sábado, 9 de agosto de 2014

“O neoliberalismo destrói as nossas liberdades”


Para o economista francês Gaël Giraud, as desigualdades de rendimentos e de patrimônio, mas também de acesso à educação, aos direitos, à internet, são fenômenos extremamente graves, pois são obstáculo à prosperidade econômica


Patricia Fachin e Ricardo Machado,


“A ecologia econômica parece estar atualmente numa via mais promissora. Ela não é nem marxista, nem neoliberal. O seu objeto é a realidade de um planeta que nós estamos em vias de destruir. E não temos outro. A maior parte dos economistas dos dias de hoje já compreendeu que a transição ecológica é inseparável de uma transição social”, sustenta o professor doutor Gaël Giraud em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Para o economista, os mais ricos, independentemente dos países, são os que mais poluem o planeta, causando, portanto, a destruição do clima e da biodiversidade, o que resulta em um processo de desumanização.

“A miséria afunda os mais pobres num inferno e a ultrarriqueza isola os mais ricos num gueto separado do resto da humanidade, em pânico de perderem o seu conforto, incapazes de participar de um projeto histórico e político que ultrapasse as dimensões que são próximas da sua vida de luxo. Praticar a justiça é uma libertação não somente das vítimas como também dos carrascos”, aponta.

O que o senhor entende por desigualdades e como fundamenta esse conceito?

Gaël Giraud – Na atualidade, uma pequena centena de pessoas no mundo possui uma riqueza equivalente à metade da humanidade. Possivelmente, nunca tínhamos esperado tal nível de desigualdade no planeta. As desigualdades de rendimentos e de patrimônio, mas também de acesso à educação, aos direitos, à internet, são fenômenos extremamente graves, pois são um obstáculo à prosperidade econômica. Não somente para os mais pobres — é evidente —, mas também para os mais ricos. De fato, aumentar indefinidamente a riqueza de uma porção de indivíduos não facilita, de todo, o crescimento: a tese de que a opulência dos ricos será benéfica para todos é uma impostura intelectual. O aumento da desigualdade penaliza mesmo os mais ricos na sua vida e na sua própria saúde. É o que mostra, por exemplo, uma excelente obra de Pickett et Wilkinson,The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better (London: UK Hardback edition, 2009). Também é preciso considerar que os mais ricos são aqueles que mais poluem o planeta. Sejam chineses, norte-americanos ou brasileiros, são eles que carregam a mais forte responsabilidade da destruição do clima e da biodiversidade. Enfim, o aumento das desigualdades provoca a desumanização: a miséria afunda os mais pobres num inferno e a ultrarriqueza isola os mais ricos num gueto separado do resto da humanidade, em pânico de perderem o seu conforto, incapazes de participar de um projeto histórico e político que ultrapasse as dimensões que são próximas da sua vida de luxo. Praticar a justiça é uma libertação não somente das vítimas como também dos carrascos.

A discussão acerca da maneira de enfrentar as desigualdades sociais, a partir de uma perspectiva econômica, deve considerar a acumulação financeira e o funcionamento do mercado financeiro de modo geral e não mais o modo de produção capitalista?

De fato, a desregulamentação financeira, iniciada nos anos 1980, tem a responsabilidade essencial da explosão das desigualdades nestes últimos 30 anos. Os Trinta Gloriosos (1945-1975) na Europa e nos Estados Unidos mostraram que é possível ter uma prosperidade de massa, em um contexto capitalista, com pouca desigualdade. Isso supõe que os mercados financeiros jogam um papel mínimo na nossa economia. É completamente falso pretender que os mercados financeiros sejam eficientes. Sabe-se, em economia, depois dos anos de 1980 que, mesmo estando repletos de senhores hiper-racionais, os mercados financeiros geriram de maneira bastante ineficaz o risco e o capital. Na verdadeira vida, os mercados financeiros servem essencialmente para captar a renda produzida pelo trabalho dos cidadãos, monopolizados por uma minúscula minoria de jogadores: quando estes ganham as suas apostas, retiram os benefícios privados e, quando perdem, é o contribuinte quem tem de pagar as dívidas.

O que o senhor tem evidenciado em suas pesquisas sobre a crise financeira desde 2008 e as desigualdades sociais no mesmo período?

A bolha subprime foi tolerada pelas autoridades econômicas e monetárias dos Estados Unidos, entre 2001 e 2007, na esperança de permitir a um grande número de famílias norte-americanas pobres se tornarem proprietárias das suas casas. Há menos proprietários nos Estados Unidos em 2008 que em 2001. Tentar manter o mercado imobiliário pela dívida privada é uma falência completa. Na Europa, uma grande parte dessa dívida privada tornou-se insolvente e afundou numerosos bancos. Muitos acabaram por ser salvos ou nacionalizados pelos Estados, que, de um dia para o outro, viram a sua dívida pública rebentar. Ora, as classes médias europeias pagam em geral mais impostos que os mais ricos. São, então, as classes médias que vão pagar a fatura da crise financeira. As desigualdades continuam, assim, a aumentar.

O senhor dá a entender que os bancos são, hoje, os grandes vilões da atual situação social e os responsáveis pela crise. Como mudar esse cenário? O que é possível fazer para frear essa situação?

Sim, o setor bancário, na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, adquiriu um poder de perturbação considerável. Alguns bancos têm um balanço que pesa mais que o Produto Interno Bruto (PIB) de um Estado desenvolvido. Além disso, a desregulamentação financeira volta a dar-lhes um poder considerável. Está claro que é possível mudar tudo isso. Já expliquei em diversas obras como isso pode ser possível. Grosso modo, no meu ponto de vista, é necessário cortar os bancos mistos em dois, ou seja, voltar a colocar o Glass Steagall Act que nos permitiu desfrutar, nos anos de 1960, um período de serenidade, sem uma maior crise bancária. Depois, é preciso colocar o Banco Central sob o controle de um poder político democrático. Atualmente, a independência do Banco Central é um eufemismo para dissimular o fato de que ele obedece unicamente aos desejos do setor bancário privado. Enfim, há que retirar dos bancos privados o direito de criar a moeda: é o famoso “plano de Chicago” que tinha sido proposto pelos grandes economistas norte-americanos nos anos 1930. Um economista do Fundo Monetário Internacional (FMI), Michael Kumhof, mostrou recentemente que uma reforma será bastante benéfica para todo o mundo — menos, talvez, para os banqueiros. As soluções existem. O que falta é a vontade política. Essa falta se deve ao fato de que grande parte dos políticos nos governos, na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, provém de classes favorecidas, que não têm interesse na reforma financeira de modo a reduzir as desigualdades e assegurar a prosperidade de todos.

Quais as razões da falência do estado de bem-estar social na Europa?

Há imensas razões para esta falência. Espero que não seja definitiva. Uma das razões é a inversão do projeto político europeu em uma máquina de destruição do Estado-Providência. A Europa tornou-se, há 20 anos, a Europa dos financeiros: estes destruirão o nosso continente até que os políticos deem um “murro na mesa”.

Os que defendem uma proposta neoliberal argumentam que se trata de um modelo que garante a liberdade. Os que argumentam que é preciso maior interferência do Estado sustentam que é necessário mais igualdade. Esses conceitos e essas visões são suficientes para entender a complexidade que se vive hoje? Há uma terceira via? Parece-me que o debate tradicional “liberdade versus igualdade” já não é a melhor maneira de compreender o nosso mundo. Na realidade, o neoliberalismo destrói as nossas liberdades. É uma economia essencialmente fundada sobre a dívida, e tal já vem desde 5000 anos atrás, como muito bem demonstrou David Graeber. Quando se tem muitas dívidas, acaba-se por se tornar escravo (no sentido literal e figurado) do credor. Se queremos sair do servilismo, temos de sair do neoliberalismo.

Qual é sua proposta para diminuir as desigualdades sociais e garantir acesso a bens básicos, tendo em vista esse cenário e a falência das propostas das esquerdas em todo o mundo?

Penso que é necessário ter em consideração a importância vital da energia e das matérias naturais (nomeadamente os minerais) nas nossas economias. A maior parte dos economistas negligencia completamente este ponto. Ora, os recursos naturais não são extensíveis ao infinito. E as últimas notícias do GIEC no Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) referentes ao clima são literalmente catastróficas. Então, é extremamente importante, se queremos garantir um mínimo vital para todos, em que o conjunto dos países ricos (onde se inclui o Brasil) ponham em prática, de modo voluntário, a transição energética: a passagem de uma economia essencialmente fundada sobre as energias fósseis (gás, carvão, petróleo) para outros tipos de energia: as renováveis e/ou nucleares. Sem estas, tenho receio de que, nos anos próximos, a fratura social mais importante será aquela que vai separar as populações com acesso à energia das que não têm acesso. Não excluo a possibilidade de uma terrível regressão social: qualquer coisa como um retrocesso à Idade Média. Sem contar com as múltiplas guerras que já começamos (nomeadamente no Médio Oriente) para garantir o acesso aos recursos energéticos. A social-democracia ocidental não compreendeu ainda a importância da transição energética. As indústrias do mundo inteiro, elas, sim, compreenderam muito bem e esperam com impaciência que os políticos saiam da sua fascinação pelas finanças e desbloqueiem finalmente as soluções de financiamento para começarem a transição.

Recentemente, ao falar da crise da esquerda na França, o senhor mencionou a criação do Partido Nouvelle Donne como uma possibilidade promissora. Por quais razões? A esquerda ainda tem algo a oferecer para as discussões econômicas, políticas e sociais? Aqui no Brasil há uma expectativa em relação aos movimentos que surgem sem lideranças no sentido de propor algo novo, mas na Europa já há sinais de que movimentos como esse também não conseguiram mudanças e avanços, a exemplo do 15M. O que fazer?

O exemplo dos “Indignados” na Espanha parece-me revelador. Os espanhóis saíram à rua aos milhões, durante meses e meses. No imediato, de forma estrita, não deu nada no plano político, e até foi o Partido Popular que acabou por ser eleito, mesmo quando este partido, no tempo de Aznar, no princípio dos anos 2000, foi altamente responsável pela entrada da Espanha na bolha subprime. A razão da falência de um movimento social assim de multidões na Espanha é a incapacidade da classe política espanhola em articular a indignação social com um verdadeiro programa político. A social-democracia tornou-se neoliberal e, de pronto, deixou de pensar. Atualmente, os partidos socialistas europeus têm um eletroencefalograma plano. É por isso que a criação do partido Nouvelle Donne me parece uma excelente notícia: aí está um partido de centro-esquerda que formula um verdadeiro diagnóstico sobre a situação atual, que quer regulamentar as finanças, reduzir as desigualdades (pelo imposto sobre o crédito e sobre o capital), lançar a transição energética.

Em que consiste o Tratado de Livre Comércio em negociação entre a União Europeia e os Estados Unidos, e como o senhor o avalia tendo em vista o atual cenário político, econômico e social do mundo, ou seja, este momento de crise?

O Tratado transatlântico é uma catástrofe, aumentada pela soberania política dos Estados da linha do Atlântico Norte. De fato, este Tratado de livre-troca vai autorizar uma empresa norte-americana ou europeia a processar um país, levando-o a adotar as leis que estão de acordo com os interesses da empresa. O tribunal ad hoc que regulamentará o litígio apenas se apoiará no direito comercial internacional e no tratado. De modo particular, até mesmo a constituição de um país não entrará em linha de consideração. Se assinarmos um tratado assim, é o fim do Estado na Europa. Os verdadeiros governantes serão os donos das empresas. Eu penso que, se assinarmos um tratado assim, a reação das populações será idêntica à da população dos anos trinta. Acabarão por eleger os ditadores neofascistas para lhes salvar da ditadura das multinacionais. Tudo isso é bastante perigoso.

Entre as escolas econômicas existentes, alguma dá conta de propor soluções?

A ecologia econômica parece parece estar atualmente numa via mais promissora. Ela não é nem marxista, nem neoliberal. O seu objeto é a realidade de um planeta que nós estamos em vias de destruir. E não temos outro. A maior parte dos economistas dos dias de hoje já compreendeu que a transição ecológica é inseparável de uma transição social: em particular, não chegaremos a iniciar esta transição de forma eficaz enquanto uma minoria muito pequena continue a monopolizar o essencial da riqueza e dela servir-se para destruir o ambiente e esgotar os nossos recursos.



sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A jornada de trabalho – Karl Marx



Texto retirado do capítulo 8 do livro O Capital, de Karl Marx

O capitalista compra a força de trabalho pelo valor diário. Seu valor de uso lhe pertence durante a jornada de trabalho. Obtém, portanto, o direito de fazer o trabalhador trabalhar para ele durante um dia de trabalho.

Mas o que é um dia de trabalho?

Será menor que um dia natural da vida. Menor quanto?

O capitalista tem seu próprio ponto de vista sobre essa extrema, a fronteira necessária da jornada de trabalho. Como capitalista apenas personifica o capital. Sua alma é a alma do capital. Mas o capital tem seu próprio impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais valia, de absorver com sua parte constante, com os meios de produção, a maior quantidade possível de trabalho excedente.

O capital é trabalho morto que como um vampiro se reanima sugando o trabalho vivo e quanto mais o suga mais forte se torna. O tempo em que o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome em seu proveito o tempo que tem disponível, furta o capitalista. O capitalista apóia-se na lei de troca de mercadorias. Como qualquer outro comprador procura extrair o maior proveito possível do valor de uso de sua mercadoria.

Mas, subitamente levanta-se a voz do trabalhador que estava emudecida no turbilhão do processo produtivo:

A mercadoria que te vendo se distingue da multidão das outras porque seu consumo cria valor e valor maior que seu custo. Este foi o motivo por que a compraste. O que de teu lado aparece como aumento de valor do capital, é do meu lado dispêndio excedente de força de trabalho. Tu e eu só conhecemos, no mercado, uma lei, a da troca de mercadorias. E o consumo da mercadoria não pertence ao vendedor que a aliena, mas ao comprador que a adquire. Pertence-te assim a utilização de minha força diária de trabalho. Mas, por meio de seu preço diário de venda, tenho de reproduzi-la diariamente para poder vendê-la de novo. Pondo de lado o desgaste natural da idade etc., preciso ter amanhã, para trabalhar, a força, saúde e disposição normais que possuo hoje. Estais continuamente a pregar-me o evangelho da parcimônia e da abstinência.

Muito bem. Quero gerir meu único patrimônio, a força de trabalho, como um administrador racional, parcimonioso, abstendo-me de qualquer dispêndio desarrazoado. Só quero gastar diariamente, converter em movimento, em trabalho, a quantidade dessa força que se ajuste com sua duração normal e seu desenvolvimento sadio. Quando prolongas desmesuradamente o dia de trabalho, podes num dia gastar, de minha força de trabalho, uma quantidade maior do que a que posso recuperar em três dias.

O que ganhas em trabalho, perco em substância. A utilização de minha força de trabalho e sua espoliação são coisas inteiramente diversas.

Se um trabalhador, executando uma quantidade razoável de trabalho, dura em média 30 anos, o valor da força de trabalho que me pagas por dia é de 1 / 365 x 30 ou 1/10.950 de seu valor global. Se a consomes em 10 anos, pagas-me diariamente 1/10.950 e não 1/3.650 de seu valor global, portanto, apenas 1/3 de seu valor diário, e furtas-me assim diariamente 2/3 do valor da minha mercadoria.

Pagas-me a força de trabalho de um dia, quando empregas a de três dias. Isto fere nosso contrato e a lei de troca de mercadorias. Exijo, por isso, uma jornada de trabalho de duração normal, e sem fazer apelo a teu coração, pois quando se trata de dinheiro não há lugar para bondade. Podes ser um cidadão exemplar, talvez membro da sociedade protetora dos animais, podes estar em odor de santidade, mas o que representas diante de mim é algo que não possui entranhas. O que parece pulsar aí é o meu próprio coração batendo.

Exijo a jornada normal, pois exijo o valor de minha mercadoria como qualquer outro vendedor.

Vemos que, abstraindo de limites extremamente elásticos, não resulta da natureza da troca de mercadorias nenhum limite à jornada de trabalho ou ao trabalho excedente. O capitalista afirma seu direito, como comprador, quando procura prolongar o mais possível a jornada de trabalho e transformar, sempre que possível, um dia de trabalho em dois. Por outro lado, a natureza específica da mercadoria vendida impõe um limite ao consumo pelo comprador, e o trabalhador afirma seu direito, como vendedor, quando quer limitar a jornada de trabalho a determinada magnitude normal.

Ocorre assim uma antinomia, direito contra direito, ambos baseados na lei de troca de mercadorias. Entre direitos iguais e opostos decide a força. Assim, a regulamentação da jornada de trabalho se apresenta, na história da produção capitalista, como luta pela limitação da jornada de trabalho, um embate que se trava entre a classe capitalista e a classe trabalhadora.




Fonte: A Verdade

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O Templo de Salomão e o capitalismo em crise


Breve exame da história do cristianismo revela: construção suntuosa de Macedo indica, muito mais que megalomania, possível deriva fundamentalista do sistema

Por Hugo Albuquerque, no Descurvo | Imagem: Viktor Vasnetsov, Os quatro cavaleiros do apocalipse

O Novo Brasil é uma terra curiosa. Libertação e servidão espreitam, ambas em potência máxima. Fato emblemático dos novos tempos foi a inauguração do “Templo de Salomão” em São Paulo, gigantesco templo maior da Igreja Universal do Reino de Deus: a obra, feita ao custo de centenas de milhões de reais, reuniu em sua inauguração a presidente da república, o governador do estado e o prefeito municipal, além de outras autoridades. Na terra dos estádios padrão-FIFA, tem-se agora o equivalente na forma de templo “cristão”. Isso não expressa apenas um fenômeno cultural, em um sentido raso, ou um evento político e comercial, mas algo mais profundo.

Nada disso é à toa: no momento em que uma expressão do cristianismo faz um novo e espetacular movimento no Brasil — com repercussão pelo mundo todo –, isso envolveu justamente a edificação de sua nova sede. A morada, o habitat, é central ao cristianismo desde sempre. Porque a diferença entre o cristianismo primitivo e o institucional é a liberação que o primeiro tinha em relação ao confinamento e, em sentido inverso, a dependência do segundo em relação às edificações suntuosas. Isso é parte de uma história importantíssima.

Como sabemos, o cristianismo foi o bom encontro entre as tradições heleno-romanas e judaicas, produzindo uma resultante nova, libertadora, anti-imperial. Cristo e seus apóstolos pregavam nas ruas. E faziam uso do léxico político: Igreja e assembleia são equivalentes na etimologia, pois ambas vêm da palavra grega ekklesia, isto é, os encontros públicos nos quais os cidadãos apresentam demandas à pólis. Em Roma, o mesmo se chamava comicius. O cristianismo, em sua luta anti-imperial, não tornou a política religiosa, ao contrário, ela ativou a religião colocando-a em sintonia com a realidade política existente.

As coisas mudam quando o Império Romano absorve o movimento que lhe contestava mais agudamente. O cristianismo se torna parte da estrutura imperial, em tempos que o velho culto público greco-romano não dava mais conta de legitimar um Império em frangalhos. A partir daí, as assembleias não encontram mais seu lugar na praça, nem nas reuniões livres na clandestinidade, ao contrário: é em edifícios suntuosos que os cristão passam a se reunir. Afinal, as próprias assembleias no Império são representações feitas em basílicas: edifícios que substituíram as velhas ágoras colunatas, sedes por excelência das velhas assembleias de cidadãos livres.

Na falta de basílicas, o cristianismo se reunia em paróquias, palavra que em grego significa “casa vicarial”, isto é, “casa que substitui [uma basílica]“. Isso não é só simbólico: significa a passagem do cristianismo da política para a economia. A organização cristã passa a se dar, em toda parte, em termos econômico-administrativos (como bem observa Agamben em o Reino e a Glória): “bispo” é a palavra portuguesa que vem de “episkopo”, administrador. A racionalidade da casa, das regras absolutamente factuais e verticais que caracterizavam a casa do mundo antigo passam, não à toa, a ordenar o cristianismo.

A passagem da praça pública para o ambiente doméstico cria, obviamente, um cristianismo domesticado. Não é apenas uma nova forma de físico-geográfica de culto, mas um realinhamento que implica em uma nova prática. Se o mundo antigo é feito da dualidade entre a casa e a cidade, a oikia e a pólis, ambas com ordens próprias, complementares e, ao mesmo tempo, antagônicas, o mundo medieval é outro: não há mais cidade, apenas os feudos que são, na prática, “casas grandes” e a religião confinada — a ordem econômica, enfim, triunfou, com a política e o direito reaparecendo apenas nas fissuras desse sistema.

Talvez por isso, o fato mais relevante em matéria de cristianismo foi, vejamos só, as reformas cristãs católicas do século 19 e 20 e o fortalecimento de um modelo pastoral que, mais tarde, desembocou na teologia da libertação. Pela primeira vez desde o Concílio da Niceia se discutiu o embate entre a “hierarquia” — a instituição — e os fiéis — em obra social, espalhados em comunidades eclesiais e pastorais. Tal como como o cristianismo primitivo, e fiéis ao evangelho, misticismo e política passaram novamente a andar de mãos dadas. Daí a reação, violentíssima, da própria hierarquia católica e do protestantismo, contra isso. Do novo catolicismo conservador à teologia da prosperidade, dos tele-evangelistas americanos e da Igreja Universal, se fez de tudo contra isso.

Mas isso não é uma história de infidelidade a uma suposta tradição cristã pura: como bem observou Deleuze ao comentar D.H.Lawrence, nem só dos evangelhos se fez o cristianismo, ele também se fez do apocalipse, o fecho curioso e antitético da trama. E se os evangelhos são uma narrativa sobre fatos históricos, ou pretensamente, o apocalipse é profecia pura, isto é: projeção. E a projeção, mais do que a subjetivação ou a objetificação, é a parte realmente “ideológica” de uma narrativa. Ela visa tão somente a influenciar, ela é pura prescrição. É no apocalipse que Cristo retorna como uma espécie de rei-juiz; de messias que chama os outros de “irmãos”, ele se torna um soberano vingativo que irá decidir sobre a vida e a morte absolutas. O horizontal se torna vertical, mantendo uma contradição em termos tão absurda quanto aquela havida entre Paulo e Pedro.

O apocalipse é central no pensamento ocidental. É lá que nasce uma filosofia do juízo [final], uma filosofia baseada no julgamento — logo, incapaz de aceitar uma diferença intensa para supô-la apenas na extensão e, aliás, pela ação de uma força externa, transcendente e implacável. Só a autoridade suprema, que combina também o império e o poder, pode diferenciar o joio do trigo, isto é, pode criar, cindindo e hierarquizando, negando a singularidade.

Voltando ao Brasil, não é à toa que a teologia da prosperidade 2.0 recorra ao Templo de Salomão, uma imagem tão central no texto do apocalipse. É ali que se julga de maneira final, separando os bons que habitarão o céu (a cobertura dos prédios) e o inferno (as prisões), de uma maneira absolutamente utilitarista, fluida, na qual quem está em cima estará sempre em risco de queda e, por outro lado, os caídos poderão ascender — desde que paguem continuamente o seu naco para a intermediadora divina, a Igreja e seu mandatário maior, o bispo Edir Macedo.

Obviamente, o modelo da IURD, gigantesco, é uma absurdidade para o Sistema tal como ele existe. Mas o fato de, mesmo assim, ela prosperar e crescer, sendo um sucesso financeiro e um fenômeno político capaz de amarrar as principais lideranças políticas, significa uma coisa: trata-se de um arcaísmo reservado pelo mesmo sistema para, caso for preciso, vir à tona. No momento em que a democracia liberal se torna um discurso cada vez mais frágil, sendo cada vez menos capaz de administrar a dívida e organizar o trabalho, a possibilidade do discurso “fundamentalista cristão”, na forma da teologia da prosperidade, se tornar o rótulo da vez do Sistema é cada vez mais real. Além de sua viabilidade econômica em si, ele se torna um gigantesco ativo que poderá, tão logo, ser bem mais que um agregador de votos imediato.

O cristianismo, em sua exacerbação, se descristianiza e desevangeliza, a subsunção ao juízo final elimina o Cristo e deixa apenas a dor da Cruz.


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

10 Mentiras de Israel sobre o genocídio contra os palestinos



Por Thomas de Toledo

O método de propaganda de guerra do regime sionista de Israel origina-se da mesma técnica que o oficial nazista Joseph Goebbels formulou para Hitler, que consiste na máxima de que "uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade".


Assim, espalham uma série de mentiras que são exaustivamente marteladas pela mídia privada paga, até que finalmente caíam na condição de "verdade do senso comum", naturalizando a ocupação, o apartheid e o genocídio contra os palestinos. Eis algumas dessas mentiras:

1) "Este conflito é religioso e o povo de Israel foi eleito por Deus": apesar de a Palestina ser sagrada para as três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), o atual conflito tem causas geopolíticas. Ele surgiu quando judeus sionistas migraram para a Palestina para disputar essas terras com habitantes nativos, mas se intensificou após a fundação de Israel em 1948. Neste conflito, a religião é manipulada afim de se conquistar aliados: assim, muitos cristãos desinformados acreditam se tratar de uma guerra bíblica de hebreus contra filisteus, que virtualmente ocorrera há mais de 3 milênios, mas que na verdade não possui nenhum vínculo direto com os atuais acontecimentos. Acreditar em um Deus único pressupõe crer que este Deus seja o mesmo para todos, e não que tenha um povo que esteja acima dos outros.

2) "Há dois lados iguais em guerra": na verdade, o que existe é uma força militar ocupante, a 5a maior do planeta, que enfrenta um povo desarmado. Os palestinos não possuem exército, marinha ou aeronáutica. Quanto aos grupos guerrilheiros que lutam pela libertação da palestina, suas armas são artesanais e nem se comparam às israelenses, que incluem artefatos químicos e nucleares de última geração. O arsenal gigantesco de Israel é maior e mais moderno do que o de todos os países árabes juntos. Aos palestinos comuns, restaram apenas pedras como forma de reação ou atos pacíficos que costumam ser brutalmente reprimidos e na maioria das vezes resultam em mortes.

3) "Israel ataca para se defender": sempre que Israel deseja realizar uma operação militar, cria um pretexto que a justifique, uma chamada "covert operation". Em geral, culpam os palestinos pela morte de um israelense ou acusam os palestinos de tramarem um atentado terrorista ou atirarem foguetes contra Israel. Isto ocorre pelos palestinos, mas sempre como forma de reação, dada a violência da resposta israelense, que sempre mata dezenas, centenas ou até milhares de vezes mais do que os palestinos. Quando Israel realiza uma dessas intervenções militares, os danos à infraestrutura e o número de vítimas nos palestinos são incalculavelmente maiores, sem poupar mulheres, crianças e mesmo idosos. Aliás, o pretexto atual que Israel usa para justificar tantos assassinatos de crianças é que os palestinos as usam como escudos humanos. Isto é um absurdo, pois as cidades que Israel ataca são densamente povoadas e por isto é impossível não ter vítimas civis em meio a pesados bombardeios de caças F16 e helicópteros Apache. Israel é na verdade é o agressor e não a vítima.

4) "A paz interessa aos palestinos e aos israelenses": Israel não deseja a paz e por isto faz a guerra. O projeto sionista, em fato, se baseia em duas ideias: da Pequena Israel, que seria um país entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo; e da Grande Israel, que expandiria seus territórios do Rio Nilo ao Rio Eufrates. Ambas as configurações não possuem respaldo histórico, mas a segunda é uma aberração em todos os sentidos, visto que o Nilo sempre pertenceu ao Egito e os Rios Eufrates e Tigre formaram as civilizações da Mesopotâmia, hoje conhecida como Iraque. De qualquer forma, o primeiro obstáculo a este projeto chama-se Palestina e por isto, enquanto Israel não expulsar todos os palestinos de suas terras, ainda não terão concretizado o projeto sionista. Há outro fato pouco divulgado que é a lucratividade da ocupação israelense: com palestinos trabalhando em condições de trabalho análogas à escravidão e ainda pagando impostos à Israel, os custos com as prisões, muros de segregação e check-points acabam por ser pagos pelos próprios palestinos, o que torna a guerra e a ocupação extremamente lucrativas à Israel. Os palestinos são também cobaias da indústria bélica israelense, que exporta ao mundo produtos de altíssima tecnologia, sempre testados em campo de batalha nos próprios palestinos.

5) "Os palestinos são culpados pelo fracasso nas negociações": como observado, é um equívoco achar que Israel tem algum interesse no processo de paz. Israel é o lado militarmente mais forte. Está internacionalmente blindado pelo apoio incondicional recebido dos Estados Unidos, da União Europeia e da OTAN. Tem o apoio da maior parte da mídia ocidental. Ainda conta com banqueiros sionistas que subsidiam ambiciosos gastos militares e com a ocupação. Portanto, se o projeto de Israel é tomar todo o território palestino, basta seguir fazendo o que sempre fez, que um dia finalmente conseguirá concluir a expulsão de todos os palestinos de suas terras e o assassinato dos que resistirem. Aliás, os palestinos tinham 100% das terras, passaram a ter 45% em 1947, cerca de 35% em 1967 e com as negociações de paz de 1993, hoje possuem controle de menos de 22% da Palestina histórica. A quem interessa portanto a paz e quem ganha com a guerra?

6) "Tudo que Israel deseja é um lar para os judeus": judaísmo é uma religião e existem judeus em quase todos os países do mundo com lar, emprego, saúde e educação. A ideia de criar um Estado judeu foi uma invenção do movimento sionista, que estimulou migrações para a Palestina, onde menos de 5% da população era judia e viviam em paz com os árabes. Ocorre que os palestinos que habitavam a terra jamais foram consultados se queriam um "lar judeu" em cima de onde moram e por isto são forçados a deixarem suas casas e os que resistem são mortos. Os judeus, assim como os muçulmanos, cristãos, ateus, budistas, hinduístas, etc têm direito a ter um lar e a preservarem sua cultura, mas jamais podem fazer isto destruindo outros. Afim de justificar o projeto do "lar judeu", Israel acaba por cometer um crime impagável com a memória: destrói achados arqueológicos palestinos e de outros povos que habitaram a região, de modo adulterar a história para que não haja questionamentos sobre a legitimidade de seus intentos.

7) "Os palestinos são terroristas e defendem o fim de Israel": estigmatizar um povo é sempre um equívoco, em especial quando se trata tudo o que vem da resistência palestina como terrorismo e os bombardeios e assassinatos em massa de Israel como formas de defesa. Há grupos palestinos que defenderam no passado o uso de homens-bomba como última forma de luta, dadas as condições desiguais do conflito em que os palestinos sequer possuem armas, mas mesmo tais organizações radicais hoje não usam mais esta tática. Já Israel defende abertamente o terrorismo de Estado como forma de punição coletiva e se utiliza de armas químicas, prisões, torturas, demolições de casas e os piores tipos de humilhação afim de conquistar seus objetivos militares. Há grupos na Palestina que defendem o fim do Estado de Israel (não o fim dos judeus!), da mesma forma que há partidos políticos (aliás com muitos membros no parlamento israelense) que são contrários à criação de um Estado Palestino e defendem a expulsão de todos não-judeus da região.

8) "Os judeus foram vítimas do holocausto e por isto têm carta branca para agir como quiserem": isto é um absurdo sem tamanho, mas é frequentemente usado como argumento. Em primeiro lugar, as vítimas do holocausto não foram apenas judeus, mas comunistas, eslavos, homossexuais, ciganos, maçons, etc. Segundo, que já está fartamente documentado que judeus sionistas colaboraram com os nazistas para matarem os judeus não-sionistas. Terceiro, que um erro jamais poderá justificar o outro. Quarto, que quem realizou o Holocausto foi a Alemanha nazista e quem pagou por este crime foram os palestinos que nunca tiveram nada a ver com Hitler. Quinto, que o Holocausto se tornou uma poderosa arma de propaganda de Israel, pois toda vez que este país é contestado, ele traz à tona a memória dos judeus mortos em massa pelo nazismo. Assim, basta uma personalidade visitar Israel, que é logo convidada a colocar flores no memorial do Holocausto e a chorar pelos judeus no Muro das Lamentações.

9) "Israel é uma ilha democrática no meio de ditaduras medievais": Enquanto Israel for autoproclamado como um Estado judeu, é uma teocracia religiosa e não uma democracia. Israel garante a liberdade democrática apenas a quem não fere os interesses do projeto sionista. Nesta "democracia", somente os judeus possuem direitos civis, mas quem não é um deles é tratado como cidadão de segunda classe, sem direitos políticos ou sociais. Portanto, Israel é uma "democracia" seletiva, segregacionista, racista, ou para melhor dizer, um regime de apartheid. Israel pode ter belas e modernas cidades, muitos cientistas que receberam prêmio nobel, mas nada disto justifica a existência, em pleno século XXI de um regime de ocupação e de apartheid baseado na ideia de superioridade racial e religiosa.

10) "Criticar israel é antissemitismo": este é um mito que faz com que muitas pessoas se calem perante os crimes de Israel. Na verdade Israel é um Estado antissemita por que discrimina os árabes que, assim como os judeus, são semitas. Deste modo, se cria uma muralha ideológica que confunde a religião do judaísmo com o projeto sionista de um Estado judeu. Aliás, há em todo o mundo movimentos de judeus anti-sionistas, muitos deles filhos de vítimas do holocausto, que comparam os crimes do Estado de Israel, feitos em nome do judaísmo, ao que o nazismo fez com os judeus. Em fato, Israel procura sistematicamente negar a própria existência do povo palestino e isto é uma forma de antissemitismo.

Como se pode observar, há muita desinformação propositadamente difundida com o objetivo de dar o tempo necessário a Israel para expulsar ou matar todos os palestinos que habitam a Palestina e anexar suas terras. Para anular a resistência internacional, Israel possui um dos mais eficientes serviços de inteligência no exterior, que sempre é denunciado por cometer assassinatos em qualquer lugar do mundo. Além deles, Israel tem um eficiente lobby político que atua nos Estados Unidos, na União Europeia e cada vez mais nos países emergentes, inclusive no Brasil, onde já efetivaram diversos acordos comerciais e militares, todos obscuros e sem debate com a sociedade. Vale ainda mencionar que muitos banqueiros são sionistas e financiam os grandes órgãos de imprensa internacional que jamais renegaram vultuosas somas de dinheiro para sustentar ideologicamente o sionismo.

Portanto, o que ocorre na Palestina não é uma guerra: é um genocídio. Genocídio quer dizer assassinado deliberado de pessoas de uma mesma etnia, nacionalidade ou religião. Em plena era da informação, com as notícias circulando em tempo real, é inaceitável que um genocídio que já dura quase 7 décadas permaneça ocorrendo. Por isto, enquanto o sionismo significa racismo, apartheid e genocídio, defender a causa palestina é lutar pela vida, pela paz e pela humanidade, pela soberania e autodeterminação dos povos.




segunda-feira, 4 de agosto de 2014

5 Legados do PSDB que não são do PSDB

Você sabia que o PSDB adora assumir a paternidade de projetos que não são dele? Conheça aqui 5 projetos que não são criações do PSDB - apesar de eles insistirem que são…

1. Seguro-desemprego

2. Plano Real

3. Bolsa Família

4. Genéricos

5. Estabilidade Econômica



Fonte: Buzzfeed

domingo, 3 de agosto de 2014

Cerveja: o transgênico que você bebe?



Sem informar consumidores, Ambev, Itaipava, Kaiser e outras marcas trocam cevada pelo milho e podem estar levando à ingestão inconsciente de OGMs

Por Flavio Siqueira Júnior* e Ana Paula Bortoletto*

Vamos falar sobre cerveja. Vamos falar sobre o Brasil, que é o 3º maior produtor de cerveja do mundo, com 86,7 bilhões de litros vendidos ao ano e que transformou um simples ato de consumo num ritual presente nos corações e mentes de quem quer deixar os problemas de lado ou, simplesmente, socializar.

Não se sabe muito bem onde a cerveja surgiu, mas sua cultura remete a povos antigos. Até mesmo Platão já criou uma máxima, enquanto degustava uma cerveja nos arredores do Partenon quando disse: “era um homem sábio aquele que inventou a cerveja”.

E o que mudou de lá pra cá? Jesus Cristo, grandes navegações, revolução industrial, segunda guerra mundial, expansão do capitalismo… Muita coisa aconteceu e as mudanças foram vistas em todo lugar, inclusive dentro do copo. Hoje a cerveja é muito diferente daquela imaginada pelo duque Guilherme VI, que em 1516, antecipando uma calamidade pública, decretou na Bavieira que cerveja era somente, e tão somente, água, malte e lúpulo.

Acontece que em 2012, pesquisadores brasileiros ganharam o mundo com a publicação de um artigo científico no Journal of Food Composition and Analysis, indicando que as cervejas mais vendidas por aqui, ao invés de malte de cevada, são feitas de milho.

Antarctica, Bohemia, Brahma, Itaipava, Kaiser, Skol e todas aquelas em que consta como ingrediente “cereais não maltados”, não são tão puras como as da Baviera, mas estão de acordo com a legislação brasileira, que permite a substituição de até 45% do malte de cevada por outra fonte de carboidratos mais barata.

Agora pense na quantidade de cerveja que você já tomou e na quantidade de milho que ela continha, principalmente a partir de 16 de maio de 2007.

Foi nessa data que a CNTBio inaugurou a liberação da comercialização do milho transgênico no Brasil. Hoje já temos 18 espécies desses milhos mutantes produzidos por Monsanto, Syngenta, Basf, Bayer, Dow Agrosciences e Dupont, cujo faturamento somado é maior que o PIB de países como Chile, Portugal e Irlanda.

Tudo bem, mas e daí?

E daí que ainda não há estudos que assegurem que esse milho criado em laboratório seja saudável para o consumo humano e para o equilíbrio do meio ambiente. Aliás, no ano passado um grupo de cientistas independentes liderados pelo professor de biologia molecular da Universidade de Caen, Gilles-Éric Séralini, balançou os lobistas dessas multinacionais com o teste do milho transgênico NK603 em ratos: se fossem alimentados com esse milho em um período maior que três meses, tumores cancerígenos horrendos surgiam rapidamente nas pobres cobaias. O pior é que o poder dessas multinacionais é tão grande, que o estudo foi desclassificado pela editora da revista por pressões de um novo diretor editorial, que tinha a Monsanto como seu empregador anterior.

Além disso, há um movimento mundial contra os transgênicos e o Brasil é um de seus maiores alvos. Não é para menos, nós somos o segundo maior produtor de transgênicos do mundo, mais da metade do território brasileiro destinado à agricultura é ocupada por essa controversa tecnologia. Na safra de 2013 do total de milho produzido no país, 89,9% era transgênico. (Todos esses dados são divulgados pelas próprias empresas para mostrar como o seu negócio está crescendo)

Enquanto isso as cervejarias vão “adequando seu produto ao paladar do brasileiro” pedindo para bebermos a cerveja somente quando um desenho impresso na latinha estiver colorido, disfarçando a baixa qualidade que, segundo elas, nós exigimos. O que seria isso se não adaptar o nosso paladar à presença crescente do milho?

Da próxima vez que você tomar uma cervejinha e passar o dia seguinte reinando no banheiro, já tem mais uma justificativa: “foi o milho”.

Dá um frio na barriga, não? Pois então tente questionar a Ambev, quem sabe eles não estão usando os 10,1% de milho não transgênico? O atendimento do SAC pode ser mais atencioso do que a informação do rótulo, que se resume a dizer: “ingredientes: água, cereais não maltados, lúpulo e antioxidante INS 316.”

Vai uma, bem gelada?




Fonte: Outras Palavras