quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A revolução russa e seus impasses

Os projetos e os programas das organizações revolucionárias são fundamentais. Os socialistas precisam saber claramente o que querem, e prever o que, em condições ideais de pressão e de temperatura, irão realizar. Também é preciso que o povo saiba o que está sendo proposto à sociedade futura. Essa é a condição para que ele possa aderir conscientemente ao projeto transformador. Mas, na grande maioria das vezes, a pressão e a temperatura sobem muito acima das condições consideradas ideais e impõem mudanças dramáticas de planos, mudanças abruptas de rotas. Obrigam os revolucionários a seguirem por caminhos até então imprevistos que, em geral, são mais penosos e tortuosos. Assim ocorreu na Rússia soviética e na maioria dos países que trilharam o caminho ao socialismo.



Por Augusto C. Buonicore**
Marx e Engels acreditavam que a revolução socialista começaria pelos países capitalistas onde as forças produtivas fossem mais desenvolvidas e existisse uma numerosa classe operária, que representasse a maior parte da população. Por isso, esperavam que a revolução começasse por Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, ou mesmo França. Outra ideia corrente era de que a revolução socialista, quando iniciada, tenderia a se espalhar rapidamente pelo conjunto dos países capitalistas centrais e isso, por sua vez, impulsionaria as revoluções nos demais países do mundo. Mas, o desenvolvimento histórico real fez com que a primeira revolução socialista fosse vitoriosa na atrasada Rússia.
Lênin, desde 1915, já havia aventado esta possibilidade ao defender que a revolução proletária mundial poderia se iniciar a partir dos elos mais fracos da cadeia imperialista e não necessariamente nos países capitalistas mais desenvolvidos. Mesmo assim, após a Revolução Russa de 1917, continuou apostando numa rápida vitória da revolução socialista no Ocidente, começando pela Alemanha. Não acreditava na possibilidade da existência prolongada de um Estado socialista na Rússia numa Europa imperialista.


Num primeiro momento, a perspectiva de uma revolução socialista europeia iminente parecia bem real. Os acontecimentos revolucionários na Alemanha em 1918 desenhavam-se como uma repetição do fevereiro russo, e mesmo as derrotas de 1919 (e a queda da República Socialista da Baviera) parecia-lhes uma repetição da derrota provisória ocorrida em julho na Rússia. Para a maioria dos revolucionários, o Outubro Vermelho alemão ainda estaria por vir em breve. A República dos conselhos na Hungria que se encaixava neste esquema havia sido derrotada. O mesmo aconteceria com a experiência dos conselhos de fábrica na Itália.

Apenas em 1923, com as derrotas das rebeliões comunistas, essas esperanças de uma vitória rápida do socialismo se desvaneceram. A jovem República Soviética ficou isolada – cercada por países capitalistas hostis. Lembramos que depois de 1917 ela sofreu um ataque de 14 países e diversos exércitos brancos, contrarrevolucionários. Entre 1919 e 1920 a situação tornou-se dramática e o “país dos sovietes” se viu reduzido às cercanias de Petrogrado e Moscou. A grande imprensa aristocrática e burguesa já dava como certa a derrota bolchevique.

Apenas em 1921 a Rússia revolucionária se viu livre de seus inimigos, vencendo-os numa guerra civil sangrenta, que lhe custou milhões de vidas. A situação econômica e social era catastrófica. Seu parque industrial estava reduzido a 13% do que era antes da Primeira Grande Guerra Mundial. Parte de sua classe operária – a mais consciente e combativa – havia desaparecido na guerra civil. A população de Petrogrado, capital da revolução, caiu de 2 milhões para 720 mil habitantes. A de Moscou de 1,5 milhão para 1 milhão. Houve um processo de desindustrialização e desproletarização em grande escala. O poder soviético perdeu uma importante base material (a grande indústria) e social (o proletariado revolucionário).

A derrota da revolução no Ocidente recolocou o angustiante dilema: é possível construir o socialismo num país atrasado como a Rússia sem o apoio da revolução vitoriosa na Alemanha, Inglaterra ou nos Estados Unidos? Vários bolcheviques, como Trotsky, se colocavam categoricamente contra tal hipótese. Lênin, revisando suas posições anteriores, procurou construir alternativas que permitissem iniciar a construção do socialismo nas condições adversas. Uma posição que seria assumida e radicalizada por Stálin no final dos anos 1920.

Neste quadro internacional e nacional inusitado, tornou-se ainda mais necessário o desenvolvimento acelerado das forças produtivas. Sem isso, a revolução isolada estaria definitivamente derrotada. O chamado “Comunismo de Guerra” (1918-1921), necessário para enfrentar a contrarrevolução armada, mostrou-se inconveniente para a grande tarefa de reorganização da economia. Nasceu assim a proposta da Nova Política Econômica (NEP), visando a superar o atraso econômico do país utilizando amplamente recursos oferecidos pelo próprio capitalismo. A prioridade era a constituição de uma indústria pesada e o capitalismo de Estado alemão se tornou o paradigma do desenvolvimento econômico russo na etapa primária de construção do socialismo.

A NEP se baseava nas concessões de forças produtivas russas aos capitalistas nacionais ou estrangeiros; criação de cooperativas agrupando pequenos e médios produtores rurais e urbanos, que teriam liberdade de comercializar o que produziam; montagem de empresas mistas, associando capital privado e o Estado; e empréstimos bancários juntos aos grandes bancos estrangeiros. Além disso, incorporaram-se à indústria russa os métodos fordistas e tayloristas de produção que, entre outras coisas, garantiriam a manutenção dos altos salários para os especialistas e técnicos. Seria o conjunto dessas medidas a que Lênin chamaria de capitalismo de Estado nas condições russas.

Sobre as necessárias concessões ao capitalismo, Lênin escreveu: “Tivemos de recorrer ao velho método burguês e aceitar um pagamento muito elevado dos ‘serviços’ dos maiores especialistas burgueses (...). É claro que tal medida é não apenas uma interrupção – por certo tempo e em certo grau – da ofensiva contra o capital, mas também um passo atrás do nosso poder de Estado socialista, soviético, que desde o primeiro momento proclamou e conduziu uma política de redução dos altos ordenados até o nível do salário do operário médio”.

Em outro artigo afirmou: “Enquanto não houver revolução noutros países, precisaremos de dezenas de anos para escapar e não deve importar-nos ceder uma parte de nossas incalculáveis riquezas (...) ao valor de centenas e até de milhões de rubros, para receber ajuda dos grandes capitalistas avançados. Mas não é possível manter o poder proletário num país incrivelmente arruinado com um gigantesco predomínio do campesinato, igualmente arruinado, sem a ajuda do capital, pelo qual logicamente cobrará juros exorbitantes”. Lênin fala em dezenas de anos de concessão ao capitalismo e não em poucos meses ou mesmo anos.

É claro que as sucessivas opções de desenvolvimento econômico feitas pelos dirigentes soviéticos, tanto a NEP (1921-1928) como a industrialização forçada (1928-1953), embora necessárias, trouxeram implicações muitas vezes negativas no campo das relações sociais e no desenvolvimento da democracia soviética. A rigorosa centralização econômica, por exemplo, foi acompanhada pela excessiva centralização política beirando ao despotismo.

Nas empresas taylorizadas imperava uma rígida disciplina fabril, ditadura dos gerentes e graves assimetrias salariais. Todos esses elementos foram ainda radicalizados durante os anos de industrialização forçada e coletivização (também forçada) no campo. Neste processo ocorreu a gradual fusão dos movimentos sociais e do Partido ao Estado. Esvaziaram-se politicamente os sovietes e as organizações populares. Formou-se uma burocracia partidária e estatal cada vez mais forte e distanciada das massas trabalhadoras das quais deveriam ser expressão.

A industrialização forçada – traduzida nos primeiros planos qüinqüenais – conseguiu índices de crescimento inéditos. Neste período, todas as concessões estrangeiras foram anuladas, os últimos setores privados expropriados pelo Estado e a dívida externa, contraída durante a implantação dos planos de industrialização, foi drasticamente reduzida e depois eliminada. Segundo Stálin, com essas medidas, haviam sido eliminados todos os elementos do capitalismo de Estado, e o modo de produção socialista já estava implantado na sua integralidade.

Mas, contraditoriamente, continuaram predominando nas fábricas o fordismo e os métodos tayloristas (e com eles o despotismo fabril, as diferenças salariais entre operários e técnicos, a divisão entre o trabalho intelectual e manual). Ou seja, defendia-se a manutenção e o fortalecimento de elementos do capitalismo naquela que era considerada a fase avançada do socialismo e que começava, segundo os dirigentes soviéticos, a trilhar as sendas do comunismo.

Apesar dos efeitos negativos desta opção pela industrialização forçada, é preciso reconhecer que a base industrial, construída durante os três planos quinquenais, é que permitiu ao povo soviético enfrentar o poderoso exército nazista a partir de 1941. O planejamento centralizado – sob a base de propriedade não-privada dos meios de produção – é que permitiu converter toda a economia para o esforço de guerra e transferir, em tempo recorde, indústrias inteiras do Oeste para o Leste do território soviético, salvando-as dos ataques alemães. Coisas que um país capitalista – assentado na propriedade privada dos meios de produção – dificilmente poderia fazer.

A URSS venceu a Segunda Guerra Mundial e foi a principal responsável pela derrota do nazi-fascismo, mas viu sua economia bastante enfraquecida. Novamente se colocava a tarefa da retomada da industrialização acelerada, com todas suas virtudes e mazelas. A democracia socialista deveria ser novamente sacrificada em nome da defesa do Estado soviético, ameaçado pelas potências imperialistas cada vez mais agressivas.

A guerra fria já se desenhava no horizonte mesmo durante o desenrolar do conflito mundial, quando os aliados retardaram ao máximo a abertura de uma segunda frente na Europa e os Estados Unidos, sob Truman, decidiram utilizar bombas atômicas contra Hiroshima e Nagazaki. A destruição de duas pequenas cidades japonesas sem nenhuma importância estratégica serviria como advertência aos soviéticos.

O final da guerra também criou um fato novo e alvissareiro. Constituiu-se um campo socialista envolvendo a maioria dos países do Leste Europeu libertados do nazi-fascismo. Campo que foi reforçado com a vitória da Revolução Chinesa e das revoluções nacional-libertadoras na Ásia. A URSS finalmente se via libertada do isolamento imposto pelo imperialismo desde 1917.


O Paradigma da Comuna de Paris e o socialismo real
Antes da Revolução Russa existia uma visão generalizada na esquerda socialista de como deveriam ser o Estado e a democracia socialistas. Ela, em grande parte, se baseava em algumas formulações de Marx, Engels e Lênin. O paradigma desses revolucionários era a Comuna de Paris de 1871. Esta primeira experiência socialista de organização estatal se caracterizou, entre outras coisas: pela fusão do poder Executivo e Legislativo; pela adoção do sufrágio universal; pelo princípio eletivo para o poder judiciário; pelo princípio da revogabilidade para todos os cargos eletivos; pleo salário médio de um operário para os membros da Comuna, a burocracia estatal e técnico-especialista; pelo fim do exército permanente e armamento geral do povo.


A Comuna seria um arranjo político-institucional considerado suficiente para evitar a autonomia do Estado e o surgimento de uma burocracia onipotente – sendo assim um passo importante para a eliminação do próprio Estado, como instrumento de dominação e opressão. O Estado-Comuna, pensavam Marx, Engels e Lênin, já não seria um Estado no sentido forte do termo.

No entanto, a Comuna de Paris foi uma experiência curta no tempo e restrita quanto ao espaço geográfico que abrangeu. Durou apenas 72 dias e abarcou Paris e seu entorno. Os comunardos não passaram pela experiência de governar um grande país ainda agrário e com amplos setores antissocialistas no seu interior. Isso, necessariamente, teria acontecido se tivessem derrotado Versalhes (onde se encontrava o governo da contrarrevolução) e vencido o cerco dos exércitos prussianos. Nesta situação, eles teriam que implantar um governo de tipo jacobino ou uma “ditadura do proletariado” nos moldes russos.

Como era de se esperar, após a Revolução de Outubro, o projeto da República Soviética só poderia ter como referência a Comuna de Paris. Infelizmente, as condições históricas não permitiram que os sovietes russos se transformassem em modelos ampliados – em escala nacional ou multinacional – da comuna parisiense.

Os projetos e os programas das organizações revolucionárias são fundamentais. Os socialistas precisam saber claramente o que querem, e prever o que, em condições ideais de pressão e de temperatura, irão realizar. Também é preciso que o povo saiba o que está sendo proposto para a sociedade futura. Essa é a condição para que ele possa aderir conscientemente ao projeto transformador.

Mas, na grande maioria das vezes, a pressão e a temperatura sobem muito acima das condições consideradas ideais e impõem mudanças dramáticas de planos, mudanças abruptas de rotas. Obrigam os revolucionários a seguirem por caminhos até então imprevistos que, em geral, são mais penosos e tortuosos. Assim ocorreu na Rússia soviética e na maioria dos países que trilharam o caminho ao socialismo. Vejamos agora alguns casos nos quais o programa socialista de Outubro teve que se confrontar com realidades bastante adversas e, por isso, ser alterado.

É sabido que não constava do projeto original bolchevique a construção de um sistema político assentado no unipartidarismo. Este, inicialmente, foi uma imposição da sangrenta guerra civil e da ocupação militar estrangeira que se seguiram à revolução. Neste processo os partidos burgueses e pequeno-burgueses se aliaram aos exércitos contrarrevolucionários e foram fechados. Por sua vez, as organizações socialistas pequeno-burguesas, como os social-revolucionários de esquerda e os anarquistas, foram cassadas quando tentaram organizar um golpe de Estado contra o governo soviético, durante as difíceis negociações do Tratado de Brest-Litovsky.

Visando a impedir a assinatura do tratado de paz e assumirem o poder, os social-revolucionários de esquerda – com apoio dos anarquistas – assassinaram o embaixador alemão, explodiram a sede do Partido Comunista em Moscou, matando dezenas de pessoas e ferindo Bukharin. Terroristas social-revolucionários assassinaram Uritsky, comandante da Cheka (polícia política) e atentaram contra a vida de Lênin, Trotsky e outros importantes dirigentes bolcheviques. A esses atentados seguiu-se uma dura repressão contra a “oposição armada”.

O que foi uma fatalidade imposta pela guerra civil acabou, pouco a pouco, sendo racionalizada pela direção partidária e o sistema de partido único se transformou num princípio político-organizativo do próprio socialismo. Todas as experiências socialistas do século XX – com alguma nuance – seguiram aquele modelo monolítico.

O sufrágio universal também não pôde vingar imediatamente. A única tentativa de implantá-lo foi durante a eleição da Constituinte de 1918, que deu maioria aos setores antissoviéticos devido à forte presença da pequena burguesia rural e urbana entre a população russa. Diante desse fato, irremovível em curto prazo, os bolcheviques foram obrigados a implantar o voto qualificado ao revés. O voto do operário passou a valer cinco vezes mais do que o voto do camponês e os proprietários – especialmente os que assalariavam trabalhadores – ficaram proibidos de votar. Medidas que durariam até a década de 1930, quando a burguesia havia sido eliminada como classe e a oposição calada.

Logo após a revolução, os bolcheviques deram-se conta de que a guarda vermelha, composta por trabalhadores fiéis ao regime e sem uma rígida hierarquia, era impotente para enfrentar a poderosa contrarrevolução armada e apoiada pelo conjunto do imperialismo. Então, constituíram, não sem controvérsias, um poderoso exército regular nos moldes tradicionais. Reintroduziram a hierarquia e a rígida disciplina militar (eliminou-se o princípio eletivo, voltaram as patentes e a pena de morte no front). Vários antigos oficiais czaristas retomaram seus postos de comandos – com suas respectivas patentes e altas remunerações. Trotsky foi o principal idealizador e comandante deste novo exército.

Portanto, neste conturbado processo, o controle operário de baixo foi substituído pelo planejamento e controle dos operários pelo alto. Tivemos a volta dos especialistas (técnicos e engenheiros) com salários bem acima do que ganhavam os trabalhadores manuais. Foi restabelecido o poder unipessoal dos gerentes nas fábricas. Trotsky chegou mesmo, levando esta tendência ao extremo, a defender a militarização do trabalho e a subordinação dos sindicatos ao Estado. Estes, decerto, eram tidos como imperativos da produção num país cercado por potências inimigas e que precisava rapidamente desenvolver as suas forças produtivas. A eclosão da Segunda Guerra Mundial e a ocupação da URSS pareciam comprovar integralmente esta tese.


Respostas inadiáveis
Como podemos ver, a experiência real de construção do socialismo não conduziu à redução gradual – rumo à extinção – do Estado, como previsto por Marx, Engels e Lênin. Pelo contrário, na maioria dos casos, ocorreu justamente o inverso. A construção das bases econômica do socialismo se deu assentada no fortalecimento do Estado, inclusive nos seus aspectos mais repressivos.


Tendo em vista esse quadro e se apegando, de forma esquemática e a-histórica, às fórmulas marxistas – transformando-as numa espécie de ideal-tipo weberiano –, várias organizações e intelectuais de esquerda chegaram à conclusão de que não existiram experiências socialistas no século XX. Os comunistas, ao contrário, acreditam que o que existiu na URSS e no Leste Europeu – com seus acertos e erros – foi o socialismo – ou, como afirmou o controverso líder soviético Leonid Breznev, o “socialismo realmente existente” (sorex). Uma fórmula plena de sentido – afinal, de fato, existiu um socialismo idealizado e aquele que foi concretamente construído em diversos países.

O socialismo em sua existência real pode assumir diversas configurações políticas e econômicas. Sendo este, no essencial, um modo de produção no qual, em maior ou menor ritmo, os principais meios de produção passam a ser propriedade coletivo-estatal (e não privada), e no qual o poder político está nas mãos de forças políticas interessadas em transitar ao socialismo, rumo ao comunismo. Sabemos o quanto este último item está sujeito a uma forte dose de subjetivismo.

O socialismo é um período longo de transição que conhecerá várias fases – difícil de serem determinadas de antemão. E, nas suas fases iniciais, conviverá com relações econômicas, políticas e sociais ainda não-socialistas. Lênin, como Marx e Engels, sabia da necessidade da convivência durante certo período do socialismo com o mercado. O socialismo, em última instância, é a negação – entendida como superação – do Estado e do mercado; mas, ao mesmo tempo e contraditoriamente, precisará deles para se desenvolver numa dialética nem sempre fácil de ser compreendida e muito menos resolvida no plano teórico e prático.

Sem dúvida, houve um crescimento acentuado das forças produtivas durante a vigência do socialismo na URSS – num ritmo superior ao dos países capitalistas –, mas, ao contrário do que se podia esperar, não houve, no mesmo ritmo, o crescimento do atendimento das necessidades materiais das massas trabalhadoras. Neste campo, o socialismo continuou aquém dos países capitalistas centrais, como EUA, Inglaterra, França e Alemanha Ocidental. A URSS, apesar de ter se tornado a 2ª potência industrial e militar do mundo, continuou sendo, contraditoriamente, uma sociedade de escassez.

Por que uma economia que conseguiu superar a dos Estados Unidos no setor aeroespacial nas décadas de 1950 e 1960, foi perdendo o seu dinamismo até entrar em colapso no início da década de 1990? Por que não conseguiu deixar de ser uma sociedade de relativa escassez, pelo menos quando em comparação aos países capitalistas centrais?

Podemos até entender a necessidade de um Estado forte para impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas em países relativamente atrasados. Mas, como explicar a manutenção dos mecanismos antidemocráticos após o processo de industrialização e modernização destas sociedades? Por que os “socialismos reais”, passada a fase embrionária, não puderam se constituir como democracias diretas e/ou participativas nos moldes da Comuna de Paris?

Sabemos que o fetiche da sociedade de consumo e da democracia liberal, incrementado por uma ativa propaganda ocidental, ajudou a selar a sorte daquelas importantes experiências históricas. Isso pode ser claramente constatado no processo de unificação alemã e nas grandes manifestações antissocialistas que varreram o Leste Europeu naqueles anos fatídicos. As massas davam vivas à liberdade e invadiam os supermercados da Alemanha Ocidental.

Esses são problemas teóricos e políticos que não conseguiram ser resolvidos satisfatoriamente e, não o sendo, engendraram uma crise na teoria e na prática socialista. Portanto, superar esta dupla crise é uma necessidade premente das forças políticas e sociais que desejam relançar em outro patamar o projeto socialista no século XXI. Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário, mas sem movimento revolucionário também não é possível desenvolver plenamente a teoria. O marxismo nos ensinou que teoria e prática social não são realidades estanques – estranhas entre si –, elas se completam e se enriquecem, mutuamente, na luta por um mundo novo.


* Este artigo foi publicado no livro O capitalismo contemporâneo e a nova luta pelo socialismo (Ed. Anita Garibaldi), resultado de um texto apresentado no seminário de mesmo nome, promovido pelo Instituto Maurício Grabois, em novembro de 2007, na comemoração dos noventa anos da Revolução Russa. O título original era Os dilemas da revolução soviética, mudado para não confundir com meu último artigo divulgado: “Lênin e os dilemas da Revolução Russa”.
** Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
Bibliografia:

AMAZONAS, João. Os desafios do socialismo no século XXI. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.
AMAZONAS, João e outros. O significado da revolução socialista de 1917. Edição CES, 1997.
BERTELLI, Antônio R. Capitalismo de Estado e Socialismo. IPSO/IAP, 1999.
FERNANDES, Luís. URSS: ascensão e queda. São Paulo: Anita Garibaldi, 1991.
_______. O enigma do socialismo real. Mauad, 2000.
_______. “O desafio da democracia e da produtividade no socialismo” (entrevista). In: Princípios, nº 92, out./nov. de 2007.
LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1986.
_______. Estado, ditadura do proletariado e poder soviético (organizado por Antônio Bertelli). São Paulo: Oficina de Livros, 1988.
LOSURDO, Domenico. “Marx, Cristóvão Colombo e a revolução de outubro”. In: Princípios, nº 92, out./nov. de 2007.
_______. Fuga da história? São Paulo: Revan, 2004.
MARX, Karl. A Guerra Civil em França. Lisboa: Avante, 1984.
RABELO, Renato. “A nova luta pelo socialismo”. In: Princípios, nº 92, out./nov. de 2007.



quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O analfabeto midiático


“Ele imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões em torno de poema de Brecht, no século 21
Por Celso Vicenzi
Leia, ao final do texto, O Analfabeto Político, de Bertolt Brecht

O pior analfabeto é o analfabeto midiático.
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Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos. Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.
Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.
O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com uma imagem”). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.
O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.”
O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.
Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
O analfabeto político
O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.

Bertold Brecht
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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Uma premonição?: Clube da Luta é nosso presente e futuro


 (Antes de começar, tudo bem, eu já sei: Infringi as duas primeiras regras do Clube da Luta. Talvez arranquem minhas bolas por causa disso, mas é por um bom motivo.)




           Imortalizado nas telonas, o rebelde Clube da Luta, do americano Chuck Palahniuk, simplesmente surpreende. Facilmente a obra mais conhecida do escritor, o livro transgride e ultrapassa qualquer fronteira temporal, filosófica e social, revelando-se atual para nossa geração e ainda mais para as futuras. Isso porque as mais de duzentas e cinquenta páginas trazem reflexões essenciais à vida em sociedade do jeito mais eficaz possível: Com um soco na cara. 
           É fácil se identificar com o personagem principal, um homem comum sem nome (dê seu próprio nome a ele e provavelmente depois da segunda leitura você já estará com olhos roxos). Repleto de problemas familiares e profissionais que o levam à insônia e a um passo da insanidade, ele resolve reacender a chama da vida presenciando a morte: Começa a frequentar grupos de apoio de doenças terminais, onde as pessoas têm problemas reais em comparação aos dele. Depois disso, Clube da Luta se desenrola em tragédias e bizarrices que levam a vida do homem ao fundo do poço — ou pelo menos é o que ele acha. A história já é conhecida, na verdade, e por isso não pretendo entrar tanto no mérito do enredo, que de tão bom já foi adaptado para o cinema e é considerado um ícone cult. O interessante é descobrir, mesmo com o poderio arrebatador do filme estrelado por gigantes como Brad Pitt e Edward Norton, que o livro consegue sem problemas superar a versão cinematográfica.


           Composto por trinta contos recheados de frases de impacto e diálogos perspicazes, Clube da Lutarevela-se um agressivo manifesto a favor do desapego material. Eu poderia até arriscar a dizer que Tyler Durden, o revolucionário que se torna a peça-chave para o desenlace da vida do protagonista, distorceu a filosofia de Gandhi para que se adequasse a um mundo cercado pelo capitalismo e pela futilidade. A cena no livro onde o personagem principal conhece Tyler, aliás, não foi para as salas de cinema: Uma inóspita aparição em uma praia de nudismo, onde o transgressor está enfileirando troncos na areia para que suas sombras formem uma mão em um dado minuto. Nesse minuto, então, ele profere uma de suas sentenças mais preciosas: "Um momento é tudo que você pode esperar de algo perfeito". É ali que, mesmo sem ter visto o filme, você sabe que algo muito grandioso te espera, e com razão: O livro é um convite para a proliferação de ideias calcadas na transmutação da sociedade como a conhecemos.
           Enquanto isso, é até divertido ver os erros de Chuck na contagem das regras do Clube (ora sete, ora oito) e se entreter com a peculiar escrita dele, cheia de referências e "informações úteis", como o protagonista diria. Se eu fosse escrever essa resenha como Chuck Palahniuk, você veria várias frases soltas e haicais por aí, como um apanhado geral da mente perturbada do personagem principal — sim, para piorar ainda mais sua cabeça, o livro é em primeira pessoa.

           Mas não.
           Não farei isso.
           Olho para o alto e vejo madeiras rangendo com o vento como em um filme de terror.
           Terror.

           "Mãos rentes a mim
           O vento sopra forte
           Blá-blá-blá e fim."

           É mais ou menos assim que Chuck escreve.
           Sei disso porque Tyler sabe disso.


           Ver as cenas do livro com os olhos de Jim Uhls, o roteirista que se deu ao trabalho de transformar os contos em coesas duas horas e dez minutos de gravação, também faz parte da diversão. Fazer com que os contos se encaixassem em um roteiro de filme foi visivelmente uma tarefa complicada, mas feita com esmero e, ao seu modo, paixão: Personagens foram suprimidos, diálogos foram recolocados e o último capítulo não recebe nem uma singela referência no registro em vídeo, e ainda assim tudo parece nos devidos lugares. A mensagem ainda está lá, em todos os sábados de briga no porão de um bar e em todos os beijos de soda cáustica dados por Tyler. Livro e filme são irmãos siameses, embora um deles — o livro — seja mais desenvolvido do que o outro, contando com uma gama inusitada de situações que tornam a obra escrita mais atrativa e ainda mais real.
           Clube da Luta é, por mais estranho que esse adjetivo pareça, adorável. É um mundo próximo ao nosso e cheio de situações que gostaríamos de presenciar. Esse foi o combustível para que muitos clubes da luta fossem criados ao redor do planeta, o que é nada além do maior reflexo que um livro de ficção pode ter em uma sociedade: Tornar-se não-ficção. Estou esperando pelos planetas e galáxias com nomes de corporações e pela destruição completa da civilização. Depois desse livro, a pergunta que foi feita em seu lançamento em 1996 persiste: Chuck realmente inventou tudo isso? Será que não existe um pouco de verdade entre essas páginas? Uma premonição, talvez? Só o futuro — se é que temos um — pode dizer.


4 Pêssegas e meia

OBS.:

           No DVD de Clube da Luta, logo após os avisos anti-pirataria, foi colocada uma tela com dizeres de Tyler Durden que fica visível por poucos segundos, fazendo menção ao emprego de editor de filmes que ele tem, onde o personagem coloca quadros com imagens pornográficas em animações infantis. A mensagem (em um momento do DVD onde não é possível pausar a reprodução para que possamos ler) é a seguinte:


           Ou em bom português: "Aviso: Se você está lendo isso, então esse aviso é para você. Cada palavra que lê desse texto inútil é um segundo a menos da sua vida. Você não tem outras coisas para fazer? A sua vida é tão vazia que você honestamente não consegue pensar numa maneira melhor de vivê-la? Ou você fica tão impressionado com a autoridade que você respeita e confia em todos que a proclamam para si? Você lê tudo o que deveria ler? Você pensa tudo o que deveria pensar? Compra tudo o que lhe dizem pra comprar? Saia do seu apartamento. Encontre alguém do sexo oposto. Pare de comprar tanto e se masturbar tanto. Peça demissão. Comece a brigar. Prove que está vivo. Se não fizer sua humanidade valer, você se tornará estatística. Você foi avisado."

(Por Alaor Rocha, ou @alalarocha, ou /alalarocha.)

(Um post-scriptum porque é válido: Esse texto é old-but-gold de outro blog meu, já aposentado e no Retiro dos Artistas depois de uma vida pouco frutífera. Talvez por isso ele não esteja tão "pessegal", mas se você chegou até aqui para ler esses parênteses, então isso não deve ter sido de todo mal.)


Fonte: Pêssega d'Oro 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Pré-sal brasileiro é ouro em pó


Em entrevista, o economista Carlos Lessa estima que o campo de Libra renda “algo em torno de quatro trilhões de reais em vinte anos de produção”



O governo federal brasileiro optou por leiloar o campo de Libra, a maior reserva petrolífera brasileira, por duas razões: “uma delas é geopolítica, ou seja, o país quer aparecer ao capital financeiro mundial como bem comportado. Para quê? Para atrair mais capital de curto prazo para o Brasil. A segunda razão é manter a política do tripé que foi instalada pelos tucanos e preservada pelos governos Lula e Dilma”, avalia o economista Carlos Lessa em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.
Lessa questiona o argumento da presidência da Petrobras, de que a empresa não tem capital financeiro para explorar o campo de Libra. “A Petrobras foi sendo espremida pelo governo nos últimos anos. O caixa da empresa era próximo a 70 bilhões de reais; hoje está reduzido a seis ou sete bilhões. (...) Mais do que isso: o Tesouro Nacional não queria construir o trem bala? Quer construir essa obra e não tem recurso para tocar para frente um campo de petróleo, que irá dobrar as reservas brasileiras? Nenhum país do mundo faz partilha de um campo já conhecido”. E dispara: “O argumento da Graça (Graça Silva Foster) é sem graça. É uma desgraça. Não consigo entender como isso está acontecendo se a presidente Dilma disse, em discurso quando candidata à presidência da República, que não iria privatizar o pré-sal”.
De acordo com o economista, a venda financiada de automóveis financia o consumo da gasolina no país, porque a Petrobras tem prejuízo com a venda nacional. Apesar disso, enfatiza, o governo não irá alterar o valor do produto. “Se mexer nisso perde a eleição, porque todas as famílias se endividaram comprando automóvel, e se o preço da gasolina pular para cima, Dilma não se reelege. Então, o governo tem de estabilizar a economia de qualquer jeito, mesmo que tenham que entregar a herança, ou seja, o pré-sal”.
Carlos Lessa é formado em Ciências Econômicas pela antiga Universidade do Brasil e doutor em Ciências Humanas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp). Em 2002, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e, em 2003, assumiu a presidência do BNDES.

IHU On-Line - Economicamente, o que as reservas do pré-sal representam para o Brasil, especialmente o campo de Libra? Qual é o valor econômico desses poços?
Carlos Lessa – Se o preço do barril de petróleo extraído continuar sendo o do padrão da Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP, de cem dólares, no campo de Libra teremos algo em torno de quatro trilhões de reais em vinte anos de produção. Além disso, o campo de Libra equivale a 60% das reservas que têm as quatro maiores petroleiras do mundo, em torno de 25 milhões de barris cada uma delas. Espera-se que o campo de Libra venha a gerar em torno de 14 a 15 milhões de barris de petróleo.
A Petrobras, no Brasil todo, não chega a ter 14 milhões de barris. Então, só o campo de Libra dobra as reservas da empresa. Portanto, retirar a Petrobras desse processo de exploração do campo de Libra é um crime que lesa a pátria, porque este é um recurso absolutamente estratégico, o qual converte o Atlântico Sul, do ponto de vista geopolítico, em uma zona muito delicada, por uma razão muito simples: os EUA consomem, por ano, 27 a 28% da produção de petróleo do mundo inteiro, porque a produção petrolífera do país é insignificante. Hoje os EUA são um país sem petróleo, mas o maior consumidor do produto. Portanto, o petróleo do Atlântico Sul é a saída para eles. Mas imagina o Brasil entregando a sua riqueza estratégica maior de uma forma servil? O petróleo que tem no pré-sal é o melhor tipo de óleo do mundo, enquanto o petróleo da Venezuela, que é muito abundante, é pesado. Então, o pré-sal brasileiro é ouro em pó.

Quais são as razões que fizeram o governo optar pelo Leilão de Libra?
As razões são falta de brasilidade e coragem. Agora, as razões formais levantadas são outras. A primeira delas é que os 15 bilhões a serem recebidos dos grupos que participarão da concessão do leilão representam mais que o dobro das reservas de caixa da Petrobras. A empresa foi descapitalizada ao longo dos últimos oito anos por conta de uma política suicida de vender a gasolina dentro do país a um preço menor do que o preço que o país importa. A Petrobras só se mantém lucrativa porque descobre poços e reavalia reservas, porque a gasolina dá prejuízo.
A Petrobras não pode entrar como concorrente na exploração do campo de Libra, porque quem descobriu o campo foi a própria empresa. Esse campo já havia sido cedido a uma concessionária estrangeira, que o devolveu porque não encontrou nada. A Petrobras tem uma vantagem enorme em relação a todos os outros concorrentes: ela tem a melhor sinergia possível do Atlântico, tem uma equipe de geólogos altíssima e, por isso mesmo, é alvo de espionagem sistemática. Essa onda de espionagem denunciada recentemente tinha duas questões prioritárias: fiscalizar a Petrobras e também as relações do Brasil com a Bolívia e a Venezuela.
É óbvio que o Brasil tem como financiar a exploração de Libra, e não precisa colocar o campo a funcionar imediatamente. O país precisa aumentar a produção de petróleo, mas não precisa aumentar muito. O fato é que é um crime a Petrobras descobrir o campo de Libra e ter de partilhar a exploração. Soube que o Ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, disse que o Brasil tem de fazer partilha, porque 1% das ações da Petrobras está em mãos de empresas estrangeiras, já que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso as vendeu na Bolsa de Nova York. Só que o contra-argumento é o seguinte: ao entregar Libra, o Brasil está entregando 100% do petróleo na mão dos estrangeiros. O argumento do ministro Lobão é maluco. Aí se diz que o Brasil reservou poderes para fiscalizar a exploração através da Petrosal. Mas quem será o presidente da Petrosal? Como o Brasil perde o seu futuro econômico sem sequer haver uma consulta à população?

Mas o argumento da presidência da Petrobras é de que a empresa não tem condições financeiras de explorar o campo de Libra. Qual é a situação financeira da Petrobras?
Não é verdade. O capital da Petrobras foi sendo espremido pelo governo nos últimos anos. O caixa da empresa era próximo a 70 bilhões de reais; hoje está reduzido a seis ou sete bilhões. Mas, apesar disso, o Brasil tem reservas colossais, como o Banco Central, de 300 milhões de dólares. Mais do que isso: o Tesouro Nacional não queria construir o trem bala? Quer construir essa obra e não tem recurso para tocar para frente um campo de petróleo que irá dobrar as reservas brasileiras? Nenhum país do mundo faz partilha de um campo já conhecido. O país poderia fazer uma concessão caso quisesse ser um país petroleiro, mas eu pessoalmente quero dizer que não há pior destino nacional do que ser exportador de petróleo. Basta olhar pelo mundo o que acontece com esses países: são sociedades atrasadas, com desequilíbrios sociais brutais, gastam boa parte do que ganham com armamento, enfrentam guerras religiosas e são objeto de intervenção de outros Estados, como Iraque, Líbia.

Então, o que o Brasil deve fazer com essas reservas?
O Brasil tem que controlar seus recursos estratégicos, independente de qualquer coisa, e não basta ter controle apenas em cima de uma Petrosal. O argumento da Graça (Graça Silva Foster) é sem graça. É uma desgraça. Não consigo entender como isso está acontecendo se a presidente Dilma disse, em discurso quando candidata à presidência da República, que não iria privatizar o pré-sal.
Economicamente, a postura do governo é uma besteira. Nenhum país exportador de petróleo conseguiu se dar bem na história mundial, com exceção da Noruega. O Brasil deve explorar essas reservas no ritmo em que a Petrobras consiga explorar, ou seja, capitalizar a empresa para isso. Como capitalizar? Há várias maneiras. Deixa eu ser Ministro da Fazenda por um mês para ver como se capitaliza a Petrobras. Como ela está com uma imensa reserva de petróleo, devem ter muitos grupos financeiros dispostos a se associarem a ela.

E a empresa deve buscar alguma parceria financeira?
Não seria necessário, pelo seguinte: a Petrobras não pode se comprometer a investir 50 milhões de dólares a mais, considerando os programas que ela já está executando. Mas se ela começar a encontrar petróleo - e ainda vai encontrar mais petróleo rapidamente, e Libra deve estar produzindo muito em dois, três anos -, seu valor será multiplicado. E a Petrobras não precisa voltar todo o campo de produção imediata, ela precisa ter um ritmo de extração que corresponda à necessidade brasileira de desenvolvimento. Ou seja, gerar emprego para todos os brasileiros, melhorar as condições habitacionais, melhorar o sistema educacional, que está uma porcaria, fazer a cobertura médica. A realização de todos os nossos sonhos depende de o nosso país crescer 5, 6, 7% ao ano. Com a Petrobras, a economia do petróleo e um pouco de competência, o Brasil cresce sem dificuldade nenhuma.

Voltando às razões que fizeram o governo optar pelo leilão de Libra, concorda que motivos econômicos por conta das contas externas foram determinantes para a decisão?
Este governo opta pelo leilão por duas razões: uma delas é geopolítica, ou seja, o país quer aparecer ao capital financeiro mundial como bem comportado. Para quê? Para atrair mais capital de curto prazo para o Brasil. A segunda razão é manter a política do tripé que foi instalada pelos tucanos e preservada pelos governos Lula e Dilma.
Eu e muitos amigos iremos para a frente do hotel onde será realizado o leilão. Todos estaremos de terno preto e ficaremos lá, de pé, assistindo. Irei lá porque os meus netos foram às manifestações de junho reivindicar um país melhor. Me sinto mal, como idoso, em vender as empresas do Brasil, porque meus netos serão prejudicados.

Qual a situação das contas externas do país? Alguns críticos ao Leilão de Libra dizem que o Leilão servirá para melhorar as contas externas. Como avalia esse apontamento?
Não os levo a sério, porque eles querem que o país cresça menos, faça menos obras públicas e que se paguem mais juros para as aplicações financeiras. Na verdade, a única coisa que está salvando o governo Dilma são alguns projetos importantes que ela encaminhou, mas os empurrou com músculos moles, lentamente.
Hoje, a venda financiada de automóvel subsidia o consumo da gasolina. Sabe que a Petrobras está importando o litro da gasolina a R$ 1,72 e está vendendo a R$ 1,42? Então você acha que o governo vai mexer nisso? Claro que não! Se mexer nisso perde a eleição, porque todas as famílias se endividaram comprando automóvel, e se o preço da gasolina pular para cima, Dilma não se reelege. Então, o governo tem de estabilizar a economia de qualquer jeito, mesmo que tenham que entregar a herança, ou seja, o pré-sal.

Há alguns anos havia um entusiasmo em relação aos rumos da economia brasileira por conta do crescimento de 7% do PIB. Hoje, fala-se em declínio. O senhor concorda com essa análise? Quais as razões?
Quem tinha essa expectativa? Eu nunca tive! Eu sempre chamei o crescimento brasileiro, nos últimos anos, de “voo de galinha”. Nós desperdiçamos a grande chance das matérias-primas de alimentos terem subido muito de preço no início dos anos 2000. Nós tivemos uma bonança externa espetacular, mas ao invés de elevar a taxa de investimento da economia, desperdiçamos isso de mil e uma formas. Mas agora a sociedade está mudando.
Olha, não quero ser profeta de apocalipse, não quero ver as coisas piores do que são; quero apenas dizer o seguinte: o Brasil tinha que estar colocando as barbas de molho em relação à crise mundial. Ela está aí, e não se apresentou toda. Eu estive na Grécia há dez dias e, andando do hotel até o museu, em quatro quarteirões na principal avenida da Atenas moderna, todas as lojas estavam fechadas e quebradas. Havia só uma loja aberta, na qual entrei. Quem me atendeu foi um senhor idoso, dono do estabelecimento. Elogiei a loja e ele informou que não tinha compradores. Também vi em Roma pessoas de terno dormindo na rua. A Europa está em uma situação muito ruim. Para você ter noção, eu vi em Atenas uma reunião de um partido nazista na rua. Eram 40, 50 pessoas reunidas, propondo a violência como solução: violência não se sabe contra quem, nem a favor de quem.
E o Brasil está simplesmente se movendo como se a globalização estivesse indo bem e pudesse dar sustentabilidade ao país. Vou dizer uma coisa: o que mais me escandalizou nessa viagem que fiz é a extensão com que se usa a expressão BRIC - Brasil, Rússia, Índia e China. Não existe isso, o que existe são quatro países imensos, com problemas muito diferentes e sem nenhuma possibilidade de atuar juntos. Aliás, eu sempre disse isso nos últimos meses, e hoje mesmo os jornais estão dizendo que o Brasil está brigando com a China porque a China está apoiando os Estados Unidos em uma proposta internacional em relação aos serviços. O Brasil e a China são contrários, corretamente. Mas a China é parceira dos Estados Unidos; o que existe no mundo é um G2. Sabe por que o Brasil gosta da ideia de BRIC? Para dizer “olha como sou grande, como sou forte, como sou emergente”. É emergente, mas o PIB brasileiro cai sem parar. O país está desindustrializando.

E a razão desse declínio da economia é a desindustrialização?
Esse declínio está relacionado ao fato de o Brasil não ter nenhum projeto nacional, porque adotou a proposta do Consenso de Washington, no período do Collor de Melo, o qual foi mantido pelos tucanos e petistas. Na verdade, o Brasil não tem projeto nenhum, a não ser de se integrar à globalização. Aliás, a sensibilidade financeira brasileira ao que acontece fora do mundo é assustadora. Ontem, as bolsas de valores do mundo subiram, porque teve uma conversa inicial boa entre os republicanos e os democratas. Sabe qual a bolsa que mais subiu? A Bovespa. É a que mais baixa também quando tem qualquer coisa fora. Sabe por quê? Porque o Brasil está inteiramente aberto ao jogo financeiro internacional, e agora vai abrir mão da soberania nacional entregando a maior riqueza do país, ou seja, o monopólio estatal do petróleo que foi mantido pela Constituição de 1988 e foi modificado por uma emenda constitucional, a qual nunca foi submetida a plebiscito popular.