sexta-feira, 29 de junho de 2012

A Filosofia Como Uma Arma Revolucionária por Louis Althusser



A Filosofia Como Uma Arma Revolucionária
Louis Althusser
Fevereiro de 1968


1- Você poderia nos contar um pouco sobre sua história pessoal? O que o trouxe à filosofia marxista?

Em 1948, quando eu tinha 30 anos, me tornei professor de filosofia e me filiei ao PCF [Partido Comunista Francês]. A filosofia era um interesse, eu buscava fazer dela minha profissão. A política era uma paixão, eu almejava ser um militante comunista. 

Meu interesse pela filosofia foi motivado pelo materialismo e sua função crítica: o conhecimento científico, contra todas as mistificações do "conhecimento" ideológico. Contra o mero denuncismo moral de mitos e mentiras, por suas críticas racionais e rigorosas. Minha paixão pela política foi inspirada pelo instinto revolucionário, inteligência, coragem e heroísmo da classe operária em sua luta pelo socialismo. A Guerra e os longos anos em cativeiro me propiciaram um vívido contato com operários e camponeses e fui apresentado aos militantes comunistas. 

Foi a política que decidiu tudo. Não a política em geral: a política marxista-leninista. 

Primeiro tive que encontrá-las e entendê-las. Isso é sempre dificílimo para um intelectual. E foi difícil assim nos anos 50 e 60, pelos motivos que você sabe bem: as conseqüências do "culto", o Vigésimo Congresso, depois a crise do movimento comunista internacional. Acima de tudo, não foi fácil resistir à propagação da ideologia "humanista" contemporânea e aos outros ataques da ideologia burguesa ao marxismo. 

Uma vez que atingi um melhor entendimento da política marxista-leninista, comecei a me apaixonar pela filosofia também, e conseqüentemente passei a entender a grande idéia de Marx, Lênin e Gramsci: a de que a filosofia é fundamentalmente política. 

Tudo que escrevi – primeiro sozinho, depois em companhia de camaradas e amigos mais jovens - gira, apesar da "abstração" de nossos ensaios, em torno dessas questões bastante concretas. 

2- Você poderia ser mais preciso: por que em geral é tão difícil ser um comunista na filosofia? 

Ser um comunista na filosofia é tornar-se partidário e perito na filosofia marxista-leninista, a do materialismo dialético. 

Não é fácil ser um filósofo marxista-leninista. Como todo "intelectual", o professor de filosofia é um pequeno burguês. Quando ele abre a boca, sua ideologia pequeno-burguesa fala: seus truques e espertezas são infinitos. 

Você sabe o que Lênin diz dos "intelectuais". Individualmente, alguns deles poderiam (politicamente) ser considerados revolucionários e corajosos. Mas no conjunto eles permanecem sendo pequeno-burgueses "incorrigíveis" na ideologia. O próprio Gorki era, para Lênin (que admirava seus talentos), um revolucionário pequeno-burguês. Para se tornarem "ideólogos da classe operária" (Lênin), "intelectuais orgânicos" do proletariado (Gramsci), os intelectuais devem atingir uma revolução radical em suas idéias: uma longa, dolorosa e difícil re-educação. Uma interminável luta exterior e interior. 

Os proletários têm um "instinto de classe" que os ajuda a alcançar "posições de classe" proletárias. Os intelectuais, por outro lado, têm um instinto de classe pequeno-burguês que se opõe ferozmente a essa transição. 

Uma posição de classe proletária é mais do que um mero "instinto de classe" proletário. É a consciência e a prática que estão de acordo com a realidade objetiva da luta de classe proletária. O instinto de classe é subjetivo e espontâneo. A posição de classe é objetiva e racional. Para atingir as posturas de classe proletárias, o instinto de classe dos proletários necessita apenas ser educado; o instinto de classe dos pequeno-burgueses (e, logo, dos intelectuais) necessita, por outro lado, ser revolucionado. Essa educação e essa revolução são, em última análise, determinadas pela luta de classe proletária conduzida desde a base pelos princípios da teoria marxista-leninista. 

Como diz o Manifesto Comunista, o conhecimento dessa teoria pode ajudar certos intelectuais a atingirem posições da classe operária. 

A teoria marxista-leninista abrange uma ciência (o materialismo histórico) e uma filosofia (o materialismo dialético). 

A filosofia marxista-leninista é, portanto, uma das duas armas teóricas indispensáveis para a luta de classe do proletariado. Os militantes comunistas devem assimilar e aplicar os princípios da teoria: ciência e filosofia. A revolução proletária precisa de militantes que são tanto cientistas (materialistas históricos) quanto filósofos (materialistas dialéticos) para auxiliar na defesa e no desenvolvimento da teoria. 

A formação desses filósofos vai de encontro a duas grandes dificuldades. 

Primeiro, a dificuldade política. O filósofo profissional que se junte ao Partido continua sendo, ideologicamente, um pequeno burguês. Ele deve revolucionar seu pensamento de forma a ocupar uma posição de classe proletária na filosofia. 

Essa dificuldade política é "determinante em último caso". 

A segunda é a dificuldade teórica. Nós sabemos com que direcionamento e com quais princípios devemos trabalhar a fim de definir essa posição de classe na filosofia. Mas devemos desenvolver a filosofia marxista: é teórica e politicamente urgente fazer isso. Agora, esse trabalho é vasto e difícil. Dentro da teoria marxista, a filosofia ficou para trás da ciência da história. 

Atualmente, em nossos países, essa é a dificuldade "dominante". 

3- Então você distingue uma ciência e uma filosofia dentro da teoria marxista? Como você sabe, essa distinção é bastante contestada atualmente. 

Eu sei. Mas essa "contestação" é uma velha história. 

Para ser extremamente esquemático, pode-se dizer que, na história do movimento marxista, a supressão dessa distinção expressou um desvio tanto direitista quanto esquerdista. O desvio direitista suprime a filosofia: resta apenas a ciência (positivismo). O desvio esquerdista suprime a ciência: resta apenas a filosofia (subjetivismo). Existem exceções a isso (casos de "inversão"), mas elas "confirmam" a regra. 

Os grandes líderes do movimento operário marxista, de Marx e Engels até hoje, sempre disseram que esses desvios são resultado da influência e dominação da ideologia burguesa sobre o marxismo. Da parte deles, eles sempre defenderam a distinção (ciência, filosofia), não apenas por razões teóricas, mas por razões vitais políticas também. Pense no Lênin emMarxismo e Empírio-criticismo ou em Esquerdismo – Doença Infantil do Comunismo. Suas razões são claramente óbvias. 

4- Como você justifica essa distinção entre ciência e filosofia na teoria marxista? 

Responderei a essa pergunta formulando algumas questões provisórias e esquemáticas. 

1. A fusão da teoria marxista com o movimento operário é o evento mais importante de toda a história da luta de classes, ou seja, de praticamente toda a história da humanidade (os primeiros efeitos foram as revoluções socialistas). 

2. A teoria marxista (ciência e filosofia) representa uma revolução sem precedentes na história do conhecimento humano. 

3. Marx fundou uma nova ciência: a ciência da história. Vou ilustrar isso. As ciências com as quais somos familiares têm seus alicerces em alguns "continentes". Antes de Marx, dois desses continentes haviam sido abertos ao conhecimento científico: o continente da matemática e o continente da física. O primeiro pelos gregos (Tales), o segundo por Galileu.Marx abriu um terceiro continente ao conhecimento científico: o continente da história. 

4. A abertura desse novo continente levou a uma revolução na filosofia. Essa é uma regra: a filosofia está sempre ligada às ciências. 

A filosofia nasceu (com Platão) quando o continente da matemática foi aberto. Ela foi transformada (com Descartes) pela abertura do continente da física. Hoje em dia, ela está sendo revolucionada com a abertura do continente da história porMarx. Essa revolução é chamada materialismo dialético. 

As transformações da filosofia são sempre reverberações de grandes descobertas científicas. Portanto, em essência, elas nascem após esses eventos. É por isso que a filosofia ficou para trás da ciência na teoria marxista. Existem outras razões que todos nós conhecemos, mas hoje essa é a dominante. 

5. Como conjunto, apenas os militantes proletários reconheceram o âmbito revolucionário da descoberta científica de Marx. Sua prática política foi transformada por ela. 

E aqui chegamos ao maior escândalo teórico da história contemporânea. 

Como conjunto, os intelectuais, por outro lado — mesmo os que têm um interesse "profissional" no assunto (especialistas em ciências humanas, filósofos) —, não reconheceram ou se recusam a reconhecer o âmbito sem precedentes da descoberta científica de Marx, esta que eles condenam e desprezam e que eles distorcem quando discutem a seu respeito. 

Com poucas exceções, eles ainda estão “engatinhando” na economia política, sociologia, etnologia, "antropologia", "psicologia social", etc., etc. Mesmo hoje, cem anos após o Capital , assim como os físicos aristotélicos estavam "engatinhando" na física, cinqüenta anos depois de Galileu. Suas "teorias" são anacronismos ideológicos, rejuvenescidos por uma grande dose de sutilezas intelectuais e técnicas matemáticas ultramodernas. 

Mas esse escândalo teórico não é um de todo um escândalo. É um efeito da luta de classe ideológica: pois é a ideologia burguesa, a "cultura" burguesa que está no poder, que exerce uma "hegemonia". Como conjunto, os intelectuais, incluindo muitos intelectuais comunistas e marxistas, são - com exceções - dominados em suas teorias pela ideologia burguesa.Com exceções, o mesmo acontece nas ciências "humanas". 

6. A mesma situação escandalosa aparece na filosofia. Quem compreendeu a incrível revolução filosófica provocada pela descoberta de Marx? Apenas os líderes e militantes proletários. Por outro lado, os filósofos profissionais, como conjunto, nem sequer se deram conta dela. Quando eles mencionam Marx, isso sempre ocorre (com raríssimas exceções) com o intuito de atacá-lo, condená-lo, "absorvê-lo", explorá-lo e revisá-lo. 

Aqueles que defenderam a dialética materialista, como Engels e Lênin, são tratados como filosoficamente insignificantes. O verdadeiro escândalo é que certos filósofos marxistas sucumbiram ante a mesma infecção, em nome do "anti-dogmatismo". Mas aqui também a razão é a mesma: o efeito da luta de classe ideológica. Pois é a ideologia burguesa, a "cultura" burguesa, que está no poder. 

7. As tarefas cruciais do movimento comunista, em teoria: 

- Identificar e conhecer o âmbito teórico revolucionário da ciência e da filosofia marxista-leninista; 

- Lutar contra a visão de mundo burguesa e pequeno-burguesa que sempre ameaçou a teoria marxista e que a permeia profundamente hoje em dia. A forma geral dessa visão de mundo é o economismo (hoje "tecnocracia"), e seu "complemento espiritual", o idealismo ético (hoje "humanismo"). O economismo e o idealismo ético formaram a base opositora na visão de mundo burguesa desde as origens da burguesia. A atual forma filosófica dessa visão de mundo é oneo-positivismo e seu "complemento espiritual", o subjetivismo existencialista-fenomenológico. A variante peculiar às Ciências Humanas é a ideologia chamada "estruturalismo"; 

- Conquistar para a ciência a maioria das Ciências Humanas, acima de tudo as Ciências Sociais, que, com exceções, têm ocupado como impostoras o continente da história, o continente legado por Marx a nós; 

- Desenvolver a nova ciência e filosofia com todo rigor e ousadia necessários, vinculando ambas aos requisitos e inventos da prática da luta de classe revolucionária. 

Em teoria, a ligação decisiva na atualidade: a filosofia marxista-leninista. 

5- Você disse duas coisas que são aparentemente contraditórias ou diferentes: primeiro, a filosofia é basicamente política; segundo, a filosofia está ligada às ciências. Como você explica essa dupla relação? 

Aqui também terei de responder por meio de questões esquemáticas e provisórias. 

1. As posições de classe em confronto na luta de classes são "representadas" no domínio das ideologias práticas (ideologias religiosas, éticas, legais, políticas, estéticas) por visões de mundo de tendências antagônicas: idealistas (burguesas) e materialistas (proletárias). Todos desenvolvem espontaneamente uma visão de mundo. 

2. As visões de mundo são representadas no domínio da teoria (ciência + as ideologias "teóricas" que envolvem a ciência e os cientistas) pela filosofia. A filosofia representa a luta de classes na teoria. É por isso que a filosofia é uma luta (Kampf, como disse Kant) e fundamentalmente uma luta política: uma luta de classes. Ninguém é um filósofo por natureza, mas todos podem ser filósofos. 

3. A filosofia surge logo que o domínio teórico aparece, logo que uma ciência (num sentido estrito) nasce. Sem a ciência não há filosofia, apenas visões de mundo. A aposta na batalha e o campo de batalha devem ser distinguidos. A aposta definitiva da luta filosófica é a luta pela hegemonia entre as duas grandes tendências de visão de mundo (materialista e idealista). O principal campo de batalha dessa luta é o conhecimento científico: contra ou a favor dele. Deste modo, a batalha filosófica mais importante ocorre na fronteira entre o conhecimento científico e o ideológico. Lá, as filosofias idealistas que depredam a ciência lutam contra as filosofias materialistas que servem às ciências. A luta filosófica é uma esfera da luta de classes existente entre visões de mundo. No passado, o materialismo sempre foi dominado pelo idealismo. 

4. A ciência fundada por Marx mudou toda a conjuntura do domínio teórico. É uma ciência nova: a ciência da história. Dessa forma, isso nos possibilitou conhecer, pela primeira vez, as visões de mundo que a filosofia representa na teoria; isso no permitiu entender a filosofia. Isso nos fornece recursos para mudar as visões de mundo (a luta de classe revolucionária guiada pelos princípios da teoria marxista). A filosofia é assim duplamente revolucionada. O materialismo mecanicista, "idealista historicamente", se torna o materialismo dialético. O equilíbrio das forças é invertido: agora o materialismo pode dominar o idealismo na filosofia e, se as condições políticas estiverem concretizadas, pode também conduzir a luta de classe pela hegemonia entre as visões de mundo. 

A filosofia marxista-leninista, ou o materialismo dialético, representa a luta de classe proletária na teoria. Com a união da teoria marxista e do movimento operário (a união definitiva entre teoria e prática) a filosofia é interrompida, como disse Marx, para "interpretar o mundo". Torna-se uma arma para "mudá-lo": a revolução. 

6- São essas as razões que levaram você a dizer que é essencial ler o Capital hoje em dia? 

Sim. É essencial ler e estudar o Capital

— Para realmente entender, em todo seu âmbito e conseqüências científicas e filosóficas, o que o os militantes proletários há muito entendem na prática: o caráter revolucionário da teoria marxista. 

— Para defender essa teoria de todas as interpretações burguesas e pequeno-burguesas, ou seja, revisões que ameaçam-na seriamente hoje, principalmente a oposição economismo/humanismo. 

— Para desenvolver a teoria marxista e prover os conceitos científicos indispensáveis à análise da luta de classes contemporânea, em nossos países e mundo afora. 

É essencial ler e estudar o Capital. Devo acrescentar que é necessário e essencial ler e estudar Lênin e todos os grandes textos, novos ou antigos, aos quais se devem a experiência da luta de classe do movimento operário internacional. É essencial estudar os textos práticos do movimento operário revolucionário em sua realidade, seus problemas e contradições: seu passado e, acima de tudo, sua história presente. 

Atualmente, existem grandes recursos em nossos países para a luta de classe revolucionária. Mas eles devem ser buscados em suas fontes: as massas oprimidas. Eles não serão "descobertos" sem um vínculo direto com as massas e sem as armas da teoria marxista-leninista. As noções ideológicas burguesas de "sociedade industrial", "neocapitalismo", "nova classe trabalhadora", "sociedade afluente", "alienação" e tutti quanti são anti-científicas e antimarxistas: criadas para fazer frente aos revolucionários. 

Finalmente, devo acrescentar um comentário, o mais importante de todos. 

Para que alguém realmente entenda o que "lê" e estuda nessas obras teóricas, políticas e históricas deve-se vivenciar diretamente as duas realidades que de fato as determinam: a realidade da prática teórica (ciência, filosofia) em sua vida concreta e, também nesta, a realidade da prática da luta de classe revolucionária, em contato próximo às massas. Pois é a teoria que nos permite compreender as leis da história: não são os intelectuais nem os teóricos, mas as massas que fazem a história. É essencial aprender com a teoria - mas ao mesmo tempo é crucial aprender com as massas. 

7- Você atribui uma grande importância ao rigor, inclusive a um vocabulário rigoroso. O que isso significa? 

Uma simples expressão resume a função maior da prática filosófica: "traçar uma linha divisória" entre as idéias verdadeiras e as falsas, como disse Lênin

Mas a mesma expressão resume uma das operações fundamentais que norteiam a prática da luta de classe: "traçar uma linha divisória" entre as classes antagônicas. Entre nossos amigos de classe e nossos inimigos de classe. 

É a mesma expressão. A linha divisória teórica entre as idéias verdadeiras e as falsas. A linha divisória política entre o povo (o proletariado e seus aliados) e os inimigos do povo. 

A filosofia representa a luta de classes na teoria. Em contrapartida, ela ajuda o povo a distinguir na teoria e em todas as outras idéias (políticas, éticas, estéticas, etc.) quais idéias são corretas e quais são erradas. A princípio, as idéias verdadeiras sempre servem ao povo; as idéias falsas sempre servem aos inimigos do povo. 

Por que a filosofia batalha pelas palavras? As realidades da luta de classes são "representadas" pelas "idéias", que são "representadas" pelas palavras. Na argumentação científica e filosófica, as palavras (conceitos, categorias) são "instrumentos" do conhecimento. 

Mas na luta política, ideológica e filosófica, as palavras são armas, explosivos ou tranquilizantes e venenos. Às vezes, toda a luta de classe pode ser resumida a um confronto entre palavras. Certas palavras lutam entre si como inimigas. Outras palavras são raízes de uma ambiguidade: são a aposta em uma batalha decisiva, porém não resolvida. 

Por exemplo: a luta comunista pela supressão das classes e por uma sociedade comunista, onde, um dia, todos os homens serão livres e irmãos. Entretanto, toda a tradição marxista clássica se recusou a considerar o marxismo como um humanismo. Por quê? Por a palavra humanismo ser, na prática (isso é, com base nos fatos), explorada por uma ideologia que a usa para brigar, ou seja, para obliterar aquela outra expressão verdadeira, vital ao proletariado: a luta de classes. 

Outro exemplo: os revolucionários sabem que, em último caso, tudo dependerá, não das técnicas, armas, etc., mas dos militantes, com sua consciência de classe, sua devoção e sua coragem. Contudo, toda a tradição marxista se nega a dizer que é o “homem" que faz a história. Por quê? Por esta expressão ser na prática (com base nos fatos) explorada pela ideologia burguesa, que a utiliza para brigar, ou seja, para extinguir outra ideia legítima, vital ao proletariado: que são as massas que fazem a história. 

Ao mesmo tempo, a filosofia — mesmo nos longos trabalhos onde ela se mostra abstrata e difícil — batalha pelas palavras: contra as palavras mentirosas, contra as palavras ambíguas, a favor das palavras corretas. Ela luta pelas "marcas de opinião". 

Lênin disse: "Apenas as pessoas incautas consideram as disputas factuais e a rígida diferenciação entre as marcas de opinião como inoportunas ou supérfluas. O destino da social-democracia russa nos muitos anos que hão de vir poderá depender do fortalecimento de uma ou outra "marca" (in Que fazer?). 

A batalha filosófica pelas palavras é uma parte da luta política. A filosofia marxista-leninista só poderá concluir sua obra teórica abstrata, rigorosa e sistemática se ela lutar tanto pelas expressões fortemente “acadêmicas” (conceito, teoria, dialética, alienação, etc.) quanto pelas mais triviais (homem, massas, povo, luta de classe). 




quinta-feira, 28 de junho de 2012

Eike Batista: de menino de ouro a bilionário


Por Lúcio Flávio Pinto


Não é comum que o autor de um livro coloque sua foto na capa, mas Eike Batista fez isso em sua estreia no mundo das letras, aos 55 anos, com O x da questão. Ele aparece em fotografia produzida com requintes de modelo. Um sol, símbolo de luminosidade e de ideias, foi colocado ao lado de sua cabeça. Do outro lado, um subtítulo nada modesto: “A trajetória do maior empreendedor do Brasil”.

Espalhadas pelas 159 páginas do livro, em letras graúdas e com amplas margens no papel caro, para render mais do que numa edição comedida e sem tanta repetição na narrativa, 19 fotos; 14 delas são de Eike.

Puro exercício de narcisismo e egolatria? Também. Os responsáveis pela publicação são GMT Editores, do Rio de Janeiro. Mas Eike criou um nome de fantasia para a relação com os editores: a — sugestivamente — Primeira Pessoa. Combina com o conteúdo da obra: fazer recomendações e dar conselhos aos outros empreendedores a partir da vida e dos conhecimentos acumulados pelo autor. Juntamente com os já 30 bilhões de dólares que o credenciaram a ser reconhecido como o sétimo maior bilionário do mundo e o primeiro do ranking nacional. 

Desde que lançou o livro, no final do ano passado, Eike incorporou à sua fortuna mais dois bilhões de dólares. O dinheiro veio da venda a investidores árabes de participação societária em um dos seus empreendimentos. Ele arremata os negócios sem sobressaltos nem mistérios. Faz questão de alardear o que ganha.

Esse procedimento, discrepando do padrão seguido por empresários brasileiros, o colocaria em posição singular, pioneira. Ele seria rico por merecimento, fruto do seu trabalho. Não esconde que tem muito dinheiro, que usufrui sem limites do poder que ser rico proporciona, abrindo as portas para todos os caprichos e vaidades. Para um autêntico culto à personalidade.
Esses seriam os sinais exteriores da riqueza, suas superficialidades. Em substância, Eike praticaria uma revolução: a do empresário limpo, trabalhador, criativo, com disposição para correr todos os riscos dos investimentos realizados. 

Pagando integralmente seus impostos, remunerando bem os seus empregados, tratando com seriedade seus parceiros e concorrentes, e garantindo os ganhos dos que investem em seus projetos, ele pode apontar com certo desdém para os empreiteiros, que cita nominalmente. Eles são os apêndices do governo. E, ao mesmo tempo, seus predadores. Mas não o empresário de novo tipo, como Eike. 

A narrativa da sua trajetória empresarial seria suficiente para confirmar a tese e atestar suas palavras. E isso porque ainda falta o anunciado novo livro, “já em curso”, que vai tratar apenas da sua “vida pessoal, laços familiares, pequenas histórias”, como se esta — escrita por seu amigo jornalista Roberto D’Avila — não fosse suficiente para consumir sua sede de exposição. 

Com apenas 20 anos de idade, Eike se transferiu do civilizado circuito europeu entre a Bélgica, a Alemanha e a Suíça, para os calorentos e selvagens garimpos da Amazônia, depois de um estágio no comércio de diamantes no Rio de Janeiro. Tinha tudo para ser um engenheiro sofisticado e elitista, mas vestiu o traje de um Indiana Jones mais cerebral e audacioso (só com essa diferenciação aceita o paralelo, que ele próprio faz) para liderar “uma das maiores sagas empresariais da história recente do Brasil”, segundo a definição do prefaciador do livro. 

Meio misterioso e místico, Eike não se atreve a explicar por completo sua sina: “É difícil explicar, mas há alguma coisa que é inata e escapa à genética, à formação familiar, à educação”. Seria uma condição ligada aos deuses, como na mitologia da Grécia antiga? Seriam os deuses astronautas? 

Parecia estar escrito assim na estrela luminosa do futuro bilionário, que levou 20 anos para alcançar o seu primeiro bilhão de dólares e, a partir daí, subiu num ritmo vertiginoso para o topo. Agora visa o primeiro lugar, certo de alcançá-lo até 2015. E começou com dinheiro emprestado. Dinheiro que perdeu e nem assim comprometeu a confiança dos que lhe forneceram os recursos, renovados e ampliados de imediato. Com o que Eike implantou “a primeira lavra de ouro mecanizada industrial da Amazônia brasileira”, em Alta Floresta, Mato Grosso, com suporte em informações seguras de assessores canadenses, chamados para mensurar a jazida antes da decisão sobre o risco do investimento. Passou a colocar no bolso um milhão de dólares ao mês. 

Já nesse empreendimento estava em boa companhia: da Paranapanema, que ficou com metade das ações e assumiu o compromisso de multiplicar por cinco a produção. Logo, como seria seu estilo, Eike pulou da mina de Novo Planeta para a de Novo Astro, no Amapá, de novo em companhia competente: a do industrial Olavo Monteiro de Carvalho e a do ex-ministro de minas e energia (como Eliezer Batista), Antônio Dias Leite, também uma usina de ideias com um arsenal de informações privilegiadas.

Em seguida, foi para a mina de Paracatu, em Minas Gerais, ao lado da inglesa Rio Tinto, na “maior mina de ouro do Brasil”. Depois, o projeto Minas-Rio, que vendeu para a Anglo American. Eike nunca foi um garimpeiro, mas seu rastro já era mais luminoso do que o do autor do maior bamburro do dito metal precioso.

Quais as credenciais que Eike apresentou aos dois empresários joalheiros, donos dos primeiros US$ 500 mil que ele torrou nos garimpos amazônicos? Ele sugere que pode ter sido a determinação do seu olhar, a impressão deixada a interlocutores de que cumpriria a regra não escrita de que sua palavra era lei, tudo à base da confiança, como nas máfias. Ou seria por ser filho do engenheiro (que se formou, ao contrário do mais famoso e bem-sucedido dos seus sete filhos, que abandonou o curso) Eliezer Batista.

É ele quem assina o prefácio do livro, circunlóquios em torno do tema monocórdio: este é meu filho, filho; e eu sou seu pai, pai. O pai quer nos convencer que o filho se fez por si e, por ter superado o pai, se tornou muito maior do que ele. Certamente é um capitalista de muito maior envergadura e um notável formador de fortuna. Mas qual o peso do pai nessa celebrada trajetória?

É pouco provável que os investidores do mundo das pedras preciosas e do ouro tivessem sido tão compreensivos com o empresário em formação se por trás dele não houvesse um pai como Eliezer Batista. Já então ele era um dos mais respeitados “quadros” da estatal Companhia Vale do Rio Doce (mas não apenas “um cumpridor de ordens”, como diz).
Com sua habilidade para agir nos bastidores e se impor por suas qualidades profissionais, Eliezer conseguiu a façanha de ser ministro de minas e energia de João Goulart e sobreviver na passagem traumática ao regime militar, implantado com o golpe de estado que derrubou o presidente da república. 

A CVRD viveu a partir daí uma fase de profundas mudanças. Seus dias de vinculação ao mercado nacional tinham ficado para trás. Ela cobiçava os mercados externos e para atendê-los se expandiu pelo mundo. No exílio, embora dourado, que lhe permitiu dar uma educação de primeira aos filhos, Eliezer montou uma base comercial sólida da estatal na Europa. Mas foi o primeiro e o mais decidido na correção dos rumos na direção do mercado asiático. 

Uma das informações mais preciosas do livro é ele que a dá — e num mero prefácio: fez mais de 170 viagens ao Japão. Por conta de excursões tão longas e desgastantes (“talvez fosse mais simples vender enciclopédias em Plutão”), em virtude da diferença de fusos horários, ele sofreu grandes desgastes físicos.

Mas — e esse detalhe ele não comunica aos leitores — se tornou o não residente que por mais vezes esteve no Japão. Uma façanha que merecia ser relatada em minúcias por esse “caixeiro viajante da mineração”. É um dos capítulos mais importantes da história da Amazônia e do Brasil contemporâneo. 


Só dessa maneira Eliezer pôde contribuir para que a mais rica província mineral do planeta se tornasse uma possessão cativa (e, portanto, na essência, colonial) do Japão, em primeiro lugar, e, agora, de forma mais ampla, da China. A partir daí, um universo ainda sem dimensão bem definida se ampliou graças às riquezas existentes no subsolo da Amazônia, em especial do Pará. 

O filho pode dizer que, a partir desse núcleo comum, alargou a perspectiva para o âmbito da logística e de sua associação à exploração econômica, em função da sua visão em 3D (de 360 graus), a melhor do mercado, que integra todas as atividades: uma visão “holística”. Sua inovação consistiu em “introduzir o conceito de sistemas integrados de energia com a exploração e venda de recursos naturais associadas à geração e comercialização de energia elétrica”. 

Ao invés de um grau de acerto de 17 mil probabilidades para uma de sucesso, como na busca do ouro, margens muito menores, de risco às vezes próximo do zero. Ele não queria ser um Bill Gates do ouro, que descobriu, valorizou e vendeu nove minas, mas restrito a esse setor, no qual foi “monofásico durante 20 anos”. Queria mais e mais. Encontraria. 

É o caso do pré-sal. Eike foi o maior arrematador de blocos, 21, somando 30 mil quilômetros quadrados, na 9ª Rodada de Licitações promovida pela Agência Nacional do Petróleo, em 2007. Dizem que Eike pegou o filé do petróleo. 

Dizem isso aqueles que circulavam pelos mesmos ambientes internos da estatal, onde Eike recrutou, a peso de ouro, os “talentos que vieram da Petrobrás” para a sua empresa petrolífera, a OGX, posta no alto da linhagem de firmas que ele batiza sempre com um xis, na antevisão da multiplicação de dinheiro que irão proporcionar. 

A empresa foi constituída apenas quatro meses antes do leilão da ANP se realizar. Nasceu com o DNA do êxito, diriam os empresários. Hoje é “a maior companhia privada brasileira de petróleo e gás em áreas marítimas de exploração”, apregoa o seu chefe. Ela acaba de se tornar dona de uma jazida de gás, no Maranhão, que pode atender a um terço do consumo brasileiro e possui reservas equivalentes à metade dos depósitos de gás da Bolívia, os maiores do continente, podendo atender a uma refinaria Premium, como a que a Petrobrás implanta no Estado. Um espanto! Com direito ao acento de exclamação. 

Já a sua OSX, a “Embraer dos mares”, dedicada a construir ou operar equipamentos usados na exploração e produção de petróleo, presta serviços a uma fatia do mercado que precisará de US$ 200 bilhões em equipamentos até 2020, dos quais espera ficar com US$ 30 bilhões. Além de exportar, já que terá o estaleiro mais moderno do mundo. 


Tudo em Eike é superlativo. Ele comanda 20 mil pessoas reunidas no grupo EBX. “Crio riquezas do zero e me orgulho disso”, apregoa, lembrando que assinou “um dos cheques de mais alto valor do mundo”, quando pagou US$ 450 milhões (ou R$ 700 milhões) de imposto de renda sobre uma das suas muitas vendas. 

Não é bem assim. Quem teve acesso aos estudos de Eliezer Batista sabe que ele já pensava nos investimentos que o filho viria a fazer. E continua a pensar e a formular projetos em sua prancheta mental, projetos que talvez logo recebam o carimbo da marca de Eike Batista, o elemento vivo no esquema de variáveis materiais com as quais Eliezer lida, como um alquimista dos negócios. 

Ele próprio não deixa para terceiros a avaliação do que fez, “talvez o maior investimento já realizado no país tanto pela ordem de grandeza das cifras envolvidas como pelo impacto sobre a economia nacional, a visão de longo prazo e o eixo transformador”. 

Tem razão em se orgulhar do que concebeu e criou. Talvez nem tanto em relação àquilo que extrapolou suas previsões e cálculos. O Brasil perdeu e perderá muito nesses domínios do além-fronteiras, além-conhecimentos. É onde se movimenta esse menino de ouro que virou um dos maiores bilionários do planeta. 

Mas ele seria mesmo único e distinto dos capitalistas criados e mantidos na promiscuidade com o poder público, um Galahad dos novos negócios globais? É o que ele pensa e proclama para todos ouvirem — e reconhecerem. Considera-se no “centro do mundo”, que está “no eixo Brasil-Índia-China”. Surpreendentemente ignora a Rússia. Não por ser jejuno nesse país, um dos seus raros casos de insucesso: contabilizou US$ 30 milhões de prejuízo, ao ser expulso de um empreendimento, ao qual faz referência meteórica, sem maiores informações. 


Não foi uma saída programada nem desejada: Eike teve que praticamente fugir, abandonando o negócio “ao perceber que estavam preparados para me retirar a propriedade e o ativo”. Parece ter sido uma experiência traumática, a ponto de levá-lo a excluir a Rússia da fantasiosa sigla dos países emergentes do bloco dos Brics, ao qual a África do Sul se agregou mais recentemente. 

Mas não há semelhanças entre a carreira empresarial de Eike ao longo dos 27 anos da redemocratização do Brasil e o surgimento dos “barões ladrões” nos 21 anos que se seguiram ao fim da União Soviética, com sua travessia conturbada para o capitalismo? Sem dúvida alguma esses empresários de “novo tipo” se tornaram milionários ou bilionários à sombra do aparato de Estado, de forma explícita ou mais sutil, e com sua ajuda para abrir caminho às fontes de recursos naturais, as commodities que circulam pelo mundo com seus preços valorizados e quantidades gigantescas. 

Ele adora os Governos, ou os Governos adoram ele? Qual o segredo?

Eike/Eliezer Batista não constituem exceção nesse enredo internacional. O que distingue os dois grupos de empreendedores são os países que lhes servem de fundo. Ou de fundos.


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Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

O Partido Pirata alemão, bem além do pitoresco


Num texto bem humorado, João Moreira Salles relata o avanço do grupo que, criado há cinco anos, já conquistou cerca de 10% de apoio entre eleitores defendendo propostas como democracia direta e liberdade na internet
Em Piauí
Na falta de um porto, permaneceu-se no mesmo campo semântico e ancorou-se em Tempelhof, o aeroporto de Berlim usado pelo Terceiro Reich e pelos C-47 americanos que abasteceram a cidade durante o cerco soviético de 1948. Pois foi nessas paragens legendárias, hoje um parque, que em 13 de maio, domingo, uma centena de bucaneiros se postou diante de um telão para assaltar a circunspecta nau do Estado alemão.
Era um convescote do Partido Pirata, coruscante agremiação que, fundada em 2006 para lutar contra a apropriação comercial de direitos autorais, cresceu de maneira vertiginosa e conta hoje com 45 parlamentares em legistaturas estaduais, quinze deles só na Câmara de Berlim. Já são 33 mil os piratas de carteirinha.
Leia também:

A tarde lhes traria notícias venturosas. Corriam as eleições legislativas da Renânia do Norte-Vestfália, o estado alemão mais populoso, responsável por quase 4% do PIB da União Europeia – verdadeira nau capitânia, transbordante de dobrões, patacas e o que mais cobiçasse um flibusteiro. Enquanto não vinham as projeções de boca de urna, o pessoal abordava o bufê vegetariano e cometia gingadinhas teutônicas ao som de rock pesado.
Aimon, que preferiu dar seu apelido, usava bandana e echarpe vermelhas. Ele é cheinho e simpático, tem 27 anos e trabalha numa farmácia. Nada lhe parece mais vital do que a liberdade de ir e vir no mundo virtual. “Comecei a usar computador aos 9 anos.” Ao ser perguntado se usava Apple, quase escandalizou-se. “Uso o Linux”, um software aberto, “uma questão muito importante para nós.” Contrito como pecador, confessou, porém, que sua iniciação digital se deu num ambiente Microsoft-Windows.
A escolha do nome “pirata” foi uma tomada de posição: “A palavra vem do grego e significa atacar o statu quo”, esclarece Aimon, puxando a etimologia para a sua brasa. “Afirmamos, por exemplo, o direito de atacar o estatuto do copyright.” Não se imagine, entretanto, que sejam anarquistas: “Queremos um governo transparente, que permita ao cidadão saber o que está acontecendo.” Dados pessoais devem ser regidos pelo princípio da confidencialidade, mas segredos de Estado são inadmissíveis.
O manifesto do partido, cujos oito primeiros capítulos tratam exclusivamente do mundo digital, inova o vocabulário político: “bancos de dados centralizados” (contra), “restrição de banda” (a favor), “proteção a whistleblowers” [gente que quebra sigilos] (a favor, naturalmente). Inovador também é o contrato social, que passa a incluir noções como o direito constitucional de acesso rápido e gratuito à internet e legaliza a cópia e difusão de bens culturais para fins não comerciais. “Nenhuma restrição a cópias”, lê-se no capítulo sobre o copyright, esse “conceito antiquado de propriedade intelectual”. Os piratas defendem os direitos autorais dos criadores, mas combatem os dos intermediários, tais como gravadoras, editoras, jornais e estúdios de cinema, contornando o espinhoso problema de como os primeiros existirão sem os segundos.
Há idiossincrasias. Por exemplo, no capítulo “Transparência do Estado”, exige-se o banimento imediato das urnas eletrônicas (talvez porque todo pirata sabe que até um hacker de cueiros pode violá-las). “Ajuda externa” não significa enviar comida e remédio a países em necessidade, mas favorecer o acesso à internet em sociedades fechadas, tal como fez a militância pirata na Primavera Árabe, estabelecendo conexões de modem para ajudar os revoltosos.
Pós-ideológicos, os piratas não se reconhecem nem na esquerda nem na direita, “conceitos muito século XIX”, diz Aimon. Talvez por afinidade atávica com os mares, adotam a “democracia líquida”, na qual, graças a um sistema de manifestação das bases (via web, natürlich), o poder está sempre fluindo, sem jamais se cristalizar em hierarquias. São avessos à vacuidade da política tradicional, tanto que há pouco enviaram uma delegação à Islândia para estreitar laços com o Melhor Partido, agremiação espiritualmente assemelhada. Houve fértil troca de ideias e, ao fim, divulgou-se uma solene Declaração Conjunta a Respeito de Nada.
Embora redigido pela geração que nasceu depois da queda do Muro, o manifesto é curiosamente anacrônico ao insistir no risco de sermos vencidos pelas tendências totalitárias do Estado. É como se a Stasi, a eficientíssima polícia secreta da antiga Alemanha Oriental, aguardasse apenas um telefonema para voltar à ativa. Já sobre a flagrante manipulação de dados pessoais feita por empresas como Google e Facebook, o manifesto dos piratas tem pouco a dizer.
O piquenique político atraiu também veteranos de causas mais batidas – ecologia, direitos humanos, desarmamento nuclear –, agora bandeados para a pirataria. O que pouco se via eram imigrantes ou pobres, de forma alguma um indício de que o partido seja contra uns e outros. Acontece que o PP parece operar com um mundo 3.0, enquanto a realidade da crise europeia ainda roda a velha versão 1.0, cheia de bugs como desemprego, dívidas, Grécia, euro e desamparados de todo tipo. Conforme explica Felix Just, um jovem pai com filhinho a tiracolo, o partido nasceu para defender a causa central de sua geração – “A liberdade do lugar onde vivemos, que é a internet. A web é o nosso campo de existência” – e por ora não tem posição oficial sobre o cenário econômico. “Ainda não compreendemos as sutilezas envolvidas”, diz.
Às 17 horas, anunciados os resultados, viu-se que a estratégia dera certo, com o PP saltando de 1,6% em 2010 para quase 8% dos votos, o que significou a eleição de mais vinte dos seus. Pelo volume da gritaria, depreendeu-se que os piratas: 1) ficaram muito felizes com a surra levada pelos democratas cristãos de Angela Merkel; 2) exultaram com o desempenho da própria legenda; 3) catapultaram-se ao êxtase quando o locutor anunciou que os verdes haviam recuado 0,7% da última eleição para cá. Pura Realpolitik, de deixar Otto von Bismarck lambendo os beiços.
“O Partido Verde ficou velho”, explica Just. “Os militantes deles são os mais inclinados a migrar para o nosso lado.” Das terras germânicas parece então vir o alerta: verdes de todos os quadrantes, os piratas são hoje o que foram vocês outrora; portanto, quando virem um bergantim de bandeira negra costear sua praia, larguem da árvore e saltem para o tombadilho. Da perspectiva do butim político, o futuro é corsário.

terça-feira, 26 de junho de 2012

O fantasma do autoritarismo latino-americano


Para os grupos dominantes da região (incluindo seus parceiros no exterior), a democracia parece ser mera conveniência e artifício retórico
Por Felipe Amin Filomeno | Imagem: Jogadores de Cartas, de Fernando Botero 
O processo de impeachment contra Presidente Fernando Lugo do Paraguai foi a mais recente aparição de um fantasma que assombra a América Latina desde sua colonização: o autoritarismo. Como ao longo da história, este fantasma tem como seus hospedeiros preferidos os partidos de direita, as elites econômicas, a classe média conservadora, e a grande mídia.
No início do século XIX, o fantasma autoritário sobreviveu a independência política latino-americana, quando governos coloniais foram substituídos por repúblicas oligárquicas (e uma monarquia, no caso do Brasil). Em meados do século XX, governos populistas-trabalhistas, como o de Getúlio Vargas no Brasil e o de Juan Perón na Argentina, tiveram uma relação ambígua com a democracia. Perón, por exemplo, podia ser autoritário, mas estendeu o direito de voto às mulheres e representava melhor as classes populares do que a oligarquia rural que antes dele governava a Argentina.
Esta ambiguidade foi depois substituída por uma quase completa supressão da democracia, quando os governos populistas-trabalhistas foram removidos por ditaduras militares conservadoras. Foi o caso, por exemplo, dos golpes militares contra João Goulart no Brasil, Salvador Allende no Chile, e Isabel Perón na Argentina. Diante de tais golpes, os Estados Unidos, como potência hemisférica e mundial, tiveram uma atuação que oscilou entre a conivência e o apoio direto.
A redemocratização ocorreu apenas nos anos 1980 e 1990, mas, mesmo nesta década, enfrentou ameaças iniciadas por governos neoliberais. No Brasil, por exemplo, lembremos das denúncias de compra de votos de parlamentares para aprovar a emenda constitucional da reeleição ou mesmo do abuso de medidas provisórias, através do qual o Presidente absorvia funções do Congresso Nacional – ambos ocorridos nas gestões democraticamente eleitas de Fernando Henrique Cardoso. Na Argentina de Menem e no Peru de Fujimori, podemos encontrar exemplos equivalentes.
A última onda de aparições do fantasma do autoritarismo emergiu após a eleição de governos de esquerda na América Latina, no início dos anos 2000. Não, não me refiro ao comportamento supostamente anti-democrático de líderes como Hugo Chávez na Venezuela, acusado de proto-ditador pela mídia conservadora e seus ouvintes beneficiários (elites econômicas) ou iludidos (classe média conservadora). Refiro-me sim às recentes tentativas (algumas efetivas) de golpes contra presidentes reformistas ou revolucionários que têm adotado políticas de redistribuição de riqueza e maior assertividade no cenário internacional.
Na Venezuela, Chávez foi removido temporariamente do poder em 2002, num golpe militar que contou com o apoio dos grandes grupos empresariais (Fedecámaras) e midiáticos. Na época, o governo dos Estados Unidos, embora negue apoio ao golpe em si, financiava organizações políticas que se opunham ao governo eleito de Chávez. Na Bolívia, em 2008, em meio a uma crise política associada a um processo constituinte, o presidente Evo Morales teve de se submeter a um referendo que decidiria se ele permaneceria ou não no poder. Morales teve seu mandato ratificado por mais de 67% dos votos válidos. Em 2009, o presidente de Honduras Manuel Zelaya foi destituído do cargo através de ação militar respaldada pelo Parlamento e pela Suprema Corte do país, numa transição que foi classificada como golpe de Estado pela comunidade internacional. Em 2010, foi a vez de Rafael Correa, presidente do Equador, que teve de superar uma revolta policial que pretendia destituí-lo do poder e, alegadamente, assassiná-lo. Agora, foi a vez do Paraguai. O mesmo Congresso Nacional que tem bloqueado a adesão da Venezuela como membro integral do Mercosul, acusando este país de não ser democrático, promoveu com o impeachment um golpe parlamentar disfarçado de julgamento, sem motivos razoáveis e sem respeito a direitos constitucionais. Atrás do golpe, a disputa entre uma oligarquia agrária e movimentos camponeses pela principal riqueza do país: a terra.
No Brasil, hoje, a possibilidade de um golpe de Estado é remota. Entre as razões para isto, estão o reformismo dos governos do Partido dos Trabalhadores (em contrário a um governo radical-revolucionário) e a maior solidez das instituições democráticas nacionais. Contribuem, também, as instituições regionais da América Latina, como a Unasul, que hoje atua na defesa da democracia paraguaia. Porém, mesmo no Brasil, há uma democracia que precisa ser estendida para mais além de seu aspecto formal e uma grande mídia que, infelizmente, é merecedora do cada vez mais popular adjetivo “PIG” – Partido da Imprensa Golpista.
Enfim, não é que a esquerda não possa ser autoritária (veja Fidel Castro), mas sim que, para os grupos dominantes da América Latina (incluindo seus parceiros no exterior), a democracia é mera conveniência e artifício retórico. Quando o presidente eleito é de direita, os grupos dominantes defendem a democracia de fato e em princípio. Quando o presidente eleito é de esquerda, os grupos dominantes defendem a democracia em princípio, mas apóiam de fato os golpes de Estado. O resultado são ciclos de autoritarismo e democracia na América Latina, associados às contradições de seu subdesenvolvimento e à posição subordinada que ocupa no sistema internacional.

*Felipe Amin Filomeno é doutor em Sociologia pela Universidade John Hopkins (EUA). Mantem um blog de atualização constante.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

“Há muitos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados”


Para o presidente do Paraguai Fernando Lugo, muito foi feito, mas muito ainda resta para se fazer

29/05/2012

Nilton Viana e Marcelo Netto Rodrigues,
de Assunção (Paraguai)


Lugo saúda criança em evento cívico
Foto: Governo do Paraguai
Em uma das propagandas da recém-lançada TV Pública Paraguay – Jajotopa, um lutador de Jiu-Jitsu, uma “patricinha” com piercings e um indígena reforçam o orgulho de se falar guarani. No comercial seguinte, uma mulher pede que os políticos liberem mais recursos para que os desaparecimentos do seu esposo e de outras 500 militantes durante a ditadura militar (1954-1989) sejam esclarecidos. Por fim, surge uma outra vinheta sobre um programa chamado “35”, que abordará os anos em que Stroessner ficou no poder.
Só isso já seria suficiente para perceber que desde 2008 – quando o até então bispo católico Fernando Lugo assumiu a presidência após derrotar o Partido Colorado, no poder havia 61 anos – o vizinho com quem talvez tenhamos mais dívidas históricas vive um momento novo.
Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Lugo – hoje já dispensado completamente de suas funções eclesiais, mas nem por isso distante dos princípios da Teologia da Libertação – explica, entre outras coisas, por que não seguiu os passos de Chávez, Correa e Evo e alterou a Constituição para que pudesse se reeleger, comenta os limites institucionais aos quais está atrelado e fala sobre o câncer que acaba de enfrentar.
Apesar de Lugo não citar nominalmente os seis candidatos de esquerda que pleiteiam ser seu candidato nas eleições em 2013, vale ressaltar que duas mulheres encontram-se na disputa.

Brasil de Fato – Presidente, agradecemos a disposição de falar com o Brasil de Fato, que é, como o senhor sabe, atrelado às lutas do povo e dos movimentos sociais.
Fernando Lugo – Com muito prazer. A alegria é minha também, de com partilhar ideais comuns. Vejo aqui na capa de uma das edições do jornal que vocês me trouxeram de presente uma matéria sobre o Xingu. Isso me faz lembrar de alguns bispos do Brasil que trabalharam muito pelas reivindicações dos mais desfavorecidos. O Xingu é um paradigma de luta.

Muitos bispos como dom Pedro Casaldáliga e tantos outros da Teologia da Libertação... Por falar nisso presidente, quando da sua eleição no dia 20 de abril de 2008, o nosso jornal deu como manchete: “A Teologia da Libertação chega ao poder no Paraguai”. Após quase 4 anos de mandato, podemos dizer que os princípios dela continuam a influenciar o governo Lugo?
A Teologia da Libertação tem me ajudado como pastor, sacerdote, bispo a ter uma visão diferente da sociedade. Uma visão com suas contradições, desequilíbrios, iniquidades. E, sobretudo uma visão com o desafio e o compromisso de poder reverter essa situação. Eu acredito que os princípios básicos desta Teologia, ao se partir da realidade, nos têm levado, nesse governo, a elaborar 12 programas emblemáticos para, de alguma maneira, dar resposta à gente mais desfavorecida do país: as mulheres, crianças de rua, camponeses, pessoas da terceira idade, desempregados, jovens, indígenas. Quer dizer, eu creio que esses princípios, entre eles, o de não aceitar passivamente uma realidade que é escandalosa, estão muito presentes nesses programas. Esse fosso que os bispos em Medellín [em 1968, na segunda Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe (Celam)] diziam existir entre ricos e pobres, entre pessoas que têm possibilidade e acesso ao mercado, à tecnologia, ao estudo. Esse fosso digital que continua sendo ainda hoje escandaloso... De modo que eu creio que, sim, esses programas são inspirados profundamente nos princípios da Teologia da Libertação.

Como tem sido a posição da Igreja Católica em relação ao seu governo?
A Igreja é muito institucional no Paraguai. Mas também há um conceito de Igreja enquanto “povo de Deus”. E esta Igreja é a que tem nos ajudado fundamentalmente enquanto base popular do eleitorado paraguaio que nos ajudou a chegar à presidência em 2008. Além dela, dessa Igreja de Comunidades de Base, existem agentes pastorais, líderes, inclusive alguns ministros, que sem se apartarem da fonte essencial dos seus sermões, nos têm ajudado na conscientização do povo. Inclusive até com alguns bispos, continuamos tendo conversas bem fluidas porque há uma coincidência muito grande. A Igreja sempre afirmou que não se pode identificar com nenhum projeto político temporal. O seu projeto é de longo prazo, mais definitivo. Mas em alguns aspectos coincide com projetos temporais, sociais sobretudo. E nesse sentido, temos uma comunicação fluida com pastores da Igreja Católica e não-católica também. Temos uma relação institucional importante. A Igreja continua desenvolvendo no Paraguai uma atividade complementar em termos de educação, saúde, que muitas vezes o Estado não tem a estrutura suficiente para responder eficientemente esses desafios.

Falando de futuro, sabemos que a legislação paraguaia não permite a reeleição. O senhor já tem em mente o candidato que vai apoiar?
O processo paraguaio tem etapas. Na primeira etapa não se pode fazer tudo. Eu creio que nessa etapa, de romper a partir de dentro, em um processo institucional, eleitoral, já foi difícil ganhar de um partido como o Colorado. O processo eleitoral foi transparente, limpo, legal, com um respaldo popular muito forte. E o mais importante que aparece nas conversas com o povo, nas bases populares, é a continuidade do processo. Um processo se iniciou em 2008. E agora temos que garanti-lo. Hoje, falamos muito dos perfis dos candidatos que podem garantir essa continuidade. Não de nomes específicos. Seguramente que com os meses, em outubro, novembro, dezembro, os cidadãos terão mais claro quem será essa pessoa.

Por que o senhor não tentou reformar a Constituição para que a reeleição fosse possível, como fizeram Chávez, Evo e Correa?
Porque cremos que a constituição das leis tem um caráter universal. E a princípio, estávamos em desacordo em transformar a lei para favorecer uma pessoa. Mas se isso for um desejo popular, uma resposta também institucional ao o que ocorre no país, eu acredito que hoje há um grande consenso que o próximo presidente que assuma em 15 de agosto de 2013 em dois ou três meses de governo, sem nenhuma dúvida, terá que convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. Porque a nossa Constituição é de 1992. E em 20 anos muitas coisas mudam. Apesar de ser uma Constituição que, tendo sido escrita após a ditadura no Paraguai, também alterou certos aspectos e possui um conteúdo mais democrático. Da mesma forma, em 20 anos, o país mudou em muitas coisas.

O senhor soma-se aos já citados atuais presidentes progressistas da América Latina. Chávez, por sua vez, enfrentará as urnas novamente no final do ano. De que forma o senhor pretende apoiar a candidatura dele na Venezuela?
A América Latina, começando por alguns países também da América Central e também Venezuela, Brasil, Bolívia, Equador, em um momento Chile, Uruguai, Argentina e Paraguai, estamos como que embarcados em um primeiro momento num grande projeto de integração. Em um segundo momento de poder dinamitar certas condições de nossos países que não têm um crescimento equitativo. A eleição que Chávez enfrentará em outubro será o povo venezuelano que decidirá o futuro do seu país. Nós temos muito respeito com os processos nacionais. Mas, acredito que temos uma garantia, sem nenhuma dúvida. Que todos esses governos progressistas da América Latina, mesmo que com uma diferença abismal, são melhores do que aqueles governos ditatoriais que impuseram a pobreza a várias populações pelos países da América Latina. Acreditamos que esses governos progressistas, se não dão uma solução mágica porque não existe solução mágica em termos da política, em termos sociais, dão respostas eficientes de transparência, com a participação cidadã, que é a maior garantia de fortalecer e consolidar nossas democracias no continente.

Como outros governantes progressistas, o senhor apresentou um diagnóstico de câncer. Como está a sua saúde? Como o senhor vê tamanha coincidência de um quadro clínico semelhante ao seu acontecendo com Chávez, Lula, Dilma, Cristina (…).
Alencar [José Alencar]. Ele foi o primeiro que me visitou no Sírio Libanês. Um homem cheio de esperança. Eu o recordo com respeito e gratidão por suas visitas de solidariedade no hospital. O mesmo com Lula. Um grande companheiro, um grande irmão. Eu acredito que o poder de ter superado o câncer nos leva a muitas reflexões pessoais. Em primeiro lugar, como é possível que esses presidentes progressistas sejam acometidos desse mal. Há muitos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados. Outros aniquilados com quimio e radioterapia. Cânceres da sociedade como o egoísmo de tanta gente. De uma sociedade preparada somente para favorecer a grupos muito pequenos de privilegiados. Os cânceres da pobreza, do analfabetismo. Os cânceres dos fossos digital e educacional. Quanto a minha saúde, ela vai muito bem. E ela é prova de que o câncer pode ser vencido. Que existem possibilidades reais de se vencer esses cânceres da sociedade. E que também atacaram pessoas individuais como Lula, Dilma, agora em Chávez, Alencar. É possível extirpar pela raiz esse mal que afeta a sociedade.

Como o senhor vê a proposta da Alba, que ultrapassa os acordos entre governos, mas também envolve iniciativas de integração popular, entre as organizações populares de todo continente?
Houve muitas tentativas de integração da América Latina. Desde a Aliança para o Progresso, na década de 1950 e 1960, que nos enviaram de fora e do Norte, e o que se quis fazer com a Alca. Mas existem outras experiências muito mais genuínas, mais populares, que dão mais garantias de integração cidadã. É nessa linha que eu vejo a Alba. A Alba não foi elaborada num grande laboratório, nasceu da experiência, da realidade, da necessidade de integração de cidadãos, artistas, trabalhadores, políticos, intelectuais, pequenos comerciantes. Tem o seu germe numa grande discussão regional e de pessoas e países que vivem em situações similares que necessitam da solidariedade internacional.

A proposta do Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos) seria uma forma eficiente de se contrapor à OEA?
Como disse, são muitas as tentativas. O Grupo do Rio, agora a Celac. Unasul, Mercosul. Celac é a experiência da inclusão na integração. Na OEA, não está Cuba. Na Celac, está. Para os chefes de Estado latino-americanos, a grande injustiça que se cometeu na OEA contra Cuba é como a pedra no sapato de muita gente. Onde há posturas quase irracionais e muito rígidas. Por isso, Celac é uma experiência de integração inclusiva especialmente pensando na república irmã de Cuba, que por mais de 50 anos segue suportando o seu bloqueio econômico irracional. De modo que a Celac pode ser um caminho. Não sei se suplantará totalmente o que é ou o que foi a OEA, que nasce em outro contexto, num outro tempo, e que cumpriu uma grande missão. Mas, hoje, por exemplo, até mesmo a Unasul, com uma estrutura muito mais flexível, também terá as suas comissões de fiscalização de eleições, que me parecem muito interessantes dentro do contexto do que é integração, de transparência nos processos democráticos.

Retomando a questão mais interna do Paraguai, quais foram as principais dificuldades que o senhor encontrou para implementar as mudanças no governo após 60 anos de governo colorado?
Dificuldades pessoais em primeiro lugar. Chegamos ao governo, ao Palácio de López, como diziam muitos, sem ter a experiência de ser gerentes de um Estado como o Paraguai. Isso tem o seu pró e o seu contra. Chegamos sem preconceitos. Mas encontramos muitas dificuldades de caráter institucional. Instituições importantes, como o ministério da Educação e da Agricultura, destruídas, nas quais as práticas de gerenciamento do Estado estavam baseados no clientelismo, como se o saque fosse para ser repartido dentro de um grupo político determinado entre pessoas que compartilhavam os mesmos interesses. Romper com essa prática política é o mais difícil e paradigmático da grande tentativa que estamos fazendo dentro do governo. A outra coisa que temos que reconhecer é que não se veem técnicos excelentes em todos os postos e lugares porque chegamos ao governo como “Aliança Patriótica para a Mudança”, que é uma gama de movimentos e partidos, com uma variedade interessantíssima que é uma riqueza, mas possui também muitas debilidades. Nos custa muito construir o consenso. Muitas vezes para um cargo determinado, passamos horas inteiras discutindo quem é a pessoa exata para esse posto exato e que pode ter uma linha determinada na tarefa do gerenciamento do Estado. Sem dúvida, ter um Parlamento adverso não tem sido fácil para a governabilidade nesses três anos e meio. Se se revisa as atas do Parlamento sempre houve ameaças de processos políticos com o intuito de desestabilizar o governo. Se há um mérito nesse governo é o de haver sido aberto e inclusivo, de não perseguir ninguém.

Recentemente, no Brasil, foram anunciados os membros da Comissão da Verdade. Vimos que na TV Pública Paraguay há uma propaganda pedindo mais recursos para se esclarecer os 500 casos de desaparecidos durante a ditadura do Stroessner. Como se dá esse processo aqui?
Aqui também se constituiu uma Comissão de Verdade e Justiça. A ditadura paraguaia caiu em 1989 e foi só no nosso governo que encontramos as primeiras tumbas de desaparecidos políticos. Passaram-se 19 anos. E temos que reconhecer que é mérito de nossa vontade política. Aqui no Paraguai, ninguém se esquece que houve um plano Condor, de acordos entre os ditadores da época, de ter livre acesso e ação. Transformamos em museu um campo de concentração em Missones. Aqui mesmo há o Museu da Memória. Temos participado da busca de desaparecidos. Mas nem tudo depende do poder público. Há muitos processos que dependem da Justiça paraguaia. E oxalá que sejam agilizados para que se encontrem os culpados para que sejam submetidos à justiça.

A sua família também passou por perseguições...
Sim, meu pai foi preso 20 anos durante a ditadura. Todos os meus irmãos e minha mãe passaram por cárceres do ditador Stroessner. Eu tenho um irmão que faleceu no exílio. Há muitas pessoas que querem colocar um pano de esquecimento, mas não podemos pensar em um futuro sem escavar a memória do passado. Não com ares de vingança, mas de justiça. A justiça deve ser a base, um dos pilares da construção de um novo país.

Como se dá a sua relação com os militares?
Os militares no Paraguai talvez tenham sido os que mais se adaptaram à democracia. E temos tentado que as Forças Armadas tenham um novo tipo de relacionamento com a sociedade civil. Há pouco, tivemos uma experiência de emergência nacional e os militares se colocaram à disposição para o resgate de pessoas. E tem um orçamento, depois de 20 anos, mais razoável para construir estradas, levar água potável, acolher desabrigados. E o Paraguai participa nas Nações Unidas de um programa do Exército voltado para a paz. Assim, hoje, temos essa tendência: de preparar militares não para a guerra, mas para a paz em um Estado democrático.

Como as questões de gênero e indígena têm sido tratadas no seu governo?
Temos uma excelente ministra da mulher, que como já disse, não coincide comigo em muitos aspectos, mas tem as mãos livres para fazer o que a filosofia de gênero hoje exige no mundo moderno. Com os indígenas, existem 519 comunidades indígenas no Paraguai. Sem dúvida que não podemos solucionar o problema de décadas da noite para o dia. Temos denúncias internacionais para que povos possam recuperar suas terras ancestrais. É certo que podemos ver nas ruas de Assunção indígenas, mas a solução também passa por uma mudança cultural. Como fazer com que povos que eram caçadores possam ser agricultores ou tenham outras atividades dentro de suas comunidades.


O presidente Fernando Lugo - Foto: URZ/Presidência do Paraguai
Como o senhor lidou durante o mandato com as ameaças de morte?
As ameaças já haviam surgido quando eu ainda era bispo em San Pedro. Diziam que a experiência de dom Oscar Romero ia se repetir no Paraguai. Durante a campanha e quando iniciamos o governo também apareceram as ameaças. São os profetas do Apocalipse que somente anunciam destruição, sangue e morte. Que não faltam. Sempre estão aí presentes. A insegurança é um grande tema para todo o continente. Queremos melhores dias para o Paraguai. Algumas dessas ameaças não são sérias. Já outras, tem que se levar em conta, pois, acredito que o sistema de segurança das autoridades legitimamente constituídas dependem do Exército paraguaio. Eu, pelo menos, tenho a certeza da segurança oferecida porque são profissionais. Não é possível dizer que isso nunca vai ocorrer ou que pode ocorrer. Estamos, de alguma maneira, nas mãos de uma instituição importante para a vida nacional que é o Exército paraguaio.

Qual tem sido a posição do governo dos Estados Unidos?
Assim que Obama foi eleito, gerou-se muita expectativa, ilusão. Ele mesmo anunciava que os Estados Unidos mudaria a sua política em relação à América Latina, o que é necessário. Nesse sentido, os Estados Unidos têm tido uma política exterior em referência ao Paraguai mais respeitável do que as anteriores. É um governo que nas suas relações internacionais tanto faz falar com a Argentina, com o Brasil ou com outro país do continente. Penso que os Estados Unidos entenderam que no Paraguai há um governo que se faz respeitar e que também respeita profundamente as políticas exteriores dos outros países e os seus processos histórico- sociais.

E as suas relações com o governo brasileiro? Quais dificuldades e avanços?
Facilitou muito essa espécie de feeling com o Lula. A sensibilidade com os mais humildes facilitou muito nossa relação com o Brasil. Mais que isso, nossas justas reivindicações que já levavam anos, décadas, em referência à soberania energética, em relação ao preço da energia de Itaipu, o companheiro presidente Lula nos ajudou muitíssimo porque entendeu que as razões que apresentavam os paraguaios eram razões de peso, que não se podia debater. E os seis grandes eixos que apresentamos foram aceitos pelo Brasil. Mais que isso, na região, como aliado estratégico, o Brasil é um país que tem uma liderança mundial, que é como se fosse capaz de sentir que, tanto para o Brasil quanto para Lula, a ninguém convinha ter um vizinho pobre. Essa experiência pessoal trasladada à uma política de Estado foi entendida pelos dois países.

Temos ouvido do movimento camponês paraguaio que a reforma agrária não avançou. Quais foram as dificuldades para isso?
A estrutura econômica do Paraguai é baseada na posse da terra, que é histórica. Um dos aspectos para iniciar a reforma agrária seria possuir um padrão de posse da terra, que não existe. Isso bloqueou bastante o processo de reforma agrária. Avançamos na discussão de que reforma agrária não é só repartir terras como tem sido feito historicamente, que tem outros componentes, como o sistema produtivo. As pequenas propriedades se inseriram no sistema produtivo paraguaio. Esse crescimento de 15,3% no ano de 2010 se deu em grande parte devido à multiplicação da produtividade dos pequenos agricultores do país.

Soubemos que o narcotraficante brasileiro, Fernandinho Beira- Mar tinha uma fazenda em nome de “laranjas” fruto dos crimes no Paraguai, e que o governo brasileiro e o Poder Judiciário disponibilizaram essa área para o governo do Paraguai. Qual foi o destino que foi dado à essa área?
O narcotráfico é um problema global. Conversei com a presidenta Dilma, em Caracas. Se não tivermos uma estratégia regional ou continental será muito difícil que países isoladamente possam superar esse grande flagelo. É preciso que esse assunto entre na agenda de discussão. Dentro desse marco, temos trabalhado muito bem com o Brasil, em referência à cooperação na luta contra o narcotráfico, o que fez com que pessoas como Fernandinho Beira-mar estejam presos. Mas falta uma questão: o que fazer dos seus bens? Em outros países a legislação favorece a confiscação dos seus bens, como Colômbia. Aqui, já foram confiscados veículos, aviões, que não se podem utilizar porque estão a cargo da Justiça. Falta uma lei para garantir que esses bens possam ser utilizados. Eu creio que o que foi adquirido ilegalmente, o Estado paraguaio ou qualquer Estado tem que ter a capacidade e o sustento legal para poder recuperar esses bens e colocar a serviço da comunidade.

O presidente Lugo deixará o governo com o sentimento de dever cumprido?
Muitos pensam de maneira quase pendular. Muitos dizem que Lugo já fez o seu papel e é suficiente. E outros dizem que Lugo não fez nada. Eu sempre digo que a virtude está no meio. Muito foi feito, mas muito ainda resta para se fazer. De alguma maneira, temos tomado parte de um processo de transformação do Estado paraguaio. Isso ninguém pode nos negar. Que 2008 é um capítulo especial na página da história política do país da qual somos partícipes e sujeitos. Por outro lado, há muita tarefa para se fazer, o ideal, a utopia, a lógica da equidade ainda está longe. Fernando Lugo, no dia 15 de agosto de 2013, seguramente que deixará a tarefa de governar o país para um grupo de patriotas, de diferentes partidos, que seja includente, aberto, democrático e seguirá participando, na medida que puder, ajudando o processo paraguaio de transformação. Um processo que tem que ser dinâmico, ter um movimento constante. Por isso, a grande preocupação é que esse processo não termine. Que se possa garantir o seu seguimento. E de alguma maneira, seguramente, que Fernando Lugo estará tranquilo, porque, pelos menos, temos sido partícipes, testemunhas e sujeitos de um processo de transformação que oxalá continue.