quinta-feira, 20 de junho de 2013

Mas Quem é o Partido? por Brecht





Mas quem é o partido?
Ele fica sentado em uma casa com telefones?
Seus pensamentos são secretos, suas decisões desconhecidas?
Quem é ele?

Nós somos ele.
Você, eu, vocês – nós todos.
Ele veste sua roupa, camarada, e pensa com a sua cabeça
Onde moro é a casa dele, e quando você é atacado ele luta.
Mostre-nos o caminho que devemos seguir, e nós
O seguiremos como você, mas
Não siga sem nós o caminho correto
Ele é sem nós
O mais errado.
Não se afaste de nós!
Podemos errar, e você pode ter razão, portanto
Não se afaste de nós!

Que caminho curto é melhor que o longo, ninguém nega
Mas quando alguém conhece
E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que nos serve sua sabedoria?
Seja sábio conosco!
Não se afaste de nós!

Brecht Poemas 1913 – 1956
Seleção e Tradução de Paulo César Souza
3ª edição – Editora Brasiliense



Novo estilo de golpe: direita busca as ruas e ressuscita inflação

Hoje, 10 de abril, deputados do Democratas fizeram um protesto criativo no plenário da Câmara. Eles empurraram para dentro da sessão um carrinho de supermercado cheio de tomates, que se tornou o símbolo do aumento da inflação nos últimos meses.


É o momento das forças de esquerda unificarem a luta, incidirem sobre o debate político ideológico e pressionarem o PT a tomar alguma posição


Por Luiz Felipe Albuquerque

- Filho, você vai no ato amanhã?

- Claro, mãe. Por quê?

- Olha, realmente não sei nada de política, mas peço que não, porque acho que vai rolar um Golpe de Estado.

Parece absurdo, mas esse diálogo – que de fato ocorreu com um amigo – é sintomático.

No meio da manifestação desta segunda-feira (17), em São Paulo, começou a se falar sobre uma suposta ocupação do Congresso Nacional.

Foi preocupante.

- Sabe como se chama isso?

Disse um companheiro de organização.

- Golpe de Estado.

Felizmente, como sabemos, não foi o que ocorreu. Mas esse momento de tensão nos leva a algumas reflexões.

Logo após a manifestação da última quinta-feira, a linha editorial dos principais meios de comunicação mudou de tom radicalmente.

Se na quinta pela manhã eles inescrupulosamente pediam à Polícia Militar agir com violência, na sexta as principais manchetes repudiavam a ação dos PMs. Se não pode vencê-los, junte-se a eles, e busque cooptá-los.

A mudança de discurso é significativa. Representa um oportunismo da direita para criar um clima de instabilidade nacional. Agora, as manchetes centralizam suas forças principalmente sobre o governo federal.

A preocupação com os megaeventos esportivos, o distanciamento do PT com as massas e sua incapacidade de diálogo, a suposta popularidade da presidência em queda, as vaias na abertura da Copa das Confederações.

A pauta política está dada. Agora, a direita busca a pauta econômica para concretizar seu discurso e desestabilizar o governo. E com isso, começam a retomar a questão da inflação.

O editorial da Folha desta segunda diz que, com exceção dos beneficiados do novo programa federal Minha Casa Melhor, “todos os outros brasileiros, em contraste, veem sua capacidade de consumo estreitar-se de forma acelerada, sob o golpe duplo do aumento da inflação (que já corrói os salários) e dos juros (que deve onerar as compras a prazo)”.

A história nos ensina que as contraofensivas se realizam com mais sucesso se for respaldada de um artefato sólido, ao entrelaçar elementos políticos aos econômicos.

E é o que estão buscando. “Dilma Rousseff resvalará para o autoengano, porém, se desconsiderar que as vaias vieram na semana em que se espalharam pelo país protestos contra altas de preços (tarifas de transportes) e contra o que alguns percebem como mau emprego de verbas públicas (nos eventos esportivos, entre outros)”.

E já atestam como fato dado que no ano pré-eleitoral, “são fortes os sinais de que se rompe a bolha de otimismo que levou Dilma ao Planalto”.

“O que aflige os brasileiros é a perda de poder aquisitivo, com a inflação, e a incapacidade do Estado de apresentar soluções concretas para a crise nas áreas vitais de saúde, educação, segurança e transportes. Mais consumo e mais futebol não resolvem nada disso”, termina o editorial.

Mentira. Os espasmos inflacionários que a tese dominante tanto aposta evolui pouco perto do estardalhaço. A última nota técnica do Dieese (abril), mostra que entre março de 2012 a março de 2013, o IPCA evoluiu 6,59%, enquanto os preços dos alimentos, 13.49%.

Se não fosse o problema do subgrupo alimento, que ocorre devido a problemas sazonais e estruturais da agricultura brasileira (como bem coloca Gerson Teixeira em seu artigo O agronegócio é ‘negócio’ para o Brasil?), o IPCA teria sido de 5.07%, segundo simulação feita pelo Ministério da Fazenda. A meta central de inflação dentro do intervalo de tolerância é de 6,5%.

 inflação

Tentam misturar as coisas, confundir e influenciar sobre um movimento ainda bem descentralizado. Soma-se a isso o fato da grande maioria (a redundância aqui é proposital) dos que participaram das manifestações não serem organizados e, ainda, rechaçarem violentamente partidos políticos e não terem uma compreensão clara sobre a necessidade organizativa.

Ao longo da marcha, bandeiras do PSTU foram tomadas por algumas pessoas. A Juventude do PT foi ameaçada por outro grupo e teria apanhado, não fossem outras organizações que estavam por perto e apaziguaram a situação. Boa parte do clima era de ódio com a política, com políticos e com partidos.

O momento é delicado. É necessário que a esquerda tenha isso em mente e, se ainda é possível, também coloca uma responsabilidade e necessidade do PT deixar de ser bundão, ser mais protagonista, polarizar o debate e politizar as massas.

E é o momento das forças de esquerda unificarem a luta, incidirem sobre o debate político ideológico e pressionarem o PT a tomar alguma posição. Sempre reforçando a pauta central: diminuição dos preços do transporte público, e não ampliando como a direta pretende.

A direita, longe de ser boba, está se aproveitando. E para capitalizar essa gente para servir a ela como massa de manobra, não é preciso muito devido o grau de despolitização que o período neoliberal nos deixou.

Sem dúvida, as políticas sociais dos governos petistas melhoraram a vida do povo em muito, mas apenas no âmbito do consumo. Sem nunca se preocuparem com o processo de politização da classe trabalhadora. O que nada garante que num momento de polarização do debate e uma ofensiva da direita, as massas saiam às ruas em defesa desse governo ou partido.

Se outrora o trabalho de base pelo PT era uma das prioridades, há muito ele foi abandonado. E esse vazio político deixado tem que ser preenchido e aproveitado por essa aliança de forças dentro da esquerda.

Ainda resta um dilema ao PT: ou o maior partido político que ainda se diz de esquerda vai para a ofensiva, ou corre um sério risco de dar um tiro no próprio pé.

Enfim, de fato, não acredito que as angústias de Golpe de Estado estejam colocados por hora, mas sem dúvida é um importante momento de reflexão para ocasiões futuras.


Luiz Felipe Albuquerque é do setor de comunicação do MST.


terça-feira, 18 de junho de 2013

Os perigos da “pátria amada”

Estamos preocupados com o rumo que esse levante popular pode tomar e com a associação dele a um discurso midiático vazio


Por Camila Petroni e Débora Lessa

O intuito da pequena reflexão que segue não é desmoralizar os atos ocorridos em diversas cidades brasileiras, que começaram contra o aumento das tarifas de transportes públicos, no início de junho, e, hoje, apresentam “pautas” variadas. É justamente a pulverização dessas motivações que nos preocupam. Quais são os motivos da luta mesmo?

Na página virtual (Facebook) do Quinto Ato, marcado para o dia 17 de Junho e com mais de 240 mil pessoas com presença confirmada (já esperando os ataques bárbaros da Polícia), as enquetes conseguem fazer qualquer queixo que se preze cair. Em uma delas, que perguntava qual bandeira deve-se levantar após a baixa dos preços das passagens (se houver), algumas das propostas colocadas como motivo de mobilização (mesmo que não muito votadas) são: cancelamento da Copa do Mundo 2014 (um tiro no pé, com todo o investimento já feito), Reforma Política (que reforma?), Segurança (mais PM nas ruas?), Diminuição da maioridade penal (sem comentários), Fim do Funk (projeto higienista manda um “Oi!”), a favor do Estatuto do Nascituro (sem comentários, de novo), CCC – Campanha Corruptos na Cadeia (não tinha um nome melhor? Quase um CCC – Comando de Caça aos Comunistas - de 1964), dentre outras propostas que preferimos não imaginar o que aconteceria caso ganhassem força.

 Guarapuavanos organizam manifesto em apoio a protestos no Brasil

Se por um lado, a heterogeneidade de propostas e a falta de uma liderança nos movimentos representa a possibilidade de uma relação horizontal entre os sujeitos; por outro, a falta de direcionamentos aponta para o risco de causas conservadoras se tornarem as principais do movimento agora sem nome. Não consideramos o quadro atual da manifestação como anárquico, classificação feita em algumas análises, mas como preocupante, nesse sentido.

Outro ponto bastante incômodo em relação às pessoas se organizando para o ato (e a fim de formar um movimento – longe de estar unificado), é o (perigoso) nacionalismo proposto por boa parte dos manifestantes, e presente principalmente na ideia de entoarem o Hino Nacional em coro. Em uma enquete, feita também na página de organização do ato da segunda-feira (17), a maioria esmagadora era a favor de que cantassem o Hino em massa. A verdade é que sentimentos ufanistas assustam, sobretudo por sabermos, historicamente, que nunca geraram bons frutos. Estudos apontam que o ideário nacionalista brasileiro, em sua trajetória, poucas vezes chegou às classes populares (por que será?), pertencendo aos militares. Um comentário bastante sensato feito na mesma enquete, colocou que o “hino é um instrumento que forja uma falsa unidade nacional”. Se a mundialização do capital está posta, a necessidade da mundialização da luta é latente. Para isso, nada de bandeiras do Brasil em volta de nossos corpos, nada de “pátria amada, idolatrada”.

É batido, mas Marx já justificara por A + B que “os operários não têm pátria” e, por mais que devamos lutar pelas condições horrendas as quais nos coloca o capitalismo, isso não tem a ver com o “orgulho de ser brasileiro”, mas com o orgulho de sermos humanos.
E aqui nasce uma nova preocupação: até ontem pairava no ar um espectro do oportunismo da “grande” mídia, que, aparentemente, pareceu ter sido desmistificado com as recentes publicações da Globo e seus atores com olhos pintados fazendo uma alusão à jornalista acertada covardemente com uma bala de borracha no olho, depois nos deparamos com um link a ser compartilhado nas redes sociais que trazia dicas de “Moda para protesto, roupa de guerra” - a estilista pop global, Gloria Kalil, já havia soltado no site dela opções de roupas (sic!) para ir ao ato. Agora, qualquer dúvida que ainda tínhamos sobre um possível oportunismo ficou clara ao nos depararmos com - o sempre tão incisivo - Arnaldo Jabor voltando atrás em relação a quando deslegitimizou as primeiras manifestações comparando-as com ações do PCC, vitimizando os policiais e ressaltando a ignorância política dos manifestantes. Ele se redime e depois compara o movimento ascendente com o, exaltado pela própria Globo, Caras Pintadas (o movimento pode ter se originado de uma indignação, mas logo foi absorvido pela maior rede de TV do Brasil... Ah! A mesma emissora que ajudou na eleição do Collor). Daqui a pouco, veremos propagandas de refrigerantes convocando o Brasil pras ruas, presenciado o maior “jogo” já visto... A arte de mercantilizar a revolução.

Bandeira do Brasil é cercada por hashtags alusivas aos protestos que acontecem em todo o Brasil (Foto: Reprodução/UFCG)

Pra não dizer que não falamos dos espinhos, ter os povos nas ruas, em massa, não é sempre sinal de mudança popular. Em 1964, os setores conservadores da sociedade tremeram com a “ameaça comunista” (ainda com Jango no poder), que representava, na verdade, uma “ameaça” à propriedade privada e foram às ruas, em meio milhão de pessoas, com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Dias depois, instaurada a Ditadura Militar, um milhão de pessoas marcaram presença na Marcha da Vitória, comemorando o início de duas das piores décadas que já vivemos. Estamos preocupados com o rumo que esse levante popular pode tomar e com a associação dele a um discurso midiático vazio.

Não queremos ver uma marcha à la TFP, com pessoas vestidas de branco, cantando o hino e levantando bandeiras com os dizeres “Cansei”. Precisamos de sujeitos engajados em uma luta comprometida com os movimentos sociais e populares, aliados aos anseios dos trabalhadores!

 

Reiteramos, mais uma vez, nosso ânimo e contentamento em viver tudo isso, mas mantenhamos os pés no chão para não defendermos um discurso uníssono no qual o senso comum pode se misturar com o que deveria ser um discurso crítico e de esquerda.


Camila Petroni é historiadora pela PUC-SP, Assistente Editorial e mestranda em História Social pela PUC-SP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/371694913814605

Débora Lessa é socióloga pela PUC-SP, Professora de Sociologia e mestranda em Ciência Política pela PUC-SP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2369964242733352


domingo, 16 de junho de 2013

O sistema de transporte é mais violento do que a polícia

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Por Bruno Cava, republicação do Quadrado dos loucos

Ligo o rádio e ouço que o trânsito está um caos. Desconfio imediatamente. O trânsito me parece muito organizado. Vejo fluxos turbulentos de ônibus, carros, motos, trens, indo e vindo do subúrbio ao centro e então do centro ao subúrbio. Todos os dias, ininterruptamente. São milhões de veículos abarrotados de uma gente resignada, olhares perdidos, no tempo morto do transporte diário. Vamos sentadinhos ou de pé, em qualquer caso comprimidos na massa de semelhantes de cara fechada. Acordamos cedo para enfrentar essa via-crúcis e no final do dia só queremos que acabe logo para chegar em casa, tomar banho e no dia seguinte subir a pedra de novo. São milhões e milhões de horas humanas gastas, jamais remuneradas. Pelo contrário, taxadas a preços que não param de aumentar.

Todos os dias nos acotovelamos, nos estranhamos, nos empurramos, passamos à frente, ou somos sobrepujados pelos mais espertos ou fortes. Brigamos por lugares apertadíssimos, repelindo a carne alheia. De carro, buzinamos, fechamos, brigamos com o motorista vizinho, xingamos o motociclista. A culpa é sempre do outro mal educado. Ou então é nossa, por ainda não podermos comprar o conforto do carro particular, por não morarmos ou trabalharmos no lugar correto. No mais das vezes, nos refugiamos nas mentes, lamentando a condição miserável de passageiro. Que passe logo.

Enquanto isso, uma dinheirama à noite estará depositada nos caixas dos ônibus, ficará nas bilheterias do metrô, do trem, das barcas, ou então estará trocada nos postos de gasolina, por ainda mais crédito medido em quilômetros para rodar no purgatório de asfalto. Esse dinheiro irrigará empresários, dirigentes, burocratas, campanhas eleitorais. Será reaplicado para tirar ainda mais valor dos fluxos. Não. Sejamos realistas. O trânsito está bem organizado. Nós somos a maior prova disso. Como poderíamos aguentar ainda outro dia, amanhã mesmo, se não tivesse sido pensado de cabo a rabo para funcionar assim? Só pode ser por que é para funcionar assim.

A grande imprensa faz crer que bastaria ajustar a eficiência do sistema, melhorar a gestão, reduzir a corrupção etc. Detalhes de minúscula importância. Vejo a TV chamando o trânsito de caótico, mas nenhuma palavra sobre o completo alijamento das pessoas na decisão sobre as linhas, as empresas, as obras e os equipamentos. A ausência de caráter democrático nas macro ou micro decisões no plano dos transportes é absoluta. Tampouco alguma reportagem, notícia ou artigo a respeito da confusão de prefeitura e empresa de ônibus, unha e carne num projeto político que vai das eleições à governabilidade. Nenhum jornalista dá nome aos bois. Aí quando um ônibus cai do viaduto, a culpa foi de um passageiro agressivo. Quando a mulher é estuprada numa vã ou num ônibus, a culpa é de alguns marginais. Escondem o fato que, por trás dessas exceções, subsiste uma regra menos confessável. Atrás do que o sensacionalismo diverte, há razões estruturais. O capitalismo é um sistema de dominação indireta.

Como se a tensão entre passageiros e motoristas/cobradores não fosse causada pelo ódio que todos têm dos ônibus. O que, por sua vez, exprime vicariamente o ódio que se tem pelo sistema de transportes como um todo. Isto é, pela simbiose entre prefeitura e empresa, numa gestão que parece operar mediante algum inacessível plano divino. Como se não fôssemos desgastados e estressados diariamente, até a exaustão mental (não fossem os tarjas pretas!). Como se as mulheres não tivessem de encarar, até a neurose, um abuso sexual sistemático, quase naturalizado pela indiferença com que esse abuso é observado pelos outros ao redor. Porque muitos homens se esfregam nelas nos veículos lotados, passam-lhes o pau, e alguns fazem isso como um ritual diário. Várias são estupradas nos pontos mais isolados, de dia ou de noite.

Antigamente, os escravos eram gastos no engenho e tinham de ser trocados a cada 7 ou 8 anos. Revoltavam-se demasiado. Fugiam. Culpavam o senhor. Hoje, a carne é moída pelo menos duas vezes ao dia, de manhã cedo e à tardinha. Mas os músculos e nervos a gente dá sobrevida com os modernos tratamentos da medicina do trabalho. Principalmente a televisão, a nossa maior terapeuta. A culpa geralmente é atribuída a nós mesmos, muitas vezes autoatribuída: se estamos sofrendo é porque fracassamos. Por não nos esforçarmos o suficiente para sair dessa vida de merda, como fulana ou beltrano…

Em vez de admitir como seria muito mais fácil, muito mais prático, lutar coletivamente por um transporte para todos, achamos que o problema é individual, que no fundo teríamos uma parcela da culpa, e nos resignamos. Imagine contudo o efeito político, se as energias que despendemos para, num esforço individual inglório, sair dessa condição e “subir na vida” fossem aplicadas coletivamente na luta dos transportes? Como teríamos um transporte muito melhor e para todos, do que tentar subir sozinho somente mais um degrau na escala de degradação generalizada da vida na metrópole?

Os movimentos e lutas do passe livre são a melhor saída. Talvez a única. Arregaçam à força um rombo no beco sem saída, aonde nos coloca a falsa oposição entre “público” e “privado”. Rejeitam em bloco as narrativas da grande imprensa, seus opinólogos e especialistas, de que faltaria gestão ou eficiência (e que o povo é mal educado). O problema do transporte afinal não é ele ser público nem privado, como estas também não são suas soluções. Nem ser mal gerido. O problema é e sempre foi falta de democracia.

E democracia, inexoravelmente, significa tumulto. O tumulto é o pulmão das democracias. É nele que atua o poder constituinte, o que faz a constituição e a lei não serem apenas folhas de papel para a exegese das faculdades de direito. Não devemos confiar a constituição a capas-pretas, cortes supremas ou ao francamente conservador discurso do “ativismo judicial”. O tumulto é o momento em que nós a fazemos nossa, e de onde dimanam todos os direitos e todas as instâncias democráticas. O tumulto é um ato de dignidade, o que só acontece ao irresignar-se diante do intolerável. A dignidade não é humana: é o oposto da humilhação. Uma das maiores e mais disseminadas violências hoje está no sistema de transportes.


Fonte: Uninômade