Por Carlos Serrano Ferreira
Há um só amplo consenso político sobre as
manifestações que se espalharam por todo o Brasil: elas pegaram de
surpresa todos os campos políticos. Outra análise que, se não é
consensual é majoritária, aponta – com valorações distintas, sejam
positivas ou negativas – para o divórcio crescente entre a
institucionalidade democrática burguesa e as massas brasileiras, que se
materializam na rejeição ao sistema partidário. Para além disso, essas
manifestações demonstraram a existência, até então desconhecida, de um
campo fascista bastante organizado em nível nacional.
Desde o início do primeiro governo Lula
foram se definindo com clareza quatro campos políticos. Do lado burguês
colocavam-se dois campos e do lado popular outros dois. É claro que os
limites entre os campos variaram ao longo do tempo.
Como primeiro campo da classe dominante
está a direita clássica, organizada em torno à oposição de direita ao
governo (PSDB, DEM e outros) e tendo como órgãos oficiais a Veja, a Rede
Globo e a Rede Bandeirantes (entre outros), de cunho abertamente
neoliberal e conservador.
Como segundo campo da classe dominante
está o governo de Frente Popular liderado pelo PT e sustentado por seus
velhos aliados (PCdoB e PSB), bem como por novos aliados que sempre se
relocalizam conforme os ventos mudam, em particular o sempiternamente
governista PMDB. Em grande parte tenta esse campo se colocar dentro de
um alinhamento do que seria uma tradicional social-democracia europeia,
mas muito mais próxima da Terceira Via de Tony Blair, realizando um
malabarismo entre reformas sociais e políticas econômicas neoliberais. O
resultado é o aprisionamento basicamente em políticas assistenciais e
localistas, por um lado, e grandes concessões há conglomerados
econômicos, em particular o setor bancário, do outro, como se vê no
pagamento das dívidas interna e externa. Também se beneficiaram
fortemente dessas políticas o agronegócio (os velhos latifundiários com
ares “modernizados” de empresários capitalistas).
Esse campo possui como orgão de
comunicação, ainda que com limites, a Rede Record, pelos acordos
mantidos pelo governo com a Igreja Universal do Bispo Macedo. Há, no
entanto, em alguns momentos conflitos, tendo em vista as posições mais
reacionárias dessa igreja em relação à temas como aborto e
homossexualidade. Possui outros orgãos menores como a Carta Capital ou o
Brasil de Fato (com polêmicas momentâneas). Por outro lado, possui uma
base social construída desde o início do ciclo de hegemonia do PT no
movimento sindical (CUT) e no movimento popular (como o MST, apesar
deste flutuar mais à esquerda) e com o apoio de seus aliados, como o
PCdoB (com sua central, a CTB e sua hegemonia na UNE).
À esquerda desse campo, como parte dos
setores populares, se encontra o PSOL, que conforma um campo todo
próprio do reformismo de oposição de esquerda aos governos do PT. Por
ter sido gerado de dentro do PT carrega consigo vários elementos
limitantes, em particular pelo seu peso mais parlamentar que no
movimento social, tendo compromissos muito grandes com o sistema
democrático burguês. Contudo, há que se ressalvar que o PSOL é uma
legenda que abriga grupos muito heterogêneos, verdadeiros partidos, e
alguns tendem a se aproximar mais do campo a seguir.
O outro campo, parte dos setores
populares, é o das organizações revolucionárias. Há aqui várias pequenas
organizações, muitas de carácter mais próximo à seitas que de
organizações revolucionárias. Os partidos que de fato existem e tem vida
ativa e maior projeção são o PCB e o PSTU. Possuem profundas
diferenças, principalmente em relação à temas internacionais, mas tem
uma mesma estratégia revolucionária para o Brasil, apontando a
necessidade de uma revolução socialista como saída para os impasses
políticos, sociais e econômicos do desenvolvimento brasileiro. Procuram
apoiar-se num trabalho junto à juventude e às massas trabalhadores.
Contudo, apesar de seus avanços, ainda são extremamente minoritários na
direção dos setores populares e se encontram divididos.
Até as manifestações que tomaram vulto
particularmente na última semana, eram estes os campos conhecidos na
política brasileira. Sempre se soube da existência de grupos de extrema
direita no país, mas estes nunca foram vistos como um campo com
intervenção real na vida brasileira, para além de recalcitrantes e
saudosistas militares de pijama com suas reuniões no Clube Militar ou
certos deputados mais raivosos de origem também militar, bem como os
grupos evangélicos mais fundamentalistas. Os militares atuavam
particularmente contra as Comissões da Verdade de investigação dos
crimes da ditadura, seja como proteção aos seus próprios crimes, seja
como forma de proteger a imagem da instituição (quando na verdade, esta
só melhoraria se passasse sua história à limpo). No máximo, via-se aqui
ou ali um cartaz do MV-Brasil contra o halloween. Em alguns momentos,
sabia-se de ações violentas de skinheads. Porém, sempre se viu estes
grupos como muito dispersos e desarticulados.
Contudo, na última semana nas
manifestações do Rio de Janeiro e de São Paulo, o ovo da serpente do
fascismo começou a brotar. Aproveitando-se do sentimento de insatisfação
contra os partidos políticos que toma a população – ano passado uma
pesquisa apontava que os partidos eram as instituições em que a
população menos confiava (apenas 5%) – iniciaram uma ação de agitação e
propaganda na internet contra as duas organizações de esquerda
revolucionária que participavam ativamente das manifestações exercendo o
democrático direito de levar suas bandeiras e suas palavras de ordem,
como qualquer um que o fizesse: o PCB e o PSTU. Seus objetivos eram
atacar exatamente não todos os partidos, mas particularmente o campo
revolucionário, seu inimigo histórico e mortal. Claro que nas
manifestações também atingiram outras organizações. Na última
manifestação atacaram em São Paulo os militantes do PT e no Rio no
início da concentração os militantes da CUT (ligada ao PT). Mas, sua
ação mais feroz se deu exatamente contra o PCB e o PSTU: no meio da
Avenida Presidente Vargas, de forma muito organizada, utilizando duas
milícias atacaram indiscriminadamente os militantes partidários, fossem
homens, mulheres ou crianças, por trás e pelo flanco, com bombas, pedras
e paus. Mesmo com a resistência dos militantes desses dois partidos e
dos militantes do PCdoB e PCR, que tentaram construir um cordão de
isolamento para proteger os militantes e a base presentes, muitos saíram
feridos. Alguns com gravidade.
Após a manifestação, todos que estavam na
rua com camisas vermelhas – inclusive que nada tinham haver com a
militância de esquerda – foram atacados. Porém, sua ação não objetivava
apenas o ataque físico aos manifestantes de esquerda. Seu objetivo maior
era criar um ambiente de terror que servisse para desestabilizar o
governo de Dilma Rousseff e justificar uma intervenção militar golpista
sob o lema de “recuperar a lei e a ordem”. Para isso contaram com suas
milícias, que recrutavam o que Leon Trotsky chamava de “poeira da
Humanidade”: membros de torcidas organizadas, skinheads, playboys
marombados de academias, criminosos, ex-militares e membros de serviços
de inteligência das forças repressivas. Por trás destes – alguns
contratados, outros recrutados ideologicamente – estava uma frente de
organizações de extrema-direita, que claramente se articulou em nível
nacional, com ações que se iniciavam pontualmente na mesma hora em todo o
país e com asmesmas palavras de ordem. Não só instigavam a massa com
gritos de “sem partido”, “fora oportunistas”, como deixavam ainda mais
claro, antes dos ataques iniciados por eles, seu caráter fascista quando
acusavam os militantes de esquerda eram “vermelhos, e eles eram
verde-amarelo”.
Sua ação pôde ser vista tanto na queima
da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, como no Itamaraty, na
pancadaria em frente à Prefeitura do Rio de Janeiro, ou no banditismo
que espalharam posteriormente às mobilizações, seja na Presidente
Vargas, na Cinelândia e na Lapa, seja na Barra da Tijuca no dia
seguinte. O mais grave, que demonstrou o comprometimento de amplos
setores dos aparatos repressivos, é que estes atuaram sempre com
leniência na repressão das milícias fascistas, se deixando encurralar ou
simplesmente deixando-os atuarem. Lembre-se que estavam deslocados para
o Rio de Janeiro muitos militares – sob a justificativa de proteger o
Comando Militar do Leste e o entorno do Estádio do Maracanã – inclusive
com tanques de guerra, e nada fizeram contra as milícias fascistas. Mais
ainda: a polícia contribuiu com o clima de terror lançando bombas,
tiros de borrracha e de projéteis mortais indiscriminadamente pela Lapa e
a Cinelândia, contra a população que nada tinha haver com os fascistas,
como mostraram recentemente os meios de comunicação.
O sinal positivo, mas que não pode de
forma alguma deixar os democratas tranquilos, pois os humores populares
podem variar rapidamente, é que o apoio ao golpe é ainda marginal na
população. Segundo uma pesquisa do Datafolha apenas 3% dos manifestantes
apoiam a ditadura contra 87% que apoiam a democracia e a maioria se
coloca num sentido mais progressista, contra a pena de morte e em defesa
da aceitação da diversidade, como dos homossexuais.
Entre os campos burgueses há sinalizações
do isolamento dos fascistas. No campo governista isto transpareceu no
discurso da presidente Dilma Rousseff que isolou os fascistas – apesar
de não citá-los diretamente. Essa postura é a mesma do campo burguês
oposicionista. O campo governista quer dar sinalizações à sociedade de
diálogo, e buscará se reaproximar de suas bases sociais, procurando
mobilizá-las, em particular no operariado, grande ausente das
mobilizações majoritariamente pequeno-burguesas. É possível que numa
radicalização da conjuntura nacional – ligado ao recrudescimento da
crise mundial – que ensaie uma saída kerenkista, com um governo que se
apoio ao mesmo tempo nas instituições burguesas e nas isntituições
operárias. Contudo, isto está ainda distante, mas poderia ser uma última
saída da social-demcoracia frente aos questionamentos da
institucionalidade puramente burguesa e do crescimento do golpismo.
Do lado do campo burguês oposicionista a
saída buscada ainda é pela via institucional. Aprenderam com a história
que um golpe militar ou fascista pode sair de seu controle – mesmo que
preservando seus privilégios econômicos pode alijá-los da política
direta. Um exemplo disto foi Carlos Lacerda, que planejou golpes até que
com o golpe ocorrido no 1° de abril de 1964 ele ficou fora do novo
regime, sendo também perseguido. Buscam canalizar as manifestações,
disputando sua direção através dos meios de comunicação que dirigem,
para suas próprias metas, que nada tem haver com a defesa do serviço
público (muito pelo contrário), mas de desgastar o governo de Frente
Popular. Querem acabar com a “terceirização” do governo burguês e
recolocar seus representantes diretos. Para isso apostam num discurso
anticorrupção (hipócrita vindo deles, pois seus governos são tão
corruptos quanto os petistas), particularmente contra a PEC 37. É claro
que tentam semear a confusão, como a Globo na sexta-feira, tentando
deixar a entender que a culpa das ações de desordem ligava-se à presença
da esquerda!
Neste momento, a grande burguesia não
aposta num golpe direto, pois até agora os governos de Lula e Dilma
conseguiram manter sob controle a classe operária e atender seus
interesses econômicos. Claro que se as coisas fugirem ao controle deles e
a crise recrudescer, podem apostar num golpe. À priori, o que se
aponta, é que este golpe não seria fascista, mas alguma saída similar ao
golpe parlamentar perpetrado contra o presidente Lugo no Paraguai. Este
parece também o plano B dos EUA, que por ora estão bem contentes com o
governo. Isso é perceptível com a recentíssima indicação (no início do
mês de junho) da diplomata Liliana Ayalde para o cargo de embaixadora
dos EUA no Brasil, que anteriormente servira no Paraguai. Os EUA são
capazes de mudar de orientação no futuro em apoio a um golpe aberto,
como a reaivação da IV Frota americana de patrulha do Atlântico Sul
indica, mas não é sua tática principal, tendo em vista que ditaduras
desse tipo podem fugir ao controle, como ocorreu com a ditadura militar
brasileira em seu fim (lembre-se do acordo nuclear com a Alemanha).
Contudo, está claro que o surgimento
público do fascismo fará com que nada mais seja igual no país. A
instabilidade política se aprofundará e os enfrentamentos serão mais
duros. Muito estará na mão da postura da social-democracia em relação ao
fascismo – se o enfrentará a partir da estrutura do Estado, alijando os
setores golpistas ainda incrustados no mesmo – levando adiante a
apuração dos crimes da ditadura militar e punindo-os, de forma a
desmoralizá-los. Principalmente, estará nas mãos da esquerda
revolucionária: se está conseguirá se unir para refrear os fascistas e
desgastar a social-democracia – que por seus limites é a causa direta do
crescimento do fascismo – particularmente nos movimentos operários e
populares e ao mesmo tempo engendrar uma unidade ampla dos democratas e
progressistas. Fundamentalmente, se conseguirão apontar uma nova
institucionalidade baseado em organismos populares em alternativa à
desgastada institucionalidade burguesa. O ovo da serpente brotará
completamente ou será esmagado antes de seu nascimento?
Fonte: Revista Pittacos
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