sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Estagiária da CBN relata assédio sexual



“A estagiária de jornalismo da Rádio CBN Curitiba, Mariana Ceccon, registrou boletim de ocorrência contra o jornalista Airton Codeiro. O registro foi realizado na Delegacia da Mulher (B.O nº 2013/816957) e deve iniciar um processo de investigação. Ela também disponibiliza um relato sobre os acontecimentos (ao final).
Cordeiro é acusado por casos de assédio sexual no ambiente de trabalho. Em uma carta a estudante relata o que enfrentou. O caso já havia vazado pelas redes sociais no começo deste mês. A gerência da emissora havia sido informada, mas não tomou atitude, o que causou uma paralisação dos jornalistas da rádio no dia 5 deste mês. Três deles se demitiram em protesto: José Wille, diretor de jornalismo; Marcos Tosi, chefe de reportagem e Álvaro Borba, âncora.
Os jornalistas que se demitiram haviam investigado o caso, ouvindo cinco vítimas, entre estagiárias, telefonistas e secretárias. Os depoimentos foram registrados, na época, e encaminhados à direção da empresa. O Sindijor acompanha as investigações e encaminhará o relato ao Conselho de Ética da entidade para análise.”
Confira a íntegra da carta publicada pela estudante:
“Em vista da enorme pressão a que venho sendo submetida nos últimos meses creio que não é mais possível ficar quieta sobre este assunto. Primeiro eu gostaria de deixar bem claro que em hipótese alguma eu gostaria que este caso viesse a público. Primeiro pela imensa humilhação, segundo por vergonha em olhar para as pessoas e por último pela inocente crença de que assuntos corporativos podem ser resolvidos dentro da empresa. Acontece que trabalhando em uma rádio nada do que acontece pode se manter por muito tempo em silêncio. Agora vejo meu direito de “ficar calada” ser completamente anulado quando pessoas me mandam mensagens perguntando se a tal estagiária sou eu, quando meus colegas me olham estranho, além de ler, ouvir, centenas de versões para uma história que sei que só eu posso dar um basta.
Em setembro completarei 6 meses de estágio na CBN Curitiba. Como muitos sabem eu adoro trabalhar lá. Meus colegas sempre me trataram bem, nunca como a “estagiária”, me passaram conhecimento, respeitaram-me como profissional desde o início. Tanto que eu tive a oportunidade de ajudar a produzir o programa, editar e nos últimos meses tive o privilégio de ajudar na construção do jornal de dentro do estúdio. Foi lá que eu pude conhecer melhor como funciona a programação e conheci pessoas que eu admiro muito.
Também no estúdio pude trabalhar com o comentarista Airton Cordeiro, uma pessoa que sempre respeitei pela história na imprensa paranaense. Nos primeiros dias de estúdio tratei o Airton como trato um tio avó. Ele me pedia para atender seu celular durante o programa e para ajudar com coisas no computador como, por exemplo, anexar e imprimir arquivos. Até então ele nunca havia me faltado com respeito.
No fim de junho começaram as baixarias. Dentro do estúdio, durante os intervalos, o Airton começou a fazer piadas de péssimo gosto sobre o Caso Tayná, sobre política, sempre usando termos de baixo calão. “Quer dizer que ninguém quis comer a buceta dessa tal de Tayná?” Ninguém respondia, às vezes forçavam um sorriso amarelo ou como no meu caso, levava na “esportiva” porque afinal eu sou a estagiária e aquele é o Airton Cordeiro! A corda sempre arrebenta para o lado mais fraco e não seria eu que criaria caso.
No começo de julho um deficiente visual telefonou para rádio fazendo perguntas sobre como é o estúdio, etc. Depois de desligar o telefone relatei a ligação para todos e o Airton perguntou em alto e bom som: “Por que você não disse para ele vir aqui pegar na sua buceta e ver como é molhadinha?” Naquele momento eu fiquei chocada, como todos. Eu respirei fundo 1,2,3 vezes, mas decidi não falar nada a não ser um “vou falar para pegar no seu nariz Airton!” Brincadeiras… Brincadeiras de um babão.
Um ou dois dias depois Airton estava se despedindo de todos. Ia para Disney com a família. Naquele dia ele estava fazendo piadas horríveis com nome de entrevistadas, falando baixarias como nunca. Durante o programa ele se aproximou da minha mesa, como quem quer olhar alguma coisa no monitor do computador. Abaixou-se, tirou os cabelos do meu ombro e disse: “Eu estou morrendo de tesão em você e ainda vou te montar, você vai ver”. Estou relatando exatamente as palavras que ele me disse não porque eu queira ou esteja confortável para falar sobre isto, mas sim porque não aguento mais ouvir coisas do tipo: “ahh o velho tá no fim da vida, foi lá fez um galanteio e todo mundo tá fazendo esse escândalo”, “Ah o cara passou uma cantada e já levam para o lado do assédio”. E para deixar bem claro de uma vez por todas que o Airton não me fez nenhum elogio. Ele me tratou como um animal.
Ele falou isso e eu não fiz nada. Não respondi nada. Por muito tempo eu fiquei me sentindo um lixo por causa disso. Quando tomei coragem de contar, todo mundo me dizia: “Nossa se fosse comigo eu tinha enfiado a mão na cara… Nossa e você não falou nada?”. Não, eu não falei nada. Eu sempre imaginei que se algo desse tipo acontecesse comigo eu enfiaria a mão na cara do sujeito. Mas não enfiei. Fui só vomitar. Não posso descrever ao certo o sentimento. Você se sente tão humilhado, tão lixo humano, que não arranja força alguma para responder. Você tem vontade de se esconder e se sente suja. Não quer falar pra ninguém. E no segundo seguinte ele falou que estava indo viajar com a esposa, netos, filhos para a Disney comemorar os 50 anos de casado. Como alguém pode ser tão dissimulado?
Naquela sexta eu fui embora com a sensação física de que ia vomitar a qualquer minuto. Não queria ver meu namorado, nem meus pais. Decidi que apesar de amar trabalhar na rádio eu não ia mais voltar pra lá. Não queria mais ver aquela pessoa.
Na segunda-feira, logo que cheguei à rádio, um dos meus colegas me chamou para tomar água. Eu não sabia, mas as “piadas” do Airton tinham vazado. Foi durante esta conversa que eu descobri que o Airton fez isso comigo, mas fez coisas muito piores com tantas outras funcionárias. Se eu não desse um basta ele só iria mais longe como já havia feito antes. Tomei coragem e contei para este mesmo colega que o Airton já havia me assediado e que não sabia o que fazer.
Com medo de a situação piorar e mais enojada ainda achei melhor conversar com o Álvaro Borba também. Relatei as palavras exatas que o Airton tinha me dito na sexta-feira e que eu não trabalharia mais lá. O caso foi passado para os superiores que pouco a pouco foram sabendo de tudo que aconteceu comigo e com as outras mulheres.
Recebi total apoio dos meus colegas diretos. Com o passar dos dias, o Airton bem longe de férias, fui me acalmando e aceitando a situação. O Wille me procurou, pediu desculpas em nome da CBN e garantiu que ia levar o caso diretamente para o alto escalão. Isto porque o diretor-geral da rádio é amigo pessoal do Airton e o maior medo era que o caso fosse abafado ou contornado sem as devidas providências. Neste meio tempo o Wille recebeu relatos de outras funcionárias e ex-funcionárias da rádio ficando cada vez mais irritado. Inclusive casos que passavam do plano verbal. Passadas de mão, intimidações, ofertas de dinheiro para levar funcionárias a motéis. Todas em mulheres que ele provavelmente considera estarem em posições inferiores dentro da empresa e vulneráveis.
Eu depositei todas as minhas esperanças de que o caso seria resolvido ali. Sem exposição, sem mais estresse. Até o dia em que a história vazou para fora. Em uma manhã eu vi a internet explodir em cobranças, piadas e vexames. Meu nome não estava ali, mas todo dia, desde o dia 18 de julho eu sofro um novo tipo de assédio: assédio moral. O mundo realmente é feito de um nojento machismo.
Não vou ficar aqui pregando ideologias feministas, mas depois de toda a situação que eu havia passado, abrir o Twitter e ver coisas do tipo “na capa da playboy de julho, a estagiária que revelou Airton Cordeiro revela tudo pra você”, “Airton Cordeiro comendo muito as estagiárias da CBN Curitiba”, “Imagine as quengas que trabalham na rádio”. Isso foi pior do que o próprio Airton. Todo mundo que me conhece o mínimo sabe o quanto eu luto e me esforço pra fazer minha carreira eticamente. E isso é a pior coisa que pode acontecer com alguém que tenha esses princípios. É ser exposta publicamente, como se eu estivesse querendo “tirar uma grana, ter 5 minutos de fama” ou pior, como eu já vi, “dado motivos” para que ele agisse assim.
Acho que ninguém que escreveu estas coisas ou vazou a história me conhece bem. Mas eu gostaria de dizer que vocês são tão ruins ou piores que o próprio Airton Cordeiro. Alguns podem achar tudo isso muito natural, podem achar que é coisa de uma pessoa senil. Mas não, não é. Isso não é normal. Imaginem se isso acontecesse com sua esposa, sua filha ou sua mãe e centenas de pessoas ainda julgassem a índole de quem você quer bem.
Com as coisas em níveis impraticáveis o José Wille levou a questão para a empresa. Eu não sei detalhes da reunião, a única coisa que me disseram foi que as gravações com os relatos de assédio foram mostradas. Com a omissão da chefia, o José Wille pediu demissão. Encarei meus colegas um a um com um sentimento de culpa. Apesar de não ter “cavado” a situação eu era a pivô.
As atenções estavam voltadas para a casa. Todos os funcionários queriam uma reunião, uma palavra dos líderes da empresa. Queriam a garantia de que apesar da amizade, o diretor-geral não deixaria que o Airton voltasse, nem em 2 dias nem em 2 anos. Queriam algo por escrito. O próprio Álvaro chegou a escrever uma nota pública que foi levada até a direção frisando o fato de que o Airton não voltaria. Mais uma vez eu não sei os motivos, mas a tal retratação não foi assinada.
A única coisa que eu sabia é que o Marcos Tosi tinha reunido testemunhos dos assédios que o Airton havia cometido. Inclusive eu mesma prestei depoimento. Mas, como o próprio Tosi divulgou em sua página no Facebook, “Infelizmente, como na antiguidade, o mensageiro da má notícia pagava o preço com a vida”. Até onde sei, documentar estes fatos não foi nem um pouco bem visto. Tosi sofreu o famoso “gelo” e devido a esta situação decidiu também sair da rádio.
Foi no dia 5 de agosto. O Tosi anunciou a demissão no começo da manhã. Em meio ao alvoroço o Álvaro chegou igualmente transtornado. Sem pronunciamento da direção, com biografias em jogo, o Álvaro não pensou duas vezes. Saiu pela porta e não voltou mais.
Sou grata à atitude do Wille, mas como eu disse só falei com ele uma vez. Nunca tive a oportunidade de contar a ele como eu estava me sentindo ou pensando, então espero que este texto possa suprir esta falta.
Quanto ao Álvaro e ao Tosi, eu não tenho palavras. Todos na rádio perderam não só o âncora, o chefe, mas grandes amigos. E digo isso não porque os dois eram meus amigos fora da rádio ou porque tivemos convivência fora do ambiente de trabalho (nunca os vi, nem de longe sem ser dentro da rádio). Digo isso porque foi a sensibilidade do Tosi ao abordar o assunto, as vezes que acabei chorando e que ele soube escutar que me fazem o considerar um amigo. O Álvaro considero igualmente um amigo por ter segurado a barra na linha de frente. Pelas conversas, apoio e orientações. Pela sensibilidade em proteger meu “início de carreira”, minha integridade e meu nome como até hoje o estavam fazendo.
Não estou escrevendo essas coisas para rasgar seda e sim para colocar os pontos nos “is”. Não tive a oportunidade de falar com todos os meus colegas sobre isso, então espero que estas palavras cheguem a todos e esclareçam de fato o que aconteceu.
Com a perda de 3 âncoras e sem uma palavra oficial, os funcionários da CBN entraram em greve. O holofote estava apontado para a rádio, notícias em vários jornais, até de circulação nacional. A bomba explodiu. Veio a nota pública da direção, mas ainda choveram informações desencontradas.
Espero que esse texto também venha reparar a culpa que sinto por ter abalado todos os funcionários, sem exceção. Sei, e muitos já me falaram e deixam todos os dias claro que a culpa não é minha. Mas apesar de desejar, eu não consigo aquietar meus pensamentos com isso. Eu sei que esta história não só tirou o trabalho de 3 pessoas e prejudicou suas famílias, como eu sei também que os outros que ficaram foram igualmente prejudicados com a alta carga de trabalho, responsabilidade e estresse. Em poucas horas repórteres tiveram que assumir a produção, apresentação, chefia e se desdobrar em vários turnos. E o pior, ter de lidar com a sempre ferrenha crítica dos ouvintes.
Não dá para culpá-los. O ouvinte tão acostumado as vozes familiares, da noite para o dia foi privado da rotina de escutar o programa. E com isso também espero me desculpar com todos os 13 ouvintes que só eu atendi e não pude dizer isto, aos incontáveis que mandaram email, manifestaram-se pelo Twitter ou pelo Facebook da empresa. Eu sei que nenhum de vocês precisa pagar por esta história, mas “todos estamos trabalhando em triplo pra garantir a qualidade na programação”. Não é só demagogia.
Na segunda não fui trabalhar. Mas terça tomei coragem, lavei o rosto e encarei meus colegas. Não porque eu sentisse que estava devendo alguma coisa para a empresa e sim porque eu estava devendo alguma coisa para os meus colegas que estavam tocando o jornal, acreditem, em 4 pessoas! Uma produtora, um apresentador, uma repórter e um operador de som. Duas horas e trinta minutos de programa.
Fui e continuo indo trabalhar por esta razão. Sinto que o mínimo que eu posso fazer é dividir a carga comigo também e ajudar as pessoas que não podem largar os trabalhos ou que não estavam diretamente envolvidas no conflito, mas que estão pagando o alto preço.
E, por fim, é hora de tornar público porque é uma tentativa de me sentir menos humilhada e envergonhada. Está na hora de encarar as coisas de frente e assumir de uma vez por todas que sim isto aconteceu comigo. Aconteceu com várias mulheres e passar adiante a lição de que assédio sexual não é sobre sexo. É sobre poder.
Ainda temo pelas consequências desse episódio. Tenho medo do que isto pode significar para a minha carreira. Tenho medo de que me associem a isto por muito tempo não importando o quanto eu me esforce para fazer com que os méritos sejam maiores do que a polêmica. Tenho medo de que isto cause mais ira nas pessoas “poderosas” atingidas e de que isto me prejudique de alguma forma física, jurídica ou profissional. Tenho medo de como meus amigos e familiares vão reagir.
Mas eu tenho o dever de escrever isso não porque quero ser uma “bandeira do feminismo”, mas porque não quero que esta história vire algo do tipo: “isto foi um complô contra mim, ninguém prestou queixa, não há provas”. Por respeito a todos os meus companheiros de profissão, da rádio e também os que eu nem conheço. Por respeito, julgo ético não me calar agora. Estou ouvindo muitos murmúrios, ‘disse que não me disse’. E sei que eu sou a única pessoa que pode relatar o que aconteceu verdadeiramente, por que só eu tenho o direito de me expor desta forma, aguentando as consequências desta exposição.
Chega de boatos, piadas de mau gosto e colunistas defendendo o Sr. Honra e Moral. Honra, moral, ética e profissionalismo são o que fazemos no nosso dia a dia. Se hoje eu não durmo bem é por culpa do sofrimento que isto causou a todos. Mas e o Sr. dorme bem? Põe a cabeça no travesseiro tranquilo? Você olha para a sua esposa, 50 anos casado e não sente nenhuma ponta de remorso? Ou no fundo você acha que essa canalhice é “um sorriso”? O que você VERDADEIRAMENTE fez é repulsivo e caso de polícia. Sinto nojo por mim e mais nojo ainda pelas coisas que você fez com mulheres que não podem e não querem falar, porque tem medo que isto prejudique profundamente suas vidas, mais do que você já prejudicou.
Poderia te desejar um processo bem dado, polícia, inquérito e tudo mais. Mas o que eu posso desejar que fosse pior do que você deve estar vivendo? Pode ter a certeza de que apesar de achar que a justiça não será feita por vias legais eu acredito que de alguma forma você vai pagar por essa canalhice. Pode ser no âmbito criminal, trabalhista, sindical, ou seja lá o que for. Eu não tenho a defesa de grandes escritórios de advocacia, não sou ex-deputada federal, mas a verdade e a vergonha na cara já me bastam.
Se você dorme bem e com a consciência tranquila, muito bom para você. Mas não existe nada pior para um jornalista do que ter a credibilidade suja, a honra julgada e a moral extirpada. E aqui vou parafrasear o Álvaro. “Biografia, a gente só tem uma…” O que vão escrever na sua?”
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quinta-feira, 5 de setembro de 2013

GLOBO ADMITE ERRO SOBRE DITADURA. E O RESTO?



Por Pedro Ekman*
No sábado 31, por meio de editorial, o jornal O Globo reconheceu ter errado ao apoiar o golpe e a ditadura militar, que, ao longo de duas décadas, enterraram a democracia em nosso país, com consequências que perduram até os dias de hoje. Admitir um erro é um grande avanço, mas é preciso refletir sobre como a Globo o fez e qual o alcance dessas “desculpas”.
Os historiadores podem analisar muito melhor do que nós os fatos elencados pelo jornal para, logo após reafirmar seu “apego pelos valores democráticos”, justificar a opção feita na época por Roberto Marinho, insistentemente relembrado como alguém que “sempre esteve ao lado da legalidade”. Em cinco linhas o periódico admite o erro; em 50 ele explica porque o pratico. Nem os colegas de imprensa – Folha, Estadão, Jornal do Brasil e Correio da Manhã – também defensores do golpe, escaparam dos argumentos do Globo para dizer “eu errei, mas “todo mundo” errou também”.
A realidade é que, por mais que o Globo tente nos fazer crer que sua tardia auto-crítica “não é de hoje, vem de discussões internas de anos”, foi o grito das ruas que forçou sua confissão. Nos protestos de junho, a grande mídia – ao lado das demais instituições em crise de representatividade – também se tornou alvo. Parcela significativa da população brasileira deu visibilidade àquilo que o movimento de luta pela democratização das comunicações diz há muito tempo: chega de monopólio! Queremos mais diversidade e mais pluralidade! O povo tem direito e quer exercer sua liberdade de expressão!
Falizmente, essa crítica não arrefeceu de junho para cá. Na última sexta-feira, em São Paulo, assim como em outros estados do país, o 2º Grande Ato contra o Monopólio da Mídia teve novamente a sede da Rede Globo como cenário. Uma enorme bandeira denunciava a relação entre a Globo e o senador Fernando Collor e pedia que o Supremo Tribunal Federal julgue procedente a ADPF 246, que questiona a outorga e a renovação de concessões de radiodifusão a quem possui mandato eletivo, seja como sócio ou associado das empresas concessionárias de rádio e TV.
Sem acesso e representação nos meios de comunicação de massa, os manifestantes mais uma vez ocuparam a mídia pelas pelas frestas. Com feixes de luz, invadiram pela segunda vez o estúdio do SPTV, jornal paulista da TV Globo, pintando de verde a apresentadora Monalisa Perroni, que falava ao vivo para milhões de telespectadores. Nas pareces da emissora, foram projetadas as palavras invisíveis na programação da TV: “Globo Sonega”, “Globo Mente”, “Globo Collor” e “Ocupe a Mídia”.
O editorial do Globo também ignora que, diante das ações que marcaram – e continuam marcando – a história da Rede Globo, é preciso ir além. Primeiro, falta reconhecer que a Rede Globo teve inúmeros benefícios em troca do apoio à Ditadura Militar, como o acordo inconstitucional com a empresa Time-Life, que permitiu que a Globo tenha se tornado um dos maiores conglomerados de comunicação do mundo. Falta reconhecer que o grupo escondeu durantes anos a campanha pelas Diretas Já! Que também errou, em 1989, ao favorecer o então candidato à Presidência da República, Fernando Collor de Mello, com uma edição manipuladora do último debate eleitoral. Falta admitir que esse mesmo ex-Presidente deposto pela pressão popular hoje controla a retransmissora da Globo em Alagoas.
Mais do que nunca, falta admitir que, atualmente, o grande ataque à democracia brasileira reside no fato de possuirmos um dos sistemas de comunicação social mais concentrados do mundo. Tal situação é sustentada pela emissora e defendida em sua movimentação constante nos corredores de Brasília. Ao continuar se negando a levar ao debate público a necessidade de um novo marco regulatório para o setor no país, a Globo impede que a democracia chegue também aos meios de comunicação de massa.
O clamor das ruas, no entanto, revela que esta pauta não pode mais ser adiada. Ao contrário do que prega a grande mídia, os manifestantes sabem muito bem o que estão fazendo e o que querem. Seja com com raios lasers em estúdios; projeções nas paredes ou bandeiras e cartazes nas ruas, a mensagem é clara: é preciso democratizar a mídia. Se, antes, poucos apostariam ser possível ver as ruas repletas de pessoas dispostas a questionar o poder inabalável da máquina de sedução do monopólio midiático, hoje estamos vendo demonstrações cada vez mais fortes de que esse é um debate imprescindível para o Brasil.

Mas, assim como apoiadores da ditadura não vêm a público por livre e espontânea vontade admitir seus erros, não será da boca de quem detém o monopólio da fala que sairá a defesa de leis que permitam maior diversidade e pluralidade na comunicação. Por uma lei da mídia democrática, o povo saiu às ruas e nelas se manterá, até que a democracia possa vencer novamente.
(*) Pedro Ekman é integrante da Coordenação Executiva do Intervozes.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A ética do anonimato, a vida da filosofia e as máscaras do poder


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Por Alexandre F. Mendes

A crítica sentenciosa faz-me adormentar; gostaria de uma crítica feita com centelhas de imaginação. Não seria soberana, nem vestida de vermelho. Traria consigo os raios de possíveis tempestades (Michel Foucault).
No período em que atuei como defensor público no Rio de Janeiro, me lembro de ter participado de uma primeira reunião com moradores da favela Metrô Mangueira, que ficava na Av. Radial Oeste, em frente ao Maracanã. Eles traziam, aflitos, dezenas de “laudos” de interdição de suas casas, afirmando que a Prefeitura queria removê-los por estarem em áreas de risco. Lembro que nos causou surpresa o fato da interdição ter sido fundamentada numa mesma descrição para todas as casas (um breve e genérico parágrafo) e a informação de que a defesa civil teria montado uma “tenda” na comunidade, alertando que quem não assinasse sua própria interdição sairia sem qualquer alternativa.
Depois fomos informados que, por volta de 100 famílias, atemorizadas com todo o tipo de ameaças e receios, tinham acabado de mudar-se para o longínquo bairro de Cosmos, em apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida. Outras famílias, além de um grupo de comerciantes, resolveram resistir e lutar “até o final” por seus direitos. Se a memória não falha, foi justamente uma grande passeata, incorporada à manifestação do Grito dos Excluídos, no dia 7 de setembro de 2010, que marcou o começo de uma mudança importante para o caso.
Com base em muita pressão, e no fechamento da própria avenida Radial Oeste, os moradores e comerciantes conseguiram uma reunião com o então secretário municipal de habitação Jorge Bittar. A defensoria pública acompanhou os moradores e, naquele mesmo dia, todos ficaram sabendo, com muita surpresa, da razão pela qual estavam sendo removidos. Tratava-se, na verdade, do projeto de “requalificação” urbanística do Complexo do Maracanã, que ganharia novos e pomposos investimentos públicos e era objeto de interesses privados. As interdições foram desconsideradas e as negociações passaram a girar em torno de propostas de reassentamento em local mais próximo (Conjunto Mangueira II), o que acabou sendo aceito. Sobre os comerciantes, parece ainda haver controvérsia, tendo o prefeito ido ao local recentemente.
Na iminência do próximo 7 de setembro, fui pego relembrando o fato e pensando nas famílias que se mudaram forçadamente para Cosmos (limite do município) e que, provavelmente, tiveram suas vidas profundamente abaladas ou destruídas pela ação da prefeitura do Rio. Não há dúvidas que foram atropeladas por um poder que ameaça, agride e que não mostra o rosto. Por que precisavam mascarar o projeto? Por que repetiram o mesmo padrão de atuação em locais como Prazeres, Estradinha (Tabajaras), Labouriaux (Rocinha) Vila Harmonia, Restinga, Vila Autódromo, Providência, ocupações urbanas do centro e, agora, no Horto, para dar apenas alguns exemplos?
Alguns me dizem: “poderia ser pior, a polícia está aí para demonstrar”. Pois é, em 2010, somente em áreas com UPP, foram 119 desaparecidos segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). Naquele mesmo ano, de acordo com o mesmo Instituto, tivemos 885 casos de morte por ação policial registrados como “auto de resistência”. Segundo Michel Misse, que agora participa da comissão criada pela OAB-RJ sobre desaparecidos da democracia, em dez anos (2001-2011) foi possível contar nada menos que dez mil mortes registradas sob esse título. Seriam os autos de resistência e os autos de interdição duas máscaras do mesmo poder que se exerce sobre os pobres?
Em 2013, o Grito dos Excluídos começou antes de 7 de setembro e adquiriu proporções inéditas na história política brasileira. Entre junho e setembro, foram tantos protestos, acontecimentos, episódios e debates, que seria impossível esboçar aqui qualquer resumo de narrativa. Talvez em nenhum outro momento o tempo cronológico tenha se convertido tão vorazmente em intensidade efetiva. Perder um dia é abrir mão de compreender toda uma série de irrupções e reviravoltas tecidas pelo kairós produzido nas ruas e nas redes. O tempo ganhou textura e se tornou produtivo.
E produz-se não apenas acontecimentos, mas, principalmente, o fio que liga o processo de luta e a constituição da verdade. Na dinâmica material de sua constituição, as mobilizações arrancaram do poder constrangidas e inesperadas confissões: o jornal O Globo acaba de reconhecer que apoiou a ditadura; o prefeito do Rio assumiu que foi “nazista” com as favelas removidas ou ameaçadas de remoção, e o governador Cabral lembrou que perdeu completamente a capacidade de diálogo, caindo no puro autoritarismo. E também lhes foram arrancadas decisões pouco agradáveis: as tarifas não aumentaram, as remoções começam a ser suspensas, o projeto do maracanã foi alterado, o museu voltou para os índios, os movimentos sociais e sindicais voltaram a ser recebidos etc.
Como parar o tempo e recompor a velha ordem?
Eis o dilema que o poder, desde junho, tenta resolver incessantemente. As idas e vindas no uso da força policial, as contradições nos editoriais, as desastradas infiltrações nos protestos e até a intervenção do Pelé, em julho, demonstram que inúmeras tentativas foram experimentadas ainda sem sucesso. Dentro do permanente lançamento de dados, acredito que estamos passando por um novo ensaio de captura, esvaziamento e repressão das mobilizações que tem enfrentado, diariamente, a violência e o sigilo do poder.
A fórmula não é tão nova, trata-se da clássica inversão pela qual a ditadura foi exortada para salvar a “democracia”, no famoso editorial do jornal carioca. O poder, sempre mascarado e ultraviolento, transfere ao outro a sua infâmia e, no mesmo movimento, age para permanecer exatamente como tal. O final é previsível: as intimações policiais chegarão mais rápido nas caixas dos manifestantes do que o resultado da reconstituição da morte do Amarildo, tudo em nome de uma “democracia” que precisa ser restabelecida.
Menos clássica, contudo, é a participação, nessa operação, de setores que colaboram e lutaram na redemocratização do país, desde a década de 1980. Digamos que, para eles, convenientemente, o tempo parou no dia 20 de junho de 2013. A aparição nas ruas do que já existia, uma direita ultranacionalista, fez com o que parte da esquerda, em especial daquela governista, jogasse para cima de todos a pecha de “fascistas”. Pouco importa se aqueles grupelhos definiram ou não a trajetória do movimento. O tempo simplesmente parou no dia 20.
O problema é que essa desconfiança generalizante sobre o movimento agora adquire contornos verdadeiramente repressivos. Eles foram sendo desenhados, paulatinamente, por uma sintomática união entre a grande mídia e os blogues governistas, entre alguns filósofos de esquerda e colunistas de extrema direita, entre críticas oportunistas e atos concretos de governo. Todos a entoar um único e abstrato juízo: “os mascarados são violentos e atentam contra a democracia”.
Nesse discurso, a memória da ditadura é usada e vilipendiada em nome da manutenção de uma ordem que, nem de longe, está sendo ameaçada por qualquer tipo de fascismo. Pelo contrário, a tática governista está, cada vez mais parecida, ela mesma, com a doutrina da razão do estado, na qual a auto-salvação do próprio estado constitui o único objetivo da política. Toda sedição é ameaça, todo resistente é inimigo.
A última contribuição nesse campo, como se sabe, foi realizada pela filósofa Marilena Chauí. Em entrevista à revista Cult e, posteriormente, em palestras para nada menos que a Polícia Militar do Rio de Janeiro, a professora da USP abusou dos delírios punitivistas. Em primeiro lugar, indicou que em alguns grupos de esquerda haveria uma “violência fascista” que visaria “destruir o outro”. E depois, respondendo a uma indagação policialesca, afirmou que “intelectuais de esquerda”, leitores de Foucault, Negri e Agamben, estariam incitando a violência nesses grupos.
Coincidência ou não, a repugnante entrevista está absolutamente afinada com as táticas de repressão inauguradas nos últimos dias. Nas ruas, a repressão do dia 27 de agosto foi, nas palavras dos manifestantes, “a mais violenta de todas”. Os policiais concentraram o uso da armas nas mulheres e na mídia que cobria a manifestação. Uma jovem militante e estudante de direito, que por sinal lutou comigo contra as remoções forçadas, foi atingida na cabeça quando estava ainda na concentração. Outras foram espancadas por vários policiais com golpes também na cabeça. Cápsulas de armas de fogo foram encontradas no chão, segundo ocorrência registrada pelos advogados da OAB-RJ.
Nas redes, começam a chegar intimações da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática para apurar o crime de incitação pública ao crime (art. 286, CP), demonstrando que muitos apoiadores das manifestações podem ser genericamente criminalizados. Aqui o termo “incitar a violência” não está na gramática punitiva da revista Cult por acaso: ele permite uma vaga e conveniente utilização do aparato punitivo a partir da expressão de opiniões e compartilhamento de imagens. Há sinais, portanto, de que os próximos passos podem consistir, exatamente, numa coreografia violenta entre cassetetes, bombas e criminalização da opinião.
Não parece haver um recuo, no entanto, na disposição dos manifestantes, que parecem entender a estratégia de repressão. No último domingo, aOcupa Cabral promoveu uma virada cultural na qual os participantes explicavam, sem perder o gracejo, a razão de usarem máscaras: “porque eu posso virar um Amarildo”; “porque se minha mãe souber estou frito”; “por causa da perseguição política”; “porque acho fashion”; “porque a constituição garante”; “porque é fundamental se ficcionalizar” etc.
Parece evidente que o anonimato nas manifestações é, fundamentalmente, uma garantia efetiva e necessária contra abusivas criminalizações, sequestros relâmpagos, torturas, desaparecimentos forçados e mortes. É preciso admitir que o direito à expressão, à reunião e à manifestação está sendo exercido, nesse momento, em um lugar onde morrem, repito, dez mil cidadãos a cada dez anos por ação policial. O anonimato em um estado que tem na violência o seu lastro é, no mínimo, a brecha encontrada para que jovens da periferia possam se expressar politicamente, como parece ser o caso.
Além disso, as máscaras são uma efetiva proteção contra as armas menos letais. Quem não colocou um pano no rosto quando atingido por pimenta ou lacrimogêneo? Não seria essa a principal característica da “revolta do vinagre”? O que o poder busca é exatamente fragilizar os militantes para que fiquem ao sabor do uso excessivo dos instrumentos de repressão. Nesse sentido, a máscara é tanto autodefesa como constituição potente dos corpos que questionam os arcanos dos governos. Urge, portanto, não confundir as máscaras da resistência com as máscaras do poder.
Essa importante distinção não passou ao largo de um dos pensadores mais importantes do século XX. Querendo se dirigir mais diretamente ao seu leitor, Michel Foucault publicou, em 1980, no Le Monde Diplomatique, uma entrevista intitulada “O filósofo mascarado”, que ficou anônima até a sua morte. Nela, Foucault traça, com seu belo e peculiar estilo, as relações entre o exercício da filosofia, a produção da verdade, a constituição ética dos sujeitos e o trabalho dos movimentos sociais. Ao contrário de Marilena Chaui, sempre afoita em lançar veredictos aos “intelectuais”, indagado sobre eles, Foucault respondeu:
Intelectuais, nunca os encontrei. Encontrei pessoas que escrevem romances e pessoas que curam os doentes. Pessoas que estudam economia e pessoas que compõem música eletrônica. Encontrei pessoas que ensinam, pessoas que pintam e pessoas de quem não entendi se faziam alguma coisa. Mas nunca encontrei intelectuais. Pelo contrário, encontrei muitas pessoas que falam do intelectual. E, por escutá-los tanto, construí para mim uma ideia de que tipo de animal se trata. Não é difícil, é o culpado. Culpado um pouco de tudo: de falar, de silenciar, de não fazer nada, de meter-se em tudo… Em suma, o intelectual é a matéria-prima a julgar, a condenar, a excluir…
Ele estava preocupado, por certo, com todos os julgamentos violentos que estamos sujeitos quando mirados através do olho do poder na figura, justamente, do intelectual. “Diga-me, por acaso não ouviu falar de um certo Toni Negri? Por acaso não está na prisão exatamente enquanto intelectual?”, perguntava Foucault na mesma entrevista. A condenação efetiva de Negri por “participação intelectual” lhe pareceu o exemplo concreto de um uso ético do anonimato. A máscara aqui não significa fraude ou astúcia do saber, ao revés, ela é o dispositivo que permite que a produção da verdade e dos sujeitos possa ocorrer eticamente.
A “vida da filosofia”, não está, para Foucault, na crítica sentenciosa – aquela que se presta ao ofício de julgar, definir culpados e encher as páginas dos processos criminais. Ela reside no vínculo complexo entre a constituição da verdade e de nós mesmos, entre as múltiplas possibilidades do pensamento e as várias formas de ação, entre a prática da pesquisa e a reflexão nos movimentos, entre a crítica formulada e a “centelha da imaginação”. A atividade filosófica não emana juízos, mas “emite sinais de vida”. Uma vida que insiste em resistir e, contra as máscaras do poder, tem a coragem de dizer a verdade.
Eis a ética do filósofo mascarado.
—-
Alexandre F. Mendes, advogado e professor, participa da rede UniNômade

Fonte: UniNômade

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Marilena Chauí: a história da filosofia contra o pensamento

Ao acusar os “blocs” de fascistas na academia da PM a professora Marilena chegou não só a um ponto de irresponsabilidade política como de cumplicidade com a violência sistemática da PM do Rio, não só na repressão às manifestações, como no trato da população em geral."
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Por Rodrigo Guéron

Tenho notado que Marilena Chauí, cujo ótimo curso recente sobre “Espinosa e a Política” na PUC assisti de caneta e caderninho em punho, há algum tempo tem usado a história da filosofia contra a filosofia e o pensamento em geral.
Estive, estes dias, reunindo anotações para responder a forma como ela desautoriza o uso de alguns conceitos (como o conceito de “multidão” originalmente de Espinosa, mas redefinido por Antonio Negri), ou a articulação e aproximação entre conceitos (como “trabalho vivo” em Marx e “produção de subjetividade” em Deleuze e Guattari), às vezes em nome de uma fidelidade ao sentido puro e imaculado que estes conceitos teriam nos filósofos que os pensaram, às vezes em nome de uma fidelidade historicista à história da filosofia que limitaria a possibilidade de aproximação dos conceitos e seus sentidos numa divisão lógica de contextos e classificações históricas fechadas, e linhagens filosóficas determinadas.
Além disso, a maneira reativa como Chauí tem se referido aos movimentos que tomaram as ruas do país a partir de junho, nos dá a impressão que a professora despreza os acontecimentos nas suas singularidades o que, convenhamos, não é nada materialista. Marilena parece não suportar o incompreensível, o que não é absolutamente assimilável em seus aparatos conceituais prontos, ou seja, o que ela evita é exatamente um dos princípios, um dos agentes provocadores do pensamento: aquilo que nos tira do nosso lugar habitual, do nosso conforto intelectual, que é também físico, demandando novas criações, sejam conceituais, sejam artísticas.
Não é possível reduzir os acontecimentos aos esquemas de pensamento previamente dados. Na filosofia, e antes na política e na vida de uma maneira geral, são os conceitos que devem dizer os acontecimentos, ou seja, os conceitos devem ser criados e recriados a partir dos acontecimentos. E, uma vez criados, os conceitos tornam-se espécies curiosas de ferramentas, que materialmente se constituem mais ou menos na forma como Simondon compreendia a matéria: não “matéria e forma”, mas sim “matéria e força”. Ao que eu acrescentaria: os conceitos são ferramentas que se alteram – tornam-se outras – no seu uso, vivas e vitais como os comandos de games que o cineasta David Cronemberg nos mostra no seu Existenz.
Pois é, como eu ia dizendo, eu estava aqui reunindo anotações para abrir este bom debate, tentando mostrar que o valor do estudo da história de filosofia é que ela nos permite um “pensar com”, como pudemos fazer nas aulas da professora quando ela explicava de maneira esplêndida os sentidos e os caminhos dos pensamentos de Espinosa. Mas a história da filosofia não pode ser uma espécie de espada sobre o pensamento, nem um distintivo de autoridade acadêmica contra a criação de sentido.
Tudo isso era o que eu iria desenvolver em meu texto, passando pela crítica à maneira determinista como acho que Chauí usa a teoria marxista de classe, quase como um transcendente, uma “lei da história” que enquadra as dimensões políticas dos conflitos e da inventividade da produção social de fora para dentro. E aqui eu apontaria os problemas trazidos pela desconsideração que quase todo o marxismo tem pelo ponto mais fundamental e radicalmente materialista do pensamento de Marx: o conceito de “trabalho vivo”. É neste momento que o barbudo identifica o homem como “parte da natureza como força produtiva”, afirmando a nossa dimensão autopoiética: autoinventiva e autoprodutiva. Não compreender as possibilidades desta reflexão de Marx, não compreendendo que o “trabalho” nesse caso passa a ser a própria condição do ser como criador e reinventor de si e do mundo – tudo o que se produz, o que se faz, o que se inventa, é trabalho – é uma limitação dos marxistas que faz com que eles reduzam a compreensão da política a uma disputa pelo Estado. Marx nos mostra, no entanto, uma dimensão política que existe potencial e imediatamente no trabalho, na sua inventividade quando ele é livre, isto é, quando ele consegue escapar às maneiras como o capitalismo organiza a produção e, consequentemente, define as relações sociais e impõe formas de vida. É próprio do capital, no entanto, querer dizer o que é e o que não é trabalho e produção, mudando suas axiomáticas de acordo com suas conveniências. Assim samba, rock-punk, ou funk podem ser coisas de malandros, vagabundos e bandidos, mas, contas refeitas, podem virar um ótimo ativo da indústria musical. No final das contas (literalmente) o capital gosta de dizer que toda a produção só existe graças a ele, tomando-se como um “pressuposto natural e divino” de todo o processo de reinvenção do mundo e da vida.
Há, no entanto, um desejo produtivo, gerador e gerado pela abundância dos meios de produção, tecnologias e bens do capitalismo, que nos impulsiona para muito além da forma mercadoria e de suas mensurações de valor quantificadoras e redutoras. O “trabalho vivo” é a própria operação da vida, a sua ação produtiva que se dá como uma mobilização social e que é por isso política, e que tem a sua dimensão anticapitalista quando produz formas de vida múltiplas para além das limitadas formas de vida dos “padrões de mercado”. E aqui sim “trabalho vivo” pode ser articulado com “produção de subjetividade”, para além de qualquer cânone filosófico. O erro recorrente nas análises políticas de Marilena Chauí e da maioria dos marxistas brasileiros (embora Chauí esteja num nível muito mais alto do que uma vulgata marxista que parece que simplesmente parou de estudar e pensar) é o de não entender a dimensão política do trabalho vivo – da produção de subjetividade – nas últimas décadas, e de como o capitalismo se reestruturou, como forma de poder e de extração de mais-valor, partir destas; ou seja, o próprio processo do neoliberalismo. Ao excluir de suas análises políticas toda esta vitalidade, os marxistas são sistematicamente derrotados pelo capitalismo que se apresenta falaciosamente como a única forma de organização produtiva capaz de responder aos desejos. O capitalismo aprendeu muito melhor que as esquerdas que toda a operação produtiva pode ser considerado trabalho e disseminou as formas de exploração a partir das resistências e das linhas de fuga construídas a ele mesmo, como se tivesse entendido de acordo com seus interesses a tal sociedade onde o homem poderia “pescar de manhã e ler à tarde” descrita por Marx, descobrindo que daí poderia extrair mais-valor à vontade.


Sim, eu sei, este seria o trecho do texto mais difícil e que mereceria mais desenvolvimento. Mas isso é o que eu iria tentar fazer até que a professora fez uma fala na academia da PM chamando os black blocs de fascistas. Foi algo que me deixou tão triste, tão decepcionado e perplexo, que comecei a achar que qualquer debate mais aprofundado, neste caso, seria inútil. Senti, de fato, uma sensação de impotência, como se tivesse levado uma rasteira de alguém que sempre tive, politicamente falando, como uma aliada e uma referência: uma “companheira”, com o perdão do jargão. E é por isso que meu texto a partir daqui muda de tom e torna-se quase outro.

Na verdade, já em meio às suas ótimas aulas, algumas das vezes que a Professora Marilena saia do esclarecimento dos pensamentos de Espinosa para comentar algum fato recente, todo o seu rigor histórico desaparecia. Ela chegou a falar, por exemplo, que o fenômeno eleitoral do comediante Beppe Grillo na Itália não tinha importância nenhuma e era a mesma coisa que o caso de Tiririca no Brasil. Demonstrou assim um desconhecimento completo do “movimento cinco estrelas” que Beppe liderou e que, com todas as contradições que pode ter, levou ao parlamento italiano dezenas de lideranças de novos movimentos sociais, arrombando a porta dos esquemas de poder que fecham cada vez mais as estruturas da representação política para a democracia.
Tudo bem, todos nós professores falamos de vez em quando as nossas besteiras em meio as nossas aulas: não é possível estar bem informado sobre tudo o tempo todo. Mas ao acusar os “blocs” de fascistas na academia da PM a professora Marilena chegou não só a um ponto de irresponsabilidade política como de cumplicidade com a violência sistemática da PM do Rio, não só na repressão às manifestações, como no trato da população em geral.
Eu deveria começar aqui todo um grande trecho explicando quem são os blocs e esclarecendo que as manifestações e os movimentos em curso hoje no Rio vão muito além desse grupo político. Poderia dizer que muitos dos militantes blocs são da periferia, que o máximo de violência a que chegam é quebrar as vidraças de símbolos da opressão, como os bancos, virar algumas lixeiras e coisas do tipo. Deveria contar para a professora Marilena Chauí toda a estratégia de infiltração dos policiais militares nas manifestações do Rio, que foram muitas vezes policiais infiltrados que lançaram molotoves, que pessoas foram feridas com balas de borracha, manifestantes imobilizados no chão tomaram choques elétricos, que bombas de gás foram lançadas dentro de bares e restaurantes e até de hospitais. Poderia contar para ela que os blocs protegeram, numa luta defensiva, os manifestantes diante da repressão e permitiram, com sua resistência, que eles se retirassem com alguma segurança na manifestação dos 300 mil onde a ação da polícia quase provocou uma tragédia. Deveria lembrar à professora que o governo Cabral criou por decreto uma comissão inconstitucional para investigar as pessoas e que muitos cidadãos estão sendo processados no Rio de Janeiro apenas por participarem de manifestações. E sobre a polêmica das máscaras, bastaria eu dizer uma coisa: os black blocs andam mascarados, entre outros motivos, porque a polícia do Rio tortura e mata; é simples assim.
Mas como uma tão rigorosa guardiã do cânone da história da filosofia não se deu a um mínimo rigor de pesquisar tudo isso? Marilena Chauí de fato não sabia de nada quando aceitou dar uma palestra na PM e dizer nesta que os blocs são fascistas? Ela desconhece o que está em sendo colocado em questão pelos movimentos onde os blocs aparecem de forma importante? Não sabe que vivemos numa cidade, e num estado, totalmente privatizados pelo poder que deveria ser público, onde uma política arbitrária e violenta de remoções se proliferou, onde a especulação imobiliária aumentou o preço dos imóveis em até quinhentos por cento, onde um empresário, um grupo empresarial e um cartel dominam os ônibus, os metrôs, os trens e as barcas, recebem licenças, e até dinheiro público, para construir prédios imensos sem qualquer critério, controlando e elitizando até mesmo um dos maiores símbolos da cultura popular da cidade: o seu estádio de futebol, o Maracanã? Ela não sabe quanto ganham os professores da cidade e, pior, os do estado, em greve e mobilizados nas ruas no exato momento em que ela proferia sua palestra na PM?


A professora Marilena Chauí deve desculpas aos cidadãos do Rio de Janeiro, ela precisa retirar o que disse visto que isso pode custar ataques ainda maiores aos manifestantes em geral, inclusive aos corajosos e criativos meninos dos black blocs. Eu teria até críticas a fazer a eles eventualmente. Eu me preocupo, por exemplo, que os movimentos de uma forma geral não se isolem e não caiam numa lógica de auto-martirização. Não digo que isso esteja necessariamente acontecendo, mas às vezes acho que se insinua esta tendência. Mas a fala da Professora Marilena Chauí fez com que eu me sentisse impelido a escrever em defesa dos blocs e dos movimentos que tem acontecido no Rio sobre os quais, insisto, vão bem além desse original grupo político.

Se a professora não quer nos prestar solidariedade porque nossos atos não seguem as “leis” que imagina que a história deveria ter, se ela insiste em se apresentar como a guardiã da doutrina espinosista e da doutrina marxista, esta última, aliás, negada pelo historicismo que tem professado, que nos deixe lutar e pensar em paz, isto é, sem medo.

Nem da PM, nem da USP.

Rodrigo Guéron é professor no instituto de artes da UERJ e cineasta.

Fonte: Uninômade

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Quem usou as armas químicas

Crianças sírias cruzam, num carro, fronteira para Líbano. Possível ataque dos EUA
 só tornará ainda pior uma guerra que já matou 100 mil e desalojou milhões


Ao governo sírio, não interessava fazê-lo. À oposição, que inclui Al Qaeda, certamente sim. Mas outras razões mobilizam Washington.
Por Phyllis Bennis David Wildman, no Znet | Tradução Cristiana Martin
A ameaça de um ataque imprudente, perigoso e ilegal contra a Síria, cometido ou conduzido pelos Estados Unidos, pode estar mais próxima do que nunca.
O governo norte-americano dividiu-se sobre a crise na Síria desde que ela começou. Algumas vozes, em especial no Pentágono e nas agências de inteligência, afirmaram que intervenções militares diretas seriam perigosas e não resultariam em nada. Outras, principalmente no Congresso e no Departamento de Estado, pediram ataques militares e até derrubada do regime de Damasco, antes mesmo qualquer alegação sobre armas químicas. A equipe de Obama também esteve dividida, com a aparente oposição do presidente a um ataque. Já os norte-americanos não estão divididos: 60% são contra intervenções na guerra civil Síria, mesmo que ela envolva uso de armas químicas.
Mas a situação está mudando rapidamente e o governo Obama parece estar movendo na direção de uma intervenção militar. Isto tornaria a trágica situação na Síria ainda pior.
O ataque que matou tantos civis, incluindo muitas crianças na quarta-feira passada pode ter sido provocado por uma arma química. Os Médicos Sem Fronteiras, que apoiam diretamente os hospitais locais, afirmaram que os sintomas indicam exposição de milhares de pacientes a um agente neurotóxico; mas que “não podem nem confirmar cientificamente a causa destes sintomas, nem estabelecer quem é responsável pelo ataque.” A equipe de inspeção de armas químicas das Nações Unidas, que já está na Síria para investigar denúncias anteriores, teve permissão, assegurada pelo governo de Damasco, para visitar o local dos novos incidentes; mas ainda não apresentou relato.
Ninguém sabe ainda o que de fato aconteceu, além de outro ataque horrível a civis, muitos dos quais morreram. Ninguém ainda tornou pública nenhuma evidência do que os matou ou de quem é o responsável. Todos os ataques aos civis são crimes de guerra – independentemente se feitos pelo exército sírio, por milícias ou mísseis norte-americanos.
Ainda assim, vão se multiplicando suposições e apelos tendentes a ataque norte-americano à Síria. A NBC News relata que os Estados Unidos têm “muito poucas dúvidas” de que o governo sírio tinha usado armas químicas. O The Wall Street Journalcita um “oficial do exército” anônimo, segundo o qual,  se os ataques militares forem considerados, serão conduzidos a partir de embarcações no Mediterrâneo Oriental, usando mísseis de longo alcance, sem recorrer a aeronaves tripuladas. “Você não precisa de cobertura. Você não precisa de sobrevoo. Você não precisa preocupar-se em se defender.”
Apesar do pronunciamento do secretário de Estado John Kerry, referindo-se a um ataque químico “inegável”, ainda não sabemos ao certo se empregou-se arma química, e certamente também não sabemos quem atacou. Kerry falou esta tarde, chamando o ataque de uma “obscenidade moral.” Se tiver havido um ataque químico, como parece provável, a qualificação é correta. Porém, mais de 100 mil pessoas foram mortas, até agora, nesta guerra e milhões foram forçadas a saírem de suas casas. Isso tudo não são obscenidades morais?
“Mesmo se”…
Kerry parece acreditar que esta obscenidade moral requer ação militar como resposta. O senadores republicanos John McCain e Lindsey Graham também o disseram mais cedo. Mas eles estão errados. É provável que um agente químico de algum tipo tenha levado ao sofrimento em massa e à morte de muitos, no subúrbio de Damasco. E talvez o regime sírio tenha sido o responsável por isto. As questões que precisam ser feitas, as questões “mesmo se”, teriam que começar por “nesse caso, o que faríamos?”
Alguém realmente acredita que um ataque militar a uma suposta fábrica de armas químicas ajudaria o povo sírio, salvaria vidas, ajudaria a encerrar esta terrível guerra civil? O melhor que poderíamos esperar é que um ataque por meio mísseis, disparados de uma embarcação, fosse bem sucedido, encontrasse precisamente seu alvo e explodisse um armazém repleto de agentes químicos provocando fumaça de resíduos mortais.
Ilegal “mesmo se”…
O governo dos Estados Unidos está criando uma falsa dicotomia – ou se lança ataque militar, ou nós os deixamos escapar. Não se cogita algum outro tipo de responsabilização, nada como a Corte Penal Internacional. No mês passado, o grupo de advogados da Casa Branca notou que armar os rebeldes sírios poderia violar a lei internacional. Eles acham, então, que um ataque por mísseis estaria bem? Ouvimos o presidente Obama referir-se, alguns dias atrás, à lei internacional. Ele disse: “se os Estados Unidos intervierem e atacarem outro país sem um mandato das Nações Unidas e sem apresentação de evidências claras, haverá questionamentos sobre se a lei internacional aprova ou não o ato… e estas são considerações que devem ser feitas.”
Mas o que estamos ouvindo agora é que o modelo a considerar, num ataque dos Estados Unidos à Síria, seria o de Kosovo. Lembram-se dele, em 1999, no fim da Guerra da Bósnia? Naquele tempo, sabendo que era impossível conseguir um acordo do Conselho de Segurança para uma guerra aérea contra a Sérvia, em torno do disputado enclave de Kosovo, os Estados Unidos e seus aliados simplesmente anunciaram que conseguiriam uma permissão internacional em outro lugar. Este seria o alto comando da OTAN. Que surpresa…: os generais da OTAN concordaram com seus respectivos presidentes e primeiros-ministros, e disseram: “claro, pensamos que é uma ótima ideia”. O problema é que a Carta das Nações Unidas é bastante clara sobre o que constitui uso da força militar – e uma permissão da OTAN não está incluída nesta pequena lista. Se o Conselho de Segurança não aprova, e não há motivos para imediata auto-defesa (algo que os EUA não estão alegando em relação à Síria), qualquer uso ou ameaça de uso da força militar é ilegal. Ponto. Fim. Alegar que a OTAN, ou quem quer que seja, aprova uma ação, não faz parte das leis internacionais. A guerra aérea era ilegal em Kosovo, e seria ilegal na Síria.
Cui Bono… (A quem beneficia?)
Mas vamos voltar um minuto. Vamos lembrar que nós não temos certeza de que foi uma arma química. Nós não temos certeza de que foi mesmo uma arma. Principalmente, vamos lembrar de que nós não temos nenhuma evidência sobre quem fez uso de tal arma. Então o que perguntamos? Talvez possamos começar com a boa e velha pergunta, cui bono? A quem beneficia a ação?
É fácil dizer quem perde – o povo sírio, principalmente as vítimas e suas famílias. Comunidades inteiras estão sendo dizimadas. (Não devemos esquecer que os norte-americanos também pagarão um preço – uma nova guerra vai resultar em mais gastos militares. Isso vai criar pressão no Congresso para cortar ainda mais gastos, cortando programas sociais vitais e muito mais.)
Mas a quem beneficia é um pouco mais complicado.
Certamente, não é impossível que o regime sírio, conhecido por ter tido um arsenal de armas químicas, tenha-as utilizado tal arma. Se o fez, por quê? Apesar de permanecer sob a pressão das sanções e de enfrentar crescente isolamento internacional, Damasco tem alcançado algum sucesso no campo de batalha. É certamente possível que um oficial intermediário da Síria, preocupado com derrotas passadas e desesperado com risco de ser acusado por elas, tenha optado por usar tais arma para obter alguma vitória macabra no campo de batalha, apesar de agravar as ameaças de uma intervenção militar direta. Mas é bastante improvável que a liderança do regime tenha feito tal escolha. Não pelo fato de que “eles não matariam o próprio povo”: eles têm feito isso. Mas porque o risco de perda era muito maior que que qualquer chance de ganho. Não é impossível. Mas, por mais brutal que seja este regime, ele não é louco.
Mas há ainda o outro lado, uma oposição heterogênea cujos combatentes mais fortes proclamam fidelidade à Al Qaeda e a organizações extremistas semelhantes. Aqueles que se beneficiam desse ataque são os que anseiam por maior intervenção militar ocidental e dos EUA contra o regime de Assad, em Damasco. Além disso, Al Qaeda e suas ramificações sempre quiseram colocar o exército norte-americano – tropas, aviões de guerra, navios, bases, seja o que for – em seu território. É tão mais fácil atacá-los de lá… Politicamente, mantém-se o que os agentes de contra-espionagem dos EUA nomearam, há muito tempo, como “ferramenta de recrutamento” da Al Qaeda. Eles amam a guerra do Iraque por esse motivo. E amariam ainda mais a guerra da Síria, se os alvos norte-americanos fossem levados para lá. Todo o debate sobre linhas-vermelhas, a pressão interna e internacional para “fazer alguma coisa,” as ameaças aos inspetores das Nações Unidas em solo… Quem, na Síria, estaria torcendo por isso?
(E quanto à capacidade da oposição e a seu ânimo em usar tais armas… nós também deveríamos lembrar que a oposição inclui alguns desertores. Quem sabe quais habilidades e acesso a armas eles levaram consigo? E nós realmente duvidamos que os extremistas da Al Qaeda, muitos dos quais não são nem mesmo sírios, hesitariam em matar civis em um subúrbio de Damasco?)
Inspetores das Nações Unidas estão de fora?
O sinal mais perigoso das intenções dos Estados Unidos é, provavelmente o apelo ao que os inspetores de armas das Nações Unidas deixem a Síria. Em favor do secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, deve-se lembrar que rejeitou o pedido do governo Obama, e manteve a equipe de inspetores no local, para que fizesse seus trabalho.
Mas às vésperas da guerra no Iraque, 48 horas antes de as aeronaves dos Estados Unidos lançarem seu ataque a Bagdad, George W. Bush pediu ainda mais diretamente o afastamento de inspetores de armas e das equipes humanitárias das Nações Unidas. Em seguida, o secretário-geral Kofi Annan recuou, porque temeu, compreensivelmente, pela vida de seu pessoal. Mas e se aqueles funcionários das Nações Unidas tivessem tido a opção de ficar? Será que o risco de matar dezenas de funcionários internacionais da ONU teria feito os Estados Unidos pararem apenas por um momento, antes de iniciarem os ataques? Talvez tais funcionários tivessem mudado a história. Desta vez, como da outra, a diplomacia, ao invés da ação militar, é a única maneira de permitir que os inspetores das Nações Unidas continuem o trabalho de buscar a verdade.
Vamos ser claros. Qualquer ataque militar norte-americano, mísseis ou qualquer outra coisa, não vai proteger os civis. Significará, mais uma vez, assumir um lado, em uma complicada e sangrenta guerra civil. E a Al Qaeda ficará muito grata.
Desta vez, talvez o governo Obama não esteja prestes a lançar mísseis contra a Síria. Talvez ainda haja tempo para evitá-los. Agora, aqueles que estão arriscando suas vidas em solo para ajudar o povo sírio são os inspetores das Nações Unidas. Se os Estados Unidos estão realmente preocupado com a segurança deles, e reconhecem a legitimidade dos inspetores da ONU, o governo Obama deve imediatamente engajar-se com a liderança de Ban Ki-Moon e com os governos sírio, russo e outros relevantes, para garantir a segurança deles enquanto continuam seus esforços cruciais. Mísseis vindos do oceano tornarão isso impossível. O que é necessário agora é diplomacia dura e não ataques politicamente motivados, que tornarão esta guerra horrível ainda pior.