sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Matamos Amarildo

Quando a plateia vibrou com a cena final de Tropa de Elite, ela autorizou a barbárie. Só não percebeu que a escopeta estava voltada para ela.


Quando a plateia vibrou com a cena final de Tropa de Elite,
ela não percebeu que a escopeta estava voltada para ela



Por Matheus Pichonelli



Quando o Capitão Nascimento, com o coturno na garganta do traficante “Baiano”, entregou a escopeta nas mãos do Soldado Mathias e determinou a execução do bandido com um balaço no rosto, as salas de cinema do Brasil vibraram como torcida em final de campeonato. Como em uma arquibancada, houve quem se levantasse e aplaudisse a cena de pé, algo inusitado para uma sessão de cinema. O Brasil que pedia direitos humanos para humanos direitos estava vingado.
José Padilha precisou praticamente desenhar, em Tropa de Elite 2, que aquela escopeta estava voltada, na verdade, para o rosto da plateia. Mas a plateia, em sua sanha punitiva, parecia incapaz de refletir e entender que a tortura, os sacos plásticos e a justiça por determinação própria eram a condenação, e não a redenção, de um país de tragédias cotidianas. Nos dois filmes, todos estavam de alguma forma envolvidos na criminalidade – corruptos e corruptores, produtores e consumidores, eleitos e eleitores – mas só alguns iam para o saco de tortura. As consequências dessa indignação seletiva estavam subentendidas, mas muitos não as captaram: nas camadas superficiais da opinião pública, o apelo a soluções simples é sempre tentador. (Em uma das cenas do segundo filme, Nascimento é aplaudido de pé ao chegar a um restaurante de bacanas após comandar o massacre em um presídio. Padilha mostrava ali que a que violência denunciada em Tropa de Elite não era só caso de policia, mas uma chaga aberta e diariamente cutucada por quem recorre, no discurso ou na ação, a soluções arbitrárias contra um caos legitimado).
É possível que este mesmo Brasil que transformou em heroi um personagem complexo e vacilante como o Capitão Nascimento, personagem interpretado por Wagner Moura, não tenha sequer franzido a testa, na vida real, pelo sumiço do ajudante de pedreiro Amarido de Souza, de 47 anos. Para quem não sabe, Amarildo desapareceu no dia 14 de julho após ser levado para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Ninguém sabe ninguém viu o que aconteceu desde então (repita-se: em uma unidade PACIFICADORA). Isso porque as câmeras de monitoramento da região, estranhamente, não registraram a movimentação. Segundo um inquérito aberto pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil fluminense (e encaminhado ao Ministério Público do Rio), Amarildo, que era epilético, foi torturado, morto e seu corpo, ocultado. Foram indiciados dez policiais militares lotados à época na UPP, entre eles o ex-comandante da unidade, major Edson dos Santos.
Na Justiça, todos terão direito a se defender, e é bom que assim seja. Direito que o ajudante de pedreiro não chegou a vislumbrar – seu erro fatal, segundo a investigação, foi ter se negado a fornecer informações sobre traficantes do morro, a quem supostamente preparava churrascos. Sua versão da história será sempre um mistério: no método de depoimento informal aplicado supostamente pelos PMs – com direito a choques elétricos, de acordo com o inquérito – a verdade dos fatos é a primeira a morrer sufocada.
Amarildo não foi a primeira e fatalmente não será a última vítima. Nem da violência nem do descaso nem da ignorância. Os aplausos da plateia abobada de Tropa de Elite são reforçados todos os dias, inclusive quando o governador diz: “E daí? Antigamente havia muito mais Amarildos do que hoje”. Tanto Amarildo como o governador não são pontos fora da curva. São uma legião, porque são muitos.
No país das indignações seletivas, a aceitação da tortura é a manifestação inequívoca de um estado de guerra e barbárie permanente no qual a convivência humana é simplesmente inviável. No filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick criou uma alegoria para ilustrar a origem deste estado: quando um grupo de macacos identifica em uma ossada um arsenal de guerra e provoca uma dissidência; com os ossos na mão, passam a agir como base na violência, na coação, na briga pelo território, pelo privilégio, pela dominação de uns pelos outros. É quando os animais se humanizam.
Ao longo dos anos, esta humanidade barbarizada caminhou em direção ao que se chama civilização, em que pese o fato de alguns dos maiores morticínios terem sido praticados nos séculos XX e XXI (a morte por gás sarin não é menos dolorosa que um golpe de machado). Em outros termos, significa que entre um símio e outro há uma regra de conduta, baseada em lei, que impede o uso dessa arma para a imposição da força. Essa lei, em tese, é o que evita o aniquilamento humano. Inevitavelmente, esta cortina frágil é rasgada todos os dias por quem não consegue identificar a humanidade no outro. Voltamos um pouco ao estágio pré-civilizatório toda vez que testemunhamos um crime motivado por ciúmes, por território, por controle, por motivo fútil, por necessidade. Mas, em vez de distribuir ossos e oficializar o aniquilamento, optamos por criar o Estado, a legalidade e armamos a polícia, a detentora do monopólio legítimo da violência. Mais do que ninguém, ela é a força responsável por impedir que os símios espalhados pelo mundo ajam conforme seus instintos – e sejam punidos em casos de infração. Tem as armas para isso.
Quando aplaudimos a tortura policial, no entanto, a mensagem passada aos nossos supostos guardiões é que esta arma pode ser usada como bem entenderem, e não em favor de uma paz possível prevista em lei. É como se a plateia exultante de Tropa de Elite, iguais aos macacos de 2001, dissessem: “danem-se as leis, somos todos neandertais”.
O apelo à tortura como consequência da segurança é, portanto, a confissão e a aceitação de uma incapacidade ancestral. Em vez de segurança, o que ela produz é pânico: aceitamos que a polícia se comporte não como o agente público a nos proteger de símios ensandecidos com ossos na mão, mas exatamente igual aos animais retratados no filme.
Nesses termos, o estado completo de vulnerabilidade está criado. Ontem, mais precisamente em 14 de julho de 2013, foi a vez de Amarildo. Amanhã pode ser eu. Ou você. Enquanto aplaudimos as soluções arbitrárias, que aniquila tanto o bandido como o inocente, é a sorte, e não a lei, o elemento a impedir que um animal armado (fardado ou não) com arma na mão, pelo simples fato de acordar num belo dia de mau humor, coloque nossas cabeças em um saco plástico e nos sufoque até a morte.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Uma potência à beira da insanidade


131001-EUA
Reféns de direita primitiva, EUA paralisam governo, põem em risco ordem financeira que os favorece e expõem gravidade de sua decadência
Por Paul Krugman | Tradução: Antonio Martins
Pode ser que o mundo termine assim – não num big bang, mas num ataque de cólera.
A paralisação parcial do governo norte-americano – que tornou-se inevitável depois que a Câmara decidiu, no domigo, liberar recursos para o governo apenas em condições inaceitáveis – não será o fim do mundo. Mas um calote dos Estados Unidos, que só não ocorrerá se o Congresso elevar rápido o teto de endividamento do Estado, pode causar catástrofe financeira. Infelizmente, muitos republicanos ou não entendem o desastre, ou não se importam com ele.
Tratemos primeiro de Economia. Depois das paralisações do governo em 1995 e 96, muitos observadores concluíram que tais eventos, embora evidentemente ruins, não são catástrofes. Os serviços essenciais continuam e o resultado é um grande incômodo, mas não um dano duradouro. Esta observação ainda é parcialmente verdadeira, porém vale notar que as paralisações da era Clinton ocorreram num cenário de economia efervescente. Hoje, ela está fraca e uma das razões principais é a queda dos gastos governamentais. Uma paralisação equivale a mais um golpe, que pode tornar-se forte se o fenômeno se prolongar.
Ainda assim, uma pralisação do governo parece pouco, se comparada com a possibilidade de o Congresso recusar-se a elevar o teto de endividamento. Primeiro, porque se o teto for atingido, haverá um corte de despesas imediato e gigantesco, que provavelmente jogará os Estados Undios novamente em recessão. Além disso, serão interrompidos os pagamentos da dívida governamental norte-americana. Isso pode ter consequências aterrorizantes.
Por que? Os mercados financeiros tratam os títulos da dívida norte-americana como o ativo mais seguro. A presunção de que os EUA sempre honrarão sua dívida é a viga-mestra que sustenta o sistema financeiro internacional. Em particular, os títulos do Tesouro – obrigações de curto prazo dos EUA – são o que os investidores procuram, quando querem contrapartidas absolutamente sólidas contra perdas em empréstimos. Estes papéis são tão essenciais que, em momentos de estresse severo dos mercados, eles às vezes pagam taxas de juros ligeiramente negativas. Ou seja, são tratados com se fossem melhores que dinheiro vivo.
Suponha que se torne claro que os títulos dos EUA não são seguros; que não se pode ter certeza de que o país honrará sua dívida. Subitamente, todo o sistema estaria rompido. Talvez, com sorte, as instituições financeiras engendrassem juntas arranjos alternativos. Mas parece muito provável que o calote norte-americano criaria uma imensa crise financeira, muito superior ao abalo gerado pela quebra do Lehman Brothers, há cinco anos.
Nenhum sistema político saudável correria este tipo de risco. Mas nosso sistema político deixou de ser saudável. Nele, um número expressivo de republicanos acredita que podem forçar o presidente Obama a cancelar a reforma na Saúde chantageando-o com a paralisação do governo, um calote da dívida ou ambos. E os líderes republicanos que entendem o drama um pouco melhor temem opor-se à ala delirante do partido. Por isso, também são delirantes, tanto na Economia como na Política.
Sobre Economia: os radicais do Partido Republicano rejeitam, em geral, o conceito científico do mudança climática. Muitos rejeitam também a teoria da evolução das espécies. Por que esperar que acreditem nos alertas sobre os perigos do calote? Não irão fazê-lo, com certeza. O Partido Republicano reúne um número significativo de “negadores do calote”, que simplesmente desconhecem os perigos de os EUA deixarem de honrar seus débitos
Quanto à Política, as pessoas razoáveis sabem que Obama não pode e não irá deixar-se chantagear desta forma – e não apenas porque a reforma da saúde é seu legado político principal. É que, se passar a fazer concessões àqueles que ameaçam explodir a economia mundial se não obtiverem o que demandam, Obama poderá ser levado também a rasgar a Constituição. Mas os republicanos fundamentalistas – e mesmo alguns dos líderes do partido – ainda insistem que Obama cederá a suas exigências.
Como tudo isso terminará? Os votos para financiar o governo e elevar o teto da dívida existem e sempre existirão. Todos os democratas na Câmara votariam pelas medidas necessárias para tanto, assim como um número suficiente de republicanos. O problema é que os líderes deste partido, temendo a cólera dos fundamentalistas, não demonstram vontade de mobilizar tais votos. O que poderia levá-los a mudar de ideia?
Por ironia, se levarmos em conta quem nos meteu neste labirinto econômico, a resposta mais plausível é que Wall Street fará o resgate – que o big money dirá aos líderes republicanos que eles precisam acabar com sua postura absurda. Mas, e se nem mesmo os plutocratas conseguirem controlar a direita radical? Neste caso, ou Obama deixará que o calote ocorra, ou encontrará alguma forma de desafiar os chantagistas, trocando uma crise financeira por uma crise constitucional.
Tudo isso parece louco, porque é. Mas a loucura de hoje, em última instância não reside na situação – mas nas mentes dos políticos e de quem os elege. O calote não está em nossas estrelas. Está em nós mesmos.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Indignação....

foto capturada do Ninja Rio

Por Regina Bruno

Ontem à noite (sábado, 28), após arrombar o cadeado da porta central e invadir o salão principal da Câmara Municipal do Rio de Janeiro onde os professores grevistas encontravam-se acampados, a força policial deu início ao ritual de agressões aos manifestantes. Marca registrada de uma polícia que não sabe lidar com mobilizações de rua nem com grupos sociais que reivindicam direitos e ensinam o significado histórico da desobediência civil – condição da construção da cidadania e da recusa à barbárie.
A certa altura um dos policiais se vê face a face com a sua professora. Os dois, atônitos, por um instante se olham e se reconheceram.
- Fulano, sou eu a sua professora! Sou eu! Olhe para mim!
- Professora!
Por um momento ele não sabe o que fazer e o que dizer. Seguir em frente?! Recuar?! Informá-la que “apenas” cumpre ordens?!. Entretanto o empurra-empurra os arrasta e os separa.
A partir daquele instante se desfaz a relação professor-aluno cuidadosamente construída na sala de aula e fora dela. Rompe-se e se esgarça essa intrincada, rica, difícil, bela e cansativa vivência cotidiana voltada para a troca de conhecimentos e de aprendizados que possibilita o cultivar dos afetos. Enfraquece os laços de amizade, “condição para a recusa de servir” como nos ensina Marilena Chauí ao refletir sobre o “Discurso da Servidão Voluntária” de La Boethie. E todos (as) nós também perdemos com isso.
A prática policial dessa noite de sábado registrada na mídia mal se distingue e muito se assemelha à violência policial nos momentos de reintegração de posse junto às ocupações de terra e aos assentamentos de reforma agrária.
Instaura-se, então, a ilegitimidade do dever policial do Estado. Desordeira foi a policia porque violenta em nome da ordem. E isso anula a legalidade de sua prática institucional.
A classe política, por sua vez, acostumada a conviver tão somente com os lobbies de representantes diretos da elite econômica e patronal que circula cotidianamente os corredores do poder sente medo, sente-se acuada quando se adentram na Câmara Municipal a sociedade civil organizada, os professores, o povo.
Igual a Alexis de Toqueville (1805-1859) – aristocrata, normando, pensador e político que em suas “Lembranças de 1848” descobre-se apavorado com o fedor, a feiúra e a sujeira da “ralé” parisiense “invadindo” o Parlamento Frances – os políticos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro têm medo dos professores acampados. Tem medo da velha senhora irreverentemente sentada. Tem medo da jovem professora dependurada na amurada de madeira. Têm medo de suas reivindicações e, sobretudo, do modo como professores e professoras se constituem em identidades políticas e em movimentos sociais.
As reivindicações dos professores e professoras em greve são justas, são legais, são legítimas. Injusta é a Prefeitura do Rio de Janeiro. Injustas são as instituições públicas responsáveis pela educação no estado e no país. Injustas e imorais.
Que venham os sacis-pererês.
Que venham os homens-aranhas.
Que venham todo(as).

Regina Angela Landim Bruno é professora associada do I do Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/DDAS/UFRRJ).


O vídeo abaixo, mostra a forma truculenta que o Estado do Rio trata os professores.