sábado, 21 de abril de 2012

Europa: a face desumana da crise


Em Portugal, aumentam suicídios e criminalidade. Tecnocrata descobre que culpados pelo desemprego são… os demitidos. Polícia alarma-se com protestos

Por Antonio Barbosa Filho, correspondente na Europa
De um lado, temos os números da crise que afeta Europa e Portugal – e a discussão técnica sobre causas, efeitos e caminhos para contorná-la; de outro, temos as reações das pessoas comuns, compondo um cenário que se pode traduzir numa palavra: perplexidade.
Economistas não atentam muito aos efeitos sociais e individuais de uma política recessiva levada ao extremo, como ocorre em Portugal. Por exemplo, não há nenhum estudo econométrico sobre o aumento da taxa de suicídios em relação a cada ponto percentual de retração do PIB, pelo menos aqui em Portugal. Na Grécia falida já se sabe que os suicídios aumentaram 17% de 2007 para 2009, e dados ainda não oficiais acrescentam uma subida de 25% em 2010.
Em Portugal, há apenas uma informação da base de dados Pordata, registrando que 1098 pessoas suicidaram-se em 2010, ou 84 a mais do que no ano anterior, mas sem avaliação de quantas dessas mortes podem ser relacionadas aos problemas econômicos agravados. Mesmo assim, o secretário de Estado da Saúde, Leal da Costa, admite podem aumentar os casos de morte auto-provocada, diante de circunstâncias como “aumento do desemprego, aumento de situações de maior dificuldade social, individual e familiar”. O governo apela à solidariedade entre as pessoas, como meio de aliviar as pressões e traumas psicológicos devidos às dificuldades materiais. Antes de ser criticada por jogar nas costas da sociedade um problema que sucessivos governos criaram, a Secretaria anuncia que tem um plano de prevenção de suicídio “que está sendo ultimado e isso para nós é prioritário”, na palavra de Leal da Costa.
Até a Igreja, tradicionalmente conservadora, começa a falar na crise e exigir uma posição mais ativa das autoridades e dos católicos, no alívio de suas consequências no plano pessoal. Na missa de Páscoa, há poucos dias, o arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, disse que há “demasiadas mãos sujas com a iniquidade, com a exploração dos fracos ou com as conjunturas de interesses. E isto acontece porque há mãos limpas mas atadas pelo ‘deixar correr’, não querer comprometer-se, ter medo do que poderá acontecer”. Diante da indiferença da maioria com os que mais sofrem com a crise, o arcebispo advertiu que Portugal  vive em “tempo de risco de um grande colapso social”.
O curioso é que as medidas recessivas, cortes de gastos sociais e reengenharia no serviço público e empresas privadas (o que se traduz no aumento do desemprego) começam a preocupar o governo e a troika (como são chamados o Banco Central Europeu, Comissão Européia e FMI, responsáveis pelo “socorro” a Portugal há um ano) Motivo: elas começam a dar os resultados previsíveis… Impôs-se a recessão, e agora revela-se surpresa porque a recessão dói socialmente, paralisa a economia, reduz a arrecadação, e traz efeitos contrários aos apregoados pelos defensores deste remédio amargo.
Chefe-adjunto da missão da troika em Portugal, o austríaco Peter Weiss, sugeriu que a culpa pelos altos índices de desemprego é… dos desempregados! Ele afirmou que as taxas de desocupação estão acima do previsto porque muitos trabalhadores, que esperavam ser demitidos em maio ou junho, estão pedindo dispensa agora. Na verdade, eles querem proteger-se contra a redução do salário-desemprego – mais uma medida draconiana exigida pelos organismos assumiram o controle sobre a economia portuguesa.
Weiss fez uma comparação típica da burocracia bancária empenhada em demolir o estado de bem-estar que fez a Europa rica e poderosa durante décadas: “Isso acontece sempre. Quando se aumentam os impostos sobre o tabaco, as pessoas começam a comprar mais cigarros. É um comportamento normal”.
Tais declarações, feitas no início de abril, causaram muita irritação nas ruas, onde as pessoas perguntam quem é Peter Weiss para dizer que o trabalhador português está antecipando o próprio desemprego: “Esse homem não foi eleito por nós, nem pela União Europeia, não tem autoridade para analisar os problemas que vivemos por causa da troika e dos governos submissos”, desabafa Francisco Soares, pequeno comerciante em Óbidos.
Cadeias Lotadas: Tem a ver com a crise o fato de as cadeias portuguesas ficarem muito mais cheias de três anos para cá? Desde o ano 2000, o número de presidiários vinha caindo gradativamente; mas em 2008, a curva de condenações voltou a subir rapidamente. Neste abril, pela primeira vez, Portugal superou a marca dos 13 mil detentos. As cadeias têm capacidade para 1,2 mil presos a menos que este número, e não há recursos para ampliações.
A falta de recursos preocupa também a polícia especializada em controle de manifestações sociais, que devem aumentar em resposta ao agravamento da crise. No seu plano de atividades para 2012 a Polícia de Segurança Pública (PSP) já previa uma fase de desafio “quer ao nível da criminalidade, quer ao nível da determinação, competência técnica e bom senso na atuação em situações decorrentes do direito de reunião e manifestação, quer ainda na assertividade e rigor de gestão e empenho dos seus próprios recursos”.
A PSP, assim como a Guarda Nacional Republicana e a Polícia Judiciária, estão mobilizadas para controlar e, se for o caso, reprimir manifestações populares previsíveis. A pretexto de combater a criminalidade, os órgãos de segurança demandam mais recursos, aumentam a vigilância sobre a população e os movimentos sociais e preparam-se para possíveis confrontos. Assim como na Grécia, o povo não aceita passivamente o ônus da crise – sempre imputado ao trabalhador, ao jovem, à dona-de-casa. Os mais desesperados recorrem ao suicídio, como tem ocorrido crescentemente, sob fingida ignorância da mídia; outros vão à greve e quando desempregados, às ruas.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Assange entrevista líder do Hezbollah para televisão russa

image grab taken from the Hezbollah-run Manar TV shows Lebanon's Hezbollah chief Hassan Narallah delivering a televised speech from an undisclosed location on May 1, 2009

World Tomorrow, programa do fundador do Wikileaks para a rede RT (Russia Today), estreou ontem (17) dando voz a Hassan Nasrallah

18/04/2012

Baby Siqueira Abrão
Correspondente no Oriente Médio

Julian Assange, com vários quilos a mais, barba por fazer e algumas espinhas no rosto parecia pouco à vontade à mesa. Mexia as mãos, segurava os papeis que deviam conter o roteiro do programa, olhava para a tela de um computador. O cenário não poderia ser mais prosaico: uma sala improvisada em set, com livros na estante e até cortina na janela. Tanto Assange como os dois homens que o acompanhavam – e que, iniciada a entrevista, saberíamos tratar-se dos tradutores – aguardavam que o entrevistado aparecesse no monitor.
Hassan Nasrallah foi o escolhido para inaugurar o esperado programa de Assange, o australiano que ajudou a acabar com a apatia do mundo ao publicar documentos secretos no Wikileaks, site que criou, com alguns sócios, exatamente para isso. O cinismo e a arrogância dos poderosos, suas falcatruas, mentiras, manipulações da opinião pública, seus jogos políticos e diplomáticos revoltaram os cidadãos desacostumados aos bastidores do teatro que a mídia corporativa os obriga a assistir todos os dias.

Desmascarados, os poderosos começaram a ver, com perplexidade, as pessoas comuns saírem às ruas para protestar contra uma situação que, agora tinham certeza, fora criada para ludibriá-los. O modelo econômico e político em que vivem não é “natural”, como querem lhes fazer crer. É, isso sim, uma imposição, um artefato inventado e mantido para espoliá-los. A quem duvidar, as provas estão a um clique, no Wikileaks.
Era mais do que óbvio que os desmascarados pediriam a cabeça de Julian Assange e lhe tirariam os meios de manter o site no ar. Enquanto o castigo acontecia, grupos de hackers atacavam os portais de bancos, cartões de crédito e operadoras de dinheiro via internet. Autodenominados Anonymous, eles deram início a uma guerra eletrônica, contada passo a passo no Twitter, em favor de Assange e do direito do público a informações corretas e sem o filtro da mídia corporativa.
Acuados, os poderosos baixaram um pouco o tom. Assange, sem dinheiro, fechou o Wikileaks e deixou de se expor publicamente. O programa para a RT marca sua volta à esfera pública internacional. Conhecedor das tramas políticas desenvolvidas longe dos olhos dos cidadãos, ele tratou de desfazer um dos muitos mitos criados pelos donos do pensamento único: entrevistou Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, grupo de resistência armada do Líbano que expulsou, do país árabe, o “poderoso” exército de Israel.
Com seu jeito calmo e bonachão, Nasrallah teve a oportunidade de esclarecer fatos incômodos a Israel e Estados Unidos. Contou a história verdadeira, aquela que as falácias dos poderosos se empenham em destruir, mas sem êxito.
Num esforço voltado ao interesse público, os tradutores do Vila Vudu trabalharam rápido para oferecer, ao público brasileiro, acesso à entrevista com Nasrallah. É uma oportunidade e tanto de conhecer o “outro lado” das notícias, que a mídia corporativa omite ou distorce. Com vocês, Julian Assange e Hasan Nasrallah, bravos combatentes da guerra da desinformação que a mainstream media trava diariamente contra o público.

A entrevista de Assange com Nasrallah
Transcrição e tradução do Coletivo Vila Vudu

JULIAN ASSANGE: Esta semana recebo um convidado que nos fala de lugar não revelado no Líbano. É das figuras mais extraordinárias do Oriente Médio. Combateu muitas batalhas armadas contra Israel, e agora participa da luta internacional na Síria. Quero saber por que é chamado de “Combatente da Liberdade” por milhões e, ao mesmo tempo, de “terrorista” por outros milhões. Essa é sua primeira entrevista para o Ocidente desde a guerra Israel-Líbano, de 2006. Seu partido, o Hezbollah, participa do governo libanês. Temos conosco hoje o secretário-geral do Hezbollah, Said Hassan Nasrallah. O senhor está pronto?

NASRALLAH: [em inglês:] Sim. [em árabe:] Estou pronto.

JA: Qual é sua visão sobre o futuro de Israel e Palestina? O que o Hezbollah considera uma vitória? Se o senhor obtiver essa vitória, o senhor se desarmará?

HN: [entende a pergunta e responde em árabe. Pelo intérprete:] O estado de Israel é um estado ilegal, estabelecido a partir da ocupação de terras que têm dono, ali estabelecido pela força, cometendo massacres contra palestinos, que foram e continuam a ser expulsos. Basicamente, muçulmanos e cristãos. O processo atual não faz justiça a ninguém, não cria justiça. Se sua casa é ocupada pela força, ela não passa a ser de outro, mesmo que permaneça ocupada por 15 ou 100 anos só porque [o ocupante] é mais forte; nem a propriedade é legalizada pelo transcorrer do tempo de ocupação. Essa é nossa visão ideológica, nossa visão legal, não é visão religiosa. Acreditamos que a Palestina pertence aos palestinos.
Mas se você quiser combinar ideologia e lei, e a realidade política que temos, quero dizer que a única solução... Não queremos matar ninguém, não queremos nenhuma propriedade injusta, queremos restaurar a justiça, a única solução é restabelecer a justiça, estabelecer um Estado nas terras palestinas, em que judeus e muçulmanos e cristãos vivam em paz, num Estado democrático.     

JA: Israel diz que o Hezbollah lança foguetes em áreas civis. É verdade?

HN: Nos últimos anos, desde 1947, quando Israel foi criada em terras palestinas, Israel bombardeia áreas civis no Líbano. Na Resistência, nos dez anos, entre 1982 até 1992, nós começamos a reagir, mas exclusivamente para que Israel parasse de atacar nossas populações civis. Em 1993 houve um acordo, indireto, entre a Resistência e Israel, que foi reafirmado em 1996 e que tornava claro que os dois lados parariam de atacar civis: se vocês pararem de atacar nossos civis, nós também pararemos os ataques contra vilas e cidades. O Hezbollah tentou criar um equilíbrio de contenção, para evitar que Israel continuasse a atacar civis no Líbano.

JA: Segundo o WikiLeaks [que publicou telegramas diplomáticos] da embaixada dos EUA no Líbano, o senhor estaria chocado com a corrupção que crescia no Hezbollah, porque alguns membros andavam dirigindo SUVs, usando roupas caras, comprando comida desviada... Isso seria consequência óbvia de o Hezbollah ter-se envolvido na política eleitoral no Líbano?

HN: O que diziam sobre esse fenômeno não está certo. É parte dos boatos que querem usar para desacreditar o Hezbollah, distorcer nossa imagem, é parte da guerra que a mídia move contra nós. Diziam que nós operávamos uma máfia, o tráfico de drogas em todo o mundo. Essas são as coisas contra a qual, também por nossa religião, nós combatemos. Eles disseram muita coisa sem nenhum fundamento. Em primeiro lugar, nada disso é correto. Em segundo lugar... Seja como for, é fenômeno limitado. Mas a razão disso é que houve muitas famílias ricas que, no passado, não apoiavam o Hezbollah, sua linha ou sua ideologia ou seu programa. Depois de 2000, quando da Resistência, e o Hezbollah surgiu como linha de defesa do Líbano, foi como uma espécie de milagre, e criou grande choque na sociedade libanesa. Como era possível que um pequeno grupo tivesse resistido durante 33 dias, sem ser derrotado pelo mais poderoso exército da região? Quero dizer: vários grupos da sociedade começaram a considerar-se parte do Hezbollah, ou apoiadores do Hezbollah, em vários casos grupos de muito dinheiro... Não é verdade. Disseram que esse fenômeno estaria dentro do Hezbollah, mas não é absolutamente verdade, digo com toda a confiança, com base na informação que tenho.

JA: Por que o senhor apoiou os levantes da Primavera Árabe na Tunísia, no Iêmen, no Egito e em outros países, mas não na Síria?

HN: Por razões muito claras. Em primeiro lugar, em princípio, não interferimos em Estados árabes, e essa tem sido nossa política. Houve desenvolvimentos no mundo árabe, muito sérios e muito importantes. Por exemplo, havia regimes que absolutamente não toleravam nenhuma oposição. Na Síria, todos sabem que o regime de Bashar Al-Assad apoiou a resistência no Líbano, apoiou a resistência na Palestina, não cedeu às pressões de Israel-EUA, isto é, é um regime que serviu muito  bem à causa dos palestinos. Nossa opinião é que a solução para a Síria é diálogo e reformas a serem feitas, porque a alternativa a isso, dada a gravidade da situação na Síria, é guerra civil, exatamente o que os EUA e Israel desejam para a Síria.

JA: No fim de semana, houve mais 100 mortes em Homs. Morreu também uma jornalista com a qual estive há um ano, Mary Colbin. Entendo sua lógica, de que não se pode destruir um país, que o melhor é reformá-lo, se possível. Mas o Hezbollah tem algum limite? Quantos mortos, até que o Hezbollah decida que basta?

HN: Desde o começo dos eventos na Síria, tivemos contato constante com os sírios: falamos como amigos. Para nos aconselharmos uns aos outros. Sobre a importância das reformas. Desde o começo. Eu pessoalmente me convenci de que o presidente Al-Assad estava muito disposto a promover reformas radicais e importantes. Isso nos deu segurança para tomar as posições que tomamos. Em mais de uma ocasião, publicamente, dissemos isso. Disse também em muitos encontros com líderes políticos libaneses e outros políticos árabes: estou convencido de que o presidente Al-Assad está disposto a promover reformas, realistas, legítimas. Mas a oposição também tem de aceitar o diálogo e desejar reformas. Tivemos contato também com pessoas da oposição (é a primeira vez que digo isso), para encorajá-las a facilitar o diálogo com o regime. Mas a oposição rejeitou o diálogo. Desde o início, temos um regime disposto a fazer reformas e preparado para o diálogo, e uma oposição que não está preparada para o diálogo, para as reformas, que só está interessada em derrubar o governo, o que é um problema. O que está acontecendo na Síria tem de ser olhado com dois olhos, não com um olho só. Há grupos na Síria que já mataram muitos civis.

JA: O que se deve fazer para deter a matança na Síria? O senhor falou em diálogo, e é fácil falar em diálogo. Mas que medidas práticas se devem tomar para deter o derramamento de sangue na Síria?

HN: Ainda sobre a questão anterior, há uma coisa que quero dizer: há Estados árabes que oferecem armas e dinheiro e estimulam a guerra na Síria. Alguns Estados, e de um lado só. É questão muito grave. Todos ouvimos falar de Zawari, líder da Al-Qaeda, que também deseja guerra na Líbia. Há combatentes da Al-Qaeda que já chegaram à Síria e querem fazer da Síria campo de batalha. Há países que fornecem armas e dinheiro para sustentar a guerra na Líbia. Disse isso há poucos dias: há Estados árabes dispostos a discutir com Israel por anos a fio, dez anos, vinte anos, ouvir tudo que Israel queira dizer, mas não estão dispostos a dialogar por um ano, nem alguns meses, com a Síria, em busca de uma solução política para a Síria. Isso não faz sentido algum. 

JA: O senhor estaria disposto a fazer uma mediação entre os grupos da oposição e o regime de Assad? As pessoas confiam que o senhor lá estaria como mediador, não como agente dos EUA, dos sauditas ou de Israel. E será que confiariam que o senhor não estaria lá como agente do governo de Assad? E se pudessem ser convencidos, o senhor aceitaria negociar a paz?

HN: A experiência de 13 anos de vida do Hezbollah mostra que somos amigos da Síria, não agentes da Síria. Houve períodos da vida política do Líbano em que nossa relação com a Síria não foi boa, tivemos problemas com a Síria. Os grupos que se beneficiavam da influência da Síria no Líbano nos fizeram oposição. Quero dizer, somos amigos, não agentes da Síria. Vários segmentos da oposição síria sabem disso e todas as forças políticas na região sabem disso. Isso, em primeiro lugar. Em segundo lugar, quando eu disse que apoiamos uma solução política, há muitos grupos que não querem aceitar nenhuma contribuição para chegar a uma solução política. Já disse aqui que contatamos alguns grupos da oposição, que recusaram o diálogo com o regime. Se quiserem, teríamos o máximo prazer em mediar negociações de paz. E temos pedido a outros que contribuam para uma solução política. 

JA: Acho que esses grupos de oposição considerariam mais confiável a mediação do Hezbollah se vocês dissessem ao regime Al-Assad que o Hezbollah tem um limite. O regime sírio está livre para fazer o que quiser ou há algo que o Hezbollah não aceitará?

HN: Claro. Acho que o presidente Al-Assad tem limites que não poderá ultrapassar, como nossos irmãos sírios também têm. O problema é que os combates continuam. Cada vez que um lado recua, o outro lado avança. E isso vai continuar enquanto permanecerem fechadas as portas da negociação.

JA: A Tunísia tomou uma posição firme, a de que já não reconhece o regime sírio. Por que a Tunísia tomou essa posição de separar-se do regime sírio?

HN: Acredito que essa posição, tomada em Túnis ou onde for, tenha sido tomada porque trabalham com informação incompleta, não quero dizer incorreta, vou dizer incompleta. Claro que também há informação incorreta, apresentada aos governos árabes e ocidentais. Já disseram que o regime cairia em questão de horas. E vários quiseram ser parceiros dessa vitória antecipada. Também não escondo minha crença de que vários desses novos governos, que acabam de passar por um duro teste, estejam convencidos de que não é hora de entrar em confronto com os EUA e com o Ocidente. E devem estar pensando que é melhor acalmá-los e fazer como dizem, sem criar problemas.

JA: Vocês organizaram uma rede internacional de televisão, a rede Al-Manar. Os EUA censuraram a televisão libanesa, que está proibida e não é vista nos EUA. Ao mesmo tempo, os EUA declaram-se “um bastião da livre expressão”. Por que, em sua opinião, o governo dos EUA tem tanto medo da rede Al-Manar?

HN: Porque querem poder continuar a dizer ao povo que o Hezbollah é grupo terrorista, organização que assassina e mata. E não querem que o povo nos ouça. Em qualquer julgamento, o acusado deve ter o direito, no mínimo, de defender-se. Mas o governo dos EUA nos acusa e nos nega o direito básico de nos defender, de apresentar nossos argumentos ao povo do mundo.

JA: Como comandante de guerra, como o senhor consegue manter seu povo unido diante do fogo inimigo?

HN: No que nos diz respeito, a força principal é que temos um objetivo claro, objetivo humano, moral, baseado na fé e patriótico. Não havia o que discutir. Tratava-se de libertar o Líbano de uma ocupação. O Hezbollah foi constituído para isso. Não estamos no governo para competir por poder. Da primeira vez que participamos do governo, não fomos movidos por ambição política: entramos para o governo, em 2005, não em busca de poder político, mas para dar melhor proteção à resistência. Tínhamos medo de que o governo viesse a tomar medidas erradas em relação à resistência. Quando se tem um objetivo claro e correto, quando se tem claras as prioridades, o que interessa é manter as forças unidas, superar as rivalidades, em nome do objetivo. A partir disso, temos nos mantido afastados de discussões infindáveis. Em muitos casos, evitamos opinar, para não nos envolver em questões secundárias e não nos afastar de nosso objetivo, o de proteger o Líbano contra Israel. Porque ainda entendemos que o Líbano está ameaçado.

JA: Queria voltar à sua infância. Sobre suas memórias e sobre como afetam seu pensamento político.

HN:  Naturalmente. Nasci e vivi, por 15 anos, em Beirute leste. As características dessa região, naturalmente, influenciaram minha personalidade. Uma das características dessa região era a pobreza. Outra, que ali viviam muçulmanos xiitas, muçulmanos sunitas, cristãos, armênios, curdos, libaneses e palestinos. Nasci e fui criado em ambiente muito variado, muito misturado. Naturalmente, o que conheci ali me tornou muito alerta e preocupado com a Palestina. Todos os palestinos que viviam perto de nossa casa haviam sido expulsos, vinham de Haifa, Acca, Ramallah, Jerusalém... Nasci e fui criado nesse ambiente.

JA: Li uma história engraçada, sobre o senhor falando sobre codificação e decodificação dos israelenses. Achei interessante, porque sou especialista em encriptação e o WikiLeaks vive sob total vigilância. O senhor se lembra dessa história?

HN: Lembro. Eu estava falando sobre como a simplicidade pode derrotar a complexidade. Por exemplo, o exército de Israel usa tecnologias e armas altamente complexas e equipamentos complexos na sua comunicação. Mas a resistência é basicamente popular. A maioria dos jovens são nascidos em fazendas, em vilas, comunidades agrícolas. Basicamente, usam walkie-talkies, aparelhos muito simples. Quando usam códigos, são códigos baseados na gíria e na linguagem que usam em casa, em suas comunidades. Quem os ouvir com aparelhos complexos e sistemas de decodificação e computadores, para decodificar aquela linguagem, fica perdido, a menos que viva durante anos naquelas comunidades. Eles usam, por exemplo, palavras que só se usam em suas vilas, dizem coisas como “a panela da cozinha”, o “pai da galinha”... E lá ficam os especialistas israelenses, com aquela aparelhagem ultrassofisticada, tentando decifrar quem será o “pai da galinha”...  [risos]. Não daria muito certo com o WikiLeaks, mas... [risos]

JA: Vou fazer uma pergunta de provocação, mas não é pergunta política. O senhor enfrentou a maior potência do mundo, lutando contra a hegemonia dos EUA. Alá, ou a noção de um Deus, não será a mais absoluta superpotência e o senhor, como combatente da liberdade, não teria o dever de lutar para libertar a humanidade do conceito totalitário de um deus monoteísta?

HN [sorri]: Nós cremos que Deus Todo-poderoso nos criou e nos deu corpo e capacidades espirituais psicológicas, que chamamos instinto. Instinto de dizer a verdade, o instinto diz que dizer a verdade é bom; mentir é mau; a justiça é boa, a injustiça é má. Ajudar quem precisa, defender o próximo é uma boa causa. Atacar os outros, destruir sua casa, derramar sangue é horrível, é muito mau. A questão de resistir à hegemonia dos EUA ou resistir à ocupação, ou resistir contra qualquer ataque é questão moral, instintiva, humana, e todos concordam quanto a isso. Nesse sentido, os princípios morais e humanos são consistentes com as leis do universo. As religiões abraâmicas não pregam nada que contradiga a mente ou o instinto humano, porque o criador das religiões é criador também dos seres humanos. As duas coisas têm de ser consistentes. Se numa casa ou num país há dois líderes, eis a receita da ruína. Como o universo aí estaria, nessa maravilhosa harmonia, por bilhões de anos, se houvesse mais de um deus? O universo já estaria em pedaços. Mas não impomos a religião a ninguém. O Profeta Abraão sempre favoreceu o diálogo, a argumentação com evidências. É o que também defendemos.

JA: Muito obrigado, Hassan Nasrallah. Obrigado também aos nossos intérpretes.

 [Créditos encobertos]
Programa World Tomorrow [Mundo amanhã] [n.1, Russia Today], 16/4/2012.
 (vídeo e entrevista transcritos e traduzidos)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Existe uma “sociedade do conhecimento”?



Por Fabrício Maciel


Vivemos uma época na qual o tom do panorama político e econômico mundial é o de celebração da mudança. Como nunca antes, o Brasil desponta, na mídia mundial, ao lado de nações como China e Índia, entre as mais promissoras “potências emergentes”. Já se fala que o futuro do capitalismo e da humanidade pode ser visto a partir destas nações. Um influente sociólogo alemão anunciou profeticamente o perigo da “brazilização do Ocidente” [1]. Nas ciências sociais dominantes no mundo, presenciamos o anúncio profético de vários “fins”. São eles: fim das sociedades de classe, fim do socialismo real, fim das grandes narrativas, fim das ideologias, fim das estruturas rígidas de estratificação e dominação social, fim das interpretações macroestruturais, fim da ordem mundial bipolar, fim da hegemonia dos grandes centros políticos e econômicos, fim da polarização centro-periferia e fim das sociedades “do trabalho”. 

O mesmo tipo de alarde apocalíptico parece guiar a definição atual de uma época “pós”. Os paradigmas dominantes na ciência social mundial e os discursos dominantes na esfera pública mundial são marcados pela indefinição como definição. Vivemos uma época sobre a qual a melhor coisa que temos para falar é que temos muito pouco para falar. Já se anunciou o pós-moderno, o pós-nacional, o pós-colonial, o pós-social e até o pós-humano. Em meio a toda esta nova doutrina de uma “era de transição”, algumas perspectivas até se apresentam potencialmente esclarecedoras. Entretanto, o mais importante é que a combinação “fim-pós” já se tornou o discurso dominante de nossa época sobre ela mesma. O filósofo francês André Gorz (2004) esboçou o parecer de que “saímos de uma sociedade do trabalho e não colocamos nada em seu lugar”. Em geral, parece que podemos aplicar a mesma lógica: saímos de uma ideia de sociedade moderna e nacional, ou até mesmo de uma ideia de sociedade, no caso de teorias mais radicais, para não colocarmos nada bem definido em seu lugar. Ao mesmo tempo, apenas se esboça, mas não se desenvolve, a ideia de uma sociedade mundial. 

Este panorama geral sugere, ao mesmo tempo, um novo mundo no qual as estruturas e as relações sociais são mais opacas, fluidas, complexas e menos rígidas, hierarquizadas e verticalizadas. Trata-se da horizontalidade da vida no horizonte das ideias. A ideia geral de um mundo mais complexo, na ciência, parece encontrar uma afinidade direta com a ideia de um mundo mais democrático, na economia, na política e na vida social. O tom geral de nosso tempo é de esperança. Esta é a época de um negro no poder da nação mais rica do mundo, e de uma mulher sucedendo um brasileiro nordestino, no governo brasileiro, no momento em que o Cone Sul do mundo faz sua virada no tabuleiro das forças econômicas e políticas internacionais. Esta é a era dos acordos, dos tapinhas nas costas, e não da guerra no sentido mais tradicional, ainda que estas permaneçam ocorrendo pontualmente no mundo inteiro. Na mídia mundial, os apertos de mãos são mais evidentes do que os apertos de gatilhos. O anúncio de uma “nova ordem multipolar”, que já completa duas décadas, é incisivo na sugestão de uma descentralização geral do poder no mundo. Seu novo senso comum já parece esboçado na mídia mundial e endossado pela ciência social dominante: trata-se de uma “nova ordem multicultural”. Trata-se da época na qual o Brasil da desigualdade e do carnaval se anuncia como “Brasil, um país para todos”. 

O discurso de uma época sobre si mesma nunca é uma mentira total, uma distorção completa, uma “falsa consciência”. Ele tem uma razão de ser. Reflete a edição de uma realidade. Uma edição é uma generalização de uma realidade parcial como se fosse uma realidade total. É uma simplificação da realidade. O discurso de uma época sobre si mesma é sempre uma meia-verdade. É sempre ambíguo. Enfatiza e exagera uma parte, esquece e omite outra. O discurso contemporâneo que interessa especialmente a este texto é o da “sociedade do conhecimento”. Ele parece parte indispensável do cânone central de ideias que definem as mudanças de nosso tempo, o fim de uma era e um “pós” que ainda não se define muito bem 

Da “sociedade do trabalho” à “sociedade do conhecimento” 

A ideia de sociedade do conhecimento é uma das tentativas dominantes de redefinição das sociedades ocidentais contemporâneas. Há pelo menos três décadas, uma constatação básica parece se generalizar nas ciências sociais dominantes. As “sociedades do trabalho”, no sentido compreendido desde Marx, teriam entrado em profundo colapso, se observadas as mudanças concretas em suas formas materiais de produção e reprodução. Tais mudanças exigiriam assim uma revisão analítica na lógica e no significado destas sociedades. Nos anos 80, um artigo emblemático de um sociólogo alemão, Claus Offe, sintetizava bem a questão intrigante deste novo tempo: o trabalho ainda é uma categoria sociológica chave? [2] A ideia de trabalho criticada é aquela diretamente vinculada à primazia da esfera da produção na reprodução social. O dado mobilizado por este autor para fundamentar este questionamento incisivo, e que parece ter chegado para ficar, é o advento inevitável do “setor de serviços”. Este seria um efeito estrutural e funcional do inchaço da lógica fordista do capitalismo industrial. Este setor reproduziria apenas parcialmente a lógica econômica e as relações de dominação na dimensão da produção. Ele significa ao mesmo tempo a fragmentação da classe trabalhadora tradicional e de seu vínculo com a produção e o advento crescente de economias paralelas, informais, periféricas e ilegais. Tais mudanças levam o autor à definição de um “capitalismo desorganizado” [3]. 

Este parece ter sido um passo fundamental no caminho de transição de um paradigma da “sociedade do trabalho” para um paradigma da “sociedade do não-trabalho”, e não para o de uma sociedade da não centralidade do trabalho, como sugeria Offe. O diagnóstico de Offe naquela época, de que o “mundo da produção” era mais estudado do que o “mundo da vida”, parece ter sido profético. Ele apontava para a necessidade de compreender o papel de outras esferas da vida como movimentos sociais e identidades na atribuição de sentido da vida moderna, uma vez que o trabalho perdera, com as referidas mudanças, a sua centralidade nesta função vital. Três décadas depois, o “mundo da vida” parece ter virado o jogo no paradigma intelectual e no discurso político. A importante ideia inicial de refletir sobre a não centralidade (afinal, nenhum conceito resolve a realidade sozinho) acabou se desdobrando em um efeito perverso, em uma falsa polarização entre a perspectiva de uma sociedade do trabalho, que acabou, e a de uma sociedade do não trabalho. A categoria de “sociedade do trabalho” foi reduzida pela ciência social dominante a um uso residual, ou a um uso central apenas no campo específico, tradicionalmente marxista, da “sociologia do trabalho”. A falsa polarização simplifica as mudanças vividas pelo capitalismo nas últimas décadas, sugerindo o advento de um “novo” capitalismo [4], o que é diferente de compreender o processo histórico de um capitalismo, eu diria, “reorganizado”. 

Neste caminho de transição para um novo paradigma intelectual e um novo discurso político, outro passo decisivo é a vasta obra de André Gorz [5]. Sua frase emblemática — “saímos de uma sociedade do trabalho para não colocarmos nada em seu lugar” — resume bem os posicionamentos nem sempre explícitos, na ciência social dominante, em torno da referida polaridade. Sua obra é emblemática porque é ambígua. Ambígua como as mudanças para e o correspondente paradigma de uma “sociedade do conhecimento”. De um lado da polaridade, está um marxismo específico, ortodoxo na manutenção do esquema conceitual carro-chefe da teoria do valor e das relações sociais a ela vinculadas. No Brasil, o maior exemplo desta perspectiva é Ricardo Antunes. Este marxismo tem um lugar garantido no campo da ciência social moderna, exerce a função no campo de que há possibilidade para todo tipo de crítica. Entretanto, sua influência parece menor do que a do outro polo, aquele da tentativa de redefinição do que seriam as sociedades pós “sociedades do trabalho”. Neste polo a figura de André Gorz é central, pois sua ambiguidade ao mesmo tempo corrobora o abandono da ideia de fim da sociedade do trabalho e contribui incisivamente para a compreensão das mudanças efetivas pelas quais passa o capitalismo nas últimas décadas. 

Desde seus trabalhos seminais nos anos 80 [6], Gorz esboça uma perspectiva que ao mesmo tempo transborda e complementa a de Offe. Seu resgate é importante para a compreensão do germe da ideia de “sociedade do conhecimento” a partir da ideia de fim da sociedade do trabalho. Além do advento do setor de serviços, percebido por Offe, mas analisado mais decantadamente por Gorz [7], este último articula o dado levantado pelo primeiro com outro dado igualmente fundamental, que não desenvolve isoladamente do advento do setor de serviços: trata-se do advento crescente da tecnologia e do conhecimento intelectual especializado como força produtiva central na reprodução das sociedades contemporâneas. Em torno da ideia de conhecimento “imaterial” [8], Gorz caracteriza esta nova força produtiva e busca tematizar as mudanças estruturais que permitem seu advento. O fim da sociedade do trabalho, no sentido marxista original, consiste para Gorz no fato histórico de que o capital teria operado uma cartada decisiva na histórica luta de classes entre a burguesia e o operariado organizado. Ele está analisando a trajetória específica de sociedades europeias, mas a lógica do raciocínio pode ser apropriada para os interesses deste texto. 

Desde o século XIX, a classe trabalhadora europeia realizou várias conquistas diante do capital, encarnado na burguesia e na posse dos meios de produção. Vasta literatura há sobre o tema. Sabemos que a classe trabalhadora tradicional adquiriu na Europa sua dignidade ao longo do século XX, através da garantia de direitos básicos envolvendo salário, segurança no trabalho e tempo livre. Mas ela queria mais. A classe trabalhadora almejava autenticidade e vinha acumulando pequenas vitórias diante do capital. Garantida a dignidade, faltava a realização no trabalho. A classe trabalhadora quis participar da concepção de seu trabalho, da realização plena da utopia marxista, para além da mera realização do trabalho. Queria de volta o que o capital havia lhe roubado: sua autonomia, sua liberdade de criação e criatividade humana. Sentou-se à mesa para negociar com o capital. Eis aqui a percepção fundamental de Gorz: o capital tinha uma carta na manga, que a classe trabalhadora não previu. Ele a aceitou para compor o outro lado da mesa e participar das decisões, das concepções e da realização plena do trabalho. 

A análise de Gorz é importante neste aspecto porque ele identifica uma mudança estrutural específica no capitalismo do século XX, sem a qual seria impossível a negociação que traiu e enganou a classe trabalhadora: o fordismo alcançara seu limite estrutural e funcional. O capitalismo precisava se reinventar. Simplificando seu argumento: a produção de mercadorias em massa, conduzida pelo capitalismo fordista industrial, chegou a um limite de autossuperação que não podia gerar mais lucros. Os estoques significam prejuízo. O capital precisava explorar uma nova modalidade de mercadorias que não ocupasse os galpões das fábricas, que circulasse mais rapidamente, que mantivesse a lógica de lucro sobre lucro. Esta mercadoria só podia ser imaterial, ou seja, a venda de sonhos, a venda de significado. O desenvolvimento de um valor de uso imaterial. Mais sentido e menos matéria [9]. O mais irônico é que o velho barbudo já havia avisado sobre a carta na manga do capital. Parece que ninguém escutou. Gorz (2004) ressalta que Marx havia analisado nos seus Grundrisse a possibilidade e a lógica de valorização do conhecimento pelo capital. 

A exigência de valorização de uma dimensão específica da produção, que não pode abandonar a produção material, mas passa a subjugá-la ainda mais, além de um tipo específico de mercadoria, exige também um tipo específico de consumidor e de trabalhador. Fora da fábrica, o consumidor precisa acreditar no valor imaterial das mercadorias que ele mesmo pode ajudar a conceber, se dentro da fábrica ele apresentar as capacidades de produtor material e imaterial. Aqui a classe trabalhadora é cindida ao meio e perde muito de sua força de organização política, pois os engodos aos interesses econômicos e culturais que agora o capitalismo oferece aos seus membros, individualmente, são mais imediatos e objetivos do que qualquer interesse coletivo. A última conquista da classe trabalhadora é a entrega total de sua subjetividade ao capital, como percebe Gorz. Ele ajuda a compreender como o capitalismo se reestrutura, pela dupla necessidade funcional e de produção de significado. A produção de significado passa a funcionar produzindo o significado da produção. 

A ênfase de Gorz na força produtiva central do conhecimento imaterial acaba não refazendo uma teoria da sociedade do trabalho, no sentido de rever o significado prático deste, mas sim realiza uma teoria do fim da sociedade do trabalho, colocando em seu lugar uma sociedade “do imaterial”. A perspectiva é ao mesmo tempo ambígua e produtiva, pois ele opera duas revisões analíticas que podem ser úteis aos objetivos deste texto, ou seja, a crítica ao paradigma da “sociedade do conhecimento” dominante na ciência social contemporânea e ao seu correspondente discurso na esfera pública. As duas revisões retomam e articulam os dois dados empíricos mencionados acima, desde Offe e o próprio Gorz: o advento do setor de serviços e do conhecimento tecnológico e especializado. Gorz vincula o desenvolvimento dos dois fatores, por exemplo, a partir do caso empírico de uma fábrica de ponta da Volvo em Uddevalla, na Suécia. O esgotamento prático do fordismo e o consequente advento do pós-fordismo, em sua versão taylorista ou toiotista, são exemplares não apenas da fragmentação da classe trabalhadora tradicional, mas também da fragmentação do mercado de produção e consumo em fatias heterogêneas, com o que concorda Offe. A economia produtiva fora da fábrica, para além do fordismo, que sempre existiu em escala maior na periferia do capitalismo, agora é um dado crescente na Europa. 

O esgotamento da produção fordista se opera articulado à valorização de parte da classe trabalhadora, que por disposições específicas se qualifica mais que seus companheiros de fábrica, mordendo a isca oferecida pela promessa de realização pessoal no trabalho através da autonomia na concepção das mercadorias. Gorz mostra que esta fração passa, por isso, a ser mais bem recompensada pelo capital. Ou seja, quem melhor consegue fazer o jogo é automaticamente mais valorizado e reconhecido. Em contrapartida, um enxugamento prático se opera nas grandes fábricas, gerando altos níveis de desemprego, mesmo nos países top do capitalismo, como a Suécia [10]. O dado do advento tecnológico entra aqui operando uma automação e maquinização que dispensa boa parte da mão de obra humana, ou seja, exatamente aquela que não se qualificou mais. Para onde vão estas pessoas? 

O desemprego ou a realocação em dimensões inferiores do mercado de trabalho são as duas possibilidades no horizonte. O horizonte de perspectivas da classe trabalhadora, agora mais heterogênea, é crescentemente verticalizado. Sua precarização se opera em dois níveis: o fracionamento na classe e a consequente realocação diferencial, de um lado, e o fracionamento das dimensões produtivas do mercado em fatias hierarquicamente articuladas, de outro. Gorz está mostrando a realocação precária dos que não se qualificam a partir dos critérios da produção imaterial, através de um processo de “terceirização em cascata”. Os mais qualificados permanecem na empresa “mãe”, enquanto os demais são terceirizados ou subterceirizados. Esta diferenciação funcional isenta o capital dos custos de produção com a seguridade do trabalho, transferindo estes crescentemente ao trabalhador, que agora se percebe e passa a ser tratado como “colaborador” ou “parceiro” de produção. O advento de contratos de trabalho flexíveis e da economia informal absorve assim as forças humanas dispensadas pelos setores estabelecidos da produção, que se tornam ainda mais fechados e valorizados. 

A dupla fragmentação mencionada, a do mercado e a da classe, permite a Gorz operar uma importante distinção analítica entre conhecimento e saber. O “conhecimento” é o tipo de saber historicamente e institucionalmente formalizado, reconhecido e valorizado. Este é o que se torna força produtiva central na sociedade do conhecimento. O saber em sentido mais amplo é toda capacidade criativa e produtiva fora do conhecimento institucionalizado e legitimado. Esta distinção pode ser usada para definir todo saber social prático, da experiência, da vida, da escola da vida. Este nem sempre é reconhecido pelo mercado ou pelo Estado, e a hipótese levantada pelo estudo da sociedade do conhecimento é que passa a ser ainda menos valorizado, enquanto ferramenta prática daqueles que ocupam um degrau inferior na hierarquia social do trabalho contemporâneo. 

A compreensão das mudanças na estrutura econômica e na dimensão dos saberes, entretanto, leva Gorz a abandonar a ideia de sociedade do trabalho. Seu esclarecimento poderia ser usado para uma renovada ideia de sociedade do trabalho, mas ironicamente não é o que acontece com o próprio autor. Ele também é traído pela ideia do imaterial, e em livros recentes chega a esboçar uma ontologia do imaterial [11], em lugar da ontologia do trabalho que de fato precisava ser desconstruída. O ponto importante é que nem os autores mais críticos conseguem escapar da ideia do advento de uma sociedade de bases práticas e de sentido totalmente novos. Por isso, a ideia do fim da sociedade do trabalho é o paradigma dominante atualmente. 

Uma hipótese alternativa seria a reconstrução do que é a sociedade do trabalho contemporânea, se considerarmos que o “mundo da produção” não desapareceu e que sem esta dimensão da vida não existe nenhuma outra. Esta hipótese exigiria o enfrentamento de equívocos e lacunas deixados pela tentativa de compreensão da “sociedade do conhecimento”, sem desconsiderar a capacidade parcial de interpretação que tal perspectiva apresenta. A principal lacuna no paradigma da sociedade do conhecimento é que não existe a periferia do capitalismo em sua noção geral de sociedade. Mesmo os autores mais críticos como Gorz traçam uma narrativa específica de sociedades europeias. Em nenhum momento se enfrenta uma questão básica para o funcionamento geral do capitalismo: para onde vai a dimensão da produção precarizada com a reestruturação intelectual das sociedades contemporâneas? Onde e por quem é operado o trabalho braçal que precisa existir — e que agora tudo indica ser ainda mais desvalorizado — para que o sistema inteiro continue a funcionar? Estas devem ser boas questões de reflexão para a sociologia crítica contemporânea. 

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Fabrício Maciel é doutorando em Ciências Sociais na UFJF e na H S Freiburg, Alemanha. 

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Notas 

[1] Ver Ulrich Beck, The brave new world of work, 2000. 

[2] Ver Offe, Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1994. 

[3] Ib. 

[4] Esta linguagem surge em autores influentes como Richard Sennett (2000) e Axel Honneth (2006). 

[5] Vasta literatura existe sobre os temas do terceiro setor, da sociedade do conhecimento e do fim das sociedades do trabalho. Entretanto, as obras referidas neste texto parecem as mais significativas em sua influência política e em seu potencial analítico.

[6] A obra seminal no debate é seu livro Adeus ao proletariado

[7] Ver principalmente o capítulo 2 de seu livro Misérias do presente, riqueza do possível(2004), para este ponto. 

[8] Ver o já citado Misérias do presente e principalmente seu livro O imaterial (2005). 

[9] A vasta literatura sobre indústria cultural e sobre sociedade do consumo, ainda que esta última ideia seja recheada de ambiguidade, pode ser esclarecedora neste ponto. 

[10] Ver o dado de Gorz (2004). 

[11] Principalmente em seu livro O imaterial (2005).


Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.