quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Da sociedade disciplinar à tirania do gozo obrigatório

maça vale


Mundo neoliberal é marcado pela exigência de satisfação irrestrita. Estimula-se um novo consumismo – agora mais excludente, embora cool; agora mais consciente, embora continue profundamente alienado

Por Thiago Canettieri, no InDebate, parceiro de Outras Palavras
Imagem: Michelangelo Pistoletto, A Maçã Reintegrada

O neoliberalismo como movimento contemporâneo de ordem simbólica do capitalismo aparece como totalidade que estrutura as dimensões mais subjetivas da vida. A razão neoliberal e sua forma-de-vida decorrente indicam um sistema normativo que se desenvolve no seio do capitalismo, aprofundando-o. Esse princípio foi sintetizado pela própria Margareth Thatcher ao definir o objetivo do neoliberalismo: “mudar a alma e o coração”.

Assim, o neoliberalismo persiste porque é uma norma de vida que impõe um universo de competição generalizada e que cria circunstâncias globais para tal (tanto na escala do planeta como nos aspectos políticos, econômicos, sociais e subjetivos). Com isso, a lógica da concorrência passa a ser a norma de conduta e a empresa opera como o modelo de subjetivação hegemônico.[1]

O que acontece nessa perspectiva é a conformação da lógica empresarial como uma “ordem” moral que é colada – a partir de vários expedientes – na subjetividade de cada indivíduo. Forma-se um espírito de empresa, que é o que garante o funcionamento da sociedade neoliberal. Como? A relação consigo próprio, a relação com seus familiares e amigos, e com qualquer outro indivíduo passa a ser operacionalizada a partir de uma lógica própria da empresa, como uma forma de “governo de si”, que passa a ser balizada a partir das práticas de mercado. O resultado desta operação é ascensão do mercado como espaço de veridisdição, ou seja, de produção de verdades.[2]

Esse novo sistema de disciplina é fundamentado pela ideia de que o governo de si e dos outros se realiza a partir da estruturação do campo de ação, controlando o regime de desejo (pela recompensa, punição ou substituição do objeto). E toda a estruturação da ideologia serve para aceitar a instituição do mercado como a regra do jogo, capaz de implantar coerções de mercado que forçam o indivíduo a adaptar-se a ele.

A novidade do neoliberalismo é a radicalização e o aprofundamento da lógica capitalista de subjetivação conformada pelo mercado. Muitos situam o começo do neoliberalismo nos primeiros anos da década de 1970, mas cabe dar um passo atrás. Alguns anos antes, o mundo efervescia contra as estruturas disciplinares do capitalismo – o maio de 1968 francês talvez se configure, dentre essas explosões, como a que ganhou maior destaque. Acontece aí talvez o ponto de inflexão com a apresentação de novas demandas por parte do corpo social que foram capturadas dentro do regime do Gozo e da circulação de afetos no capitalismo. Foi talvez nesse momento que a ordem simbólica se reorganizou em uma nova constelação.

Se os séculos XIX e a primeira metade do século XX eram marcados por rígidas estruturas disciplinares pelas quais o superego/supereu[3] interditava os indivíduos, gerando assim a forma clássica do sofrimento que Freud captou por meio da ideia de histeria e de outras neuroses, o neoliberalismo traz consigo uma forma muito específica de organizar os afetos e os sofrimentos da sociedade. Na contemporaneidade, o supereu aparece como um imperativo de gozo. A consequência paradoxal e trágica é uma corrida desenfreada ao gozo que acaba, evidentemente, na impossibilidade de satisfação, pois o supereu ligado ao registro real é uma instância distinta da lei reguladora, referida ao registro simbólico, e exige cada vez mais. O supereu ligado ao registro real veicula uma lei insana, que não oferece uma medida ao gozo, mas incita a esse mesmo gozo.

O neoliberalismo inaugura uma forma de subjetivação organizada pelo imperativo do gozo, mas um gozo que nunca se realiza plenamente, provocando uma espécie de expropriação do próprio gozo. O que o neoliberalismo promove é uma articulação de sentidos que determina uma forma bem específica de circular os afetos.

O mundo neoliberal é marcado por uma exigência de satisfação irrestrita. A sociedade do consumo, do excesso, do iphone 3 (3G e 3GS), 4, 5, 6, 7, X pode ser descrita como A Sociedade do Gozo. O supérfluo, o descartável, o excesso são as marcas dessa relação, e esses “aparelhinhos mágicos”, os gadgets, ilustram bem a economia do gozo. Mas, diante das contradições imposta pelo consumo desvairado – tanto no nível material como o simbólico, uma nova constelação para o circuito de subjetivação se forma: o consumo consciente. biodegradável, verde, com doações para os países do terceiro mundo.

As mercadorias, diante do vazio que o consumo desvairado proporcionou desde as décadas finais de 1970, permitiu uma reorganização simbólica para que o ato egóico do consumo já contenha o preço do seu oposto – carrega um adicional, uma espécie de caridade. Cabe verificar a lógica circular a que isso acaba levando: o consumo é percebido como o próprio remédio para o consumo – mas no fim, é apenas mais daquilo que causa o próprio problema. Assim, a mercadoria vem marcada com o seu excesso. O imperativo do gozo tenta ser estancado como que por uma sutura artificial – a caridade. E o problema da mercadoria, seu fetichismo fantasmagórico e sua função no circuito da acumulação, passa despercebido e intocável. A saída ideológica para o problema do consumismo é, invariavelmente, o próprio consumismo – mas agora mais excludente, embora cool; agora mais consciente, embora continue profundamente alienado.

E talvez sua representação esteja, exatamente – e ironicamente – na capital da moda. Na praça da estação central de Milão, é possível ver uma grande maçã branca – assim como a da Apple, a representação do imperativo consumista do gozo inconsequente – só que ela está suturada por um complexo sistema de grades e ferros que sustentam um implante, uma prótese. Mas o artista, Michelangelo Pistoletto, fez questão de deixar à mostra que ela não completa perfeitamente a fruta, que o material inserido no corpo é artificial e nunca será completo novamente. E o problema não se soluciona.

Com isso, o capitalismo passa por um reordenamento de sua constelação simbólica ao longo do século XX, que consolidou uma nova forma de subjetivação ligada ao ideal de felicidade. Ela se torna um imperativo para a vida (e para o próprio capitalismo). Assim, a felicidade é lançada como objetivo e passa a ficar evidente em cada espaço – passa a existir uma necessidade de sua afirmação positiva. Todavia, há aí um logro, e a promessa de felicidade a partir dos objetos de consumo (e de se fazer consumível segundo os padrões ditados pelo capitalismo) não se realiza. Assim, a felicidade nunca é completa, mas sempre falida.

A consequência disso é o fato – documentado pela própria Organização Mundial da Saúde – de que a depressão é o resultado paradoxal do imperativo categórico da contemporaneidade de busca da felicidade. Assim, não seria errado afirmar que vivemos numa sociedade da insatisfação administrada, na qual “o empuxo de produção e desempenho vem sendo suplementado por ingestão de substâncias, legais[4] e ilegais, em forma de doping tolerado, senão estimulado em nome de resultados.”[5] Dessa forma, para o neoliberalismo, diante da busca incessante da felicidade administrada nunca realizada, há necessidade de regular também o sofrimento, como experiência do sujeito.

A arte também oferece diagnósticos desse sentido, como o cineasta, escritor e poeta Paolo Pasolini identificou em seus livros Escritos Corsários e Cartas Luteranas. Nos anos 1970, ele já identificava o que ele chamou de “mutação antropológica” da sociedade italiana em direção ao o que ele chamava de um “novo fascismo” imposto pela globalização. O artista acreditava que esse processo estava criando um influxo semiótico por meio da publicidade de massas e da televisão, criando uma figura que chamou de “os sem futuro”: eram jovens com uma acentuada tendência à infelicidade, com pouca raiz cultural ou territorial, e que assimilavam de maneira automatizada, sem distinção de classe, os valores e a estética promovidos pelos novos tempos de consumo.

O que se tem, portanto, como resultado desse modo de socialização autodepreciativo amarrado a uma ideia de felicidade plasmado pelo consumo é o vertiginoso aumento do quadro de patologias psíquicas, marcadamente a ansiedade, a depressão e até o suicídio. Esse cenário parece ser uma constante em todo o mundo e está estreitamente vinculado às condições de hipercompetição e a precarização promovida pelo ethos neoliberal. Os jovens, impelidos a buscar um emprego que não conseguirão encontrar, exceto em condição de precariedade e subsalário, sofrerão consequências emocionais, como ansiedade, depressão e paralisia do desejo, estabelecendo, muitas vezes, com o outro, uma relação de competição, transformando-os em inimigos.

Até mesmo uma organização como a OMS alerta para esse cenário. A depressão é uma das doenças que mais cresce (20% na última década), e estima-se que afete 4,5% da população mundial (o Brasil está acima da média, com quase 6%). Ainda, é uma das doenças que mais mata no mundo. Atrás apenas das patologias cardiovasculares, a depressão alcançou o patamar de maior causa de incapacitação no mundo. O suicídio também cresceu, em especial entre os jovens de 15 e 29 anos (10% na última década) e se tornou a principal causa de morte desta faixa etária. Para entender o cenário de epidemia dessas doenças mentais, deve-se levar em conta a forma de sociabilidade que se construiu diante do movimento do capitalismo tardio.

E essa situação só parece aumentar diante da crise estrutural do capital. Frente aos limites de sobreacumulação, a cartilha neoliberal é imprimida com ainda mais força sobre as populações, como no golpe judiciário-parlamentar vivido no Brasil e voltado a passar reformas para atender interesses dos capitalistas em busca de oportunidades de investimentos mais vantajosas que, necessariamente, significam nas entrelinhas retirada de direitos. Por exemplo, a reforma trabalhista que o Brasil se orgulha em apresentar como solução para a crise, inspirada naquela realizada na Espanha, não leva em conta toda a história – ou, perversamente, a esconde. O resultado da reforma na Espanha foi o aumento do desemprego entre os jovens (chegando a quase 60% do grupo etário) e bateu outro recorde – por três anos consecutivos: o do índice de suicídio.

Este é o retrato do medonho capitalismo tardio contemporâneo que o Brasil pretende copiar. No nível do discurso, é colocada a dimensão da felicidade possível de ser acessada pelo consumo. Ainda que essa felicidade seja fadada ao fracasso, marcada por um imperativo de um ente externo e abstrato, a crise do capital obriga o desmantelamento até do mínimo de consumo, tendo como único resultado possível o aumento, ainda mais vertiginoso, do alcance pandêmico das normalopatias neoliberais.

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[1] Para mais, ver o livro de Dardot e Laval A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Boitempo, 2016).

[2] Argumento desenvolvido por Foucault em O nascimento da Biopolítica (Martins Fontes, 2008).

[3] Atualmente, os tradutores da obra de Jacques Lacan têm optado pela palavra supereu em detrimento de superego (termo reservado à obra de Freud). O supereu inclui tanto a voz que proíbe, a voz da lei, reguladora, simbólica, quanto a voz do gozo, real, obscena e feroz, que veicula a lei da pulsão de morte.

[4] Principalmente os psicofármacos, com destaque para os chamados “antidepressivos”.

[5] O neoliberalismo e seus normalopatas, Christian Dunker no Blog da Boitempo, 03 nov 2016 – https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/03/o-neoliberalismo-e-seus-normalopatas/