sexta-feira, 28 de junho de 2013

Não deixem abaixar as bandeiras vermelhas



Por Valério Arcary


"A liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente". (Rosa Luxemburgo)


"Liberdade é o direito de estar errado, e não de fazer errado". (John Diefenbaker)

"Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta". (Albert Einstein)


De repente, tudo mudou. Nas manifestações de segunda, 17 de junho, aconteceu algo excepcional, algo de inusitado e heroico, que remete ao extraordinário, ao imprevisto, ao grandioso. Bonita, magnífica, majestosa, em São Paulo, no Rio de Janeiro e pelo Brasil afora, a juventude saiu às ruas e fez tremer a Avenida Paulista e a Rio Branco, fez tremer os banqueiros, fazendeiros, empreiteiros, fez tremer os comandos das Polícias Militares, os governadores, prefeitos, deputados e até o último dos vereadores. Nesse dia, toda a ordem econômica, social e política que preserva o Brasil como um dos países mais injustos do mundo tremeu. Eles não podiam ir dormir. Tinham que procurar uma explicação. Porque eles precisavam entender porque são desprezados.

Foi surpreendente, mas sabíamos que teria que acontecer, que estava no horizonte, pelo que esperamos por vinte anos; esperamos, alguns, uma vida inteira. O que tinha sido, até então, em quatro passeatas corajosas em São Paulo, um protesto contra o aumento das passagens, se agigantou em manifestação política nacional e, de repente, tudo mudou. O capitalismo brasileiro, que estava comemorando as suas grandes obras, os seus estádios, suas hidrelétricas, foi para a cama de olhos arregalados, assustados.

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Mudou porque esta geração da juventude, a mais escolarizada da história do Brasil, os desaprova, os condena, os odeia. Pior e mais importante que tudo, temem que a juventude esteja somente abrindo a porta para a entrada em cena da classe trabalhadora. Se os milhões de assalariados, que fazem o Brasil ser um dos países periféricos com um dos maiores proletariados do mundo, entrarem na briga, o que vai estar em disputa não será somente a anulação do aumento das passagens. Esta aliança da classe trabalhadora com a juventude é a maior força social que existe. Foi assim nas Diretas. Foi assim no Fora Collor.

Por que mudou? Mudou porque éramos muitos, éramos centenas de milhares, e isso faz toda a diferença. Mudou porque eram milhões que nos apoiavam. Mudou porque aqueles que não saíram nas ruas nessa semana virão nas próximas. Mudou porque nossos inimigos se calaram, silenciaram, roendo as unhas. Mudou porque aquilo que é justo merece vencer. A alegria tomou conta das ruas e o medo tomou conta dos palácios. Eles gemeram, e nós cantamos.

Andamos, gritamos e cantamos, como deve ser. Aliás, como andamos em São Paulo! Muitos cartazes maravilhosos: "Se o povo acordar, eles não dormem!", "Não adianta atirar, as ideias são à prova de balas!", "Não é por centavos, é por direitos!", "Põe a tarifa na conta da Fifa!", "Verás que um filho teu não foge à luta!", "Se seu filho adoecer, leve-o ao estádio!", "Ô fardado, você também é explorado!".

Mas, se apareceu o que existe de mais generoso, valente e solidário no coração da juventude, apareceu, também, o que existe de ingênuo, confuso e até reacionário. Não foi tudo progressivo. Apareceram jovens embriagados de nacionalismo, embrulhados na bandeira nacional, e cantando "sou brasileiro com muito orgulho e muito amor". O nacionalismo é uma ideologia política perigosa. Só é positivo quando defende o Brasil do imperialismo. Acontece que não parecia que os que cantavam o hino estavam de acordo em exigir a anulação dos leilões de privatização, portanto, de desnacionalização do petróleo do Pré-Sal.

 

Alguns destes jovens fizeram ainda pior. Avançaram sobre militantes de esquerda e suas bandeiras. Atacaram as bandeiras do PSOL, do PCB e do PSTU. Por sorte, não aconteceu uma tragédia: porque a militância da esquerda tinha o direito e a disposição de defender suas bandeiras, a qualquer custo, e poderia ter se precipitado uma pancadaria séria, com feridos.

Gritar "sem violência" não é o mesmo que gritar "sem partidos". Quando gritamos juntos "sem violência" estamos denunciando a presença de provocadores infiltrados da polícia que querem oferecer um pretexto para a repressão. Não estamos condenando o direito legítimo à autodefesa, um direito inalienável, que qualquer um aprendeu no jardim de infância.

Estamos tentando impedir que nossas manifestações sejam destruídas pela repressão, e que esta repressão consiga ganhar apoio do povo contra a juventude. As televisões usaram e abusaram de imagens de uma estação de metrô depredada. O povo que trabalha é contra a destruição do metrô. Foi isso que Alckmin tentou fazer, por quatro vezes, manipular a população acusando a juventude de vandalismo, e foi derrotado.

Gritar "sem partidos", contra a esquerda, é muito diferente. Que uma parcela de juventude ingênua tenha profunda repugnância pela política, que associe toda a esquerda ao PT, o PT à corrupção, e o Haddad ao aumento, embora seja superficial, portanto, meia verdade e meia mentira, é compreensível. Que grupos reacionários, nacionalistas, que estão contra o governo Dilma pela ultradireita, que odeiam a esquerda porque ela representa o projeto coletivista e igualitarista da classe operária, aproveitem da confusão de uma manifestação com muitos milhares para expressar seu ódio de classe, insuflados por Jabor da Rede Globo, é previsível. Que alguns pequenos núcleos de inspiração anarquistas - não todos, vale ressalvar! - ainda insistam na divisão do movimento, querendo impor pela força dos gritos sua ideologia, é antidemocrático, divisionista, portanto, lamentável.

Mas o que aconteceu em São Paulo, no Rio de Janeiro e Salvador foi diferente e, muito, muito mais grave. Foi parecido com o Cairo, onde a Irmandade Muçulmana tentou impedir a esquerda de se apresentar publicamente.

 
O que aconteceu foi que jovens de rosto coberto, mascarados, alimentando a ilusão de que a intimidação física é o bastante para vencer na luta política, foram a linha de frente de um ataque covarde, quando estavam, acidentalmente, em maioria, e tentaram derrubar as bandeiras vermelhas. Não conseguiram fazê-lo, nem no Rio, nem em São Paulo, mas conseguiram em Salvador.

As lutas são apartidárias, mas não são monolíticas, são plurais. À exceção dos reacionários, marchamos todos juntos, não importa a ideologia, pelas reivindicações comuns que nos unem. Cada um abraça sua ideologia, seu programa e, se quiser, um partido. Sim, porque na vida, é preciso, mais cedo ou mais tarde, tomar partido. Mas, dentro do movimento ninguém pode impedir os outros de apresentarem sua identidade, ou de expressar sua posição.

O antipartidarismo, mais grave quando se dirige contra a esquerda socialista, é uma ideologia reacionária e tem nome: chama-se anticomunismo. Foi ela que envenenou o Brasil para justificar o golpe de 1964 e vinte anos de ditadura.

O PSTU vai empunhar suas bandeiras. O PCB e o PSOL certamente farão o mesmo. E os honestos anarquistas, aqueles que sabem que nenhuma aliança com a direita anticomunista é correta, com certeza terão a coragem de desfraldar suas bandeiras libertárias. Não deixem abaixar as bandeiras vermelhas. Foram os melhores filhos do povo que derramaram seu sangue pela defesa delas.


Valerio Arcary é militante do PSTU e professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e doutor em história pela USP (Universidade de São Paulo).
 
Publicado originalmente no Correio da Cidadania.


quarta-feira, 26 de junho de 2013

As Manifestações de Massa e o Aparecimento Público do Fascismo


Por Carlos Serrano Ferreira


Há um só amplo consenso político sobre as manifestações que se espalharam por todo o Brasil: elas pegaram de surpresa todos os campos políticos. Outra análise que, se não é consensual é majoritária, aponta – com valorações distintas, sejam positivas ou negativas – para o divórcio crescente entre a institucionalidade democrática burguesa e as massas brasileiras, que se materializam na rejeição ao sistema partidário. Para além disso, essas manifestações demonstraram a existência, até então desconhecida, de um campo fascista bastante organizado  em nível nacional.

Desde o início do primeiro governo Lula foram se definindo com clareza quatro campos políticos. Do lado burguês colocavam-se dois campos e do lado popular outros dois. É claro que os limites entre os campos variaram ao longo do tempo.

Como primeiro campo da classe dominante está a direita clássica, organizada em torno à oposição de direita ao governo (PSDB, DEM e outros) e tendo como órgãos oficiais a Veja, a Rede Globo e a Rede Bandeirantes (entre outros), de cunho abertamente neoliberal e conservador.

Como segundo campo da classe dominante está o governo de Frente Popular liderado pelo PT e sustentado por seus velhos aliados (PCdoB e PSB), bem como por novos aliados que sempre se relocalizam conforme os ventos mudam, em particular o sempiternamente governista PMDB. Em grande parte tenta esse campo se colocar dentro de um alinhamento do que seria uma tradicional social-democracia europeia, mas muito mais próxima da Terceira Via de Tony Blair, realizando um malabarismo entre reformas sociais e políticas econômicas neoliberais. O resultado é o aprisionamento basicamente em políticas assistenciais e localistas, por um lado, e grandes concessões há conglomerados econômicos, em particular o setor bancário, do outro, como se vê no pagamento das dívidas interna e externa. Também se beneficiaram fortemente dessas políticas o agronegócio (os velhos latifundiários com ares “modernizados” de empresários capitalistas).

 

Esse campo possui como orgão de comunicação, ainda que com limites, a Rede Record, pelos acordos mantidos pelo governo com a Igreja Universal do Bispo Macedo. Há, no entanto, em alguns momentos conflitos, tendo em vista as posições mais reacionárias dessa igreja em relação à temas como aborto e homossexualidade. Possui outros orgãos menores como a Carta Capital ou o Brasil de Fato (com polêmicas momentâneas). Por outro lado, possui uma base social construída desde o início do ciclo de hegemonia do PT no movimento sindical (CUT) e no movimento popular (como o MST, apesar deste flutuar mais à esquerda) e com o apoio de seus aliados, como o PCdoB (com sua central, a CTB e sua hegemonia na UNE).

À esquerda desse campo, como parte dos setores populares, se encontra o PSOL, que conforma um campo todo próprio do reformismo de oposição de esquerda aos governos do PT. Por ter sido gerado de dentro do PT carrega consigo vários elementos limitantes, em particular pelo seu peso mais parlamentar que no movimento social, tendo compromissos muito grandes com o sistema democrático burguês. Contudo, há que se ressalvar que o PSOL é uma legenda que abriga grupos muito heterogêneos, verdadeiros partidos, e alguns tendem a se aproximar mais do campo a seguir.

O outro campo, parte dos setores populares, é o das organizações revolucionárias. Há aqui várias pequenas organizações, muitas de carácter mais próximo à seitas que de organizações revolucionárias. Os partidos que de fato existem e tem vida ativa e maior projeção são o PCB e o PSTU. Possuem profundas diferenças, principalmente em relação à temas internacionais, mas tem uma mesma estratégia revolucionária para o Brasil, apontando a necessidade de uma revolução socialista como saída para os impasses políticos, sociais e econômicos do desenvolvimento brasileiro. Procuram apoiar-se num trabalho junto à juventude e às massas trabalhadores. Contudo, apesar de seus avanços, ainda são extremamente minoritários na direção dos setores populares e se encontram divididos.

Até as manifestações que tomaram vulto particularmente na última semana, eram estes os campos conhecidos na política brasileira. Sempre se soube da existência de grupos de extrema direita no país, mas estes nunca foram vistos como um campo com intervenção real na vida brasileira, para além de recalcitrantes e saudosistas militares de pijama com suas reuniões no Clube Militar ou certos deputados mais raivosos de origem também militar, bem como os grupos evangélicos mais fundamentalistas. Os militares atuavam particularmente contra as Comissões da Verdade de investigação dos crimes da ditadura, seja como proteção aos seus próprios crimes, seja como forma de proteger a imagem da instituição (quando na verdade, esta só melhoraria se passasse sua história à limpo). No máximo, via-se aqui ou ali um cartaz do MV-Brasil contra o halloween. Em alguns momentos, sabia-se de ações violentas de skinheads. Porém, sempre se viu estes grupos como muito dispersos e desarticulados.
 
Movimento Passe Livre - Um Asno

Contudo, na última semana nas manifestações do Rio de Janeiro e de São Paulo, o ovo da serpente do fascismo começou a brotar. Aproveitando-se do sentimento de insatisfação contra os partidos políticos que toma a população – ano passado uma pesquisa apontava que os partidos eram as instituições em que a população menos confiava (apenas 5%) – iniciaram uma ação de agitação e propaganda na internet contra as duas organizações de esquerda revolucionária que participavam ativamente das manifestações exercendo o democrático direito de levar suas bandeiras e suas palavras de ordem, como qualquer um que o fizesse: o PCB e o PSTU. Seus objetivos eram atacar exatamente não todos os partidos, mas particularmente o campo revolucionário, seu inimigo histórico e mortal. Claro que nas manifestações também atingiram outras organizações. Na última manifestação atacaram em São Paulo os militantes do PT e no Rio no início da concentração os militantes da CUT (ligada ao PT). Mas, sua ação mais feroz se deu exatamente contra o PCB e o PSTU: no meio da Avenida Presidente Vargas, de forma muito organizada, utilizando duas milícias atacaram indiscriminadamente os militantes partidários, fossem homens, mulheres ou crianças, por trás e pelo flanco, com bombas, pedras e paus. Mesmo com a resistência dos militantes desses dois partidos e dos militantes do PCdoB e PCR, que tentaram construir um cordão de isolamento para proteger os militantes e a base presentes, muitos saíram feridos. Alguns com gravidade.

 
Após a manifestação, todos que estavam na rua com camisas vermelhas – inclusive que nada tinham haver com a militância de esquerda – foram atacados. Porém, sua ação não objetivava apenas o ataque físico aos manifestantes de esquerda. Seu objetivo maior era criar um ambiente de terror que servisse para desestabilizar o governo de Dilma Rousseff e justificar uma intervenção militar golpista sob o lema de “recuperar a lei e a ordem”. Para isso contaram com suas milícias, que recrutavam o que Leon Trotsky chamava de “poeira da Humanidade”: membros de torcidas organizadas, skinheads, playboys marombados de academias, criminosos, ex-militares e membros de serviços de inteligência das forças repressivas. Por trás destes – alguns contratados, outros recrutados ideologicamente – estava uma frente de organizações de extrema-direita, que claramente se articulou em nível nacional, com ações que se iniciavam pontualmente na mesma hora em todo o país e com asmesmas palavras de ordem. Não só instigavam a massa com gritos de “sem partido”, “fora oportunistas”, como deixavam ainda mais claro, antes dos ataques iniciados por eles, seu caráter fascista quando acusavam os militantes de esquerda eram “vermelhos, e eles eram verde-amarelo”.

Sua ação pôde ser vista tanto na queima da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, como no Itamaraty, na pancadaria em frente à Prefeitura do Rio de Janeiro, ou no banditismo que espalharam posteriormente às mobilizações, seja na Presidente Vargas, na Cinelândia e na Lapa, seja na Barra da Tijuca no dia seguinte. O mais grave, que demonstrou o comprometimento de amplos setores dos  aparatos repressivos, é que estes atuaram sempre com leniência na repressão das milícias fascistas, se deixando encurralar ou simplesmente deixando-os atuarem. Lembre-se que estavam deslocados para o Rio de Janeiro muitos militares – sob a justificativa de proteger o Comando Militar do Leste e o entorno do Estádio do Maracanã – inclusive com tanques de guerra, e nada fizeram contra as milícias fascistas. Mais ainda: a polícia contribuiu com o clima de terror lançando bombas, tiros de borrracha e de projéteis mortais indiscriminadamente pela Lapa e a Cinelândia, contra a população que nada tinha haver com os fascistas, como mostraram recentemente os meios de comunicação.

O sinal positivo, mas que não pode de forma alguma deixar os democratas tranquilos, pois os humores populares podem variar rapidamente, é que o apoio ao golpe é ainda marginal na população. Segundo uma pesquisa do Datafolha apenas 3% dos manifestantes apoiam a ditadura contra 87% que apoiam a democracia e a maioria se coloca num sentido mais progressista, contra a pena de morte e em defesa da aceitação da diversidade, como dos homossexuais.

Entre os campos burgueses há sinalizações do isolamento dos fascistas. No campo governista isto transpareceu no discurso da presidente Dilma Rousseff que isolou os fascistas – apesar de não citá-los diretamente. Essa postura é a mesma do campo burguês oposicionista. O campo governista quer dar sinalizações à sociedade de diálogo, e buscará se reaproximar de suas bases sociais, procurando mobilizá-las, em particular no operariado, grande ausente das mobilizações majoritariamente pequeno-burguesas. É possível que numa radicalização da conjuntura nacional – ligado ao recrudescimento da crise mundial – que ensaie uma saída kerenkista, com um governo que se apoio ao mesmo tempo nas instituições burguesas e nas isntituições operárias. Contudo, isto está ainda distante, mas poderia ser uma última saída da social-demcoracia frente aos questionamentos da institucionalidade puramente burguesa e do crescimento do golpismo.

Do lado do campo burguês oposicionista a saída buscada ainda é pela via institucional. Aprenderam com a história que um golpe militar ou fascista pode sair de seu controle – mesmo que preservando seus privilégios econômicos pode alijá-los da política direta. Um exemplo disto foi Carlos Lacerda, que planejou golpes até que com o golpe ocorrido no 1° de abril de 1964 ele ficou fora do novo regime, sendo também perseguido. Buscam canalizar as manifestações, disputando sua  direção através dos meios de comunicação que dirigem, para suas próprias metas, que nada tem haver com a defesa do serviço público (muito pelo contrário), mas de desgastar o governo de Frente Popular. Querem acabar com a “terceirização” do governo burguês e recolocar seus representantes diretos. Para isso apostam num discurso anticorrupção (hipócrita vindo deles, pois seus governos são tão corruptos quanto os petistas), particularmente contra a PEC 37. É claro que tentam semear a confusão, como a Globo na sexta-feira, tentando deixar a entender que a culpa das ações de desordem ligava-se à presença da esquerda!


Neste momento, a grande burguesia não aposta num golpe direto, pois até agora os governos de Lula e Dilma conseguiram manter sob controle a classe operária e atender seus interesses econômicos. Claro que se as coisas fugirem ao controle deles e a crise recrudescer, podem apostar num golpe. À priori, o que se aponta, é que este golpe não seria fascista, mas alguma saída similar ao golpe parlamentar perpetrado contra o presidente Lugo no Paraguai. Este parece também o plano B dos EUA, que por ora estão bem contentes com o governo. Isso é perceptível com a recentíssima indicação (no início do mês de junho) da diplomata Liliana Ayalde para o cargo de embaixadora dos EUA no Brasil, que anteriormente servira no Paraguai. Os EUA são capazes de mudar de orientação no futuro em apoio a um golpe aberto, como a reaivação da IV Frota americana de patrulha do Atlântico Sul indica, mas não é sua tática principal, tendo em vista que ditaduras desse tipo podem fugir ao controle, como ocorreu com a ditadura militar brasileira em seu fim (lembre-se do acordo nuclear com a Alemanha).

Contudo, está claro que o surgimento público do fascismo fará com que nada mais seja igual no país. A instabilidade política se aprofundará e os enfrentamentos serão mais duros. Muito estará na mão da postura da social-democracia em relação ao fascismo – se o enfrentará a partir da estrutura do Estado, alijando os setores golpistas ainda incrustados no mesmo – levando adiante a apuração dos crimes da ditadura militar e punindo-os, de forma a desmoralizá-los. Principalmente, estará nas mãos da esquerda revolucionária: se está conseguirá se unir para refrear os fascistas e desgastar a social-democracia – que por seus limites é a causa direta do crescimento do fascismo – particularmente nos movimentos operários e populares e ao mesmo tempo engendrar uma unidade ampla dos democratas e progressistas. Fundamentalmente, se conseguirão apontar uma nova institucionalidade baseado em organismos populares em alternativa à desgastada institucionalidade burguesa. O ovo da serpente brotará completamente ou será esmagado antes de seu nascimento?


terça-feira, 25 de junho de 2013

PT e governo precisam de uma faxina





Se a vontade política da presidente Dilma Rousseff e seu partido for realmente enfrentar a onda reacionária que tenta controlar as ruas, há uma lição de casa a ser feita. O PT e o governo precisam se livrar da quinta-coluna, que representa interesses alheios à esquerda e aos setores populares.

O termo nasceu na guerra civil espanhola, nos anos trinta do século passado. Quando Francisco Franco, líder do golpe fascista contra a república, preparava-se para marchar sobre Madri com quatro colunas, o general Quepo de Llano lhe assegurou: “A quinta-coluna está esperando para saudar-nos dentro da cidade.” Referia-se às facções que, formalmente vinculadas ao campo legalista, estavam a serviço do golpismo.

Quinta Coluna

A maior expressão de quinta-colunismo no primeiro escalão atende pelo nome de Paulo Bernardo e ocupa o cargo estratégico de ministro das Comunicações. Não bastasse vocalizar o lobby das grandes empresas de telefonia e a pauta dos principais grupos privados de comunicação, resolveu dar entrevista às páginas amarelas da revista “Veja” desta semana e subscrever causas do principal veículo liberal-fascista do país.

Na mesma edição na qual estão publicadas as palavras marotas do ministro, também foi estampado editorial que celebra a ação de grupos paramilitares, na semana passada, contra o PT e outros partidos de esquerda, além de reportagem mentirosa que vocifera contra as instituições democráticas e os governos de Lula e Dilma.

Nesta entrevista, Bernardo referenda que se atribua, à militância petista, um programa que incluiria a defesa da censura à imprensa. Vai ainda mais longe, oferecendo salvo-conduto à ação antidemocrática da mídia impressa e restringindo qualquer plano de regulação a perfumarias que deixariam intactos os monopólios de comunicação, o maior obstáculo no caminho para a ampliação da liberdade de expressão.

De quebra, o ministro chancela o julgamento do chamado “mensalão”, ainda que escolhendo malandramente os termos que utiliza, caracterizando a decisão como um resultado “normal e democrático”. Por atacar seu partido nas páginas do principal arauto do reacionarismo, recebe de “Veja” elogio rasgado, ao ser considerado “um daqueles raros e bons petistas que abandonaram o radicalismo no discurso e na prática.”

Paulo Bernardo não é, porém, o único que flerta com o outro lado da barricada, apenas o que mais saçarica. Está longe de ser pequena a trupe de figuras públicas petistas que dormem com o inimigo, a maioria por pânico em enfrentar os canhões da mídia ou desejosos de receberem afagos por bom-mocismo.

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Fogo Amigo

O governador baiano, Jacques Wagner, é outro exemplo de atitude dúbia. Há algumas semanas bateu ponto, na mesma revista, para dar seu aval aos maus-feitos jurídicos de Joaquim Barbosa e seus aliados. Mas não parou por aí. Quando o presidente do PT, Rui Falcão, estava sob cerrados ataques por chamar sua gente à mobilização, Wagner correu aos jornais para prestar solidariedade. Não ao líder máximo de seu partido, mas aos lobos famintos que se atiravam contra o comandante petista.

Nos últimos dias assistimos incontáveis cenas que igualmente merecem uma séria reflexão. Não foi bonita ou honrosa a oferta do ministro da Justiça à repressão da PM paulista contra a mobilização social. Ou o prefeito paulistano fazendo companhia ao governador Alckmin na resposta ao movimento contra o aumento das tarifas de transporte. Nesses casos, contudo, não houve facada nas costas, mas flacidez político-ideológica que não pode ser relevada.

A questão crucial é que, para avançar na luta contra o reacionarismo e na reconquista das ruas, o PT e o governo precisam restabelecer uma ética de combate. A defesa dos interesses populares e da democracia não poderá ser feita, às últimas consequências, sem uma faxina de comportamentos e representantes que favorecem os inimigos do povo no interior das fileiras aliadas.


(*) Breno Altman é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel. Artigo publicado originalmente na Caros Amigos.



segunda-feira, 24 de junho de 2013

O aviso de incêndio soou: A esquerda diante do “gigante verde-amarelo”




A direita e a grande mídia já estão preparadas. Chegou a hora de reafirmar os ideais da esquerda, formular uma pauta de reivindicações unificada, intensificar o trabalho de base e, sobretudo, tomar as ruas!


Clara F. Figueiredo, Lucas Amaral de Oliveira, Rafael de Souza e Rafael Schincariol,
do Viomundo


Atos contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo

A prefeitura e o governo do Estado de São Paulo anunciaram, no dia 22 de maio de 2013, o aumento da tarifa dos ônibus, trens e metrôs na capital paulista – de R$ 3,00 para R$ 3,20.

Em vista disso, o Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL/SP) organizou diversos atos contra o aumento. Nos três primeiros atos, observou-se, de um lado, confusão e violência devido à forte repressão policial, de outro, uma ação de denúncia e deslegitimação do movimento por parte da grande mídia, que, na época, qualificou os manifestantes como “vândalos” e “baderneiros”.

Entretanto, esse panorama geral das manifestações mudou a partir do 4° ato (13.06), quando São Paulo vivenciou cenas de guerra urbana. A polícia atacou indiscriminadamente manifestantes, jornalistas e transeuntes com bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha.

Os abusos iniciaram-se antes mesmo do começo do ato, quando dezenas de pessoas foram detidas “para averiguação” – prática comum do regime civil-militar –, algumas apenas por portarem vinagre – usado para reduzir efeitos do gás. Desse modo, o foco se voltou para a brutalidade da polícia.

Posteriormente, houve apoio maciço às mobilizações por parte da população, e os atos rapidamente começaram a se proliferar em diversas cidades do Brasil e do exterior em apoio aos protestos.


As inflexões dos protestos: um relato

No dia 17 de junho, já durante a manhã, um misto de ansiedade e desconfiança se alastrava, perturbando nossos sentidos em relação aos protestos. Do 4° para o 5° ato, constatou-se uma mudança radical de postura no discurso da grande mídia. De baderneiros, passamos a cidadãos exercendo o direito de manifestação.

Recebemos uma série de ligações e mensagens. Pessoas próximas, pessoas que não víamos e ouvíamos há tempos, todos preocupados demonstrando seu apoio e pedindo informações sobre os protestos que pararam São Paulo. Nas esquinas, bares, salas de aulas, onde quer que fôssemos, o assunto era o mesmo – e o mais curioso foi perceber a adesão dos que, antes, eram contrários a qualquer tipo de manifestação na capital.

A ansiedade era tamanha neste 5° ato que, já às 16h, estávamos nos arredores do Largo da Batata – local marcado para o ato. Ficamos perambulando, registrando e discutindo pautas e futuras ações. Perto das 18h, o ato começou. Seguimos perplexos com a quantidade de gente – cerca de 250 mil pessoas. “O povo unido é gente pra caralho”, bradava a multidão contente “por ter acordado”.

Algo perigoso estava se delineando. Caminhamos, entoamos palavras de ordem, seguimos a massa que ocupava a Avenida Faria Lima e despertava a atenção de todos os transeuntes e moradores dos exuberantes prédios da região. Mas, por algum motivo insólito, naquele momento pouco explicável, estávamos incomodados. Os rostos pintados de verde-amarelo, o hino nacional entoado desvairadamente, as frenéticas bandeiras do Brasil, o moralismo pacifista, as flores, o look fashion, os cartazes com pautas abstratas e dizeres diversos (até mesmo pedidos por intervenção militar, pasmem!), tudo, absolutamente tudo, causava desconforto.

Naquele exato momento mais de um milhão de pessoas ocupavam as ruas em dezenas de cidades. Em Brasília, inclusive, tomaram parte do Congresso Nacional. A reivindicação não era mais pela redução das tarifas do transporte público. Eram múltiplas pautas e insatisfações – dentre elas, os gastos com a Copa e a corrupção.

Cartaz a favor da intervenção militar, no quinto grande ato (17.06) pela redução da tarifa em São Paulo
Foto: Reprodução/Instagram


O slogan de uma propaganda da Johnnie Walker no Brasil, “o gigante acordou”, tornou-se metáfora para as contradições que pairavam. O 5° ato adquiriu proporções históricas. Há muito tempo não se via no Brasil tamanha mobilização social. A grande mídia, que historicamente criminaliza manifestações e movimentos sociais, noticiava euforicamente o espetáculo. Mas a máscara desse gigante, derivado de uma farsa publicitária, não tardou a cair.

A partir do 7° ato (20.06), percebia-se nas ruas e redes sociais a apresentação de uma extensa agenda de insatisfações e a tentativa de expurgar aqueles que deram origem às manifestações: movimentos sociais, coletivos organizados e partidos de esquerda. Os mesmos que gritavam “sem violência” foram protagonistas de um ataque violento aos membros de partidos que integravam a manifestação.

Vimos muita truculência por parte dos auto-intitulados “nacionalistas”. Vimos pessoas com bandeira do Brasil e máscaras do Guy Fawkes (“V de Vingança”) agindo como reacionários. Sentimos na pele um clima de tensão, em que “anti-partidários” se exaltavam raivosamente ao exigir que bandeiras de partidos fossem baixadas e queimadas: “o ato é do povo brasileiro, não dos partidos”, gritavam cegos e indignados. Em síntese, presenciamos a maior passeata de caráter integralista de nossas vidas.

Os militantes de esquerda foram violentamente expulsos e cerceados do direito de livre manifestação pública na Avenida Paulista por um grupo razoavelmente grande e heterogêneo. O próprio MPL/SP, confundido com um partido, foi expulso de seu ato. Nós – que não pertencemos a nenhum partido, mas reconhecemos sua importância –, juntos com militantes de diversas siglas historicamente relevantes na redemocratização do país, fomos reprimidos ao tentar defender o direito de livre associação partidária (estavam presentes parte da velha guarda do PT, sindicalistas, integrantes do PSTU, PSOL, PCB, PCR e PCO, e outras frentes da esquerda brasileira). O direito de se organizar em partidos foi conquistado a custo de muita luta. Que sentido haveria em querer proibi-lo?

Ao mesmo tempo, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas se manifestavam em mais de cem cidades brasileiras. Os gritos de “sem partido”, a louvação “à pátria amada idolatrada” (referência ao hino nacional) e a multiplicidade de pautas foram marcas também desses protestos. As manifestações contra o aumento da tarifa em São Paulo, principalmente após a violenta repressão policial no 4° ato, foram o estopim que “acordou o gigante”. A questão é: quem é esse gigante?


Movimento Passe Livre e as mobilizações de rua no Brasil

Após mobilizações contra o aumento da tarifa do transporte em Salvador (2003) e Florianópolis (2004), foi criado, no Fórum Social Mundial de 2005, o Movimento Passe Livre (MPL), com o objetivo de lutar pela gratuidade – tarifa zero – do transporte coletivo urbano.

O MPL é um movimento horizontal, autônomo e apartidário – mas não anti-partidário – situado à esquerda no espectro político. Em São Paulo, o MPL organizou atos contra o aumento da tarifa em 2006, 2010 e 2011. Os protestos costumavam concentrar cerca de 5 mil manifestantes. Por que somente agora eles ganharam tamanha proporção?

Apesar de um histórico de revoltas e mobilizações importantes – como a resistência contra o regime civil-militar –, e o fato de termos um dos maiores movimentos sociais do mundo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), não há, no Brasil, uma cultura política do “cidadão comum” manifestar-se em espaços públicos. O que teria gerado essa efervescência política e ativista?

Nos últimos atos, as pautas mais recorrentes nas ruas – fora a reivindicação pela redução da tarifa do transporte público – foram: contra os gastos exorbitantes em estádios construídos para a Copa do Mundo (2014); contra a corrupção; contra os políticos; e por mais investimentos em saúde e educação.

Tirando pautas específicas, como os gastos para a Copa do Mundo, esse conjunto difuso e heterogêneo de demandas fundamenta-se em problemas há tempos presentes na vida dos brasileiros. Ou seja, isso já deveria ter sido “barulho” suficiente para acordar o “gigante”. Por que nessa conjuntura política específica essas agendas heterodoxas foram articuladas em protestos pelo Brasil afora?

É inegável que as redes sociais auxiliaram na mobilização, mas por si só não explicam a ida do povo às ruas. Vale apontar sua importância na pulverização das pautas heterogêneas e sem relação entre si. Nesse contexto, dois elementos parecem fundamentais para a compreensão do momento atual: o crescimento social e econômico que vive o país e uma espécie de desencantamento generalizado com a política.


Uma breve análise da conjuntura política brasileira

É fato que a economia brasileira vem crescendo nos últimos anos. Embora apresente sinais de desaquecimento, o Brasil passou quase incólume à crise mundial. A sensação de que o país pode se tornar uma potência mudou a percepção dos brasileiros quanto ao futuro. Isso se intensificou também com o fortalecimento e expansão da dita classe média (segundo pesquisa do Datafolha de 2012, 63% da população pertence a essa classe) e o surgimento de uma “nova classe média” nos governos Lula-Dilma: a chamada “classe C”.

A inclusão pelo consumo teve forte impacto nesse contexto. Tudo isso despertou um orgulho nacional diferenciado, com certo rompimento da lógica da subalternidade que o brasileiro sempre carregou. Brasileiros compraram e viajaram como nunca. A mobilidade social e a imagem do Brasil como nação forte e soberana, somadas aos altos impostos, possibilitaram a conclusão de que serviços essenciais, como a saúde, educação e segurança estariam aquém do ideal.

Outro fator central é o descontentamento generalizado com a estrutura política representativa, o que pode ser compreendido a partir do fato de que o PT está no governo presidencial há dez anos. A criação do PT deu-se no âmbito dos movimentos e das manifestações em torno da redemocratização do país em 1980.

O partido foi fundado por dirigentes sindicais, intelectuais e ativistas ligados a movimentos sociais e setores progressistas da sociedade brasileira, sobretudo de organizações católicas ligadas à Teologia da Libertação. Durante os anos 80 e 90, o PT atuou, juntamente com outras siglas, na defesa de temas sociais, políticos e econômicos associados à renovação da esquerda. Nos anos 90, o PT passou a defender a “ética na política”, dentro de um programa menos radical.

Essa mudança de postura permitiu a ampliação de sua base política. Na frente de oposição, o PT foi crescendo e se burocratizou. Passou a ganhar eleições até chegar à presidência. Para governar, o partido não optou por uma ruptura, mas submeteu-se à lógica fisiológica da política nacional, o que culminou com o escândalo de corrupção conhecido como “Mensalão”. O partido não era mais o radical-socialista dos anos 80, tampouco o da “ética na política” dos anos 90, mas o do nacional-desenvolvimentismo.

Apesar de avanços sociais inegáveis – milhões saíram da pobreza –, há uma insatisfação geral com o governo do PT. O partido passou a ser visto como um governo que, apesar de investir massivamente em políticas sociais, está imerso na lógica da política burocrática brasileira – a qual, antes, prometia combater. Isto gerou um descontentamento na esquerda e uma desilusão generalizada.

Nesse contexto de insatisfação, a direita furtou uma das pautas do PT na década de 90, e agora lidera a “luta contra a corrupção”. Sem dúvida, há cinismo, hipocrisia e oportunismo nessa luta, porque ela é direcionada unicamente à corrupção do PT. Não se debate o fato de que os partidos que contêm o maior número de “fichas-sujas” e cassações são os de direita, e muito menos os grandes esquemas de corrupção do governo Fernando Henrique Cardoso.

Assim, o PT, ao não cumprir suas promessas de realizar profundas mudanças na democracia brasileira, terminou por alimentar a insatisfação e a desilusão com os partidos políticos e com a estrutura democrática formal e representativa.

"Acordou, gigante? Agora tira a remela de 1964! Nem hino nem bandeira”. Quinto grande ato (17.06) pela redução da tarifa em São Paulo - Foto: Reprodução


Aviso de incêndio: o nacionalismo e o patriotismo tomam as ruas

Quem diz entender tudo aquilo que está ocorrendo no Brasil ou está muito mal informado ou, como nós, arrisca análises apressadas sobre os protestos. Tudo está um tanto quanto nebuloso, complexo e perigoso, por conta da eclosão de elementos imprevistos. A situação está ainda em aberto. O movimento que hoje está na rua é, majoritariamente, de caráter espontâneo e heterogêneo, despolitizado e repetitivo, composto por uma parcela significativa da juventude de classe média.

Antes mesmo da vitória do MPL, a pauta inicial e motivadora dos atos – a questão do transporte público – foi descaracterizada. Num momento catártico, impulsionado pelo repentino apoio da grande mídia às manifestações, uma enxurrada de pautas e insatisfações generalizadas dominaram os atos. Nessa onda, também entrou em cena a direita, disputando os sentidos das manifestações.

Grupos de extrema-direita mais ou menos organizados tentam, nesse vácuo, pautar e nortear o movimento, fortalecendo o nacionalismo e o anti-partidarismo.

A conjuntura política dos últimos atos aponta para a formação de uma competência política distorcida, na medida em que privilegia os discursos nacionalistas e patriotas como as primeiras opções ou filtros de pautas e demandas.

É possível identificar um nacionalismo muito forte, decorrente talvez de um ardil da grande mídia que apregoa um tipo de “nacionalismo contra a corrupção da classe política”. Mas o fato que interessa aqui é que esse nacionalismo se tornou denominador comum da política nessas últimas semanas, um modo eficaz e mobilizador de decantar e pasteurizar as demandas do movimento.

Qualquer tipo de discussão completa sobre pautas no Brasil, nesse contexto, está sendo subsumida e filtrada pelo patriotismo. O perigo desse patriotismo é justamente o esquecimento da política, no sentido de que os argumentos em torno de valores e pautas concretas ficam completamente submetidos à necessidade de um protesto com a “cara do brasileiro”.

A discussão encerra aí uma recusa contra a argumentação de ideias, pois não se trata mais de discutir a consistência de demandas, questões e políticas de solução de problemas. O nacionalismo e o patriotismo trouxeram uma desqualificação de antemão que recolocou a questão da política não nos enunciados, mas sim nos enunciadores.

Ora, o nacionalismo não é uma resposta imediata às ideias de esquerda. Ele é um movimento contra portadores e enunciadores das ideias de esquerda. É a afirmação mesma da legitimidade de quem pode e quem deve participar da comunidade política e das arenas de disputa – logo, de quem não pode e quem não deve participar. Assim, ele estabelece que somente os “verdadeiros brasileiros”, portadores de determinados traços comportamentais – e sempre prontos a cessarem as disputas políticas em nome de um sentimento maior de pertencimento –, são os locutores legítimos e os verdadeiros manifestantes.

Nesse cenário político-social bizarro, as verdades das demandas se estabelecem pela autenticidade de quem fala. O nacionalismo traz consigo um complexo de emoções, comoção, raiva, choro e alegria, que transformam as manifestações em espetáculo, festa e farsa. A paz e a tranquilidade desse espetáculo não podem ser perturbadas pela adesão de outras cores – sobretudo vermelhas.

Portanto, o nacionalismo é a linha que divide e reparte o direito à fala. O patriotismo, um crivo de quem pode e quem não pode entrar na política.


Na esquina da história: a esquerda diante do “gigante verde-amarelo”

É fato que nossa geração não está acostumada a ver uma direita mobilizada e ocupando as ruas. Estamos todos, no mínimo, espantados diante desse “gigante verde-amarelo” desenfreado. No entanto, a despeito do estranho despertar desse gigante nacionalista, não podemos nos abater, não podemos nos deixar levar pela onda alarmista que está assombrando a esquerda nos últimos dias. É hora de disputar as ruas, o espaço público, de levantar nossas bandeiras, defender nossos direitos historicamente conquistados e, a pleno pulmões, bradar nossas palavras de ordem.

Ainda não é claro o impacto dessa onda de manifestações e violência para as lutas posteriores. No entanto, já é possível vislumbrar que, no mínimo, elas delineiam a retomada de um método histórico de luta: a mobilização e a ocupação das ruas. Isso fica ainda mais evidente quando observamos a recente explosão de manifestações no cenário internacional (Primavera Árabe, Occupy, Indignados, Estudantes no Chile, protestos da Praça Taksim etc). Recuar agora seria abrir alas à direita. Não devemos nos afastar das massas. Os coletivos organizados das periferias e outros setores de esquerda já começaram a se articular.

Como pontuado, existe um descolamento das organizações políticas e sociais com suas bases, fruto de uma espécie de desilusão com o sistema representativo partidário e de uma crescente burocratização de várias organizações da esquerda – sobretudo do partido governista, o PT.

Portanto, é nosso papel, enquanto esquerda, retomar e intensificar um amplo trabalho de base. Estamos diante de um importante momento histórico, em uma “esquina da história”. E o aviso de incêndio soou. O fato de que a massa que está nas ruas apresenta, ora tendências conservadoras, ora reacionárias e até fascistas, não implica uma vitória da direita. Porque a maior parte das demandas presentes nas manifestações são demandas históricas da esquerda. Então, disputar o espaço público, a opinião pública e o sentido e direcionamento das pautas é fundamental.

A direita e a grande mídia já estão preparadas. Chegou a hora de reafirmar os ideais da esquerda, formular uma pauta de reivindicações unificada, intensificar o trabalho de base e, sobretudo, tomar as ruas!

“PM: não esquecemos do Carandiru e da Candelária", cartaz exposto no sexto grande ato (18.06) pela redução da tarifa em São Paulo - Foto: Reprodução



 Fonte: Brasil de Fato