto digno de análise. Seria de se imaginar que a postura de Chico Buarque levasse a uma reflexão simples, banal: se ele está apoiando Genoino, não seria bom que eu tentasse entender o porquê?
O propósito da lista organizada por amigos do deputado não é outro que não esse: o de mostrar que, pelo respaldo social de que goza frente às acusações que recebe, o ex-presidente do PT talvez devesse ter recebido do Supremo Tribunal Federal (STF) outro tratamento. Sendo tarde para reverter a condenação, ao menos no todo, trata-se de um desagravo, na visão destes apoiadores, a alguém que recebeu uma pena injusta e que precisa ter sua honra resgatada.
Entre a reflexão e o linchamento, toma-se o caminho fácil das pedras nas mãos.
Os comentários começam com perplexidade: “Isso não é possível.. Um cara com o intelecto do Chico não faria uma bobagem dessa...”
Transformam o compositor em vítima da desinformação: “Ô Chico, até tu entrou nessa. Espero que sua fama de "pé frio" se confirme. Fala sério!”
Partem para a difamação: “Pilantra. O pai fundou o PT, a irmã tinha cargo... entre outras coisas. A falsa esquerda que se deu bem na ditadura.”
Chegam ao melhor “eu já sabia” de que se tem notícia: “Lógico! Ele foi um dos apoiadores dessa corja. Gostava muito do Chico. Hoje não gosto mais.”
Vão à explicação sociológica: “O cara é talentoso, mas com certeza o sangue burguês fala mais alto nessas horas. Nenhuma decepção!”
E apelam à antropologia e à biologia: “Ótimo compositor, mas péssimo ser humano. Eu já conhecia esta faceta quando mostrou-se contra a ditadura na época. Nos livramos da ditadura e ganhamos José Dirceu, Dilma, Lula, Delubio, José Genoino, etc.... Ou seja, trocamos 6 por 15 dúzias”.
Ao observar o comportamento exposto em redes sociais, sempre é bom manter um pé atrás, mas, neste caso, conversas à mesa do bar, no almoço de domingo e nos ônibus da vida estão aí para mostrar que os comentários colocados neste microcosmo não estão isolados neste mundo. Não é de hoje que se debate sobre a tendência de generalizar a política – ou melhor, os políticos, sempre entendidos como aproveitadores profissionais, incapazes de ter contato com a realidade e insensíveis. Embora a visão não seja desprovida de fundamentos, a extrapolação desta visão é que é um problema, com impacto direto em nossa vida democrática.
Não é de se surpreender com o linchamento porque os comentários sobre a posição do compositor nada mais fazem que reproduzir o senso comum acumulado ao longo de décadas, e contemporaneamente tornados públicos de forma instantânea pela internet. É mais fácil andar com a manada do que parar para pensar.
Juca e Beth assinaram ontem o documento que vem sendo
também chamado de abraço-assinado
O que Chico fez foi emprestar seu prestígio para promover um convite a seus admiradores: vamos refletir se a chamada “opinião pública” está sendo justa com o deputado? A lista pró-Genoino tem apoios como os do escritor Fernando Morais, do cineasta Toni Venturi, da psicanalista Maria Rita Kehl. Muito à esquerda? Citemos Nelson Jobim, ex-ministro do STF e dos governos FHC e Lula.
A propósito, a carta intitulada "Nós estamos aqui" ultrapassa a casa da 7 mil assinaturas, entre elas as do jornalista Juca Kfouri e da cantora Beth Carvalho.
São chamamentos à reflexão. Não é preciso concordar com os apoiadores do deputado petista, mas não é construtivo, pessoal e socialmente, rasgar o convite sem lê-lo. Dá trabalho, é verdade, formar uma opinião sólida e consistente, e às vezes é preciso perder amizades para defendê-la – Chico que o diga. Mas é melhor para a democracia do que o senso comum. A ojeriza pela vida política, senso comum, é o que facilita o sequestro da mesma por poucos grupos econômicos que conseguem ditar as ordens no país e no mundo.
Isso leva a uma questão maior, que é a vulnerabilidade de nossa democracia. Uma população que acredita piamente em uma história, sem contestá-la, é uma população fácil de dominar. Assim como o admirador de Chico não deve confiar de olhos fechados no que ele está a dizer, tampouco deve ter como verdade inconteste aquilo que é divulgado por uma emissora que apoiou um golpe e uma ditadura, que manipulou uma eleição presidencial e que de lá para cá desestabilizou outras tantas, sem entrar na seara econômica, nas manifestações de junho e nos direitos sociais.
Chico paga o preço de ser bem resolvido: ele é feito pra apanhar, ele é bom de cuspir, mas não dá seu prestígio pra qualquer um, maldito Chico. Frente à perplexidade, é mais fácil culpar o outro do que tentar entender se estamos errando ou não. O que preocupa não é essa nossa Geni, calejada pela vida, rica e de reputação – e que não vai morrer por um linchamento de redes sociais. Preocupa saber que todos os dias milhares de Genis sofrem com essa linha de intolerância ao outro, tão natural na sociedade brasileira: ateus, prostitutas, presidiários, gays etc. O caminho em que as pedras ficam no chão é árduo. Mas é melhor para todo mundo.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Sem Controle: Mídia, Vandalismo e Crise de Representação

sem controle cópia

Por Antonio Engelke

O leitor razoavelmente atento de jornais há de reconhecer que a narrativa das manifestações produzida pela grande mídia foi desde o início, e permanece até hoje, estruturada sobretudo em torno dos problemas da violência (depredação, vandalismo) e do transtorno (caos no trânsito, prejuízo do direito de ir e vir), tendo a figura do “mascarado” como ator principal e a polícia como coadjuvante. Esta narrativa, no entanto, não era inescapável ou obrigatória; os eventos não “falam” por si mesmos, ao contrário, “são falados”. Se este modo de falar sobre protestos populares parece natural, é somente porque já nos habituamos, porque deixamos de perceber que é fruto de uma escolha, e uma escolha bastante particular. Toda a questão então está em observar os efeitos que uma representação assim construída deverá gerar, os propósitos a que servem, e o que poderia revelar sobre aqueles que a formulam.
Primeiro, notemos a inversão que a narrativa realiza. Os protestos são apresentados não como atos fundamentalmente políticos, mas como episódios de violência que produzem desordem e imobilidade, suspendendo o direito de ir e vir da maioria – quando na verdade são justo o oposto, isto é, são atos políticos que denunciam a violência de um modelo de transporte público que, estruturado em benefício de poucos empresários, cria a imobilidade que reduz o direito de ir e vir da maioria a um pesadelo diário. Já se vê a que desígnio uma tal inversão serve. A maneira mais eficiente de esvaziar o conteúdo político de protestos populares não é ignorá-lo, fingir que não existe – o que aliás seria impossível –, mas aproveitar as imagens dos eventuais atritos produzidos e repeti-las ad nauseam como se fossem a essência mesma da inspiração que supostamente os animam, até que se complete a operação metonímica. O “mascarado” aparece então como óbvio candidato a estereótipo: não tendo um rosto identificável em sua singularidade, adequa-se perfeitamente ao papel de tornar-se o lugar abstrato de um “superávit ilícito de significado” (Jameson) cuja função será a de demarcar as fronteiras simbólicas entre o normal e o anormal, o aceitável e o repulsivo, a política e a violência.
Mas a própria violência da qual os mascarados seriam a face mais visível é um sintoma da falência da política. Eis o segundo fechamento operado pela narrativa midiática das manifestações: ao fornecer o estereótipo que organiza o discurso do senso comum em torno da (falsa) oposição entre política e violência, ela impede a compreensão de que, quando a linguagem da política passa a operar num vazio auto-referido e impermeável, quando deixa portanto de cumprir sua função de constituir-se como lugar de realização do interesse público, alguma ruptura talvez seja necessária para retomar a possibilidade de efetivamente fazer política. Haverá, é claro, quem se apresse em localizar aí o germe do extremismo que, se não for contido, leva à loucura autoritária. Seria o caso então de lembrar que os fundamentos da desobediência civil não estão na obra de Lênin, mas na de Locke.
O que não se observa, o que fica esquecido pela condenação automática e legalista do vandalismo, é precisamente o reconhecimento do contexto, político sobretudo, que produz o vandalismo. Não há de ser coincidência que um dos beneficiários deste esquecimento seja a própria imprensa. Ora, sabemos que a identidade é construída socialmente, através de um processo dialético em que o reconhecimento desempenha um papel fundamental; todos nós, indivíduos ou grupos, precisamos que o olhar do Outro nos devolva uma imagem de nós mesmos para nos constituirmos enquanto sujeitos. Pois bem: elevar o vandalismo ao centro das atenções, fazendo das pedras jogadas e vidraças quebradas e ônibus queimados o maior destaque de um momento de importância histórica, já é um atestado de grandeza. Como tal, serviu também para assegurar aos “vândalos” que eles realmente existem, que constituem uma força a ser reconhecida. De que outra forma poderiam ter sua identidade grupal confirmada com tanta certeza? No dia seguinte ao maior protesto nas ruas desde as “Diretas Já”, o jornal O Globo anunciava em letras garrafais: “SEM CONTROLE”. Que o elogio se faça pelo avesso não diminui o quanto de exaltação ele transporta. Como assim sem controle? O sujeito oculto da manchete é o Estado, que, surpreendido pela força do povo nas ruas, teria perdido seu domínio. Nova inversão: quem quer que tenha ido à manifestação do dia 20 de junho sabe que a polícia carioca não apenas esteve o tempo todo no controle da área de conflito, próximo ao prédio da Prefeitura, como também desandou a perseguir e brutalizar quem estivesse tentando voltar para casa ou simplesmente tomando uma cerveja nos bares de bairros vizinhos, como Lapa, Glória e Laranjeiras. Daí podermos enxergar nesta manchete um ato falho, a narrativa midiática traindo a si própria ao abrir a possibilidade da leitura a contrapelo – o “sem controle” referido aos excessos da atuação da polícia, não à sua falta. De qualquer forma, se a manchete do Globo interpela o Estado, denunciando sua debilidade, acusando o fracasso em cumprir seu papel elementar de exercer o poder sobre o território, é apenas para lhe exigir uma resposta ainda mais dura na próxima vez que o povo sair às ruas em protesto. Um ótimo e infeliz exemplo do que Foucault tinha em mente quando afirmou que o discurso não apenas representa uma realidade, mas constrói esta realidade no processo de representá-la.
Uma das maneiras mais eficientes de representação-construção da realidade é o uso de metáforas. A eficiência decorre da capacidade que as metáforas possuem de nos fazer entender e experimentar um tipo de coisa nos termos de outra, ou como se fosse outra. Metáforas não são apenas ornamentos de linguagem destinados a criar efeitos poéticos. Nossos processos cognitivos são em larga medida metafóricos, isto é, o modo pelo qual estruturamos o sistema de conceitos que usamos para lidar com a realidade é em si mesmo metafórico. Se as metáforas informam nossa percepção do mundo, segue-se que elas também contribuem para condicionar nossas ações no mundo. Fazem isso de maneira bastante sutil: a metáfora que usamos para nos referir a um determinado aspecto da realidade engendra um conjunto de disposições ou atitudes correlatas, porque ilumina ou evidencia certos aspectos da experiência ao mesmo tempo em que esconde outros. Para ficarmos apenas em um exemplo (há vários): quando o Globo estampa, na capa de sua edição de 18 de junho, o título “A batalha da Alerj”, em referência ao conflito ocorrido ao final do protesto da noite anterior, está inspirando os leitores a entender as ações de vandalismo como se fossem atos de guerra. Seria possível objetar, lembrando que a metáfora da guerra (“guerra judicial”, fulano é um “guerreiro” etc.) é de uso generalizado. Verdade, mas isso não esvazia o argumento. Que uma metáfora tenha sido assimilada pelo senso comum como se descrição literal fosse é um motivo a mais, e não a menos, para que reconheçamos a força e o alcance do enquadramento que ela opera, sobretudo quando aplicada em um contexto menos usual. Ademais, uma metáfora aparentemente banal pode facilmente abrir a porta para outros termos oriundos de seu campo semântico, intensificando o efeito metafórico cumulativo e produzindo ramificações nada banais. Se o protesto do dia 17 de junho foi uma “batalha”, é porque faz parte de uma “guerra” mais ampla, e se estamos em “guerra”, então a adoção de um vocabulário que comporta noções como a de “inimigo” e “exército” é mais do que justificada. Assim, a representação dos protestos nos termos da metáfora da guerra contribui não apenas para configurar uma agenda pública centrada na demanda por mais repressão, mas também a legitimá-la. Sendo a guerra, por definição, o vazio do Direito, fica aberto o caminho para todo tipo de abuso por parte do Estado, vide a brutalidade gratuita exaustivamente documentada, as detenções arbitrárias e as acusações forjadas de “formação de quadrilha”.
Não se trata, evidentemente, de uma novidade. Já estamos em “guerra contra o tráfico” há tempos. Mas é curioso notar como o procedimento é semelhante, assim como as estratégias utilizadas para legitimá-lo. Quando o Secretário de Segurança José Mariano Beltrame afirma que “Não há como separar o vândalo do manifestante”, está reproduzindo a retórica que desde sempre autoriza o massacre imposto a comunidades durante operações policiais (“a PM não tem como saber quem é bandido ou trabalhador durante um tiroteio…”). Amplificada pelo alcance massivo de jornais e noticiários de TV, a circulação desta retórica estruturada em torno da ideia de confronto, e portanto tributária de um vocabulário que prioriza a violência em detrimento da paz, poderá então cumprir a função de dessensibilizar o senso comum para questões relativas à vida daqueles que, no Brasil, são tratados como cidadãos de segunda categoria, para os quais os direitos constitucionais não se aplicariam realmente. Se as classes média e alta podem conviver tranquilamente com a  ideia de que bala perdida no asfalto é escândalo, mas efeito colateral na favela, é somente porque foram acostumadas, ao nível da linguagem, a compreender e interpretar a realidade social através de um vocabulário que sanciona este desequilíbrio cognitivo. A linguagem, a violência verbal que ela veicula, não é uma distorção secundária que viria ser acrescida à uma realidade dada de antemão; é fonte de processos de subjetivação, através dos quais uma sociedade define um padrão em relação ao qual certos eventos ou comportamentos aparecerão então como violentos. Um vocabulário militarizado é uma das condições de possibilidade de uma polícia militarizada.
Há algo de profundamente perturbador nesta dinâmica midiática de elogio-e-condenação da violência, além da constatação um tanto elementar de que ela se retro-alimenta. Neste ponto, a reação habitual consiste em dizer que não é nada disto, que tudo o que se pede é o protesto pacífico, o diálogo produtivo, que não atrapalha o direito de ir e vir igualmente legítimo do restante da população. Contudo, se tivermos em mente que democracia é dissenso e fricção, não apenas o momento asséptico do voto, então o transtorno que a política feita nas ruas eventualmente causa não é um efeito colateral indesejável, mas um elemento constitutivo imprescindível: trata-se de forçar o reconhecimento de uma voz que, se não fosse o tempo todo silenciada ou ignorada, não precisaria estar ali, gritando, para se fazer ouvida. Apoiar as manifestações, mas com a condição de querer reduzi-las a uma conversa com dia e hora marcados, longe da ressonância espontânea das ruas, é como pedir um café descafeinado, como diria Slavoj Zizek.
Dirão que estou negando a violência dos vândalos. Longe disso; apenas não perderei tempo denunciando o óbvio. A condenação dogmática do vandalismo, ou a exigência inapelável de seu repúdio absoluto, é talvez o melhor modo de recusar a difícil tarefa de pensá-lo, e é justamente nesta recusa que devemos procurar a explicação para o pânico moral do qual os mascarados são objeto. Lacan certa vez observou que o imenso ciúme que o marido sente de sua mulher continuará sendo patológico mesmo que depois fique confirmado que ela de fato o traía. Ou seja, mesmo que todas as ações de vandalismo tenham se dado exatamente com a gravidade que a imprensa descreveu, isto ainda assim não anula o fato de que a sua descrição, o modo como são enquadrados dentro de uma narrativa, obedece a um princípio que não diz respeito ao vândalo em si, mas sim à necessidade de exagerar sua condição ameaçadora de vilão, necessidade esta que é anterior a qualquer ato real acontecido nas ruas desde junho. Nesta perspectiva, o que importa é o investimento da grande mídia na figura simbólica do vândalo, não a materialização concreta de um punhado de indivíduos que cobrem os rostos e desafiam a polícia. Tal investimento é ele mesmo um sintoma, uma manifestação de um medo anterior que funda e ao mesmo tempo corrobora a necessidade do próprio investimento: o medo do povo, da massa, de sua potência constituinte. Em suma, a boa e velha fantasia demófoba. É assim que, ao transformar a violência sem rosto da massa em fio condutor da narrativa sobre os protestos, a mídia conta uma grande mentira, apesar de estar dizendo a verdade – porque os motivos pelos quais ela o faz são fictícios.
Esta fantasia, o medo que ela veicula, é tão antiga quanto a própria democracia. Atualiza-se de tempos em tempos, ganhando materialidade de acordo com o sabor da ocasião; os “mascarados” de agora são só sua projeção mais recente. Neste sentido, o verdadeiro objeto do pânico moral que o discurso midiático ajuda a construir não é o vândalo de carne e osso, mas o que ele representa, e o que ele representa é a afirmação da fissura aberta pelo ato realmente político, isto é, a reivindicação da parte pelos sem-parte, que instaura o litígio que deverá reordenar a contagem do todo (Ranciére). A reinvenção do transporte público expressa no passe livre é uma daquelas demandas pontuais que, se atendidas, implicariam numa série de alterações estruturais, e não apenas conjunturais, bastante significativas. Por isso incomodam tanto, por isso tiram o sono dos poderes constituídos, assombrando-os como fantasmas. O sociólogo Fernando Perlatto resumiu bem este ponto quando observou que a demanda do passe livre faz mais do que evidenciar a falência da solução de mercado vigente: instaura um debate sobre transporte público que coloca como questão central a reflexão sobre o direito às cidades. Trata-se de um debate que exige pensar a relação entre indivíduos e coletividades; que obriga à reflexão sobre a reforma política, dado que levanta a temática do financiamento de campanhas (em muitos estados, os poderes executivos e legislativos são financiados por empresas de ônibus); que coloca em pauta a questão do meio-ambiente e da sustentabilidade (a necessidade de encarar a redução da poluição não como efeito colateral benfazejo do transporte público, mas como uma de suas razões de ser); e, last but not least, um debate que “evidencia a necessidade de pensarmos as políticas públicas não apenas como questões técnicas, mas como decisões políticas.”
A repolitização da política: é esta a exigência de fundo dos manifestantes nas ruas. É o que fazem, em ato, os jovens que ocupam a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. No entanto, a julgar pelas notícias nos jornais, parece mais relevante que tenham pichado um quadro, ou impedido vereadores de saírem de suas salas; O Globo chegou a falar em “cárcere privado”, numa clara tentativa de criminalizar a ocupação. Se tivessem lido Tocqueville, autor francês do século XIX que escreveu um dos mais belos elogios a esta democracia da qual os grandes jornais de hoje se dizem defensores fervorosos, os responsáveis pela feitura das manchetes saberiam que quanto maior a capacidade de associação e ação dos representados, menores as chances de que a representação possa ser usurpada em prol de interesses particulares. Assim, ao asfixiar o único elemento verdadeiramente político dos protestos, ao criminalizar a ação dos (sub)representados, a grande mídia alimenta a própria crise de representação, porque ajuda a reduzir a democracia ao momento esparso e solitário do voto. Mas é precisamente isto o que os manifestantes estão a gritar – o voto não basta! Compreensível que rejeitem os jornais, dizendo “Não me representa”.
Claro está que grandes veículos de comunicação são necessários ao funcionamento de uma democracia. Por sua estrutura profissional, têm a capacidade de fiscalizar o poder, investigar e trazer a público questões que de outra forma permaneceriam ignoradas. Também é evidente que abrem espaço ao contraditório, como atestam as colunas regulares de Vladimir Safatle (Folha de São Paulo) e Francisco Bosco (O Globo), por exemplo. Igualmente claro, entretanto, é o fato de que esta mesma proximidade com o poder às vezes serve para acobertá-lo, e que o mínimo espaço concedido ao dissenso é justamente a exceção que permite aos jornais se dizerem “plurais”. Tudo isto só torna a contradição que venho apontando ainda mais evidente: que a grande mídia, apesar de indispensável à democracia, pode eventualmente lhe ser prejudicial. É o que vem acontecendo no Brasil desde Junho. E é também o que, por contraste, permite apreciar a relevância política da internet, sobretudo das iniciativas de transmissão dos protestos via twitcam, que abriram a possibilidade de os acompanharmos enquanto acontecem, sem o filtro posterior da edição.
Não é exatamente uma novidade. Já em 1999 a Indymedia mostrava o caminho, seguido depois no Brasil pelo Centro de Mídia Independente (CMI). Mas foi a Mídia Ninja que ganhou notoriedade com as recentes manifestações, embora não seja a única iniciativa do tipo a cobri-las (há indivíduos fazendo o mesmo, assim como grupos desde antes estabelecidos, como o jornal A Nova Democracia). Não havendo aqui espaço para uma análise mais aprofundada destas transmissões, farei apenas alguns comentários pontuais. Debater se o que fazem é ou não jornalismo já implica em subscrever a noção de jornalismo que importa rejeitar, porque calcada no mito da imparcialidade. A questão não é o grau de objetividade da descrição, o quão próxima estaria do “ponto-de-vista do olho de Deus”, para usar a expressão de Hilary Putnam, mas sim a que desígnios serve, os possíveis a que dá ensejo, os horizontes que deixa entrever. Aí o critério de validação: a novidade transmitida via twitcam desconsagrou o discurso da grande mídia, quebrou-lhe o monopólio da produção da Verdade, produziu blasfêmia. Fez isto desde uma miríade de perspectivas, não a partir de um lugar de fala centralizado, o que implicaria em enfrentar as mesmas armadilhas da grande imprensa, só que com sinal invertido. Extrapolou a fronteira inicial de grupo para converter-se numa performance – ninjas são todos aqueles que, saindo as ruas em protesto ou os acompanhando de casa, utilizam a tecnologia disponível para inverter o big brotherOrwelliano e vigiar os poderosos.
A narrativa que possui uma coloração específica, um tom característico que a singularize, já se afasta do discurso analítico, de caráter racional e dogmático. Em outras palavras, a atitude que se quer distanciada, que se arvora na pretensão de objetividade ou neutralidade, não pode se instalar lá onde a linguagem exibe cor e sabor peculiares. Ao assumir um colorido que a singulariza, a narrativa (permitam-me a generalização) dos ninjas se posiciona ao lado, e não acima, das vozes de seus “objetos”, os manifestantes, e é isto que lhes permite aparecerem como aquilo que de fato são, como sujeitos heterogêneos, e não uma massa amorfa sobre a qual se projetam as fantasias demófobas de um poder que se sabe ameaçado. As fronteiras entre ninjas e manifestantes são mais porosas, ou menos definidas, mas continuam existindo. Abrem um espaço de enunciação polifônica, sem no entanto diluir a multiplicidade de vozes num todo homogêneo. Mais do que simplesmente ampliar o escopo de vozes, trata-se de redefinir as condições do diálogo – o que é, em si mesmo, um ato político.
[N.A] Devo várias passagens deste artigo aos amigos Diogo Lyra, Fernando Perlatto e Sergio Bruno Martins, a quem agradeço pelas críticas e sugestões feitas.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Mito da Impunidade: ‘Muita pena sinaliza pouco oxigênio democrático, sinaliza autoritarismo’


É só aparecer um caso criminal que envolve um adolescente menor de 18 anos que o efeito é imediato: a campanha pela redução da maioridade penal aparece. Presente na imprensa, reproduzido pela sociedade, este clamor também apareceu nas manifestações que ocuparam as ruas, incluindo diversas e difusas pautas. O professor de direito penal e presidente do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), Nilo Batista, é conhecido por suas posturas críticas ao sistema punitivo atual. Para ele, como pode ser lido nesta entrevista, este sistema serve como uma forma de limpeza social daqueles que não se enquadram no atual modelo de sociedade, permanentemente endossado pela mídia. Nilo acredita que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante os direitos da principais vítimas do modelo penal brasileiro: os jovens. O professor defende que a questão da maioridade penal é cláusula pétrea, e que seria um retrocesso reduzir a idade da imputabilidade penal. Segundo ele, além de estender o sofrimento punitivo do jovem, isso legitima uma forma seletiva da sociedade que se dá pela cor, classe social e idade.




Como o sr. avalia a presença da pauta da redução da maioridade penal nas recentes manifestações?


Isso é a prova da diversidade política destas manifestações. Elas são um saco de gato. Desde grupos neonazistas a uma juventude bem intencionada, mas politicamente ingênua. Eu me preocupo com a proliferação do fascismo. A manifestação não discute política, mas trata de sentimentos. Essa reação é um subcapítulo deste intenso punitivismo cuja origem, na verdade, não está no plano da subjetividade. O sistema penal do capitalismo industrial era diferente deste capitalismo que chamo de barbárie, financeiro. Nunca foi tão visível a participação do sistema penal no controle, no extermínio das massas miserabilizadas, desses contingentes inempregáveis – porque não podemos dizer mais que são desempregados , são pessoas que nunca mais vão conseguir algum trabalho ou sequer conseguiram algum em sua existência. 

Como se dá o controle desses trabalhadores que não conseguem emprego?

Toda a forma de economia informal, toda estratégia de sobrevivência da pobreza é objeto de uma iniciativa que tem um respaldo punitivo. Isso vai desde a economia informal do comércio de drogas ilícitas até economias que não são propriamente regulares, mas também não são ilícitas, do ponto de vista penal. É só dar uma olhada no que foi o Choque de Ordem [programa da Prefeitura do Rio de Janeiro, que, segundo a Secretaria Especial de Ordem Pública (Seop), busca ordenar o espaço público, fazendo valer as leis e o código de postura municipal] no Rio de Janeiro. É só darmos uma olhada nas praias do Rio de Janeiro: saiu a quituteira do Cantagalo, quase que o homem que vende chá e suco de limão foi impedido, mas as grandes empresas multinacionais estão lá. Os leitores do jornal O Globo têm uma cadeirinha, academias, agências; as barracas de praia agora têm sua padronização, ou seja, tirou toda a espontaneidade, a estética que era muito compatível à cidade. A cidade do Rio de Janeiro tem a maior população negra do mundo, mas tudo isso vem sendo vítima de uma assepsia que, aos poucos, vai tomando conta. O que acontece logo depois que descem [das favelas] os corpos da pacificação? Sobe o pessoal da Light [Empresa de Serviços de Eletricidade], da Net. A Light aumentou em 10% o seu faturamento depois que foram instaladas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), como aponta matéria no Valor Econômico. Enquanto isso, os flanelinhas estão sendo ameaçados, os camelôs estão sendo expulsos. É importante lembrar que no meio de tudo isso estão os meios de comunicação. Eles são a comissão de frente desta escola de samba que é o punitivismo pós-moderno. Para eles, este ato de poder, que é o mais duro, o mais violento, virou o paradigma de sociabilidade. É uma falsa solução que, às vezes, é dirigida a problemas reais, mas também a falsos problemas. E a punição justifica todos eles.

Como o sr. analisa os gritos de que o Brasil é o país da impunidade?

Há muito tempo escrevi que impunidade é um verbete da direita. É só olharmos para o passado e para o presente do país que podemos ver que a punição é crescente. Quando fizemos a Constituição, em 1988, em um dos primeiros dispositivos falávamos sobre uma sociedade livre, justa e igualitária. Neste momento, nós tínhamos 100 mil presos. Hoje nós estamos caminhando para 600 mil presos e, além disso, estamos com uma sociedade vigiada. A judicialização do cotidiano é um problema seríssimo. Todas as utopias, todos os avanços eram contra o sistema penal, hoje caminhamos contra isso. Privilegiamos a judicialização da vida cotidiana, restringimos o fenômeno da violência aos códigos legais. Mas isso não é particularidade do conservadorismo, isso pega muitos setores que pensam ser de esquerda, muitas pessoas das academias. As pessoas não se dão conta de que muita pena sinaliza pouco oxigênio democrático, sinaliza autoritarismo. É só olharmos para o século 20: toda vez que se teve muita gente fardada, e gente fardada de preto, a coisa não estava bem, quer dizer, estava muito difícil.

Como podemos recortar isso para a redução da maioridade penal, já que as pessoas acham que a idade de 18 anos é uma forma de tornar impunes os crimes que envolvem jovens?

Para mim, este caso é cláusula pétrea. É um retrocesso enorme estender o sofrimento punitivo para o jovem. Além disso, é importante lembrar que ele vai ser seletivo, porque o sistema penal pune somente os jovens pobres. O interessante é analisar a mídia, por exemplo, quando expõe raros casos de meninos ricos e brancos sofrendo algum tipo de pena, faz um alarde enorme em casos que envolvem jovens como este. O que isso significa? É simplesmente para dar a impressão de que o sistema penal é igual para todos, mas não é. Ele é seletivo, vai pelo estereótipo.

Como o sistema penal faz essa seleção?

É feita pela agência policial. Os estereótipos do infrator como um garoto pobre e negro batem perfeitamente. E é esta a porta de entrada. Mas, de vez em quando, tem que ter um rico branco sendo linchado em praça pública para legitimar o massacre das populações afrodescententes encarceradas. Quem diz que tem impunidade no país é porque nunca foi a uma penitenciária. É porque não conhece essa realidade de perto. Por outro lado, sempre que tem algum crime envolvendo um adolescente menor de 18 anos, ele serve para estimular essa campanha, esse clamor pela redução da maioridade penal. Se formos analisar, isso é algo muito burro, muito irracional. O sistema penitenciário é um reprodutor da identidade infracional. Isso já é comprovado em pesquisa que analisa o elevado índice de reincidência penitenciária. Uma pesquisa feita em Brasília, com atos relacionados ao furto, por exemplo, mostra que quando a pessoa entra na penitenciária – ou seja, cumpre pena com privação da liberdade – tem cerca de 70% de reincidência, e quando ela não é presa – aqueles que cumpriram pena sem a privação da liberdade, as chamadas penas alternativas – esse índice reduz pela metade.

Qual é a sua avaliação das casas de detenção destinadas ao jovem?

Tanto essas casas de detenção quanto as penitenciárias não recuperam ninguém. A privação de liberdade como um todo é fracassada. Ela é uma pena moderna, veio com o capitalismo industrial. A privação de liberdade veio como metonímia da pena. Mas ela nunca existiu antes, nem na Antiguidade nem na Idade Média. Ela começou recisamente como um controle das populações empobrecidas pela superação do mercantilismo sobre a manufatura e, logo depois, pela Revolução Industrial, na Inglaterra. No século 18, ainda estava disputando espaço com as penas do Antigo Regime, e somente no século 19 ela ganhou espaço. A partir daí, a prisão privativa de liberdade surge. Ela vem para punir a população pobre das grandes cidades em um momento em que se começou a criminalizar a pobreza, a vadiagem e as greves. E é nesse contexto que surgem os primeiros presídios.

Como o sr. avalia o Estatuto da Criança e Adolescente. Por que ele é tão atacado?

A imprensa quer o controle, quer punir o jovem, e o Estatuto veio para garantir os direitos dos jovens que têm uma história de sofrimento, de submissão... A história da justiça da infância e, mais especificamente, da adolescência é uma história terrível. O livro da Vera Malaguti  ‘Difíceis ganhos fáceis’, da editora Revan, mostra a história de um jovem que, porque roubou um queijo, passou três anos na prisão; o outro jovem foi privado da liberdade por dois anos e meio porque estava com roupas folgadas, então presumiu-se o furto, como se o reaproveitamento de roupas não fosse uma coisa usual nas classes mais pobres, e por aí vai. O ECA é um diploma legal progressista, avançado, só que ele está sendo torpedeado porque estamos vivendo tempos obscuros, fascistas.  Aquela classe média que gostava de rebeldia, de resistência, desapareceu. E, em parte, isso se deve à mídia, a educação que a mídia tem dado é espantosa. 

Como nós chegamos a essa idade de 18 anos como marco da maioridade?

Já foi 9, 14 anos..., e o pessoal está querendo voltar a essa realidade vergonhosa agora no Congresso, mas são muitos os argumentos que avaliam a maturidade de um jovem para responder penalmente pelos seus atos. Quando ouço alguém dizer que o adolescente hoje é mais informado do que era o de antigamente, só posso pensar que esta pessoa está repetindo uma grande bobagem. Se fossem estudantes do Caraça [Colégio e Seminário em Mariana (MG)], onde os estudantes liam e ouviam vídeos em latim, conheciam Sócrates e Aristóteles, tudo bem, mas o que vemos hoje é o cara que se educa vendo Malhação [novela da tarde da Rede Globo que tem como público-alvo os adolescentes]. Quem é mais informado? Eu costumo brincar com meus alunos, que quando temos uma pessoa que assiste cinco anos de Malhação, temos um problema posto, e que isso precisa ser trabalhado. Dizer que o telespectador deste tipo de programa é mais informado que o adolescente do passado é um contrassenso, uma burrice. É claro que não é. Vemos hoje a mídia escondendo a política, escondendo tudo, não fazendo debates importantes, não apresentando para estes jovens o mundo real em que vivemos. Podemos trazer para os casos mais recentes, o que está acontecendo nas ruas atualmente: até os cartazes dos manifestantes estão sendo censurados na hora em que aparecem na mídia. Não venham dizer que não tem intencionalidade na edição.  E nós temos um histórico no Brasil com edição que é um caso sério.

Existe algum sistema penal que podemos usar como referência para o Brasil? A Argentina, por exemplo, a maioridade penal é de 16 anos, mas o sistema é menos punitivo...

Não. Cada país, dentro da sua sociedade, da cultura punitiva da sua sociedade, toma sua decisão. E muitos países adotam os 18 anos. Mas a imprensa daqui do Brasil, toda vez que tem um garoto de 16 anos sendo acometido pela lei, acha que é muito bom, acha que é uma prova de civilização. Isso, na verdade, é prova de barbárie.

Existe um crime mais usual entre os jovens menores de 18 anos?

Na criminologia não existe etiologia [estudo das causas]. Uma vez uma orientanda fez uma pesquisa com as mulheres presas por conta do tráfico de drogas. No questionário, a menina perguntava ‘o que você mais se lembra dos tempos em que traficava?’, e uma das respostas foi: ‘o que eu me lembro é que meus filhos comiam iogurte todos os dias’. A resposta foi claramente uma atividade de ganho econômico, uma estratégia de sobrevivência. E o que podemos ver mais uma vez é o fracasso do proibicionismo, diante de realidades tão complexas.

O sr. é a favor da legalização das drogas?

Eu sou completamente a favor da legalização de todas as drogas. Já vimos que esse controle atual é um fracasso. A lei das drogas é um reflexo disso: a pena mínima era um ano, passou para três anos, depois para cinco, e agora um deputado quer que sejam oito anos. Mas o que vemos é que os problemas foram só aumentando. Até o general de direita da Guatemala e o presidente da Colômbia já entenderam que não é este o caminho, mas aqui no Brasil ainda não conseguimos ter essa compreensão.  Eu tenho uma admiração pelas políticas sociais do PT, apesar de não crer que a distribuição de renda arrecadada seja a coisa mais motivadora e tenho medo que a nova classe C tenha ficado fascista, mas é admirável que 20 milhões de pessoas comam todos os dias. Por outro lado, a política criminal é nota zero. Parece que eles acham que não é possível conceber uma política criminal comprometida com as classes populares.  As pessoas moralizam as questões, têm medo de discutir. Por isso o Brizola foi tão criticado quando bancou isso. 

Entrevista realizada por Viviane Tavares em julho de 2013 e publicada na Revista Poli N° 29, de julho e agosto de 2013 




domingo, 15 de setembro de 2013

Pré-sal e neo-entreguismo


Cabe ao movimento sindical e às demais entidades do movimento popular se levantarem contra essa medida e exigir o cancelamento do leilão de Libra


Por Paulo Kliass

As denúncias envolvendo as atividades de espionagem, contrainformação e bisbilhotagem patrocinadas pelo governo estadunidense em nossas terras têm criado situações bastante desconfortáveis para a diplomacia. O constrangimento e a desfaçatez são tão grandes que até mesmo a visita de nossa Presidenta aos EUA está sendo colocada em compasso de espera, aguardando algum gesto da parte de Obama. A lista começa com as primeiras suspeitas envolvendo a solicitação de dados das empresas gestoras das chamadas “redes sociais” e chega até a confirmação de gravação de conversas e outras formas de comunicação de integrantes de alto escalão do governo brasileiro, a começar pela própria Dilma.
Esse vendaval de novos casos revelados a cada dia que passa demonstra a extrema fragilidade com que esse aspecto de nosso modelo de segurança nacional estratégica é tratado pelo próprio Estado brasileiro. A falta de investimentos na inovação científica e tecnológica tem nos deixado cada vez mais à mercê dos interesses dos países e das corporações com as quais mantemos relações econômicas e diplomáticas. A desculpa de que a espionagem existe desde que o ser humano se organiza em sociedade não cabe como justificativa para a incapacidade de fazer valer nossas fronteiras terrestres, marítimas ou virtuais. Se é verdade que são muitos os países parceiros que buscam as informações por meios ilícitos, cabe aos Estados nacionais promover políticas públicas para preservar a integralidade de seu território e de sua população.
 
A espionagem estadunidense e o pré-sal
Dentre os inúmeros dossiês que vieram à tona, encontra-se o caso do pré-sal. Trata-se de um processo que revela de forma emblemática o quanto o Brasil ainda está distante de um patamar mínimo daquilo que se possa considerar como razoável em termos de autonomia e soberania, se o foco se localizar na defesa dos interesses como Nação e de seu povo. Afinal, o próprio governo de Obama reconheceu que sua Agência Nacional de Segurança (NSA) tem mesmo rastreado ilegalmente as atividades de nosso governo, em especial a Petrobrás e a Agência Nacional de Petróleo (ANP). É mais do que óbvio que os estadunidenses estão buscando mapear de forma mais elaborada o processo de tomada de decisões da administração pública brasileira. E isso é tanto mais verdade no que se refere à imensa capacidade potencial estratégica proporcionada pela descoberta desses novos campos petrolíferos.
Mas, ao que tudo indica, eles não devem estar assim tão preocupados, não! Isso porque a política implementada pela equipe de Dilma nesse tema é bastante favorável aos interesses das grandes corporações mundiais que se dedicam à exploração do óleo. Apesar de possuirmos uma empresa pública que é líder inconteste no cenário internacional, com competência atestada pela sua presença em todos os continentes, os responsáveis pela área energética em Brasília ignoraram essa alternativa. Com isso, optaram por dar continuidade à política dos governos anteriores a 2003, sempre tangenciando perigosamente a privatização e o favorecimento do setor privado.
A prospecção e as perfurações que estão sendo desenvolvidas nas novas áreas do campo submarino proporcionam cenários bastante otimistas. As estimativas falam de um total de reservas de petróleo equivalentes a 60 bilhões de barris, volume esse que nos colocaria entre as maiores nações produtoras no mundo. No entanto, é recomendável segurar as pontas do ufanismo tupiniquim exagerado, pois isso representa muito pouco para o atual estoque mundial reconhecido, avaliado em torno de 1,5 trilhão de barris. Se o pré-sal não nos coloca como líder expressivo comparado aos países membros da OPEP, a conversão monetária desse estoque potencial não pode ser negligenciada. Caso viesse a ser explorado aos preços praticados nos dias de hoje, essa riqueza corresponderia a US$ 1 trilhão. Ou seja, aproximadamente o valor da metade de nosso PIB anual.

O modelo do neo-entreguismo
Colocado na mesa de debate esse conjunto de informações, causa profunda estranheza a política proposta e desenvolvida por um governo que é liderado por um partido que se diz representante dos trabalhadores. Ao invés de buscar o caminho de fortalecimento da Petrobrás e de consolidação de um setor nacional para a arquitetura desse complexo sistema do ramo petrolífero, as autoridades da área energética decidiram por abrir ainda mais a exploração de nossa riqueza estratégica para o capital multinacional.
Para fins de definição etimológica, o dicionário Houaiss é bastante claro e objetivo, não abrindo espaço para indefinições ou artifícios de natureza retórica. Vejamos como ele apresenta o verbete relativo a esse processo de abertura de nossa economia:
Entreguismo: preceito, mentalidade ou prática político-ideológica de entregar recursos naturais da nação para exploração por outro país ou entidades, empresas etc. de capital internacional.”
É compreensível que o discurso chapa-branca mais submisso tente argumentar que, afinal de contas, a Petrobrás não foi leiloada e a maioria de suas ações ainda permanece em mãos do Estado brasileiro. De acordo, mas essa justificativa não ultrapassa o limite do mero conformismo. A situação poderia estar pior, como aconteceu com países que venderam suas empresas estatais de petróleo, como a YPF argentina. Mas isso não pode servir como consolo para os equívocos atuais. O fato é que ao longo das últimas décadas, a nossa opção estratégica tem sido realizada exatamente no sentido contrário da campanha “O petróleo é nosso!”, que culminou na criação da empresa em outubro de 1953, sob a presidência de Getúlio Vargas.
Ao oferecer nosso subsolo para que as grandes corporações transnacionais do ramo retirem o nosso petróleo, o governo brasileiro está promovendo apenas um “aggiornamento” daquilo que a maioria dos especialistas da área - comprometidos com um projeto de desenvolvimento nacional – sempre chamou de “política entreguista”. Mas, vá lá! Sejamos generosos e imaginemos que talvez fosse realmente importante - ao menos em um primeiro momento - agilizar a extração, incorporar tecnologia com a vinda de empresas estrangeiras e alavancar a economia brasileira com esse salto. No entanto, nem mesmo assim se consegue aceitar o modelo apresentado pelo governo para que o capital privado participe das licitações em nossas águas.
 
As benesses do regime de concessão
Ao invés de preservar o patrimônio nacional, os documentos oficiais que desenham o modelo institucional terminam por defender os interesses dos conglomerados multinacionais. Na grande maioria dos países que lançaram mão desse recurso para explorar sua riqueza natural, adota-se o chamado regime de partilha. A empresa se responsabiliza pela extração do óleo e se submete ao que está definido no contrato: uma parcela do petróleo é destinada ao Estado nacional e a forma de destino do restante é objeto de detalhamento. Há casos de previsão de transferência tecnológica, obrigatoriedade de contratação de empresas nacionais para serviços, previsão de quotas mínimas para refino em território do próprio país, entre outras exigências de contrapartida.
Àqueles que possam eventualmente considerar esse modelo um excesso de intervenção estatal na economia, cabe lembrar que nem por isso os mastodontes do setor deixam de se apresentar às concorrências que são abertas pelo mundo afora. Sim, pois a atividade é extremamente lucrativa e apresenta riscos compatíveis com suas expectativas de ganhos. Se estão explorando e faturando em territórios turbulentos e arriscados como o iraniano e o iraquiano, o que dizer de suas perspectivas de negócios aqui nessas terras e mares tão tranquilos e que nos dizem terem sido abençoados por Deus?
Infelizmente, o petróleo ainda funciona, nos tempos atuais, como o principal combustível para a maior parte da economia capitalista globalizada.
Exatamente por se tratar de uma questão essencial e estratégica para os países ricos, as últimas aventuras belicistas dos EUA aconteceram no Afeganistão, Irã, Iraque, além da Síria, em compasso de espera. É quase impossível imaginarmos alguma modalidade maior de intervenção estatal na economia!
Mas, como parte de nossas elites sempre manteve uma postura de submissão e vassalagem face aos pólos do chamado “mundo desenvolvido”, resolveu-se aqui tornar os ganhos dos grupos privados ainda mais substanciosos. Algo como um efeito retardado das marolas do neoliberalismo. E foi criado, então, o modelo do neo-entreguismo. Como o sistema de partilha não era suficientemente rentável para o capital, adotou-se o regime de concessão. Um regime onde a empresa exploradora pode quase tudo, ao passo que o Brasil e o Estado brasileiro podem quase nada. Como se nós estivéssemos ávidos pela vinda das grandes petroleiras, que estariam assim prestando um grande favor ao nosso País.

É necessário cancelar o leilão de 21 de outubro!
A empresa vencedora do leilão adianta uma soma para ter o direito de exploração e depois tem liberdade absoluta para fazer o que bem entender com o óleo extraído. As consequências negativas para o Brasil são evidentes.
Não há previsão de transferência de tecnologia. Não ocorrem os chamados efeitos “para frente” e “para trás” no setor, pois as plataformas, os navios, os componentes e os serviços intermediários são contratados no exterior. A mesma ausência de impacto positivo para o restante da cadeia produtiva se verifica quanto aos processos de refino e industrialização, uma vez que os editais não estabelecem um percentual máximo para exportação do óleo em estado bruto. A tendência é de se exportar a totalidade do extraído. O processo de agregação de valor ocorre no exterior, cabendo a nós a continuidade do antigo e conhecido papel subalterno de país primário exportador.
A data para o leilão do neo-entreguismo do pré-sal já está definida: 21 de outubro. Esse é o dia que a ANP estabeleceu para que se apresentem os interessados na exploração do campo Libra. São 15 bilhões de barris a serem retirados com risco praticamente nulo para o consórcio vencedor, uma vez que a Petrobrás já perfurou e encontrou o óleo. E com a grande chance de levar ainda um “bônus” extra, de outros 9 bilhões de barris, em razão da existência de outro campo contíguo - Franco. É que ali também já foram perfurados poços pela empresa brasileira, comprovando a riqueza potencial. Cabe ao movimento sindical e às demais entidades do movimento popular se levantarem contra essa medida e exigir o cancelamento do leilão. O Brasil merece uma solução mais inteligente e menos danosa ao nosso patrimônio.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.