terça-feira, 17 de julho de 2018

A democratização do Estado

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Por Hamilton Garcia de Lima

A democracia representativa no Brasil é uma experiência historicamente recente, cuja inauguração pode ser associada ao fim da monarquia escravista (1888-89) e ao processo de urbanização e diversificação econômico-social que a partir daí se encorpou. Se comparada à da Inglaterra, bem mais antiga, é também bastante mais irresoluta. Os ingleses, depois de um longo período de disputas religiosas (1547-58), conflitos políticos agudos e guerras civis (1640-89) — com um Rei decapitado (1649) e uma República autoritária (Cromwell, 1653-58) —, encontraram seu modelo numa Igreja reformada (1559) e numa Monarquia Constitucional governada por um Parlamento representativo sob a égide da Declaração de Direitos (1689), que afirmava a liberdade dos indivíduos como base inalienável das formas de governo.

No nosso caso, nem a Igreja foi reformada nem o poder absoluto do Estado foi decapitado; tudo se deu, como reza nossa tradição, de maneira segura e sincrética, mantendo-se os indivíduos subjugados ao poder oligárquico, fonte primeira do poder de Estado. Depois de derrubada a Monarquia por uma conjuração militar-civil (1889), na qual o povo assumiu o papel de expectador — tanto ativo como passivo —, inaugurou-se um período (Primeira República) em que as oligarquias agrárias ganharam autonomia (federalismo) e as burguesias, voz ativa no cenário político das mais importantes cidades (liberalismo), sem, contudo, ameaçar o poder estabelecido sobre o vasto território — inclusive os currais eleitorais, beneficiados pela vigência do voto aberto e a ausência de autoridade corregedora isenta — e as mentalidades (Igreja Católica).

Não obstante o conservadorismo do pacto elitista inaugural da República — com a fracassada pretensão reformista de certos setores militares (positivistas) —, as novas classes sociais urbanas manifestariam seu descontentamento político, mesmo tendo contra elas o liberalismo de fachada instituído pela Constituição de 1891 e a dura repressão das forças policiais. Medidas como o fim do voto censitário, dos privilégios nobiliárquicos e da dominância eclesiástica sobre as localidades e a educação — entre outras iniciativas legais modernizadoras —, mesmo descasadas de reformas econômico-sociais progressistas (agrária, urbana, tributária, financeira, etc.), foram suficientes para, pelo menos, inaugurar um período de aspirações democráticas, que acabaria por desnudar o descompasso entre a superestrutura jurídico-política e as mudanças econômico-sociais, de sentido democratizante, provocadas pelo avanço do capitalismo — descompasso este que, não obstante os avanços percebidos desde 1985 (Nova República), está na base da instabilidade política dos nossos dias.

As curtas experiências liberal-democráticas vividas após as intervenções civil-militares de 1930 e 1945 — logo descontinuadas por intervenções análogas de polaridade invertida e sentido diverso, em 1937 e 1964 — demonstraram a fragilidade (e a força) de nossa tradição republicana. Nelas, podemos enxergar as marcas profundas do nosso modo de sercontemporâneo, radicado na formação social polarizada por quatro séculos de latifúndio, em que tanto a sociedade civil se forjou comprimida pelo esmagador peso do agrarismo colonial, como a sociedade política (Estado) se amalgamou ao compromisso neopatrimonial, mesmo quando sob a liderança de seus setores dissidentes (populismo).

Enquanto 1930 e 1945 nos revelaram uma sociedade civil trabalhadora frágil, incapaz de conter os arroubos jacobinos de suas lideranças — rupturismo que propiciou o retrocesso autoritário após a aventura “revolucionária” de 1935 e depois, em sentido inverso, levou os comunistas a apoiar o ditador que antes queriam derrubar, precipitando a intervenção militar redemocratizadora —, 1937 e 1964 mostraram a inapetência da sociedade civil burguesa em lidar com as pressões legítimas (e ilegítimas) pela democratização vindas de baixo, cedendo ou estimulando o protagonismo conservador de caserna ao invés de pactuar a reforma das instituições republicanas da qual participavam — entre elas, o Parlamento e o Judiciário —, de modo a reverter seu embotamento histórico (patrimonialismo).

A semelhança com a crise de hoje não é mera coincidência: a sociedade civil trabalhadora continua presa fácil de lideranças retrovisoras (bolivarianistas) e de um populismo que, embora descido às fábricas, ainda veste o manto sagrado dos pais dos pobres, enquanto as principais instituições republicanas (redemocratizadas) claudicam pela insuficiência das reformas até aqui efetuadas, abrindo amplo espaço para o conservadorismo de caserna, agora autonomizado pela fórmula político-eleitoral do bolsonarismo.

De auspicioso, apenas a emergência de uma nova sociedade civil burguesa disposta a renovar as lideranças políticas do liberalismo, contra a vontade de seus partidos tradicionais; um novo ativismo do Ministério Público e do Judiciário, que — dentro de seus limites funcionais e ainda adstritos à esfera federal — permitem o avanço das reformas institucionais que Executivo e Legislativo tentam barrar; e uma liderança militar (Alto Comando) até aqui inclinada a apoiar ambas as novidades e agir, se necessário, apenas na condição de última instância.

Tal conjunção, que tem constituído até aqui a verdadeira âncora de nossa ainda frágil liberal-democracia — diga-se de passagem, contra a vontade de boa parte das esquerdas, inclusive a desconfiança de certos setores seus de viés liberal —, carece, é verdade, de uma concertação política mais ampla do que a permitida pelos parâmetros corporativos dos operadores do direito; mas isto parece estar sendo superado, não obstante sua mais nítida expressão eleitoral, Joaquim Barbosa, ter desistido da postulação por conta de uma aparente falta de vocação.

O que é importante nisso tudo é que a sociedade civil, por meio da política bem pensada e articulada, pode vencer a pesada herança semirrepublicana que resiste no Estado, nas corporações e nas mentes de todos os quadrantes ideológicos, mas para isso vai ter que se livrar dos mitos e das concepções ideológicas anacrônicas e pseudorrealistas que a impedem de enxergar o cenário em toda a sua inteireza e complexidade, inclusive contemplando os remédios contra a pior de todas as heranças: a marginalização social por meio da pauperização econômica e da alienação laboral-educacional, que exigem a reinvenção do liberalismo (liberalismo-social) e do progressismo-nacional (neodesenvolvimentismo).


sábado, 19 de maio de 2018

O que é a “Geringonça portuguesa”?

 
Antonio Costa (Valter Campanato / Agência Brasil)
“Geringonça” é o apelido dado ao governo que assumiu o poder em Portugal em novembro de 2015. O gabinete é liderado pelo primeiro-ministro Antonio Costa, do Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, e se sustenta em acordos com três siglas cujas ideias são em geral classificadas como de extrema-esquerda no contexto europeu — o Partido Comunista Português (PCP), o Bloco de Esquerda e o partido Os Verdes.

A Geringonça se formou de maneira improvável. Após governar Portugal por quatro anos entre 2011 e 2015, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, venceu as eleições legislativas de 4 de outubro de 2015 com 38,5% dos votos (coligado com o Partido Popular), cerca de seis pontos à frente do PS, que disputou sozinho.

Passos Coelho não conseguiu, no entanto, manter a maioria no parlamento português, a Assembleia da República, que havia lhe permitido implantar a política de austeridade exigida pela União Europeia em meio à crise da dívida no continente.

Em 10 de novembro de 2015, o gabinete provisório da centro-direita foi derrubado por uma coalizão de partidos de esquerda e extrema-esquerda, que detinham maioria na formação pós-eleitoral da assembleia.

União das esquerdas

A derrubada do governo de centro-direita só foi possível por conta da união das esquerdas em torno do nome de Antonio Costa e do Partido Socialista. Tal acordo se deu meio a uma saraivada de críticas.

Economicamente, analistas avaliavam que a coalizão esquerdista colocaria o país em apuros, uma vez que Costa prometia “virar a página da austeridade” e reduzir o alcance de uma política econômica que agradava ao mercado financeiro, mas que aumentou o desemprego no país.

Cartoon de Vasco Gargalo realizado para uma reportagem do canal RTP que regista o segundo aniversário dos inéditos acordos de Governo entre PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes (Reprodução)

Politicamente, a coalizão era criticada por ser apontada como frágil, uma vez que havia muitas diferenças entre os integrantes da união. Neste contexto, Paulo Portas, então presidente do CDS — Partido Popular, um partido conservador, fez um duro discurso contra Antonio Costa e afirmou que a coalizão não era “um governo, mas uma geringonça”. Tratava-se de uma paráfrase de uma crônica de Vasco Pulido Valente, no jornal Público.

Literalmente, geringonça significa o que é malfeito, com estrutura frágil e funcionamento precário; um aparelho ou mecanismo de construção complexa.

O epíteto, então depreciativo, passou a ser adotado por comentaristas políticos e também por integrantes da “geringonça”, e hoje ganhou uma conotação positiva, por designar a força de um governo apontado como fraco em sua origem.


Fonte: Medium

terça-feira, 3 de abril de 2018

5 FATOS QUE VOCÊ PRECISA SABER ANTES DE CRITICAR A DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA


Nos últimos anos o debate sobre a desmilitarização da PM vem crescendo cada vez mais em todo o país. E não é pra menos. Segundo levantamento revelado pela edição 2014 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil tem a polícia que mais mata e mais morre no mundo. Só a polícia do Rio de Janeiro mata quase o dobro que a polícia de todos os EUA, segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública).

Hoje, temos três Propostas de Emenda Constitucional (PEC 430, de 2009; PEC 102, de 2011; e a PEC 51, de 2013) que tratam da desmilitarização da polícia e que visam alterar o artigo 144 da Constituição Federal. No entanto, à medida em que a repercussão a respeito do assunto se intensifica, as dúvidas em relação a ele também acentuam-se na mesma proporção. Por essa razão, elencamos 5 questões essenciais para o melhor entendimento dessa reivindicação, visando contribuir para um melhor debate público sobre esse tema que interessa a todos nós e que pode ser um caminho para vivermos numa sociedade mais justa e segura.

1 – Desmilitarizar não é extinguir nem desarmar a polícia


A principal delas é sobre o que seria de fato a “desmilitarização”. Muitos a confundem com desarmamento ou extinção da polícia, na maioria das ocasiões, induzidos ao erro por setores conservadores da sociedade. Desmilitarizar a PM não é nada mais do que transformá-la numa instituição civil (atualmente ela é vinculada ao Exército), como são todos as outras que cuidam da segurança pública, para assim permitir que seus membros detenham os mesmos direitos e deveres básicos do restante da população.

E embora países como a Grã-Bretanha, Irlanda, Islândia, Noruega, Nova Zelândia e uma série de nações insulares no Pacífico contem com muitos policiais que patrulham desarmados, não é esse o objetivo da medida. Ela visa apenas abolir da polícia o seu modo de operação bélico que vem do sistema militar das Forças Armadas e de sua ação hierarquizada. Ambos foram intensificados na reformulação da segurança pública promovida pelo golpe ditatorial de 1964. No Brasil, infelizmente, a formação dos(as) agentes de segurança ainda é feita, via de regra, mantendo esse modelo, ou seja, baseada na ideia da guerra contra um “inimigo”. E quem é esse inimigo? Dependendo da sua condição social e econômica, pode ser você.

2 – Sete em cada dez PMs são favoráveis à desmilitarização


Segundo a pesquisa “Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública”, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pela Fundação Getúlio Vargas e Secretaria Nacional de Segurança Pública, 77,2% dos policiais defendem o fim do modelo militarista. Em pontos percentuais, a aceitação é ainda maior no Rio de Janeiro: 79,1% disseram “sim” à desmilitarização. O levantamento ouviu 21.101 pessoas em 2014.

3 – A desmilitarização ampliará os direitos dos PMs


Com a desmilitarização os recrutas não serão submetidos a treinamentos violentos e a maus tratos, eles terão seus direitos respeitados e serão preparados para respeitar os direitos dos cidadãos; os policiais terão liberdade para se expressar e exigir condições dignas de trabalho; os profissionais não serão mais submetidos à Justiça Militar e a punições descabidas, como prisão por atraso (aliás, abusos de autoridade, tão comuns à hierarquia militar, não serão permitidos).

Pegando como base a PEC 51/2013, toda organização policial também deverá ter uma linha de promoções unificada. Hoje, por exemplo, existem linhas de carreira separadas para oficiais e praças, e dificilmente um policial iniciante chega a coronel. A mesma coisa acontece nas polícias civis, entre agentes e delegados. A carreira única não abrange funções auxiliares.

Além do mais, a proposta garante a manutenção de todos os direitos trabalhistas dos profissionais da segurança, pois o objetivo é que os policiais sejam, devidamente, mais valorizados perante a sociedade e o poder público. 1 de 62

A título de comparação seguem alguns Direitos Humanos que os policiais civis possuem e que os policiais militares não:

– Liberdade de expressão;
– Não ser arbitrariamente preso (no quartel);
– Poder se organizar em sindicato para defender coletivamente seus direitos e interesses.

Sendo assim, não só a sociedade – que terá uma polícia treinada não para a guerra, mas para a proteção dos direitos e promoção da cidadania – sairá ganhando. Os servidores também serão extremamente beneficiados.

4 – A ONU recomenda a desmilitarização


A ONU sugere o fim da militarização das polícias em todo o globo e, em 2012, no relatório, divulgado pelo seu Conselho de Direitos Humanos, pediu ao Brasil maiores esforços para combater a atividade dos “esquadrões da morte” e a supressão da Polícia Militar, acusada de numerosas execuções extrajudiciais.

Esta foi uma de 170 recomendações que os membros do Conselho de Direitos Humanos aprovaram como parte do relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre o Exame Periódico Universal (EPU) do Brasil, uma avaliação à qual se submetem todos as nações.

Na ocasião, países como Dinamarca, Coréia do Sul, Austrália e Espanha também aconselharam uma total reformulação no modelo de polícia adotado por nosso país.

5 – Muitos países já aderiram à desmilitarização


Na Argentina não há força policial com caráter militar. No Reino Unido também não, mas sua Royal Military Police (RMP) ainda existe apenas para policiar a comunidade militar em todo o mundo.

A Bélgica não tem mais uma força policial militar. Há um serviço policial baseado nos princípios de policiamento comunitário, o que significa que a polícia funciona como um órgão de prestação de serviço para cada cidadão e não mais como um instrumento de força para o governo local ou nacional.

Para surpresa dos mais conservadores e admiradores dos Estados Unidos, nesse país também não existe segmento de cunho militar na segurança pública. Há, porém, a chamada Guarda Nacional, composta por pessoas que se alistaram, mas não foram chamadas para servir o Exército, a Marinha ou a Aeronáutica. A guarda é chamada para atuar em casos de grandes desastres ou catástrofes, que coloquem em risco a segurança nacional (como furacões na Flórida). Esse modelo estadunidense é bem parecido com o que propõe a PEC 51, dando ainda mais controle para os municípios.

Na terra do Tio Sam, na Inglaterra e em outros países que adotam o sistema anglo-saxão, as policias são compostas exclusivamente por civis e são de ciclo completo, isto é, o policial ingressa na carreira para realizar funções de policiamento ostensivo e, com o passar do tempo, pode optar pela progressão para os setores de investigação na mesma polícia.

O êxito da desmilitarização pode também ser conferido no balanço da 7ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2013, que revelou que 70,1% dos brasileiros não confiam na polícia. O número foi 8,6% maior do que o registrado em 2012, quando 61,5% da população desconfiava da atuação policial. Paradoxalmente, o índice de aprovação é inverso nos EUA e no Reino Unido. Cerca de 80% dos cidadãos americanos e britânicos dizem confiar em suas polícias.

Ademais, na maioria dos países que possuem polícia militar, esta fica responsável pelo policiamento interno dos quartéis ou em regiões de fronteiras nacionais.


Fontes:

• Câmara dos Deputados – Proposta de Emenda à Constituição 430/2009

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Da sociedade disciplinar à tirania do gozo obrigatório

maça vale


Mundo neoliberal é marcado pela exigência de satisfação irrestrita. Estimula-se um novo consumismo – agora mais excludente, embora cool; agora mais consciente, embora continue profundamente alienado

Por Thiago Canettieri, no InDebate, parceiro de Outras Palavras
Imagem: Michelangelo Pistoletto, A Maçã Reintegrada

O neoliberalismo como movimento contemporâneo de ordem simbólica do capitalismo aparece como totalidade que estrutura as dimensões mais subjetivas da vida. A razão neoliberal e sua forma-de-vida decorrente indicam um sistema normativo que se desenvolve no seio do capitalismo, aprofundando-o. Esse princípio foi sintetizado pela própria Margareth Thatcher ao definir o objetivo do neoliberalismo: “mudar a alma e o coração”.

Assim, o neoliberalismo persiste porque é uma norma de vida que impõe um universo de competição generalizada e que cria circunstâncias globais para tal (tanto na escala do planeta como nos aspectos políticos, econômicos, sociais e subjetivos). Com isso, a lógica da concorrência passa a ser a norma de conduta e a empresa opera como o modelo de subjetivação hegemônico.[1]

O que acontece nessa perspectiva é a conformação da lógica empresarial como uma “ordem” moral que é colada – a partir de vários expedientes – na subjetividade de cada indivíduo. Forma-se um espírito de empresa, que é o que garante o funcionamento da sociedade neoliberal. Como? A relação consigo próprio, a relação com seus familiares e amigos, e com qualquer outro indivíduo passa a ser operacionalizada a partir de uma lógica própria da empresa, como uma forma de “governo de si”, que passa a ser balizada a partir das práticas de mercado. O resultado desta operação é ascensão do mercado como espaço de veridisdição, ou seja, de produção de verdades.[2]

Esse novo sistema de disciplina é fundamentado pela ideia de que o governo de si e dos outros se realiza a partir da estruturação do campo de ação, controlando o regime de desejo (pela recompensa, punição ou substituição do objeto). E toda a estruturação da ideologia serve para aceitar a instituição do mercado como a regra do jogo, capaz de implantar coerções de mercado que forçam o indivíduo a adaptar-se a ele.

A novidade do neoliberalismo é a radicalização e o aprofundamento da lógica capitalista de subjetivação conformada pelo mercado. Muitos situam o começo do neoliberalismo nos primeiros anos da década de 1970, mas cabe dar um passo atrás. Alguns anos antes, o mundo efervescia contra as estruturas disciplinares do capitalismo – o maio de 1968 francês talvez se configure, dentre essas explosões, como a que ganhou maior destaque. Acontece aí talvez o ponto de inflexão com a apresentação de novas demandas por parte do corpo social que foram capturadas dentro do regime do Gozo e da circulação de afetos no capitalismo. Foi talvez nesse momento que a ordem simbólica se reorganizou em uma nova constelação.

Se os séculos XIX e a primeira metade do século XX eram marcados por rígidas estruturas disciplinares pelas quais o superego/supereu[3] interditava os indivíduos, gerando assim a forma clássica do sofrimento que Freud captou por meio da ideia de histeria e de outras neuroses, o neoliberalismo traz consigo uma forma muito específica de organizar os afetos e os sofrimentos da sociedade. Na contemporaneidade, o supereu aparece como um imperativo de gozo. A consequência paradoxal e trágica é uma corrida desenfreada ao gozo que acaba, evidentemente, na impossibilidade de satisfação, pois o supereu ligado ao registro real é uma instância distinta da lei reguladora, referida ao registro simbólico, e exige cada vez mais. O supereu ligado ao registro real veicula uma lei insana, que não oferece uma medida ao gozo, mas incita a esse mesmo gozo.

O neoliberalismo inaugura uma forma de subjetivação organizada pelo imperativo do gozo, mas um gozo que nunca se realiza plenamente, provocando uma espécie de expropriação do próprio gozo. O que o neoliberalismo promove é uma articulação de sentidos que determina uma forma bem específica de circular os afetos.

O mundo neoliberal é marcado por uma exigência de satisfação irrestrita. A sociedade do consumo, do excesso, do iphone 3 (3G e 3GS), 4, 5, 6, 7, X pode ser descrita como A Sociedade do Gozo. O supérfluo, o descartável, o excesso são as marcas dessa relação, e esses “aparelhinhos mágicos”, os gadgets, ilustram bem a economia do gozo. Mas, diante das contradições imposta pelo consumo desvairado – tanto no nível material como o simbólico, uma nova constelação para o circuito de subjetivação se forma: o consumo consciente. biodegradável, verde, com doações para os países do terceiro mundo.

As mercadorias, diante do vazio que o consumo desvairado proporcionou desde as décadas finais de 1970, permitiu uma reorganização simbólica para que o ato egóico do consumo já contenha o preço do seu oposto – carrega um adicional, uma espécie de caridade. Cabe verificar a lógica circular a que isso acaba levando: o consumo é percebido como o próprio remédio para o consumo – mas no fim, é apenas mais daquilo que causa o próprio problema. Assim, a mercadoria vem marcada com o seu excesso. O imperativo do gozo tenta ser estancado como que por uma sutura artificial – a caridade. E o problema da mercadoria, seu fetichismo fantasmagórico e sua função no circuito da acumulação, passa despercebido e intocável. A saída ideológica para o problema do consumismo é, invariavelmente, o próprio consumismo – mas agora mais excludente, embora cool; agora mais consciente, embora continue profundamente alienado.

E talvez sua representação esteja, exatamente – e ironicamente – na capital da moda. Na praça da estação central de Milão, é possível ver uma grande maçã branca – assim como a da Apple, a representação do imperativo consumista do gozo inconsequente – só que ela está suturada por um complexo sistema de grades e ferros que sustentam um implante, uma prótese. Mas o artista, Michelangelo Pistoletto, fez questão de deixar à mostra que ela não completa perfeitamente a fruta, que o material inserido no corpo é artificial e nunca será completo novamente. E o problema não se soluciona.

Com isso, o capitalismo passa por um reordenamento de sua constelação simbólica ao longo do século XX, que consolidou uma nova forma de subjetivação ligada ao ideal de felicidade. Ela se torna um imperativo para a vida (e para o próprio capitalismo). Assim, a felicidade é lançada como objetivo e passa a ficar evidente em cada espaço – passa a existir uma necessidade de sua afirmação positiva. Todavia, há aí um logro, e a promessa de felicidade a partir dos objetos de consumo (e de se fazer consumível segundo os padrões ditados pelo capitalismo) não se realiza. Assim, a felicidade nunca é completa, mas sempre falida.

A consequência disso é o fato – documentado pela própria Organização Mundial da Saúde – de que a depressão é o resultado paradoxal do imperativo categórico da contemporaneidade de busca da felicidade. Assim, não seria errado afirmar que vivemos numa sociedade da insatisfação administrada, na qual “o empuxo de produção e desempenho vem sendo suplementado por ingestão de substâncias, legais[4] e ilegais, em forma de doping tolerado, senão estimulado em nome de resultados.”[5] Dessa forma, para o neoliberalismo, diante da busca incessante da felicidade administrada nunca realizada, há necessidade de regular também o sofrimento, como experiência do sujeito.

A arte também oferece diagnósticos desse sentido, como o cineasta, escritor e poeta Paolo Pasolini identificou em seus livros Escritos Corsários e Cartas Luteranas. Nos anos 1970, ele já identificava o que ele chamou de “mutação antropológica” da sociedade italiana em direção ao o que ele chamava de um “novo fascismo” imposto pela globalização. O artista acreditava que esse processo estava criando um influxo semiótico por meio da publicidade de massas e da televisão, criando uma figura que chamou de “os sem futuro”: eram jovens com uma acentuada tendência à infelicidade, com pouca raiz cultural ou territorial, e que assimilavam de maneira automatizada, sem distinção de classe, os valores e a estética promovidos pelos novos tempos de consumo.

O que se tem, portanto, como resultado desse modo de socialização autodepreciativo amarrado a uma ideia de felicidade plasmado pelo consumo é o vertiginoso aumento do quadro de patologias psíquicas, marcadamente a ansiedade, a depressão e até o suicídio. Esse cenário parece ser uma constante em todo o mundo e está estreitamente vinculado às condições de hipercompetição e a precarização promovida pelo ethos neoliberal. Os jovens, impelidos a buscar um emprego que não conseguirão encontrar, exceto em condição de precariedade e subsalário, sofrerão consequências emocionais, como ansiedade, depressão e paralisia do desejo, estabelecendo, muitas vezes, com o outro, uma relação de competição, transformando-os em inimigos.

Até mesmo uma organização como a OMS alerta para esse cenário. A depressão é uma das doenças que mais cresce (20% na última década), e estima-se que afete 4,5% da população mundial (o Brasil está acima da média, com quase 6%). Ainda, é uma das doenças que mais mata no mundo. Atrás apenas das patologias cardiovasculares, a depressão alcançou o patamar de maior causa de incapacitação no mundo. O suicídio também cresceu, em especial entre os jovens de 15 e 29 anos (10% na última década) e se tornou a principal causa de morte desta faixa etária. Para entender o cenário de epidemia dessas doenças mentais, deve-se levar em conta a forma de sociabilidade que se construiu diante do movimento do capitalismo tardio.

E essa situação só parece aumentar diante da crise estrutural do capital. Frente aos limites de sobreacumulação, a cartilha neoliberal é imprimida com ainda mais força sobre as populações, como no golpe judiciário-parlamentar vivido no Brasil e voltado a passar reformas para atender interesses dos capitalistas em busca de oportunidades de investimentos mais vantajosas que, necessariamente, significam nas entrelinhas retirada de direitos. Por exemplo, a reforma trabalhista que o Brasil se orgulha em apresentar como solução para a crise, inspirada naquela realizada na Espanha, não leva em conta toda a história – ou, perversamente, a esconde. O resultado da reforma na Espanha foi o aumento do desemprego entre os jovens (chegando a quase 60% do grupo etário) e bateu outro recorde – por três anos consecutivos: o do índice de suicídio.

Este é o retrato do medonho capitalismo tardio contemporâneo que o Brasil pretende copiar. No nível do discurso, é colocada a dimensão da felicidade possível de ser acessada pelo consumo. Ainda que essa felicidade seja fadada ao fracasso, marcada por um imperativo de um ente externo e abstrato, a crise do capital obriga o desmantelamento até do mínimo de consumo, tendo como único resultado possível o aumento, ainda mais vertiginoso, do alcance pandêmico das normalopatias neoliberais.

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[1] Para mais, ver o livro de Dardot e Laval A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Boitempo, 2016).

[2] Argumento desenvolvido por Foucault em O nascimento da Biopolítica (Martins Fontes, 2008).

[3] Atualmente, os tradutores da obra de Jacques Lacan têm optado pela palavra supereu em detrimento de superego (termo reservado à obra de Freud). O supereu inclui tanto a voz que proíbe, a voz da lei, reguladora, simbólica, quanto a voz do gozo, real, obscena e feroz, que veicula a lei da pulsão de morte.

[4] Principalmente os psicofármacos, com destaque para os chamados “antidepressivos”.

[5] O neoliberalismo e seus normalopatas, Christian Dunker no Blog da Boitempo, 03 nov 2016 – https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/03/o-neoliberalismo-e-seus-normalopatas/