sábado, 1 de dezembro de 2012

Grécia em crise: entre solidária e brutal


Crônica de Atenas convulsionada: um imigrante pode levar frutas sem pagar, em um mercado; brutamentes nazistas agem (e agridem!) como se fossem polícia; e a esquerda venceria, se houvesse eleições…
Por Gianni Carta, na Carta Capital
O cidadão tem apenas 1 euro para pagar pelas frutas que Aggeliki acaba de lhe entregar em um saco plástico. Diz a feirante: “O senhor me paga os 4 euros quando tiver dinheiro”. As condições financeiras de Aggeliki, diga-se, não são muito melhores do que as do cidadão nascido em Bangladesh, um faxineiro de 44 anos. Aos 55 anos e a trabalhar no mercado de Ferameikos, no centro de Atenas, a feirante oriunda de Corinto, cidade na periferia do Peloponeso, chegou no trabalho às 5 da manhã e até agora, meio-dia, faturou menos de 20 euros. Dois anos atrás, ganhava cerca de 80% a mais do que hoje. Aggeliki vive com o marido desempregado e três filhos, de 22 a 28 anos, todos com diplomas universitários, e, como o pai, em busca de trabalho.
“Eles aceitam qualquer emprego, nem precisa ser da área deles, porque não temos aquecimento em casa e falta comida”, diz Aggeliki. Ela sofre de dores de cabeça terríveis, mas quando foi ao hospital diagnosticaram um problema psicossomático. Uma senhora, de passagem, oferece uma nota de 5 euros para o faxineiro de Bangladesh. Ele hesita, mas a senhora insiste. Ele troca a nota por 5 moedas de 1 euro e paga a dívida com Aggeliki. No entanto, nem todos os gregos são solidários.
Na verdade, em certos bairros de Atenas sente-se o cheiro do medo da legenda nazista Aurora Dourada (Chryssi Avgui), a terceira mais votada nas legislativas de junho. Um de seus políticos, o parlamentar Ilias Kasidiaris, agrediu fisicamente duas políticas em um programa de tevê. Kasidiaris, como vários colegas da Aurora Dourada, tem enormes bíceps e, vaidoso, usa-os não somente para bater em mulheres. Quando pode, como o fez após uma maratona, tuíta sua imagem de torso nu e pelos diligentemente raspados.
CartaCapital flagrou outros integrantes da organização, todos vestidos de preto, cabeça raspada, braçadeiras com o símbolo do partido. Gostam de bandeiras gregas e se saúdam como fascistas. Espancam estrangeiros, judeus, homossexuais.
Entrevistava um cidadão em Agios Panteleimonas, onde se encontra a sede principal do partido, dois homenzarrões chegaram com ares de tempestade e pediram o caderno de anotações deste repórter. Aceitaram o compromisso de verem rasgadas as folhas da conversa. Em outros lugares, os vi exigir documentos a estrangeiros de pele escura.
“O Chryssi Avgui usa o estrangeiro como bode expiatório”, diz Thomas Maloutas, diretor do Centro Nacional para a Pesquisa Social. Segundo Maloutas, professor de urbanismo social na Universidade Harokopio, paira no ar o mito de que os homens do Chryssi Avgui são benfeitores. De fato, uma foto presta-se à criação do mito: publicada por um jornal mostra um truculento homem, bíceps a todo volume, postado atrás de uma senhora que retira dinheiro do banco.
Segundo Maloutas, nos anos 60 e 70, grande número de apartamentos foi construído no centro e nas redondezas de Atenas. Agora há demanda. Dezenas de imigrantes correm o risco de sublocar pequenos espaços. “Os estrangeiros são vistos como os culpados pela crise, mas muitos locatários sublocam apartamentos para eles”, diz Maloutas.
Ao contrário de outras capitais, não existem guetos de estrangeiros em Atenas. É por isso que vários deles habitam bairros controlados pelos nazistas como o Agios Panteleimonas. Ali, um parque onde brincavam as crianças, filhos de imigrantes, foi fechado. Os energúmenos de extrema-direita esmeram-se em duas atividades: espancam estrangeiros e cobram pela “proteção” que dizem garantir.
Segundo o jornalista Dimitris Psarras, o grupo teria raízes no mesmo extremismo dos coronéis que impuseram uma ditadura no país de 1967 a 1974. Em 1980, surge a revista nacional-socialista intitulada Aurora Dourada e, desde então, o líder da organização nazista responde pelo nome Nikolaos Michaloliakos. A personagem predileta da revista é Hitler.
No seu livro sobre os brutamontes, Psarras demonstra como um considerável número de policiais votou na Aurora Dourada nas últimas legislativas de junho. Não surpreende, portanto, o medo que muitos cidadãos têm da polícia. “Em todas as manifestações que participo vejo a brutalidade da polícia, a bater com seus cassetetes e lançar gás lacrimogêneo sobre nós”, diz Sofia Mandilara. Tuiteira com 4,6 mil seguidores, entre eles o diário britânico The Guardian, BBC, CNN e a tevê francesa TV5, Mandilara, de 25 anos, tem bagagem para fazer o que mais gosta: “Reportar para meus seguidores como vivemos em um país enlouquecido”. Formada em Relações Internacionais, com mestrado em Ciências Políticas do Institut d’Études Politiques de Paris e outro em Finanças e Economia, Mandilara tuíta em inglês e grego. “E como estou desempregada como tanta gente, tenho tempo para tuitar”, emenda. Além do inglês, Mandilara fala fluentemente francês e árabe.
O desemprego, de 25,4%, é o dobro da média da União Europeia (UE) e, como Mandilara, quase 60% dos jovens com menos de 25 anos estão sem trabalho. Em seu sexto ano consecutivo de recessão, a Grécia atravessa sua pior crise desde a Segunda Guerra Mundial. Neste ano, o Produto Interno Bruto deve encolher mais de 7% e no próximo, mais de 4%, prevê Gavriil Sakellaridis, coordenador do Comitê de Política Econômica da legenda de esquerda Syriza.
Os gregos já receberam dois pacotes de resgate da chamada troika, formada pela Comissão Europeia, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Central Europeu (BCE). A seguir um programa neoliberal, a troika impõe condições de austeridade em troca de pacotes de resgate.
As duas primeiras parcelas totalizam 240 bilhões de euros. No entanto, na quarta-feira 21, o terceiro pacote, de 31,5 bilhões de euros, não foi entregue em grande parte devido a divergências entre o Eurogrupo e o FMI. Em miúdos, o entrevero gira em torno do período em que a dívida pública deveria ser diminuída para 124% do PIB para se tornar sustentável. No fim do próximo ano, a dívida chegará a mais de 189% do PIB, ou 346 bilhões de euros. O FMI insiste para que resultados em condições de satisfazer o plano de resgate não excedam o ano de 2020, enquanto o presidente do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, é favorável a uma extensão até 2022.
Segundo Juncker, visto que no dia 13 de novembro os ministros das Finanças da Zona do Euro postergaram em dois anos, para 2016, o prazo para a redução grega de seu déficit público a 3%, como foi estabelecido para todos os integrantes da UE, Atenas deveria obter mais dois anos para reduzir sua dívida.
O mais grave, diz Maloutas, o urbanista social, “é que implementamos todos os programas exigidos pela troika. Para obter 4,6 bilhões de euros em 2013, pensões foram reduzidas em 5% para aqueles que ganham modestos mil euros por mês. O salário mínimo foi cortado de 700 para 480 euros, lembra Sakellaridis, do Shyriza. Mais: salários do setor público foram cortados em 35%.
Mesmo assim, a Grécia continua sem ver luz no fim do túnel. O historiador político Thanos Veremis, um dos fundadores da Fundação Helênica para Política Europeia e Estrangeira (Eliamep), concorda. “Cada minuto do conflito entre o FMI e a UE custa caro para os gregos”, diz.
Tem gente farta da União Europeia e quer a volta da dracma. No entanto, o retorno à unidade monetária grega significaria a saída da Grécia da UE, argumenta Veremis, e haveria uma desvalorização inicial da moeda em 50%. Stan Draenos, autor greco-canadense de uma recém-publicada biografia de Andreas Papandreou, prevê: “A bancarrota e a volta da dracma beneficiaria somente os gregos com contas na Suíça e com sede para investir em ativos de uma moeda desvalorizada”.
Que política econômica quer a Europa? Para Veremis, os países do Sul da Europa acreditam que o Estado é a maior atração. “Aqui acreditamos em um mercado livre sobre o qual o Estado tem algum controle.”
Segundo Maloutas, “caminhamos dentro de um neoliberalismo mesclado com o conservadorismo alemão”. E nada será resolvido, na crise grega, até as eleições alemãs, quando Angela Merkel pretende se reeleger premier do seu país.
A falta da nova parcela de resgate econômico foi dura para o premier grego, Antonis Samaras. Sua frágil coalizão, com os partidos de esquerda Pasok e Esquerda Democrática, torna-se ainda mais frágil. No atual contexto, o Syriza seria o primeiro colocado nas próximas eleições. Maria Kottari, expert em economia e Relações Internacionais, acredita na vitória da agremiação. A Grécia, diz, ganharia com um partido favorável a um melhor tratamento para os imigrantes.
Que aliança, indaga Draenos, faria o Syriza para formar um governo? Os Gregos Independentes, legenda populista de direita cogitada pelo Syriza, seria uma terrível escolha, argumenta. No entanto, Sakellaridis, do Syriza, garante: “Seria um compromisso econômico para não pagar os interesses da dívida e o resto pagaríamos baseados no crescimento grego”. Mais: o Syriza traria de volta os salários anteriores dos aposentados e o salário mínimo. “As classes mais baixas são as mais afetadas pela crise e a premissa do nosso partido é ajudá-las”, diz Sakellaridis.
Sem consenso

Por Antonio Luiz M. C. Costa

Na quarta-feira 21, o primeiro-ministro grego Antonis Samaras queixou-se amargamente e com razão. Nos dias 7 e 10 fizera sua parte no acordo com a Troika: extorquiu do Parlamento a aprovação dos cortes de gasto draconianos e do Orçamento para 2013, ao custo da perda de apoio popular e de vários deputados da própria bancada governista. Mas a União Europeia não cumpriu com a sua. A reunião do Eurogrupo dos ministros da Fazenda europeus do dia 12 adiou o problema e a do dia 20, após longa preparação e 12 horas de discussão, terminou às 5 da madrugada sem nada decidir. Outra reunião foi marcada para o dia 26.
O luxemburguês Jean-Claude Juncker, presidente do Eurogrupo, declarou: “Não saio desiludido, porque já não me iludo com a Europa”. Rejeitava a moratória da dívida grega em posse de governos e do BCE, o que significaria adiar de 2014 para 2016 o prazo para atingir a meta de redução do déficit para 3%, em outras palavras, emprestar recursos adicionais para que seu governo continue a rolar a dívida – mais 15 bilhões de euros em 2014 e outros 17 bilhões até 2016, ao menos. Na realidade, seus partidários no Eurogrupo defendiam oferecer uma solução até 2014 sem comprometer mais fundos e deixar o resto para depois. Um terceiro pacote de resgate seria discutido depois das eleições alemãs de setembro ou outubro de 2013.
O FMI de Christine Lagarde, cujo ponto de vista é também o da França, considera esse caminho insustentável e quer reestruturar a dívida e reduzir o endividamento para 120% até 2020. Sem isso, a Grécia não sairá do aperto em futuro previsível, pois os cortes de gastos deprimem ainda mais a arrecadação. No rumo atual, o endividamento será 192% do PIB em 2014 e estaria em 144% em 2020, 133% em 2022 e 111% em 2030.
Na véspera da reunião, o rebaixamento da nota da dívida de Paris pela agência Moody’s, de AAA para AA1 (a Standard & Poor’s fizera o mesmo dez meses antes), enfraqueceu sua posição. “Foi só um pequeno aviso”, disse o ministro da Fazenda alemão, Wolfgang Schäuble, que pressiona por medidas mais duras para reduzir os gastos públicos da própria França. François Hollande já cedeu parcialmente ao FMI e ao mercado ao aumentar os impostos de consumo e reduzir as contribuições sociais das empresas sobre as folhas de pagamento.
Enquanto isso, os gregos que ainda tinham paciência começam a perdê-la. Um pouco antes das eleições de 17 de junho, 80,9% deles se diziam dispostos a permanecer no euro a qualquer custo. Em pesquisa de 15-16 de novembro, 62,7% ainda eram da mesma opinião e 78% achavam que a austeridade não vai estabilizar a economia. E apesar de 71,2% não acreditarem que uma nova eleição resolveria os problemas do país, a mesma pesquisa indicou que esta seria mais polarizada e antiausteridade. A esquerda radical, Syriza, venceria ao passar de 26,9% a 27,6% dos votos válidos e a Nova Democracia, hoje líder do governo, cairia de 29,7% a 24,9%. E os neonazistas saltariam de 6,9% para 12,8%.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O Falso Moralismo da Revista Veja

Catarina Migliorini Capa da Veja

Por Antônio Engelke

Vender um filho recém-nascido, um rim, ou leiloar a própria virgindade, seriam atos corretos, moralmente aceitáveis? A última edição da revista Veja procura refletir sobre tais questões, mostrando as duas posições intelectuais mais influentes este debate. De um lado, a perspectiva economicista de Gary Becker e Richard Posner, segundo a qual o mercado livre é o melhor árbitro das decisões: se adultos conscientes resolvem por livre e espontânea vontade vender o seu corpo para outros adultos igualmente conscientes e livres, sem que isto prejudique uma terceira parte, então não há problema algum. De outro, a perspectiva cívica de filósofos como Michael Sandel, que chama a atenção para os malefícios advindos da migração da lógica fria do mercado para domínios outros que não o da economia. Seguindo Kant, Sandel argumenta que o ser humano é dotado de uma dignidade intrínseca, e que a mercantilização das relações sociais (o “tudo tem um preço”) corroeria algumas das virtudes que nos seriam mais caras.
Como é de seu feitio, Veja logo decreta quem está com a razão. Diz a revista: “Ele [Sandel] tem toda a razão. É evidentemente doentia uma sociedade em que seja natural vender o filho recém-nascido, anunciar o próprio rim nos classificados dos jornais, leiloar a virgindade ou comprar votos com a cumplicidade de partidos políticos e parlamentares”. Muito poderia ser dito acerca da retórica utilizada pela revista, ou sobre a sugestão implícita de que o “mensalão” do PT representaria a prostituição da política brasileira. Mas não é este meu objetivo aqui, até porque sou simpático às ideias de Sandel. Prefiro observar o que Veja não diz, e apontar incoerências no modo como a revista se posiciona em relação a assuntos diversos.
A base filosófica do economicismo de Becker e Posner, que Veja acertadamente critica, é a doutrina do utilitarismo. A revista está ciente disto: “Vender a virgindade e comprar o apoio de partidos políticos são duas atitudes que revelam em seus autores a mesma concepção utilitarista e rasa da vida. Uma deprecia a intimidade. A outra ultraja a democracia”. Resumindo bastante: para um utilitarista, não importa o ato em si, somente seus efeitos. Se um ato aumentar o bem-estar para o maior número possível de pessoas, então será válido, mesmo que use de expedientes errados. Tortura é um bom exemplo. Se as informações obtidas ajudarem a salvar vidas, então, para um utilitarista, ela é justificada. O mesmo se aplicaria à prostituição ou à compra de votos.
Para recusar o utilitarismo, Veja recorre a Sandel. A máxima utilitarista “não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos” estaria duplamente equivocada: primeiro porque ovos, ao contrário de homens, não possuem uma dignidade intrínseca que deve ser respeitada, e depois porque se a motivação para a “quebra” dos ovos não for ela própria virtuosa, então o omelete resultante será moralmente injustificável. Para Sandel, o que importa não são os efeitos das ações, mas sim suas motivações, o “em nome de que” elas são feitas, e o modo através do qual são realizadas.
Agora repare como as coisas são curiosas. Veja endossa o anti-utilitarismo cívico de Sandel a fim de criticar a invasão da lógica econômica tanto no domínio privado da intimidade (a venda do corpo) quanto no domínio público da política (o “mensalão”) – argumento com o qual concordo, aliás. A revista só se esquece de dizer que o principal responsável por esta invasão foi precisamente o neoliberalismo, que ela não se cansa de elogiar. O mantra neoliberal do “Estado mínimo” é a expressão mais clara de uma ideologia que só autoriza políticas que cumprem a função de atender primeiramente aos interesses do mercado. Se fosse coerente com os princípios que alega defender, Veja criticaria o financiamento privado de campanhas, pois é aí que começa a influência da lógica do mercado sobre a política. Se bancos e empreiteiras podem “doar” centenas de milhões para partidos, é de se esperar que queiram receber algo em troca. O “rabo preso” dos candidatos levados ao poder pelo grande capital privado é uma das nascentes da corrupção do sistema político como um todo. No entanto, você jamais verá Veja defendendo o financiamento público de campanhas. Por que? Porque a ideologia que visa a reduzir a atuação do Estado ao mínimo, que a revista elogia com fervor religioso, só pode se manter influente se o grande capital privado continuar ditando as regras do jogo político.
Um peso e duas medidas, portanto. E há mais exemplos. Como num passe de mágica, a antipatia de Veja pelo utilitarismo desaparece quando o assunto muda de sexualidade para segurança pública. O título da matéria de Veja sobre filme “Tropa de Elite 2” dizia que capitão Nascimento era “um herói do lado certo” (edição 2190). Mas o personagem vivido por Wagner Moura é a encarnação do pior tipo de utilitarismo, que desrespeita a dignidade intrínseca do ser humano e também as leis do país. Embora lute contra o crime, Nascimento não é um herói, mas um criminoso. Recordemos: em “Tropa de Elite 1”, ele tortura um menino (artigo 1o da Lei n. 9.455/97) e executa um policial corrupto (homicídio qualificado: artigo 121, parágrafo 2o do Código Penal); no segundo filme, faz uma escuta telefônica sem autorização judicial (artigo 10 da Lei n. 9.296/96) e espanca um político (lesão corporal, artigo 129 do Código Penal). Onde foi parar a preocupação com a moralidade e a justeza da ação em si?
Nas páginas de Veja, a recusa do utilitarismo em favor de um civismo humanista, assim como a defesa de uma política que não seja contaminada pela economia, são bastante parciais. Valem para alguns assuntos, não para outros. O que nos leva a duas conclusões: 1) se Veja mobiliza pontualmente a filosofia de Michael Sandel não é em função da adesão verdadeira aos seus princípios, mas sim porque serve como instrumento conveniente para o projeto moralmente conservador da revista (desnecessário lembrar sua oposição ao aborto, aos direitos homossexuais etc.); e 2) o próprio fato desta mobilização de princípios filosóficos ser seletiva revela o quão utilitarista é o espírito que anima a publicação. A explicação é simples. Há algum tempo a revista abandonou o desejo sincero de informar, ocupando-se apenas de sua obsessão em derrotar o projeto da esquerda no Brasil. Veja enxerga a si própria como um exército em guerra, cuja vitória final viria redimir o vale-tudo retórico por vezes mentiroso e frequentemente incoerente que usa como armas.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Eleições nos EUA: exemplo para quem?

Por Roberto Amaral


“Temos de parar de dizer que somos a maior democracia do mundo. Sequer somos uma democracia. Somos uma república militarizada.”
- Gore Vidal

Ainda quando os EUA consagravam o apartheid, quando os negros não podiam dividir com os brancos o mesmo banco de ônibus, o mesmo banheiro público ou a mesma calçada, coisa de pouco mais de 40 anos passados, dizia-se, aqui e em todo o mundo, que a norte-americana era ‘a maior democracia do Ocidente’. Essa democracia deixou de consagrar o racismo, é verdade, mas se curva tanto à ausência de povo quanto à predominância do poder econômico.
São duas as suas principais características de hoje, a abstenção da cidadania, e a presença sufocante do grande capital, seu maior protagonista.
O grande público brasileiro, mesmo os apenas leitores dos jornalões e das revistonas, terá percebido que a grande crise dos EUA é política. Naturalmente imperceptível às análises dos ‘cientistas’ midiáticos, essa crise é alimentada pelo rotundo fracasso de sua democracia representativa, corroída por um sistema eleitoral arcaico, venal, mercantilizado e corrupto, e por um presidencialismo artificialmente bipartidário, que imobiliza as forças políticas e constrói os impasses que paralisam Congresso e Casa Branca em face dos problemas mais cruciais.
Esse mesmo bipartidarismo que divide ideologicamente a sociedade norte-americana, constrói o fosso do presidencialismo e aprofunda a divisão do país entre pobres e ricos.A propósito, o primeiro mandato de Obama foi uma corrida de obstáculos, em que a reforma do sistema de saúde foi simplesmente um episódio. Diferente não será este segundo, haja vista, por exemplo, o conflito entre um Executivo democrata e uma Câmara dos Representantes de sólida maioria republicana. Com quais forças políticas o Presidente pode dialogar no Congresso, para, por exemplo, enfrentar o abismo fiscal (fiscal cliff), que ameaça os EUA com o espectro da recessão representada por uma promessa de queda do PIB entre 3 e 6%, se não houver acordo até janeiro?
Salve o nosso criticado ‘presidencialismo de coalizão’ que, democrático, consagra o entendimento político; salve nosso pluralismo partidário, que enseja a sobrevivência das minorias e a expressão do mais vasto mosaico ideológico e, sempre, a alternativa do entendimento político; salve nosso sistema proporcional que impede a ditadura das maiorias ocasionais, fruto do voto distrital, pelo qual tanto anseiam, entre nós, a direita consequente e os liberais alienados.
As recentes eleições demonstraram que a democracia norte-americana renega a si mesma quando, como hoje, é dominada pelo dinheiro, pelo poder das grandes corporações que, financiando as campanhas, escolhem os futuros eleitos e comandam o processo eleitoral – desde as primárias, uma farsa dentro da farsa maior. Nem mesmo o mais obtuso dos néscios terá tido dúvida sobre quem seria o candidato dos democratas ou dos republicanos nessa e em qualquer eleição presidencial dos EUA. No entanto, antecipando-se, à eleição propriamente dita, foram gastos milhões de dólares nessa fantasia e o grande concurso passou a ser quem arrecadaria mais.
É a festa dos lobbies – inclusive da direita militarista-expansionista israelense –, de Wall Street e das corporações definindo, de fato, com o aporte financeiro, o conteúdo dos mandados dos eleitos, a saber, a defesa de seus interesses. As eleições são decididas fora do espaço eleitoral-legal, cabendo ao eleitorado, como lembrava Gore Vidal, “escolher entre o analgésico A e o analgésico B. Mas ambos são aspirinas”.
Assim se vê que, contra a ideia liberalóide de democracia universal e intemporal, a realidade constrói o conceito de democracia historicamente determinado. Nesta hipótese podemos adotar o conceito expresso por Bresser-Pereira em recente artigo na FSP (5.11.12). A ‘democracia’ norte-americana é ‘uma democracia parada no tempo’.
Essa democracia – que tem muito a invejar ao sistema eleitoral do Brasil e – isto mesmo – da Venezuela (a lisura do processo eleitoral venezuelano foi elogiada, inclusive, pelo Instituto Carter) – é um confuso processo indireto, sobre o qual incidem diversas legislações, pois cada Estado pode ter seu próprio sistema. O povo não elege seu presidente, mas delegados a um Colégio que pode escolher o Presidente contra a vontade da maioria do eleitorado expressa nas urnas. Trata-se de processo arcaico, no qual sobrevivem, contemporaneamente, voto em cédulas de papel e apuração manual, ao lado de um sistema de urnas e totalização eletrônicas. Lembram-se das apurações na primeira eleição de Bush? O sistema majoritário faz com que o candidato que tiver obtido o maior número de votos em um Estado carregue consigo todos os votos a que a unidade federativa tem direito no Colégio, qualquer que tenha sido a diferença (em outros termos: o eleitor pode votar no candidato A e ter seu voto contabilizado para o candidato B), assim, aquele candidato que tiver o maior número de votos em todo o país não é necessariamente o eleito, como ocorreu com Al Gore, em 2000.

O processo brasileiro
A crítica ao processo norte-americano é bom pano de fundo para uma discussão, sempre bem-vinda, sempre necessária, sobre nossa própria experiência, nesses poucos anos de democracia representativa pós ditadura militar. O qual vem avançando, positivamente, a cada eleição. Um dos méritos a destacar são os programas anuais gratuitos de rádio e de televisão, e, principalmente, os programas, igualmente gratuitos para os partidos (mas, como aqueles, pagos, pelo Erário, às emissoras) do período eleitoral.
Contrastando com a estadunidense, que enseja a hegemonia do poder econômico, nossa experiência é exitosa, barateando o custo das campanhas e assegurando um mínimo de acesso dos candidatos aos veículos eletrônicos, ainda que gozando de tempos abusivamente díspares (eis um ponto a ser aperfeiçoado). Mas a questão fundamental, é o financiamento público exclusivo das campanhas em todos os níveis, que se pode completar com outras medidas, como a unificação dos pleitos, e a exigência de renúncia ao mandato do parlamentar que aceitar cargo no Executivo.
Esta pode ser uma boa pauta para o Congresso pós-Cachoeira.
As prioridades deles
Ao escolher a periferia da China como cenário de sua primeira viagem internacional, o Obama reeleito dá eloquente indicador daquela que será a prioridade da Casa Branca até pelo menos 2017: a Ásia Oriental, para onde já deslocara navios de sua Marinha de guerra. Ao desafio auto-imposto de contrapor-se à influência da China (agora com um Partido Comunista renovado e esfingético), Obama terá de administrar a crescente crise do Oriente, onde os dirigentes de Israel, de quem os EUA são guarda-costas atômicos, hoje como ontem, parecem não ter limites em sua ação genocida. Essas notícias, porém, trazem boas novas para a América Latina e o Brasil. Preocupados com outros objetivos, maiores, os EUA não terão tempo de voltar-se para nosso Continente que, assim, poderá continuar em paz, em desenvolvimento e avançando em seu processo democrático.
Aproveitemos.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

A Revolução morreu? Viva a Revolução!



Por Gilberto Maringoni


Muito já se escreveu sobre a Revolução Russa e a sociedade e o mundo que ela gerou. O balanço de seus erros e acertos está longe de se consolidar, 95 anos passados da tomada do Palácio de Inverno. Mas poucos contrariam uma certeira apreciação do historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012). Segundo ele, “A Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que a Revolução Francesa (1789) e produziu, de longe, o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna”.

Nenhum processo histórico gerou tamanho saldo organizativo, tão volumosa teoria e muito menos colocou tantos milhões de homens e mulheres em ação, em inúmeros países, dispostos a dar a até a própria vida pela transformação social. 
A Revolução causou medo entre as classes dominantes, entre os ricos e os abastados de todo o planeta. O pânico gerou uma feroz reação. No plano material, desatou-se, durante décadas, uma ofensiva militar e repressiva contra tudo o que cheirasse a contestação à ordem estabelecida pelo regime do capital. Na esfera da disputa pelos corações e mentes, torrentes de mentiras fizeram brotar a indústria do anticomunismo em praticamente todos os países.

Realizada num país atrasado, em meio a um conflito bélico de largas proporções - a I Guerra Mundial - e num momento de crise do sistema imperialista mundial, a Revolução de 1917 teve repercussões em inúmeras áreas do conhecimento humano.

País agrário

Nas condições objetivas da Rússia de cem anos atrás, um marxista vulgar descartaria a possibilidade da eclosão de uma ruptura socialista. Aquele era, nas últimas décadas do século XIX, um imenso país agrário, com 85% de sua população vivendo no meio rural, em situação de extrema pobreza. Apenas 20% da população era alfabetizada.

A partir dos anos 1890, a indústria conheceu um razoável progresso, principalmente nas áreas de metalurgia, petróleo, tecelagem e carvão, graças a vultosos investimentos estrangeiros.

A atração de camponeses empobrecidos para as cidades deu origem a uma massa crescente de trabalhadores que adquiriam ao mesmo tempo qualificação técnica e consciência política.

Transformação Social

Mesmo assim, a classe operária era largamente minoritária para nuclear um projeto de transformação social. O país que, em tese, reuniria melhores condições para uma ruptura social era a Alemanha. Majoritariamente urbana, dotada de uma indústria moderna e possuidora de uma classe operária numerosa e experiente, a Alemanha vivia também as contradições de ter uma burguesia extremamente reacionária. O quadro foi agravado no curso da I Guerra Mundial (1914-1918).

No entanto, as crises do sistema imperialista, um regime despótico e corrupto e uma década de rebeliões populares acabaram por fazer do país dos czares o “elo débil” do capitalismo mundial.

Mas apenas tais condições não bastariam para deflagrar a Revolução. Nesta situação, adquire relevância um dirigente marxista inovador e criativo, capaz de traçar uma tática original, rumo à transformação social. O dirigente chamava-se Vladimir Lênin (1870-1924). Se alguém pode ser chamado de gênio na era contemporânea, este alguém é Lênin. Nenhum outro intelectual do século XX teve suas idéias tão disseminadas e apropriadas por tanta gente, como aquele russo de estatura mediana e olhar penetrante.

A originalidade de Lênin

Qual a originalidade de suas formulações? Entre muitas, podemos apontar duas principais.

A primeira foi divulgada em março de 1902, no livro "Que fazer?". Desenvolvendo as idéias de Marx e Engels, seu autor demonstra a necessidade da criação de uma teoria revolucionária e de um “partido de novo tipo” para organizar os trabalhadores. Disciplinado, baseado no centralismo democrático e composto por células horizontais e verticais, o partido funcionaria como um “intelectual coletivo” e um exército ágil e maleável para tempos de enfrentamento.

A segunda grande contribuição de Lênin foi a resolução de um intrincado problema tático. Se a classe que formaria a vanguarda revolucionária era a operária, como ela, minoritária na Rússia, daria conta da titânica tarefa de mudar a sociedade?

Apesar de minoritária, a ela caberia o papel de força motriz no processo. Para Lênin, ela teria de se unir a outros segmentos de oprimidos e explorados. O setor principal seriam as massas camponesas, saídas da servidão décadas antes. Lênin propõe, no livro "Duas táticas da social-democracia na revolução democrática" (1905), a aliança operário-camponesa. Seria uma união entre diferentes, para realizar uma tarefa comum: implodir o sistema que explorava a ambos.

Há sentido atualmente?

Qual o sentido de se debater a Revolução Russa hoje, além de se comemorar uma data redonda? 
Aos que julgam anacrônica uma transformação social que teria se esgotado com a queda do muro de Berlim, em 1989, vale fazer um paralelo histórico.

Olhemos para outra Revolução, a Francesa, deflagrada mais de um século antes, em 1789. O impulso social por ela provocado colocou o Antigo Regime no chão e moldou a sociedade nos âmbitos da política, da economia e da cultura até os dias atuais.

Golpe de Estado

Se usássemos uma régua curta, poderíamos dizer que não foi bem assim. O regime construído a partir da queda da Bastilha chegou objetivamente ao fim dez anos depois, em 1799. Nesse ano, Napoleão Bonaparte deu o golpe de estado de 18 de brumário e instaurou uma férrea ditadura. Se nossa régua for mais elástica, veremos que em 1814, com a Restauração Monárquica, pouco restavam dos ideais revolucionários, além do sistema métrico decimal, adotado oficialmente em 1791.

Apesar disso, as conquistas da Revolução Francesa, em termos de liberdade, direitos humanos, separação de poderes etc. estão aí. Dizer que os impulsos da Revolução Socialista esgotaram-se em 1989 equivale a reutilizar aquela régua curta.

O capitalismo continua tão ou mais agressivo que há 95 anos. Seus rastros de destruição, insegurança, aumento da miséria, instabilidade e exploração seguem gerando conflitos sangrentos mundo afora. O imperialismo atual é muito mais danoso à humanidade do que jamais foi. Seu poder é muito maior.

Outubro de 1917 continuará a fazer sentido enquanto a humanidade quiser buscar outro mundo possível. Fará sentido enquanto as palavras de Vladimir Maiakovsky ainda tocarem o coração das pessoas: “Nesta vida/ Morrer não é difícil/ O difícil/ É a vida e seu ofício”.


Gilberto Maringoni é jornalista e cartunista, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez”


Fonte: Caros Amigos

“A imprensa reflete o racismo no Brasil por inteiro” diz Muniz Sodré


Por Sindicato dos jornalistas do Rio de Janeiro

Muniz Sodré é negro, baiano, fala russo, alemão, iorubá e francês, é faixa-preta em caratê e jiu-jítsu. Mas não foi por isso que um dia, quando trabalhava na revista Manchete, agrediu fisicamente Adolpho Bloch – coisa que muito jornalista já teve vontade de fazer. Sodré completou 70 anos em 2012, no dia 12 de janeiro, e entre os vários eventos que lhe prestam homenagem, um leva o nome de um grande amigo.

O Prêmio de Jornalismo Abdias Nascimento – organizado pela Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-Rio), ligada ao Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio – homenageou este professor emérito da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ. Na noite de segunda-feira (12/11), em meio à entrega dos prêmios aos jornalistas vencedores, Sodré foi chamado ao palco. Ele ouviu algumas palavras, por sua militância contra a discriminação racial e contribuição à diversidade cultural, e falou algumas outras.

Antes disso, o site do Sindicato dos Jornalistas foi até sua casa, no bairro carioca do Cosme Velho, para uma entrevista sobre imprensa, jornalismo de hoje, de ontem, racismo e preconceito. Confira a seguir.

SinJor – Ao longo de 2012 o senhor recebeu várias homenagens pelos seus 70 anos. Como o senhor encara isso? A idade começou a chegar de fato?

Muniz Sodré – Ela chega. Com 70 anos você começa a perceber que o corpo não está mais o mesmo. Eu faço esporte violento (capoeira, caratê, jiu-jítsu), mas o corpo não reage da mesma maneira. Você sente que o esqueleto não aguenta mais. No caratê, que é um esporte de impacto, com o passar do tempo as pancadas vão ficando muito fortes. E o corpo não é mais o mesmo. Faço ioga também. Outro dia, pela manhã, estava com o corpo todo doído.
SinJor – Sua ligação com jornalismo vem de onde?

Muniz Sodré – Eu sempre gostei de ler e escrever. Sempre fui meio CDF. Falo várias línguas. Fui tradutor, falo inglês, francês, alemão, italiano, espanhol, russo, árabe, iorubá (de origem africana, língua dos terreiros de candomblé), fui professor de latim. Era muito conhecido na Bahia por isso. Fui tradutor oficial da Prefeitura de Salvador. Quando você vai envelhecendo, o gosto por falar vai desaparecendo. Não falo bem como eu falava antes. Mas ainda dou conferência nestas línguas. O jornalismo vem desta coisa de escrever. Sempre fui profissional de jornalismo. Mas deixei a profissão em 1974, não estava mais interessado. Tinha um cargo na Bloch. Fui chefe de reportagem e redator da Manchete. Comandei a TVE em 1979 e 80. Meu último cargo público foi na Biblioteca Nacional, de 2005 a 2010. Nunca mais na vida quero cargo público.

SinJor – Causa muito problema?

Muniz Sodré – É muito arriscado. Você dirigir orçamento público hoje é tão perigoso quanto entrar à noite da favela do Rato Molhado (Zona Norte do Rio), você não sai vivo. Pode entrar armado, vai sair sem arma e sem cabeça. Dirigir orçamento público é a mesma coisa. Existem duas instituições de controle contábil no País que acho que são as melhores do mundo: a Controladoria Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU). Todo mudo acha que no Brasil tem muito roubo. Tem roubo mas se sabe. É impossível roubar no serviço público sem que (os órgãos) saibam. Cada conta, cada despesa é controlada integralmente pela CGU, e no final do ano, pelo TCU.

SinJor – Uma vírgula fora do lugar e…

Muniz Sodré – Está frito. Mas falam que é tanto roubo… Mas se sabe, só escapa quem tem força política. É um tipo de trabalho que é muito bom para ladrão. Se você é honesto, você pode se acusado por uma besteira e vai para o Diário Oficial da mesma forma que o ladrão. Enquanto que o ladrão está acostumado a isso e não vai para a cadeia. A primeira vez que estou vendo ir para a cadeia alguém deste tipo é nessa história do mensalão. Quem costuma ir para cadeia mesmo é preto e pobre, pp.

SinJor – E qual a sua avaliação sobre a cobertura dos jornais atualmente, a exemplo da forma como foi noticiado o julgamento do mensalão?

Muniz Sodré – Hoje em dia o leitor se interessa muito pouco por assuntos sérios. O entretenimento e a diversão são o grande módulo do jornalismo. Isso é uma lástima. Um exemplo: o Segundo Caderno de O Globo. Os assuntos são música popular, TV, teatro, shows. Aí você tem colunistas que, se você prestar a atenção, todos estão ligados ao show business de um modo ou de outro – até quando são muito bons. Francisco Bosco, filho do João Bosco, é muito bom articulista. Mas o pai é músico, ele faz letra, é poeta… José Miguel Wisnik (também colunista em O Globo) é músico, professor. Caetano Veloso é Caetano. Hermano Vianna, irmão de Herbert Vianna. O show business, o entretenimento atravessam por inteiro o jornalismo. Tudo é diversão. E acho que isso contaminou o assunto mensalão. Para atrair leitores para este assunto, que é técnico, precisaram fazer uma novela do Supremo Tribunal Federal, o bem e o mal. O Lewandowski (Ricardo, ministro do STF, votou pela absolvição de réus do mensalão) foi votar (nas últimas eleições) e recebeu vaia porque ficou como vilão da novela. Já o Joaquim Barbosa (relator do caso) ficou de herói. Acompanhei o mensalão pelo Globo, pelos jornais, como uma novelização do julgamento.

SinJor – A imprensa pode ter sido mais rigorosa por se tratar de um julgamento que envolve políticos do PT?

Muniz Sodré – Tem uma atração a mais. Se fosse o PSDB, e não tivesse no poder o PSDB, não teria a mesma atração. Sabe-se que houve mensalão do PSDB, o caso do FHC nas Ilhas Cayman, mas nunca tocaram nisso. É o mesmo tipo de escândalo se alguém vê e denuncia. O problema é que alguém sempre apita, quando apita é preciso saber se a imprensa está disposta a pegar isso.

SinJor – Pelo que o senhor observa nos alunos de Jornalismo, qual é a expectativa deles com o futuro profissional, com o que vão encontrar?

Muniz Sodré – O jornalismo mudou. Ninguém que sai de lá (ECO) está desempregado. Estão nas redações? Não. O maior mercado é a assessoria de comunicação, depois a Internet. A comunicação hoje é um território onde a sociedade se desenvolve. As pessoas no fundo criam seus próprios empregos hoje. Claro, tem muitos que vão para jornal, para rádio, TV. As redações estão cheias de ex-alunos da ECO, da Fluminense, da PUC. Mas é um emprego de uma rotatividade muito grande, você passa pouco tempo nele. A profissão se deslocou da questão da entidade do jornalista.

SinJor – O Prêmio Abdias Nascimento destaca trabalhos jornalísticos que estimulem a diversidade, que combatam a discriminação. No tipo de jornalismo feito hoje no Brasil há muito racismo?

Muniz Sodré – A esquerda não gosta de ouvir isso, mas o Brasil é um país muito racista. O racismo é um mal estar civilizatório. Conheço poucos lugares no Brasil onde não há racismo, as grandes casas de candomblé por exemplo. As instituições são racistas. Onde dou aula (Escola de Comunicação da UFRJ) você vai ver um único professor negro, eu. E mesmo assim, há quem ache que eu não sou negro, que sou negro pálido. Tinha um outro (professor negro) que foi transferido. Procure entre os alunos para ver se encontra algum que seja negro. É difícil. Se encontrar aluno negro, é de convênio, angolano, cabo-verdiano. Departamento de Física, de Matemática… vê se encontra negro! O mecanismo é excludente. Quando começaram as ações afirmativas, que foram as melhores coisas do governo Lula, aconteceu um novo tipo de inclusão social. Acho que isso foi uma das coisas mais importantes que ocorreram no Brasil neste século.

SinJor – Por quê?

Muniz Sodré – Bem, este negro que está na universidade pode não melhorar de vida economicamente. Mas vai melhorar em autoestima e na posição dele na cidadania. Isso você já nota, sente a repercussão disso até na televisão. Antes tinha em novela um ou outro negro, e agora tem novelas inteiramente de negros.

SinJor – É um reflexo das ações afirmativas?

Muniz Sodré – É um reflexo já. O problema do racismo é deixar se aproximar. Se uma filha entrar em casa de braço dado com um negão, o pai não vai gostar. Não é uma questão de ser racista, mas é o lugar que o negro ocupa na sociedade brasileira. “Minha filha vai casar com este cara, ele não vai ter emprego.” Você não pode satanizar o comportamento discriminatório sem mais nem menos. Tem que lutar contra ele, criar os mecanismos de aproximação. Portanto, sou a favor das cotas porque elas colorizam a paisagem colonizada. Recebo visita aqui de caras de 35 anos, negros, que trabalham com educação na periferia de São Paulo. Você olha para ele e pensa que ele trabalha com música. Nada! Tem mestrado nisso, doutorado naquilo…

SinJor – Mas então a imprensa acaba refletindo este país racista?

Muniz Sodré – Reflete por inteiro. Os jornais, para usar expressão de Gramsci (Antonio, cientista político, dirigente do Partido Comunista Italiano – PCI), são intelectuais coletivos das classes dirigentes. Refletem este desejo de que as coisas fiquem como estão, cada macaco no seu galho. Quais foram os lugares de resistência às ações afirmativas? A imprensa. Aqui no Rio, O Globo. E com dirigentes, Ali Kamel. Nas universidades você encontra em alguns cursos resistência (às cotas). Mas no próprio O Globo tem gente que defende as ações afirmativas, o Elio Gaspari, por exemplo, Miriam Leitão, Ancelmo Gois. Mas as notícias, as pautas, tudo isso aí tem viés. O negro não está representado na pauta.

SinJor – Como era sua relação com o jornalista Abdias Nascimento?

Muniz Sodré – Ele foi meu amigo. Meses antes de morrer (em maio de 2011) me chamou para almoçar na casa dele. Almoçamos ele, Elisa (esposa de Abdias) e eu. Foi uma tarde ótima. O Abdias Nascimento, em plena época dura do racismo, criou o Teatro Experimental do Negro (na década de 1940). Ninguém fala muito disso, falam de Nelson Rodrigues… Como professor, como homem público, senador, ele atuou dentro da paisagem racista brasileira.

SinJor – Qual a sua opinião com relação à exigência do diploma de Jornalismo para exercer a profissão?

Muniz Sodré – Quando o Supremo acabou com a exigência do diploma (em 2009), o argumento era imbecil, de uma ignorância, desconhecedor do que é jornalismo. Estes juízes são menos doutos do que você pode pensar. Eles não sabem o que é imprensa. O argumento de Gilmar Mendes, dizendo que jornalista é como um chefe de cozinha… não sei como ele fez esta ligação. Aliás, um chefe de cozinha ganha muito melhor que um jornalista. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. E, na França, para ser chefe de cozinha, tem que ter diploma. Já fui inteiramente a favor (da exigência do diploma), hoje eu hesito. Mas sou a favor ainda porque você não precisa de diploma para ser administrador de empresas, economista, advogado. Para quê? Só por uma garantia corporativa. Sou formado em Direito, a maior parte dos advogados é de analfabetos completos. Você precisa de diploma em profissões onde há risco de vida envolvido na profissão, como engenharia, medicina… No entanto, se é mantida a exigência do diploma para estes, porque não para o jornalista, dada a importância que a informação tem hoje na vida social? Ninguém aprende na faculdade aquilo o que está destinado na profissão. Ninguém se torna médico na faculdade de Medicina. Você se torna médico na residência, no hospital. Na faculdade, você aprende a aprender. Acho que o diploma dá uma garantia à profissão de jornalismo e permite uma luta mais equânime com os patrões por salários.

SinJor – Liberdade de expressão e liberdade de imprensa são expressões muito utilizadas pelos empresários de comunicação, que têm seu expoente maior na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Estes dois termos estão desvirtuados hoje?

Muniz Sodré – A liberdade de imprensa foi abarcada pela mídia corporativa. É a liberdade dos donos de imprensa, de não permitir ingerência do governo no negócio da imprensa. Enquanto que liberdade de expressão é uma coisa a ser conquistada ainda. O jornalista que é empregado desta mídia corporativa não tem liberdade de expressão lá dentro, quem tem é o dono do jornal. Liberdade de expressão é você poder dizer o que quiser em qualquer que seja o meio de comunicação – mas você não pode fazer isso em televisão, em jornal, em rádio. Onde você pode dizer? Na internet, mas aí ninguém vai te escutar. Você pode fazer um blog, por exemplo. Aí você tem liberdade de expressão em termos – porque podem processá-lo. Mas a Internet é suficientemente caótica e anárquica para dar ao indivíduo a liberdade de expressão. Porém, o problema da liberdade de expressão não é apenas dizer o que você quer. Em Londres, no Hyde Park, tem um caixote onde o sujeito sobe para dizer o que quiser. Sobe e discursa. Sempre tem um para escutar. Então o sujeito esculhamba a rainha, o rei… dez, vinte pessoas escutam, acham aquilo engraçado, é tradição, e saem. Liberdade de expressão, as pessoas podem ir ali falar.

SinJor – Isso é liberdade de expressão?

Muniz Sodré – Liberdade de expressão hoje é mais que isso. É a possibilidade também de ser escutado, é dizer o que quer num espaço público. E o espaço público é o espaço determinado, formado por mídia, mas formado também por academias, associações, clubes, escolas… Só quem tem liberdade de expressão é quem tem hoje liberdade de imprensa. Portanto, não basta o meio técnico para você falar, tem que constituir sua audiência, o público. Este é o grande problema da Internet hoje. A escuta atualmente é mais difícil do que a fala. As pessoas fazem tanta análise hoje, vão ao psicanalista, em busca de atenção. Pagam para que alguém as escute porque ninguém lhe escuta desta forma. A atenção é a grande mercadoria de hoje. Portanto, o problema não é a livre expressão, é a escuta obrigatória. Existem bilhões de blogs na internet, alguns têm leitores. Você pode escrever a coisa mais importante do mundo, mas ninguém lê.

SinJor – Para finalizar, como é mesmo aquela história de que o senhor agrediu Adolpho Bloch?

Muniz Sodré – Eu morava em Paris e era freelancer da Manchete. Tinha feito uma matéria com Georges Simenon (escritor belga) e fui entregar o texto. Ele (Adolpho Bloch) estava lá no dia. E, neste mesmo dia, corria a notícia de que os árabes haviam destruído aviões israelenses (durante a Guerra dos Seis Dias em 1967). Mas aconteceu o contrário, os israelenses que destruíram a aviação egípcia em terra. Bloch estava muito nervoso, era judeu. Quando entrei, ele quis colocar o nervoso em cima de alguém, era típico dele – no dia que chegava nervoso demitia um contínuo, um funcionário, era assim na empresa. Ele veio, eu disse que estava trazendo uma matéria, e ele falou: “No Brasil nós já mudamos de estilo.” E foi chegando perto de mim. Eu com o texto na mão. E então ele avançou sobre a matéria. Aí, já viu! Quando eu percebi ele estava no ar, eu segurando ele. E olha que Adolpho era pesado. Mas ele tinha uma grandeza nesta sua maluquice. A briga de desfez, um ano depois eu passava por ele no corredor da Bloch (no Rio) e ele me chamava de mestre em russo. Colocava a mão no meu ombro e perguntava se estavam me tratando bem na empresa. Eu dizia que sim, mas que poderia estar ganhando um pouco melhor. Aí ele já tirava a mão do meu ombro (risos). Esta briga, se fosse com qualquer outra pessoa, eu estaria demitido. Se eu estivesse no lugar dele, mandava me demitir. Se fosse com o Roberto Marinho, seria mandado preso.



Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro é uma entidade em defesa dos interesses corporativos e políticos dos profissionais de imprensa do município


Fonte: Algo a Dizer

domingo, 25 de novembro de 2012

O ódio (singular absoluto) a Lula


Por Weden

Lula é um político brasileiro com defeitos e virtudes. Se você não conseguir ver uma coisa ou outra é porque, certamente, a cegueira da paixão ou do ódio está tomando o seu corpo como um câncer.
O que se percebe no caso de Lula é que o ódio intenso tenta, sobremaneira, vencer o amor intenso. É uma luta. A luta entre o amor e o ódio a esse personagem da história brasileira.

Outros já experimentaram do mesmo fel. Mas não sei se há concorrentes para Lula. Talvez nem Getúlio.
Quantitativamente, Lula está em vantagem. Mas os odiadores acreditam que seu ódio seria de melhor qualidade, uma espécie de crème de la crème do ódio – um ódio insuperável por qualquer amor de multidões.
É um ódio cultivado com gotas de ira diárias nas páginas dos jornais. E de revistas. Cultivado com olhos de sangue, faca entre os dentes, espinhos nas pontas dos dedos.
Só nos últimos meses, Lula já “esteve” por trás do relatório do CPI da Cachoeira, teve caso com a mulher presa na última operação da PF, já tentou adiar o julgamento, já produziu provas para se vingar de Perillo (porque ele teria sido o primeiro a avisá-lo do mensalão), já tentou subornar Deus para que terminasse a obra no domingo.
A paixão amorosa conhecemos bem. Vem daqueles que se identificaram com ele e com ele conseguiram ser lembrados pela primeira vez na história da política brasileira: seja pelos programas sociais, seja pela ascensão econômica, ou até simplesmente pelas características pessoais, culturais e linguísticas. Vem também do louvor à camisa, ao vermelho da camisa do PT.
Mas encontrar representantes do ódio não é tão difícil também. E, como qualquer sentimento que desafie a racionalidade, eles encontrarão justificativas em qualquer coisa.
Mesmo que o ódio se disfarce de termos falsamente conceituais (lulo-petismo, lulo-comunismo, lulo-qualquercoisismo), o ódio a Lula não é um ódio-conceito. Não é abstrato. É material. Corpóreo. Figadal. Biliar. Visceral.
Também não é ódio consequência. Não é um “ódio, porque…” É um “ódio ódio”, um ódio em si mesmo, um ódio singular absoluto, que se disfarça de motivos: linguísticos, culturais, morais, econômicos, etc, mas sempre ódio.
Lula já foi acusado de trair a mulher, de violentar o companheiro de cela, de roubar o Brasil, de pentecostalizar a África, de fortalecer “ditaduras” latino-americanas, africanas, asiáticas, de se curar do câncer em hospital particular (sim, uma acusação), de assassinar passageiros de avião, de dar o título à Vila Isabel, de provocar a fuga do vilão no final da novela das oito; já foi acusado de dançar festa junina, de beber vinho caro, de torcer para o Corinthians, de comer buchada de bode, de ter amputado o próprio dedo para receber pensão, de ter a voz rouca, de ser gente, de estar vivo, de ter nascido…
Só um conselho para os odiadores: o inverso do amor não é o ódio, mas a indiferença. No caso em questão, o ódio só acentua e inflama a paixão daqueles que, em maioria dos votos, acabarão levando vantagem.
Sejam indiferentes a Lula, e a história se encarregará de fazer o resto.