sábado, 2 de junho de 2012

“Deem uma chance a Karl Marx!”




Consultor especial do maior banco suíço defende interpretações marxistas sobre a crise e propõe reversão completa das políticas de “austeridade”
Por George Magnus | Tradução: Daniela Frabasile Cauê Seigner Ameni
Os dirigentes políticos que lutam para compreender o avalanche de pânico financeiro, os protestos e outros fatos que afligem o mundo deveriam estudar a obra de um economista morto há muito tempo: Karl Marx. Quem reconhecer estamos frente a uma das grandes crises do capitalismo, estará mais preparado para examinar seus detalhes e buscar as saídas.
O espírito de Marx, que está enterrado em um cemitério perto de onde viveu, no norte de Londres, levantou-se da tumba devido à crise financeira e à recessão econômica posterior. A profunda análise do filósofo com mais conhecimentos sobre o capitalismo tem diversos defeitos, mas a economia global de hoje apresenta muitas misteriosas semelhanças com as condições previstas por ele.
Consideremos, por exemplo, a predição de Marx, de que o conflito inerente entre o capital e o trabalho se manifestaria de modo aberto. Como escreveu em O Capital, a busca das empresas pelo lucro e pela produtividade diminui naturalmente a necessidade de trabalhadores, o que leva à criação de um “exército industrial de reserva” de pobres e desempregados: “o acúmulo da riqueza em um polo é, portanto, ao mesmo tempo um acúmulo de miséria”.
O processo que Marx descreve é visível em todo o mundo desenvolvido, particularmente nos esforços das companhias norte-americanas para reduzir custos e evitar a contratação no país. A parcela da produção econômica apropriada pelas empresas, na forma de lucros corporativos, chegou ao nível mais alto em seis décadas. Enquanto isso, a taxa de desemprego subiu para 9,1% e os salários reais estão estagnados.
A desigualdade de renda nos Estados Unidos chegou, por sua vez, a seu nível mais alto desde a década de 1920. Antes de 2008, a disparidade de renda foi obscurecida por fatores como o crédito fácil, que permitiu às famílias pobres desfrutar de um estilo de vida similar ao dos mais ricos. Agora, muitos já não têm uma casa para voltar e descansar.
O paradoxo do excesso de produção
Marx também apontou o paradoxo de um excesso de produção e de baixo consumo: quanto mais trabalhadores permaneçam relegados à pobreza, menos serão capazes de consumir todos os bens e serviços que as empresas produzem. Quando uma empresa reduz os custos para aumentar o lucro, está sendo esperta; mas quando todas as empresas fazem isso ao mesmo tempo, minam a distribuição da renda e a demanda efetiva dos que dependem dos salários.
Este problema também é evidente no mundo desenvolvido de hoje. Temos uma capacidade substancial de produção. Porém, nas classes de baixa e média renda, encontramos uma insegurança financeira generalizada e baixas taxas de consumo. O resultado é visível nos Estados Unidos, onde a construção de novas habitações e as vendas de automóveis permanecem cerca de 75% e 30% abaixo de seus picos de 2006, respectivamente. Como dizia Marx em O Capital: “a razão última de todas as crises reais ainda é a pobreza e o consumo restrito das massas”

Diante da crise
Como enfrentar esta crise? Para colocar o espírito de Marx em ação, os dirigentes políticos devem ter como prioridade a criação de postos de trabalho, e considerar outras medidas pouco ortodoxas. A crise não é temporária, e certamente não vai se curar pela paixão ideológica dos governos pela austeridade.
Eis existem cinco eixos principais de uma estratégia cujo tempo, infelizmente, ainda não chegou.
Em primeiro lugar, temos que sustentar o consumo e o crescimento da renda. Do contrário, cairemos em uma armadilha da dívida, com graves consequências sociais. Os governos que enfrentam uma crise iminente da dívida – incluindo Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido – deveriam fazer da criação de empregos uma prioridade política. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego está tão alta quanto na década de 1980. Os índices de subemprego encontram-se, em quase toda parte, em patamares não vistos antes. Redução de impostos pagos pelo empregador e a criação de incentivos fiscais para encorajar as empresas a investir e a contratar mais pessoal seriam um bom começo.

Aliviar a carga
Em segundo lugar, para aliviar a carda da divida das familiasas novas medidas devem permitir restruturar sua divida hipotecária, ou criar alguns mecanismos de adiamento dos débitos
Em terceiro lugar, para melhorar a funcionalidade do sistema de crédito, os bancos bem capitalizados e estruturados devem permitir que o capital flua, para as pequenas empresas. Os governos e bancos centrais poderiam participar no gasto direto ou financiamento indireto dos investimentos em programas de infraestrutura.
Em quarto lugar, para aliviar a carga da dívida dos países na zona euro, os credores europeus devem ampliar a redução da dívida da Grécia, e oferecer-lhe prazos de pagamento mais largos que os propostos recentemente. Se os eurobônus forem uma ponte longe demais, a Alemanha deve defender uma recapitalização urgente dos bancos, para ajudar a absorver as perdas inevitáveis através de um Fundo Europeu de Estabilidade Financeira muito ampliado. É uma condição sine qua non para resolver a crise do mercado de bônus lançados pelos Estados, pelo menos

Construção de defesas
Em quinto lugar, para construir defesas contra o risco de cairmos na deflação e na estagnação, os bancos centrais deveriam olhar mais além dos programas de compra de títulos, e buscar, ao invés disso, um ritmo real de crescimento da produção econômica. Isso levaria a enfrentar, por certo período, uma inflação moderadamente alta, que poderia reduzir as taxas reais de juros a muito abaixo de zero e facilitar uma redução da carga da dívida.
Não podemos saber os detalhes de como estas propostas poderiam funcionar, ou quais podem ser suas consequências. Porém, a política que sustenta o status quo é muito menos aceitável. Pode ser que os Estados Unidos vivam dificuldades mais graves que as do Japão, nos anos 1990, e que a fratura da zona do euro tenha inesperadas consequências políticas. Em 2013, a crise do capitalismo ocidental poderia facilmente estender-se à China, mas isso é outra história.
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George Magnus foi (1997-2004) economista-chefe da União de Bancos Suíços (UBS) e é, desde então, consultor senior desse banco


sexta-feira, 1 de junho de 2012

Sexta Carta às Esquerdas



Historicamente, as esquerdas dividiram-se sobre os modelos de socialismo e as vias para os realizar. Não estando o socialismo, por agora, na agenda política — mesmo na América Latina a discussão sobre o socialismo do século XXI perde fôlego — as esquerdas parecem dividir-se sobre os modelos de capitalismo. À primeira vista, esta divisão faz pouco sentido pois, por um lado, há neste momento um modelo global de capitalismo, de longe hegemónico, dominado pela lógica do capital financeiro, assente na busca do máximo lucro no mais curto espaço de tempo, quaisquer que sejam os custos sociais ou o grau de destruição da natureza. Por outro lado, a disputa por modelos de capitalismo deveria ser mais uma disputa entre as direitas do que entre as esquerdas. 

De fato, assim não é. Apesar da sua globalidade, o modelo de capitalismo agora dominante assume características distintas em diferentes países e regiões do mundo e as esquerdas têm um interesse vital em discuti-las, não só porque estão em causa as condições de vida, aqui e agora, das classes populares que são o suporte político das esquerdas, como também porque a luta por horizontes pós-capitalistas — de que algumas esquerdas ainda não desistiram, e bem — dependerá muito do capitalismo real de que se partir.

Sendo global o capitalismo, a análise dos diferentes contextos deve ter em mente que eles, apesar das suas diferenças, são parte do mesmo texto. Assim sendo, é perturbadora a disjunção atual entre as esquerdas europeias e as esquerdas de outros continentes, nomeadamente as esquerdas latino-americanas. Enquanto as esquerdas europeias parecem estar de acordo em que o crescimento é a solução para todos os males da Europa, as esquerdas latino-americanas estão profundamente divididas sobre o crescimento e o modelo de desenvolvimento em que este assenta. 

Vejamos o contraste. As esquerdas europeias parecem ter descoberto que a aposta no crescimento econômico é o que as distingue das direitas, apostadas na consolidação orçamental e na austeridade. O crescimento significa emprego e este, a melhoria das condições de vida das maiorias. 

Não problematizar o crescimento implica a ideia de que qualquer crescimento é bom. É uma ideia suicida para as esquerdas. Por um lado, as direitas facilmente a aceitam (como já estão a aceitar, por estarem convencidas de que será o seu tipo de crescimento a prevalecer). Por outro lado, significa um retrocesso histórico grave em relação aos avanços das lutas ecológicas das últimas décadas, em que algumas esquerdas tiveram um papel determinante. Ou seja, omite-se que o modelo de crescimento dominante é insustentável. Em pleno período preparatório da Conferência da ONU Rio+20, não se fala de sustentabilidade, não se questiona o conceito de economia verde mesmo que, para além da cor das notas de dólar, seja difícil imaginar um capitalismo verde.

Em contraste, na América Latina as esquerdas estão polarizadas como nunca sobre o modelo de crescimento e de desenvolvimento. A voracidade da China, o consumo digital sedento de metais raros e a especulação financeira sobre a terra, as matérias-primas e os bens alimentares estão a provocar uma corrida sem precedentes aos recursos naturais: exploração mineira de larga escala e a céu aberto, exploração petrolífera, expansão da fronteira agrícola. O crescimento econômico que esta corrida propicia choca com o aumento exponencial da dívida sócio-ambiental: apropriação e contaminação da água, expulsão de muitos milhares de camponeses pobres e de povos indígenas das suas terras ancestrais, desflorestação, destruição da biodiversidade, ruina de modos de vida e de economias que até agora garantiram a sustentabilidade. 

Confrontadas com esta contradição, uma parte das esquerdas opta pela oportunidade extrativista desde que os rendimentos que ela gera sejam canalizados para reduzir a pobreza e construir infraestruturas. A outra parte vê no novo extrativismo a fase mais recente da condenação colonial da América Latina a ser exportadora de natureza para os centros imperiais que saqueiam as imensas riquezas e destroem os modos de vida e as culturas dos povos. A confrontação é tão intensa que põe em causa a estabilidade política de países como a Bolívia ou o Equador. 

O contraste entre as esquerdas europeias e latino-americanas reside em que só as primeiras subscreveram incondicionalmente o “pacto colonial” segundo o qual os avanços do capitalismo valem por si, mesmo que tenham sido (e continuem a ser) obtidos à custa da opressão colonial dos povos extraeuropeus. Nada de novo na frente ocidental enquanto for possível fazer o outsourcing da miséria humana e da destruição da natureza.

Para superar este contraste e iniciar a construção de alianças transcontinentais seriam necessárias duas condições. As esquerdas europeias deveriam pôr em causa o consenso do crescimento que, ou é falso, ou significa uma cumplicidade repugnante com uma demasiado longa injustiça histórica. Deveriam discutir a questão da insustentabilidade, pôr em causa o mito do crescimento infinito e a ideia da inesgotável disponibilidade da natureza em que assenta, assumir que os crescentes custos sócio-ambientais do capitalismo não são superáveis com imaginárias economias verdes, defender que a prosperidade e a felicidade da sociedade depende menos do crescimento do que da justiça social e da racionalidade ambiental, ter a coragem de afirmar que a luta pela redução da pobreza é uma burla para disfarçar a luta que não se quer travar contra a concentração da riqueza.

Por sua vez, as esquerdas latino-americanas deveriam discutir as antinomias entre o curto e o longo prazo, ter em mente que o futuro das rendas diferenciais geradas atualmente pela exploração dos recursos naturais está nas mãos de umas poucas empresas multinacionais e que, no final deste ciclo extrativista, os países podem estar mais pobres e dependentes do que nunca, reconhecer que o nacionalismo extrativista garante ao Estado receitas que podem ter uma importante utilidade social se, em parte pelo menos, forem utilizadas para financiar uma política da transição, que deve começar desde já, do extrativismo predador para uma economia plural em que o extrativismo só seja útil na medida em que for indispensável.

As condições para políticas de convergência global são exigentes mas não são impossíveis e apontam para opções que não devem ser descartadas sob pretexto de serem políticas do impossível. A questão não está em ter de optar pela política do possível contra a política do impossível. Está em saber estar sempre no lado esquerdo do possível.



Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).




Fonte: Carta Maior

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Rio + 20 pra quem?




O grande capital ocupa os espaços e debate, a partir de sua lógica, os temas ambientais e ao fazê-lo submete-os aos seus interesses

29/05/2012

José Roberto Cabrera e João Zinclar

Muito se tem falado sobre a Rio+20 que se realizará em junho. São articulações envolvendo membros dos governos, empresas de grosso calibre aproveitando- se do evento para promover seu marketing responsável e sustentável, são um sem-número de ativistas, intelectuais e cientistas se posicionando diante das perspectivas do encontro junino. Mas até agora, poucos apontam para o cerne do problema. A ONU, desde 1972, busca colocar na pauta dos governos o debate acerca das condições do planeta. A Eco-92 foi um momento importante nessa caminhada. Dalí se estabeleceram princípios e metas, as quais deveriam ter sido objeto de reflexão e ação daqueles que se comprometiam com os objetivos do Encontro que completa 20 anos. Nesse período, um conjunto de outras iniciativas pipocou pelo planeta, mas quase nada de concreto se fez. Deixando de pensar nas expectativas para falar da realidade, o modelo da ONU não pode ir além. Ou seja, nada. A lógica da articulação das Nações Unidas é criar uma estrutura de governança global que, a partir da criação de consensos se estabeleçam metas que os Estados nacionais possam implementar.
Formalmente os governantes até assumem responsabilidades e se declaram comprometidos com causas relacionadas à sustentabilidade, à preservação dos recursos naturais, das florestas, da água, da superação da pobreza, enfim, com um conjunto de temas que são consensuais em sua generalidade. Ninguém, nem mesmo os barões do agronegócio e os ícones do pensamento conservador e reacionário no Brasil é capaz de formular teses explicitamente contrárias às florestas e aos povos indígenas. No entanto, em cada país as metas são negociadas com o capital privado local, que impõe suas exigências e submete todos os acordos, transformando-os em letra morta. Infelizmente, nossos exemplos somente forçam essa tendência: são os megaprojetos, que atendem aos interesses do grande capital, avançando sobre os direitos das populações na cidade e no campo; é a sanha do agronegócio que impõe suas condições predatórias sobre a terra, mercantilizando tudo e todos; são os mais de R$ 60 bilhões em renúncias fiscais que o capital privado arranca dos cofres públicos em nome da manutenção do emprego etc. Da questão central pouco se trata. É possível falar em preservação das condições de vida no planeta sob o modelo econômico vigente? Sustentabilidade é um conceito aplicável sob o capitalismo? É sustentável construir um consenso no meio de tantos conflitos e interesses de classes?
Os grupos ambientalistas têm capacidade de intervir e alterar a situação sem uma ampla mobilização popular e sem construir um diálogo com os movimentos sociais? As lutas dos trabalhadores e suas organizações podem continuar ignorando os vínculos entre a luta ambiental e as lutas de classes? O grande capital ocupa os espaços e debate, a partir de sua lógica, os temas ambientais e ao fazê-lo submete-os aos seus interesses. Utiliza-se das mais variadas estratégias para segmentar mercados, oferecendo produtos responsáveis, que causam menos impactos ambientais, divide as responsabilidades ao tratar o indivíduo como co-responsável pela degradação ambiental, negociam créditos de carbono em bolsas, vendem seus logos e mantém suas marcas convenientemente distantes das cadeias agressivas. Criam agora uma nova era, a da economia verde, onde o capital privado assume responsabilidades pelos bens da natureza que passariam a ter um preço, transitando de bens comuns para bens privados, dependentes da lógica privada do lucro. É o fechamento do ciclo iniciado com os cercamentos dos campos comuns na Inglaterra nos séculos 16/17 estendendo-o em escala global. Os críticos do atual estado de coisas têm poucas opções de ação no interior da Rio+20. Ainda que exista alguma possibilidade de diálogo, ele está morto de nascença já que o Zero Draft, que é o documento proposto para o debate, condensa essa visão corporativa do problema ambiental.
A Cúpula dos Povos que será realizada em paralelo à Rio+20 reunirá a percepção dos movimentos sociais, dos trabalhadores, dos povos originários, enfim, daqueles que são os mais atingidos pelas mudanças climáticas e pelos processos de destruição em curso. O desafio maior é a articulação entre a crítica e a ação, permitindo a inclusão das pautas ambientais no cotidiano dos movimentos sociais. A superação do economicismo e do corporativismo das pautas sindicais e do ambientalismo sem perspectiva popular pode representar uma nova etapa nas lutas sociais, capacitando-os para o enfrentamento com o capital nessa nova fase. Embora a reunião paralela possa ter uma importância estratégica, o desafio é tornar tal articulação uma agenda concreta de ação, onde as lutas locais permitam a criação de uma sintonia entre os vários movimentos sociais e, ao mesmo tempo, construam alternativas ao capitalismo de qualquer cor, que resgate os bens-comuns, turbine a luta classista dos trabalhadores, promova a defesa dos direitos humanos, dos povos originários, dos biomas e das condições da vida como a conhecemos. Esse talvez seja um bom começo.


José Roberto Cabrera é diretor do Sindicato dos Professores (Sinpro) Campinas.João Zinclar é repórter fotográfico

terça-feira, 29 de maio de 2012

Um ideal neoliberal: o “Homo Economicus”


Por Vaz de Carvalho

Os filósofos representaram como um Ideal - o "Homem" – indivíduos que não se veem subordinados à divisão do trabalho (...) Deste modo se concebe este processo como um processo de alienação do "Homem" (Marx – A Ideologia Alemã). (1)

1 – Sem consciência do bem e do mal
O mundo perfeito do neoliberalismo – a que a social-democracia se submete, para além da retórica de ocasião - é formado por indivíduos perfeitamente livres, perfeitamente racionais, orientados pelas suas escolhas económicas. Trata-se do designado “homo economicus”. Que visão do mundo é que nos propõem? Seres humanos que se guiam e são guiados apenas por considerações económicas. Neste sistema, o lucro capitalista-financeiro sobrepõe-se a quaisquer outras considerações, os sacrifícios das pessoas não são tidos em conta, o desemprego, não é um acidente: é uma forma de gestão. (2) As “reformas estruturais” – eufemismo para iludir os incautos – postas em prática pelo governo e reclamadas pela “troika” – e apoiantes - são bem a confirmação do que dizemos.
“O direito ao trabalho e a proteção do ambiente tornaram-se excessivos na maior parte dos países desenvolvidos. O comércio livre vai reprimir alguns destes excessos, obrigando cada um a tornar-se competitivo” declara o Prémio Nobel, Gary Becker, pai de uma “economia generalizada”, segundo a qual toda alógica social é redutível a uma pura racionalidade económica” (2) Este “puro” faria sorrir não fosse a tragédia dos que sofrem as dramáticas consequências desta “racionalidade”, que se traduz em desemprego, pobreza e fome que alastram pelos países onde é aplicada.
Mas acerca da concorrência vale a pena recordar Marx e Engels: “A concorrência isola os indivíduos, não apenas os burgueses mas mais ainda os proletários enfrentando-se uns aos outros, apesar do que os une.” (3), O proletariado liberta-se suprimindo a concorrência (4)
Bem se pode dizer que o “homo economicus” é o grau zero do pensamento, um “Homem” imaginado sem História, sem sociologia, sem psicologia que não a das escolhas do mercado, sem ideias nem ideologia, passivamente explorado pela oligarquia triunfante eis, pois, o ideal “democrático” do neoliberalismo. Não admira que nos governos, tecnocratas adeptos destes preconceitos ocupem ministérios fundamentais. Neste sentido a sua mais brilhante argumentação – não parece disporem de mais – é classificarem de “ideologia” as críticas mais pertinentes. No fascismo era-se perseguido por ter ou fazer “política”, no neoliberalismo é-se marginalizado por ter “ideologia”.
Quando não há princípios tudo se pode equivaler, sendo que o equivalente universal é o dinheiro. O “homo economicus” a que querem reduzir a humanidade, parece-se com o protagonista de “O Estrangeiro” de Albert Camus, sem consciência do bem e do mal. Uma humanidade seguindo raciocínios que se traduzem em fórmulas matemáticas, que ora nos dizem ser simples e evidentes, ora nos apresentam inextrincavelmente complexas. Um mundo em que a irresponsabilidade moral dos indivíduos e da sociedade está coberta pela acção do mercado. Mas será só isto a vida? Não haverá nada para além deste modelo artificial com o qual querem construir uma hipotética realidade que seria perfeita quando abandonássemos toda a dimensão do humanismo?
Claro que não são negados valores, pelo contrário, são proclamados e lamenta-se a sua falta. Porém, não vão além de piedosos votos religiosos, de superstições diversas, de ilusória boa consciência dos voluntariados, de caridade, que serve para mascarar as crescentes injustiças e a desagregação social.
Na realidade, independentemente de toda a retórica “personalista” o “homo economicus” é forçosamente conformista. O objetivo do neoliberalismo é produzir seres humanos à medida de interesses assumidamente privados das transnacionais e da finança especuladora, para daí deduzir e aplicar os seus dogmas.


2 – A corrupção moral
A racionalidade neoliberal é evidente na corrupção moral da oligarquia. Gary Smith, um ex-executivo da Goldman Sachs expressa-o claramente: “o objetivo dos banqueiros de todo o mundo é maximizar o seu ganho independentemente das consequências para os outros (5)
Os paraísos fiscais são a expressão funcional desta corrupção. Enquanto os povos são sujeitos a sacrifícios apenas comparáveis aos tempos de guerra e de ditadura, o grande capital circula em livre simbiose com a fraude e o dinheiro sujo repleto de horrores das “máfias”. É hoje praticamente impossível distingui-los.
Nesta UE a racionalidade competitiva tem sentidos opostos conforme o poder de mercado de cada um. O povo trabalhador é sujeito a mais impostos e à perda de direitos laborais e sociais: são os “ajustamentos estruturais” e a austeridade; para os oligarcas da banca e mono ou oligopólios são oferecidos resgates financeiros (os “bailouts”) e paraísos fiscais onde praticamente sem impostos colocam “livremente” o resultado das fraudes e da exploração acrescida a que as camadas trabalhadoras estão sujeitas. As deslocalizações de empresas e ativos financeiros são um exemplo da corrupção de moral social de que o grande capital está possuído. A simples exigência de contribuírem com mais algumas migalhas de impostos em países sufocados por iníquas austeridades torna “os mercados traumatizados”, na expressão de um dos seus epígonos, perante o ar reverente do sr. entrevistador.
Na base de tudo isto estão três dogmas, afinal, atratores do capitalismo (6)
“- A obrigação moral de cada indivíduo para com a sociedade é alcançada maximizando o ganho pessoal
- Dinheiro é riqueza e ganhar dinheiro aumenta a riqueza da sociedade
- Ganhar dinheiro é o objetivo da iniciativa individual e a medida adequada da prosperidade e desempenho económico.” (5)
Como é que chegamos aqui? Negando que existam classes, camadas sociais, originadas pelas contradições não resolvidas, antagónicas, do capitalismo. Na prática, impõe-se um modelo no qual só há indivíduos isolados, separados uns dos outros, cuja ligação é estabelecida pelas leis do mercado. Ou seja, cada indivíduo guia-se pelo seu máximo interesse, isto é, pelo seu egoísmo. Porém, as escolhas da sociedade não podem guiar-se apenas pelos interesses individuais, ou seja, pelo seu egoísmo, numa sociedade que justamente o amplia, justificando assim uma hipotética eficiência na utilização dos recursos existentes, porém apenas no interesse da minoria dominante. A depredação dos recursos naturais e do ambiente representa a mais completa negação desta pseudo eficiência, na realidade corrupção moral.
Foi aqui que chegamos por se sobrepor o egoísmo individual às necessidades colectivas, com justificações apoiadas em abstracções matemáticas. A questão verdadeiramente importante não consiste em saber se as descrições causais podem ser expressas numa fórmula matemática precisa, mas em saber se a fonte do nosso conhecimento são as leis objetivas da Natureza ou proposições da nossa mente. (7)
A questão que se pode colocar é: como é que teses tão absurdas, frouxas sob qualquer perspectiva teórica, que os factos negam de forma evidente, fez escola, governa e submete os povos, com o apoio explícito da social-democracia.
Porém, por incrível, o absurdo faz por vezes história na História. No século XVII, o bispo Bossuet construiu uma tese demonstrando o direito divino dos reis. Era o que o absolutismo monárquico e em primeiro lugar Luis XIV desejava ouvir, a quem a obra foi dedicada. Quando, depois de Erasmo, os mais eminentes pensadores, como Espinosa, Hobbes, e outros - desfaziam os preconceitos e as superstições de um passado obscurantista e feudal, Bossuet, reformulava dogmas medievais. O direito divino dos reis, então outorgado pelo Papa, passava a ser recebido directamente de Deus, para governar os povos. Onde está direito divino leia-se hoje “os mercados”. Em ambos os casos, na prática, foi uma forma de aprofundar a arbitrariedade dos poderosos.


3 – O egoísmo como lei fundamental.
A economia neoliberal trouxe de volta o egoísmo individual e o mercado “livre” como lei fundamental das sociedades e princípio do máximo benefício para todos. O capital querendo libertar-se de todas as determinações que não favoreçam a maximização do lucro inventou um “homo economicus”.
A promoção do egoísmo é feita ao pretender reduzir a sociedade a uma soma de indivíduos, é como se a sociologia fosse uma simples aritmética. O curioso é que se vende este cúmulo de egoísmos, esta irracionalidade, como a suprema racionalidade.
Em cada passo deste contexto concepções voluntaristas substituem a análise dialéctica. Em termos sociológicos procura-se transformar as pessoas de cidadãos em – apenas - consumidores, autómatos programáveis de acordo com a maior vantagem para os mono e oligopólios. Tudo entrou no campo da mercadoria, assim a generalidade das pessoas para serem consumidoras são em primeiro lugar mercadorias como trabalhadores. A liberdade que se promove é, pois, a de consumir – se puder.
Os que detêm maior poder de mercado determinam as escolhas, ou pelo menos os seus contextos. São eles os donos do casino em que se tornou a economia, os outros jogam com as suas fichas e eles ganham sempre. Na realidade, a escolha de base já está feita: o máximo lucro do grande capital acima de tudo.
O livre arbítrio morreu há muito, mas é ressuscitado nos padrões do “homo economicus” para camuflar a alienação e a manipulação. As tese liberais de que cada indivíduo conhece melhor o que lhe convém faz por ignorar quais os critérios e contextos em que esse conhecimento se aplica. As pessoas agem no seu círculo de circunstâncias com graus de liberdade muito diferentes conforme a situação económica e, claro, também psicológica. Que espécie de liberdade existe, isto é, capacidade de autodeterminação, numa sociedade cujo funcionamento repousa em padrões de desemprego, precariedade e dita “flexibilidade” laboral? Note-se que os seus mentores consideram um desemprego de 3 ou 4%, “anormalmente baixo”…O desemprego nesta ideologia, para além das ditas “preocupações” de governantes que fazem tudo o que podem para o facilitar, não é um acidente, é como dissemos: uma forma de gestão.
Com o sofisma do “homo economicus” procura-se destruir as defesas sociais dos indivíduos criando-lhes novas necessidades: necessidades não satisfeitas, a todos os níveis. Desperta-se, em particular nos jovens, a exaltação de desejos, compulsões de origem psicológica desenvolvendo automatismos de procura de autosatisfação. Procura-se cristalizar na sua imaginação que tudo o que lhes é proposto apareça como belo e excitante. Quanto mais deprimido estiver, e a vida real gera a depressão pela insegurança fruto da amoralidade economicista, mais facilmente a pessoa assume essas acções de alienação. E aqui reside a libertação que o sistema lhe proporciona, não mais, e que vale apenas o dinheiro de que dispuser.




4 – Que racionalidade?
O axioma da racionalidade liberal foi definido por Marx quando expôs o que representava para a burguesia o consumidor racional: “Abaixamento do salário e longas horas de trabalho – é este o núcleo do comportamento racional e saudável do operário” (8)
Para suportar as suas teses o neoliberalismo inventa o tal “homo economicus, considerando que todas as motivações são conscientes e racionais. Faz por ignorar que a tomada de consciência é apenas a fase última do processo psíquico, condicionado por estímulos exteriores, que em muitos casos levam os indivíduos menos preparados ao consumo de objectos inúteis e de substâncias prejudiciais à saúde física ou mental e daí à frustração, aos comportamentos irracionais, ao desespero, à insanidade, à dependência e inclusive à marginalidade.
Para as escolhas, serem racionais e eficientes, deveria haver uma lista exaustiva dos estados futuros a que poderia conduzir cada uma das suas escolhas. Só que nesta economia não há futuro, é uma teoria sem tempo, ou melhor, cujo horizonte de tempo é uma derivada do presente, isto é, uma variação infinitesimal do presente numa função supostamente continua. Uma teoria que já mostrou não saber lidar com uma variável fundamental: a incerteza do futuro. Daqui que estes especialistas mostrem a sua competência quando tentam explicar por que erraram nas suas previsões ou se confessem “surpreendidos” com as nefastas consequências das suas políticas.
A racionalidade e a eficiência das escolhas têm sido experimentalmente postas em causa quando intervém a avaliação de probabilidades, em situações incerteza e de ambiguidade. Na economia, a complexidade das variáveis e sua evolução no tempo mostram que escolhas puramente racionais não podem ser tomadas individualmente. Estas escolhas estão desde logo condicionadas pelos interesses que dominam o ambiente social, sejam “os mercados”, seja a condução política. A racionalidade individual perde-se se aqueles interesses agirem em sentido contrário ao social, isto é, ao de cada vez maiores camadas da população.
A ilusão do “homo economicus”, vendida ao público como princípio de equidade moral e eficiência económica, serve apenas de álibi para a fraude, a corrupção e a especulação que lhe está associada. Trata-se da falácia da “Nova Economia”, que não passa da economia do desemprego e do empobrecimento das camadas trabalhadoras. As teses associadas ao “homo economicus” fazem parte do mecanismo de alienação necessário ao totalitarismo neoliberal.
A democracia só pode ser efectiva se consagrada por homens e mulheres livres, entenda-se com direitos sociais garantidos, sem existências precárias e não vivendo ao nível de uma incerta subsistência.
Perante o “homo economicus” amoral e unidimensional do neoliberalismo é necessário afirmar com Bento Jesus Caraça “a cultura integral do indivíduo” libertadora e revolucionária, pois, como afirma: “No seio das sociedades humanas manifestam-se dois princípios contrários, o individual e o colectivo, de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades em que o primeiro princípio – o individual – chegado a um elevado grau de desenvolvimento se absorverá no segundo.”
E estas palavras que podem até parecer estranhas à luz da dominante atual, exprimem afinal o conteúdo dos mais elevados momentos da Humanidade.



1 - Carl Marx – A Ideologia Alemã – Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.76 – Ed. Progresso Moscovo - 1972
2 - A Ilusão Neoliberal – René Passet – Ed. Terramar – 2002 - p.109
3 - Carl Marx – A Ideologia Alemã – Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.62– Ed. Progresso Moscovo - 1972
4 – F. Engels - Princípios do Comunismo - Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.85 – Ed. Progresso Moscovo – 1972
5 - When Bankers Rule the World - By David Korten – www.informationclearinghouse - April 03, 2012
6- Um “atractor” pode ser definido como o conjunto de comportamentos característicos para o qual evoluiu um sistema dinâmico independentemente do ponto de partida.
7 – “A questão verdadeiramente importante da não consiste em saber qual o grau de precisão que alcançaram as nossas descrições das conexões causais e em saber se estas podem ser expressas numa fórmula matemática precisa - mas em saber se a fonte do nosso conhecimento dessas conexões são as leis objetivas da Natureza ou as propriedades da nossa mente, a faculdade que lhe é inerente de conhecer determinadas verdades apriorísticas, etc.” - V. I. Lenine – Materialismo e Empiriocriticismo – citado em “Sobre Lenine e a Filosofia” - J. Barata Moura – Ed. Avante 2010 – p.139.
8 - O Capital - Livro Segundo - Tomo V – Ed. Avante - p.550.
Dado que algumas pessoas ficam muito confusas ou perturbadas com o termo burguesia, esclareça-se que Marx e Engels distinguiram desde logo entre a burguesia e o pequeno empresariado. Os primeiros constituindo a “classe dos capitalistas modernos”, isto é “a indústria moderna que transformou a pequena oficina do mestre na grande fábrica do capitalista industrial” (Manifesto).



Fonte: Diário da Liberdade

segunda-feira, 28 de maio de 2012

"Para quando falarmos das guerras" por Alípio Freire




Para quando falarmos das guerras


Para quando falarmos das guerras
Quando falarmos das guerras
sejamos contidos
A simples emoção só ampliará os conflitos.

Quando falarmos das guerras
baixemos o tom
milhões de filhos de trabalhadores e do povo morrem nas trincheiras
por causas que não são suas.

Quando falarmos das guerras
falemos com recato
Para não acordarmos os meninos que dormem
nas frentes de batalha.

Respeitemos seu último sono.
Quando falarmos das guerras
falemos com todo respeito
Para transformamos o desespero de mães, viúvas e órfãos
em gritos de paz.

Quando falarmos das guerras
não esqueçamos que o inimigo é a guerra
Os nossos únicos companheiros
são os povos.

Quando falarmos das guerras
falemos da igualdade entre os homens
Comecemos por apagar as fronteiras nacionais.
Quando falarmos das guerras
Lembremos que o inimigo alimenta os dois lados
É o capital.

Quando falarmos das guerras
Lembremos que só há uma trincheira legítima
A de nos negarmos a combater.

Quando falarmos das guerras
saquemos nossa melhor arma
A bandeira da paz e do socialismo.

Falar das guerras é o avesso
de falarmos da Revolução
Embora nossos companheiros e palavras-de-ordem
sejam sempre os mesmos.


Alípio Freire

domingo, 27 de maio de 2012

Código Florestal: o discurso vazio dos ruralistas


Números do IBGE atestam: para preservar natureza ampliando produção agropecuária, basta combater mau-uso da terra e apoiar pequeno produtor

O drama do Código Florestal mexe frequentemente mais com o fígado do que com a cabeça, e vale a pena examinar alguns dados básicos. Nada melhor do que ir à fonte primária dos dados, que têm origem essencialmente no Censo Agropecuário do IBGE.
A superfície do Brasil, como todos aprendemos na escola, é de cerca de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Em hectares, isto representa 850 milhões. Desta superfície total, descontando a Amazônia distante, regiões demasiado secas do Nordeste ou alagadas do Pantanal, temos uma parte apenas em estabelecimentos agrícolas, representando um total de 334 milhões de hectares. Descontando as áreas paradas dos estabelecimentos agrícolas, temos 225 milhões de hectares de terras classificadas como “em uso”.
Muito interessante ver o que está contido neste “em uso”. Basicamente, temos, como atividade relativamente intensiva, a lavoura temporária, que ocupa 48 milhões de hectares, e a lavoura permanente que ocupa 12 milhões. Incluindo matas plantadas, que ocupam 5 milhões, temos um total de 65 milhões de hectares dedicados à lavoura, sobre um uso total de 225 milhões. O que acontece com os 160 milhões restantes? Trata-se de pasto, natural ou melhorado, mas consistindo essencialmente no que se chama de pecuária extensiva. Ocupa 71% do solo agrícola em uso. Quase duas vezes e meio a superfície da França.
A tabela abaixo mostra as proporções de uso do solo nas últimas décadas [1].
No documento do Censo Agropecuário de 2006, publicado em 2009, encontramos os dados complementares seguintes [2]. Primeiro, a pecuária ocupa o solo de maneira pouco produtiva ao extremo: “A taxa de lotação em 1996 era de 0,86 animais/ha e foi de 1,08 animais/ha em 2006”. (p.8) Disto resulta que a atividade que ocupa 71% do solo em uso do país participe com apenas 10% do valor da produção agropecuária. (p.2) Trata-se de uma gigantesca subutilização do solo agrícola já desmatado.
O Censo também mostra que, entre 1996 e 2006, “houve uma redução de 12,1 milhões de hectares (-11%) nas áreas com matas e florestas contidas em estabelecimentos agropecuários“ (p.2). É interessante cruzar este desmatamento com o fato que “os maiores aumentos dos efetivos bovinos entre os censos foram nas Regiões Norte (81,4%) e Centro-Oeste (13,3%).
As reduções do número de estabelecimentos com bovinos e dos rebanhos do Sul e do Sudeste mostram que a bovinocultura deslocou-se do Sul para o Norte do país, destacando-se, no período, o crescimento dos rebanhos do Pará, Rondônia, Acre e Mato Grosso. Nestes três estados da região Norte, o rebanho mais que dobrou, enquanto que em Mato Grosso o aumento foi de 37,2%” (p.8).
A pecuária extensiva emprega muito pouco. Em 2006, foram recenseados 17 milhões pessoas ocupadas em estabelecimentos agropecuários, 19% do total (p.9). São os pequenos estabelecimentos que geram mais empregos: “Embora a soma de suas áreas represente apenas 30% do total, os pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 ha) responderam por 84,36% das pessoas ocupadas em estabelecimentos agropecuários. Mesmo que cada um deles gere poucos postos de trabalho, os pequenos estabelecimentos utilizam 12,6 vezes mais trabalhadores por hectare que os médios (área entre 200 e 2000 ha) e 45,6 vezes mais que os grandes estabelecimentos (área superior a 2.000 ha)” (p.10)
Outro ponto importante, a concentração do controle da terra continua absurda: “Os resultados do Censo Agropecuário 2006 mostram que a estrutura agrária brasileira, caracterizada pela concentração de terras em grandes propriedades rurais, não se alterou nos últimos 20 anos”. (p. 3). Basicamente, 50 mil estabelecimentos com mais de 1.000 hectares — ou seja, 1% do total de estabelecimentos – concentram 43% da área (146,6 milhões de hectares). São os que mais subutilizam a terra. E como os grandes empregam pouco, gera-se a pressão sobre as cidades. A questão do uso do solo e a contenção do desmatamento fazem parte do mesmo problema da racionalidade do uso dos nossos recursos naturais e da estabilidade dos trabalhadores da terra. Tem a ver com todos nós, e não apenas com ruralistas.
As conclusões são relativamente óbvias. Dada a imensa subutilização das terras já desmatadas, é simplesmente absurdo exigir mais desmatamento. O desmatamento está se dando em áreas vulneráveis (a maior expansão da pecuária está nas bordas da Amazônia), e mantém o ciclo destrutivo. O ciclo agrícola deve conjugar os objetivos de produção, emprego e preservação do capital-solo e dos recursos naturais. Claramente, o caminho é o da intensificação tecnológica, capacitação e apoio ao pequeno e médio agricultor, levando a um aproveitamento melhor e mais limpo do solo agrícola já usado; e apropriação maior de terras já desmatadas e subutilizadas pela pecuária extensiva.
Os dados do Censo mostram elevado nível de analfabetismo. Mais de 80% dos produtores rurais têm baixa escolaridade. Mais da metade dos estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos não recebeu orientação técnica (pp 1 e 4). Não é de mais química e de mais desmatamento que a agricultura precisa, e sim de um salto formação, de eficiência tecnológica, social e ambiental. Temos os conhecimentos e recursos necessários. É um novo século. Produzir não é apenas expandir, é melhorar. Meio ambiente não é entrave, é oportunidade para um novo ciclo. E francamente, quando os grandes do agronegócio se colocam em defesa do pequeno, devemos olhar melhor os argumentos.
Ladislau Dowbor é professor titular da PUC de São Paulo, e consultor de várias agências das Nações Unidas. Os seus textos estão disponíveis em http://dowbor.org
NOTAS
[1] IBGE – Indicadores de Desenvolvimento sustentável 2010, p.65 - http://bit.ly/JGrG4e
[2] IBGE, Censo Agro 2006: IBGE Revela retrato do Brasil Agrário