sábado, 18 de agosto de 2012

Malcolm X – “Eles me chamaram de o negro mais raivoso na América” - Download do filme


Malcolm X expressou a fúria de milhões contra a pobreza, o racismo e a brutalidade policial. Evoluindo de um Nacionalismo Negro para o anticapitalismo e chegando ao socialismo, ele continua como uma inspiração para todos aqueles que desafiam o sistema capitalista, racista e excludente.

“Por que eu sou como sou?”

Malcolm X experimentou o racismo desde seu nascimento. Forçado por supremacistas brancos a mudar de casa, Malcolm ainda era jovem quando estes assassinaram seu pai. As companhias de seguro recusaram-se a pagar “afirmando que meu pai cometeu suicídio... como o meu pai poderia espancar a si mesmo na cabeça e caminhar até o trilho dos bondes para ser atropelado?”. 

Malcolm X freqüentemente era superior em sua classe. Mas o sistema racista o fracassou, levou sua mãe a um colapso nervoso e para o hospital e acabou com sua família. Malcolm desejava ser advogado. O professor de sua escola respondeu: “Um advogado – este não é um objetivo realista para um preto... Por que você não planeja carpintaria?” 

Golpeado pela pobreza, alienado, furioso e sem respostas, Malcolm trabalhou desde em limpeza de sapato e carregamento de bagagens em trem até crimes pequenos, adicção por drogas e a prisão. Enquanto estava preso ele se converteu à Nação do Islã.


“A verdadeira sabedoria do homem negro”

A Nação do Islã foi fundada em 1931, pregando a honra negra e o separatismo – encontrando um solo fértil entre prisioneiros negros crentes. Malcolm X assim descreveu: “Aqui está um homem negro engaiolado atrás das grades, provavelmente por anos, colocado ali pelo homem branco”.

“Usualmente os prisioneiros crentes vêm entre aqueles negros do fundo do poço, os negros que em todas as suas vidas foram chutados, tratados como crianças – negros que nunca conheceram um homem branco que não tirou algo deles ou fez algo a eles... ‘O homem branco é o demônio’ é um eco perfeito da experiência de um crente negro”.

“Eu senti que Alá estaria mais inclinado a ajudar aqueles que ajudam a si mesmos”

Saindo da prisão, Malcolm X dedicou-se a construir a Nação do Islã. Ele rapidamente tornou-se um pastor destacado: fundando templos e o jornal da Nação do Islã; discursando em reuniões; atacando furiosamente a história racista da América; articulando a raiva instintivamente sentida pelos negros oprimidos. A Nação do Islã cresceu para 100.000 seguidores no início dos anos 60.

Movimento de direitos civis

O movimento de massas pelos direitos civis envolveu milhões de negros irados demandando mudanças. Para romper com a segregação, jovens ocuparam bares e organizaram Viagens da Liberdade para forçar um fim à segregação no transporte público. No mundo neocolonial, revoluções derrubaram o comando metropolitano. Eventos revolucionários combinados com a brutalidade policial impulsionaram um movimento de massas.

Os líderes dos direitos civis tentaram limitar o movimento na idéia de influenciar os políticos democratas. Malcolm X, corretamente, atacou isto: “Quem já ouviu falar de revolucionários irados balançando seus pés descalços junto aos seus opressores em piscinas de parques cercada de lírios, com gospels e guitarras e discursos do tipo ‘Eu tenho um sonho’[referência à famosa fala do Martin Luther King em Washington em agosto 1963]? As massas negras na América estavam – e continuam – vivendo um pesadelo”.

Martin Luther King mais tarde moveu-se à esquerda, chamando pela unidade da classe trabalhadora e apoiando greves antes de ser assassinado.

A polícia de Los Angeles atacou um templo da Nação do Islã em 1962, matando um destacado ativista. Malcolm X começou uma campanha de defesa, apoiando reuniões de massas. Ele apoiou o boicote, feito por um sindicato de Nova York, contra uma firma que se recusava a contratar trabalhadores negros.

“As galinhas voltam para casa para empoleirar-se”

Mas isto contradisse os líderes conservadores da Nação do Islã, que não ofereciam uma saída prática para o movimento por direitos civis. Assim, começaram movimentos para minar Malcolm X, sancionados pelo líder da Nação do Islã Elijah Muhammad.

O assassinato do presidente Kennedy em 1963 fez com que os pastores da Nação do Islã fossem imediatamente ordenados a não dizer nada. Malcolm não se silenciou: “... ao meu ver este é um caso em que ‘as galinhas voltaram pra casa para empoleirar-se’ [expressão idiomática usada para afirmar que as conseqüências de fazer algo errado, sempre retornam para quem fez a coisa errada]. Eu disse que o ódio no homem branco não parava com a morte de negros indefesos, mas que o ódio espalhou-se incontrolavelmente, golpeando finalmente o Chefe de Estado desta nação”.

A Nação do Islã moveu-se ligeiramente usando este pretexto. Reunido com Elijah Muhammad, foi dito a Malcolm X: “Terei que silenciar você pelos próximos noventa dias – assim os mulçumanos em todo lugar podem ser desassociados deste erro”.

Dentro de dias a suspensão se transformou em conversas de membros mais antigos da Nação do Islã sobre matar Malcolm X. 

"Uma unidade dos trabalhadores entre todos os povos"

Cinqüenta semanas separam a saída de Malcolm X da Nação do Islã e seu assassinado pelo governo dos EUA. Em Meca, durante uma peregrinação e discutindo com líderes de movimentos de independência na África, as idéias de Malcolm mergulharam em uma profunda transformação. Ele encontrou muitos “revolucionários verdadeiros” que não eram negros dedicados a derrubar, usando os meios necessários, o sistema de exploração que existe nesta terra.

“Então eu passei a muita reflexão e reconsideração sobre minha definição de nacionalismo negro. Nós podemos resumir a solução aos problemas que confrontam nosso povo como nacionalismo negro? E, caso tenha percebido, eu não uso esta expressão há meses.”

Malcolm X lançou uma nova organização “Mesquita Mulçumana Inc.” para: “... abraçar toda a fé dos negros e levar à prática o que a Nação do Islã apenas pregou”.

“Este foi um movimento que o povo esperou. Muitas pessoas falaram isso... eles queriam entrar aqui... Mulçumanos escreveram de outras cidades que entrariam em minha organização, seus comentários geralmente eram de que o ‘Islã é muito inativo’... ‘A Nação do Islã está andando muito devagar’”.

Depois de suas viagens internacionais, Malcolm X procurou desenvolver laços entre a “Mesquita Mulçumana Inc” e mulçumanos por todo o mundo. Suas idéias continuavam a mover-se para a unidade da classe trabalhadora e o socialismo.

Do desafio ao racismo com a religião, ao desafio ao capitalismo com a unidade dos oprimidos, Malcolm X afirmou: “Eu estarei com qualquer um, não me importa a sua cor, desde que você queira mudar a condição miserável que existe nesta terra”.

Isto representou uma ameaça real. Dentro de semanas Malcolm foi morto, assassinado pelo estado, com o apoio da Nação do Islã.

“O sistema não pode produzir liberdade para os afro-americanos. É impossível para este sistema, este sistema econômico, este sistema político, este sistema social, o próprio sistema”.


As idéias de Malcolm X foram distorcidas. Ele foi falsamente acusado de ser um “negro racista”. A Nação do Islã clama que ele pertence a ela. Porém, pouco antes de Malcolm ser morto, o líder corrente da Nação do Islã, Farrakhan, afirmou “um homem como este merece somente a morte”.

Alguns enxergam Malcolm como um pregador mulçumano. Ele preencheu sua fé com a luta social por libertação – alcançando, primeiramente, todos os negros e, então, os trabalhadores brancos, pela unidade contra o racismo e a pobreza.

Quatro décadas depois toda uma indústria de relações raciais existe. O racismo mais ofuscante foi jogado para debaixo do tapete. Mas a polícia é institucionalmente racista. A perseguição e a pobreza continuam. O Novo Trabalhismo e os democratas dos Estados Unidos não tem nada a oferecer. Tal como Malcolm disse, “com estas escolhas, eu sinto que os negros americanos só podem optar por serem devorados pela raposa ‘liberal’ ou o lobo ‘conservador’ – porque ambos querem devorá-lo”.

O assassinato de Malcolm enfureceu uma geração e estimulou-a para levantar-se e lutar. Um milhão de negros consideraram a si mesmos revolucionários. O Partido Pantera Negra, organizando a defesa comunitária contra racistas e a polícia, chegou a algumas conclusões socialistas.

O líder pantera Bobby Seale sumarizou isto: “Nós não lutamos contra o racismo com racismo. Nós lutamos contra o racismo com solidariedade. Nós não lutamos contra o capitalismo explorador com o capitalismo negro. Nós lutamos contra o capitalismo com o socialismo. Nós lutamos contra o imperialismo com o internacionalismo proletário”.

O Partido Socialista (seção do CIO na Inglaterra) apóia-se nas melhores tradições da luta de massas e autodefesa, pela unidade da classe trabalhadora de todas as raças, religiões e países.

Traduzido por Fernando Lacerda de artigo escrito em 28 de fevereiro disponibilizado no sítio www.socialistworld.net 

Download do Filme Legendado via Torrent: Malcolm X

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Cotas em universidades públicas democratizam a educação



Está para entrar em vigor uma lei que reserva metade das vagas nas universidades brasileiras para estudantes que cursaram primário e secundário em escolas estatais, em uma tentativa de democratizar o ensino, que exigirá reformas estruturais. Pablo Gentili, diretor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) no Brasil, está convencido de que a lei é "um avanço na democratização da educação e, em um sentido mais amplo, da sociedade brasileira em seu conjunto".

A lei de cotas sociais e raciais foi aprovada no dia 6 pelo Senado, após 13 anos de discussão legislativa, com apenas um voto contra, e agora espera a promulgação pela presidente Dilma Rousseff. "As cotas permitirão abrir a oportunidade de acesso ao ensino superior público, à educação de melhor qualidade, para aqueles setores da sociedade historicamente excluídos dela", disse à IPS Gentili, autor do ensaio Pedagogia da Igualdade, editado em 2011 pela Século XXI, em Buenos Aires.

O especialista se baseia em estatísticas que mostram o desigual acesso dos setores mais pobres às universidades públicas federais, cobiçadas, ironicamente, por sua qualidade, pelos que tiveram melhores oportunidades de estudo nos níveis básico e intermediário. No Brasil metade da população se declara negra ou mestiça, mas apenas 10% deste grupo chega à universidade. Trata-se do setor com mais pobres.

"As oportunidades educacionais se distribuem de forma desigual porque as oportunidades sociais, as condições de vida e os direitos também são desigualmente apropriados e aproveitados em uma das sociedades mais injustas do planeta", apontou Gentili. "Por trás de um 'mito meritocrático' se esconde a realidade de um país onde os mais pobres veem cotidianamente frustradas suas expectativas e demandas de mobilidade e progresso social. Os pobres nunca chegam aos espaços que desejam, que acabam monopolizados pelos setores mais ricos e privilegiados", acrescentou o especialista.

Este processo de elitização da universidade pública também é percebido por Marcelo Paixão, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especializado em desigualdades raciais na educação, declarou à IPS que "nunca poderia ser contra" o conteúdo da nova lei. Contudo, não ignora que representará "um desafio" que obriga as universidades públicas a se preparar. A lei estabelece prazo de quatro anos para que as 59 universidades federais se adequem às novas regras. Mas, em apenas um ano deverão garantir pelo menos 25% das vagas para os alunos procedentes de escolas públicas.

"A universidade brasileira, principalmente a pública, não está preparada para receber esses alunos com maior diversificação socioeconômica e racial", afirmou Paixão. "Uma coisa é dar aula para filhos da elite que têm maior facilidade para abordar temas que exigem acima de tudo um capital familiar e cultural. Outra coisa é receber estudantes com baixo capital cultural e familiar e precisar investir neles para que alcancem o mesmo rendimento dos demais", observou.

A lei estabelece que metade das vagas reservadas para estudantes do sistema público sejam para os que têm renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo. Também determina que entre essas vagas sejam priorizados os alunos que se autodeclaram negros, mulatos ou indígenas, segundo a proporção populacional em cada um dos 26 Estados do país. O sistema de cotas raciais existe no Brasil há dez anos, quando foi sancionada a primeira legislação desse tipo no Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, mais de 80 universidades têm alguma medida de ação afirmativa e, em particular, mais da metade dos centros superiores federais já contam com algum sistema de promoção social ou racial em seus processos de acesso, resumiu Gentili.

"As cotas raciais e sociais são simplesmente uma medida de emergência que procura corrigir uma injustiça", destacou o diretor da Flacso no Brasil. Após uma década em vigor, a lei estabelece sua própria revisão. A Federação Nacional de Escolas Particulares anunciou que questionará a lei na justiça porque considera discriminatória, com o argumento de que estabelece oportunidades diferentes de acesso à universidade. "Hoje a escola privada atende os níveis socioeconômicos A, B, C e D, inclusive em comunidades de baixa renda", disse à IPS sua presidente Amábile Pacios. "Uma criança não pode ser penalizada por isso", lamentou.

Pacios recordou a dificuldade dos empregadores brasileiros para contratar candidatos "que apenas mal dominam as quatro operações básicas ou não conseguem um desempenho satisfatório em um ditado de dez palavras", e acrescentou que "um país que precisa de um sistema de cotas assume que a escola pública é de má qualidade", e prevê que, ao contrário do esperado, a nova lei "fortalecerá a universidade privada porque começará a receber os melhores alunos", excluídos pelas cotas sociais das estatais.

Gentili rechaça esse argumento e outros "preconceitos antidemocráticos", como afirmar que os pobres deterioram a qualidade da universidade quando entram nela. "Os pobres sabem que a universidade é um bem valioso. Justamente por este motivo, quando chegam a ela se esforçam enormemente, fazendo com que anos de um fraco ensino secundário limitem seus efeitos de exclusão", enfatizou. Segundo este especialista, após uma década de políticas afirmativas, nenhuma das universidades que as incorporaram sofreu baixa em seus indicadores de qualidade de ensino. Pelo contrário, destacou, "melhoraram quase todos seus indicadores de qualidade".

Gentili não acredita que seja preciso esperar "a escola básica melhorar para que a universidade pública seja mais democrática". A seu ver, é preciso "assumir os dois desafios de forma simultânea e articulada". É isso também o que espera Paixão, que a nova lei contribua para um "projeto de democracia, distribuição de renda e ampliação das oportunidades de mobilidade social". E ponderou: "agora que a universidade pública terá que receber alunos da escola pública, quem sabe o Brasil muda sua histórica postura de tratá-la com negligência".

Fonte: Diário da Liberdade

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Lula, Dilma e um projeto que pode se esgotar


Programa neodesenvolvimentista dos dois últimos presidentes mudou a face do país, mas chegou a encruzilhada: ou se aprofunda, ou estagnará
Por Felipe Amin Filomeno | Imagem: Yayoi Kusama
Hoje vivemos um impasse (com risco de esgotamento) na estratégia de desenvolvimento nacional iniciada por Lula e continuada por Dilma. Neste ensaio, faço uma análise do neodesenvolvimentismo brasileiro, combinando minha perspectiva com críticas oferecidas pela intelligentsia que se expressa na nova mídia (Outras Palavras,Carta CapitalCarta Maior, etc.). Sem deixar de reconhecer os avanços proporcionados pelo neodesenvolvimentismo Lula-Dilmista, destaco como seus aspectos problemáticos: (1) os benefícios extraordinários ao capital transnacional, (2) os benefícios extraordinários ao capital primário-exportador, (3) o “industrialismo subdesenvolvido”, (4) a dispersão e parcialidade das políticas públicas, (5) a marginalidade da desconcentração de riqueza na agenda política, e (6) a baixa sustentabilidade ambiental.
Nos anos 1930, a Grande Depressão criou condições no Brasil (e em outros países latino-americanos) para novas estratégias de desenvolvimento, baseadas na industrialização por substituição de importações, na expansão do mercado doméstico e na intervenção do Estado na economia. De 1930 até a meados da década de 1970, a economia no Brasil cresceu sob o que ficou conhecido como “nacional-desenvolvimentismo”. Seus atores principais foram o Estado, o capital transnacional (principalmente estadunidense), a burguesia industrial e o proletariado urbano crescente. Sob Vargas e Jango, o desenvolvimentismo brasileiro contemplou uma agenda de transformação social mais ampla, incluindo a expansão dos direitos trabalhistas e planos de distribuição de riqueza. Sob JK e, principalmente, nos governo militares, o desenvolvimentismo assumiu uma forma mais conservadora, em que a transformação da economia não era acompanhada de desconcentração da riqueza e democratização do poder político. Ao final dos anos 1970, o Brasil era um país industrializado, mas sua população ainda não desfrutava padrões de vida equivalentes aos dos países centrais. A nação estava sob uma ditadura e tinha (como ainda tem) uma das mais altas concentrações de riqueza no mundo. Eram os limites do desenvolvimentismo, os problemas que este não foi capaz de solucionar.
Em seguida, nas décadas de 1980 e 1990, houve um refluxo na posição do Brasil e da América Latina no mundo. Relativamente aos países centrais e a alguns países asiáticos, a região se subdesenvolveu. As políticas neoliberais e reformas de mercado implementadas sob a égide das elites financeiras, principalmente nos anos 1990, trouxeram estabilidade monetária, mas sua performance na promoção do crescimento econômico e na redução da desigualdade social foi ruim. Em decorrência, na passagem para o século XXI, as nações latino-americanas – então sob regimes democráticos – elegeram governantes ligados a partidos de esquerda com programas anti-neoliberais. Nos países andinos, isto assumiu a forma de “socialismo bolivariano”, enquanto em países como o Brasil, o Chile, o Uruguai e a Argentina, formas mais ou menos radicais de “desenvolvimentismo” reapareceram. Como elementos comuns, tais projetos tem a ampliação das políticas sociais e de distribuição de renda, a maior abertura do Estado aos movimentos populares, a maior assertividade na política externa frente às grandes potências, e o estímulo ao crescimento econômico. No Brasil, uma versão de “social democracia globalizada” combinou crescimento econômico com inclusão social.
A crise mundial inaugurada em 2007/8 intensificou esse movimento ao revelar os problemas causados pela desregulamentação excessiva dos mercados financeiros, a promiscuidade entre o Estado e as elites empresariais, e a inviabilidade política e econômica da austeridade econômica como solução única. Países como o Brasil, em posse de excedentes financeiros (graças à acumulação de reservas internacionais), tiveram condições e oportunidade para aplicar políticas anti-cíclicas, as quais implicaram maior intervenção do Estado na economia. Com o agravamento do contexto mundial (crise na Europa e desaceleração econômica na China), o governo brasileiro – já sob a presidência de Dilma Rousseff – adotou uma série de medidas tributárias, monetárias e cambiais para estimular a atividade econômica no país e, principalmente, proteger a indústria no Brasil da competição e recessão globais. A expansão do programa de renda mínima (Brasil Sem Miséria), a promoção da competição no setor bancário (pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica) e a redução dos juros são parte importante e positiva deste programa.
Porém, assim como aconteceu com o nacional-desenvolvimentismo nos anos 1970, o neodesenvolvimentismo brasileiro, em sua variante Lula-Dilmista, começa a mostrar sinais de esgotamento, circunscrito que está em certas configurações locais e globais de poder. Abaixo, discuto aqueles que considero os principais problemas a serem atacados:
(1) Benefícios extraordinários ao capital transnacional: Quando o BNDES sinalizou apoio a uma proposta de fusão entre o Pão de Açúcar e o Carrefour, em meados de 2011, critiquei, em minha coluna no Outras Palavras (01/08/2011), a tendência do Estado brasileiro de favorecer a constituição e reprodução de oligopólios, especialmente quando isto resulta em lucros extraordinários em detrimento do consumo das famílias brasileiras. No mesmo mês, Vladimir Safatle, na Carta Capital(25/08/2011), apontou a emergência de um “capitalismo monopolista de Estado” no Brasil. Na mesma direção, Luís Nassif tem criticado o BNDES por apoiar a oligopolização em indústrias consolidadas ao invés de “estimular o mercado de capital ajudando a reduzir o risco de investimentos em novas empresas” (Carta Capital, 09/07/2012). Anteriormente, Nassif já havia criticado o governo por conceder auxílio “a empresas estrangeiras em dificuldades, à custa do consumidor brasileiro”, tornando o Brasil um “hospital de multinacionais cambaleantes” (Carta Capital, 21/11/2011).
Isto é particularmente visível na indústria automobilística, conforme apontado por Valter Pomar. Dominada pelo capital transnacional, é beneficiária de reduções no IPI e de tarifas alfandegárias contra importações chinesas, mas não reduz seus lucros (posto que os preços diminuem pouco, especialmente se comparados aos praticados no México e na Argentina) e ainda reluta em garantir empregos no país (veja o caso recente da GM). Como mostrou Gabriel Bonis, em reportagem para a Carta Capital(17/07/2012), “desde 2008 [o Estado] concedeu ao setor medidas para renúncia fiscal de cerca de 11,3 bilhões de reais. As empresas parecem, porém, ter aproveitado os incentivos para ajudar as matrizes em dificuldades. [...] no mesmo período, [suas] remessas ao exterior somaram 38,1 bilhões de reais [...]”. O neodesenvolvimentismo brasileiro precisa ser mais seletivo; suas políticas precisam favorecer a geração e retenção de excedente econômico em mãos brasileiras, principalmente as dos trabalhadores e populações carentes.
(2) Benefícios extraordinários ao capital primário-exportador: Na última década, países em desenvolvimento ricos em recursos naturais passaram a desfrutar de oportunidade historicamente extraordinária: um aumento no preço relativo dascommodities primárias comparativamente a manufaturas industriais. Fenômeno conhecido como commodity boom, tem sido impulsionado principalmente pela demanda chinesa por produtos primários. No Brasil, soja e minério de ferro despontaram como indústrias beneficiadas por esta conjuntura. O lado ruim disto é o risco de uma resource curse (literalmente, “a maldição dos recursos naturais”). Países que se especializam na exportação de recursos naturais apreciados tendem a ficar com câmbio sobrevalorizado (o que prejudica sua industrialização), ficam vulneráveis a oscilações no mercado mundial, à concentração e à má gestão de receitas extraordinárias de exportação. Ulteriormente, isto poder causar instabilidade política. No Brasil, o capital primário-exportador é beneficiário da Lei Kandir (que isenta produtos primários e semi-elaborados de ICMS), é intensivo em capital (gerando, por isso, poucos empregos), e tem fortes externalidades ambientais negativas. Além disso, no caso da soja, por exemplo, a moagem e exportação estão altamente concentradas nas mãos de empresas transnacionais estrangeiras. Por isto, em artigo publicado noOutras Palavras (13/04/2011), defendi “estratégias intermediárias de regulação de mercados [de exportação de commodities] [...para a...] garantia da socialização e da sustentabilidade dos benefícios das riquezas naturais”. Há tempo, também o Professor Bresser Pereira tem defendido medidas para evitar a resource curse, como a taxação de exportações primárias, que ajudaria a socializar as rendas extraordinárias destes setores.
(3) Industrialismo subdesenvolvido: No círculo de policy-makers e analistas do desenvolvimento brasileiro é majoritária a preocupação com a “desindustrialização” do Brasil. Embora esta seja uma preocupação com razões legítimas (como a manutenção dos empregos gerados pela indústria), ela precisa ser qualificada. Em artigo publicado na Carta Capital (03/01/2012), critiquei a intenção do governo brasileiro de mudar “a tributação da importação de produtos do vestuário, com a finalidade de proteger a indústria têxtil nacional da competição estrangeira (chinesa, especialmente)”. Medidas protecionistas são justificáveis para indústrias infantes (especialmente as em fronteira tecnológica), que, por seu grau incipiente de desenvolvimento, precisam ser protegidas da competição estrangeira para prosperarem. Porém, a produção de manufaturas leves (vestuário, calçados, brinquedos, móveis) não é indústria de fronteira tecnológica, é indústria tradicional já difundida para vários países em desenvolvimento, com competição acirrada e, portanto, com rentabilidade reduzida.
Uma vez que países altamente populosos com renda per capita consideravelmente mais baixa que a brasileira (China, Índia) tenham ingressado como competidores globais nestes setores, sua rentabilidade, no Brasil, nunca mais será o que foi até 1990. Pode-se reduzir ainda mais os juros, desvalorizar o câmbio, reduzir os tributos e, ainda assim, a concorrência chinesa, indiana, vietnamita será acirrada. O empresário que produz têxteis, confecções, calçados simples, etc. não pode esperar mais que sua empresa tenha a mesma rentabilidade que tinha há vinte anos atrás. Proteger tais indústrias da concorrência estrangeira sem estímulos à conversão do capital nelas aplicado para setores mais intensivos em inovação e diferenciação é uma forma de industrialização subdesenvolvida. O BNDES, por exemplo, poderia desconcentrar sua carteira de investimentos, atualmente muito voltada a grandes empresas (muitas de capital estrangeiro), para apoiar empreendimentos em indústrias nascentes intensivas em conhecimento e, portanto, mais arriscados do ponto de vista do empresário individual.
(4) Dispersão e parcialidade das políticas públicas: O neoliberalismo oferecia receitas simples para os problemas econômicos, fórmulas do tipo one size fits all (“um mesmo tamanho serve para todos”): liberalize os mercados, reduza a intervenção estatal, austeridade fiscal e monetária, e os problemas serão resolvidos. O neodesenvolvimentismo é mais complexo e implica um pragmatismo oposto à ortodoxia econômica. Num cenário de crise mundial, as política públicas adquirem mais ainda um caráter de “experimentação”. O problema, conforme afirmou Gilberto Maringoni na Carta Maior (07/04/2012), é que políticas como a desoneração tributária e medidas tópicas para desvalorizar o câmbio podem acabar sendo “enxugar gelo”, sem tocarem em questões mais fundamentais como os juros altos ou a oligopolização (sob liderança estrangeira) da economia. Ademais, quando políticas são formuladas ad hoce privilegiam setores específicos, seus níveis de transparência, democratização e sistematização caem.
(5) Marginalidade da desconcentração de riqueza na agenda política: No último decênio, o Brasil e a América Latina vivenciaram uma redução na desigualdade de renda. Uma das razões foi a expansão dos programas de renda mínima (como o Bolsa Família) na região. Isto é feito extraordinário, mas estes países ainda ostentam os índices mais cruéis de desigualdade social no mundo. Ademais, a emergência de uma “nova classe média” no Brasil precisa ser relativizada. Conforme mostrou Márcio Pochman no livro Nova Classe Média? (Boitempo, 2012), “O resgate da condição de pobreza e o aumento do padrão de consumo [...] não tiram a maioria da população emergente da classe trabalhadora. [...] é preciso a politização classista do fenômeno para aprofundar a transformação da estrutura social, sem a qual a massa popular em emergência ganha um caráter predominantemente mercadológico, individualista e conformista [...]”. De maneira perspicaz, Vladimir Safatle afirmou, na Carta Capital e em outros veículos, que Lula percebeu que “era possível desconcentrar renda e criar um processo de ascensão social sem acirrar de maneira radical conflitos de classe. O tempo mostrou que ele não estava errado. Mas o preço foi alto: imobilizou pautas de transformação social”.
De fato, relativamente ao gasto do Estado com juros da dívida pública, o orçamento do Bolsa Família é pequeno. Conforme apontei em artigo no Outras Palavras (27/06/2011), hoje, o Brasil Sem Miséria esbarra em uma política de juros altos (ainda que em redução), num regime tributário regressivo (que onera proporcionalmente mais as classes baixas), e em cartéis que exploram o consumidor brasileiro. É preciso solucionar esta contradição trazendo a desconcentração de riqueza para o centro da agenda política, como prioridade inclusive em relação ao crescimento econômico.
(6) Baixa sustentabilidade ambiental: Delfim Netto, conforme citado por Luís Nassif, afirmou que a economia no Brasil hoje não precisa crescer às taxas altas que caracterizaram as três décadas anteriores à crise dos anos 1970 (e que vigoram hoje na China e na Índia). Isso porque, naquela época, o crescimento populacional era muito maior (como são maiores também as populações daqueles países asiáticos). Vindo de um dos artífices do “milagre econômico” brasileiro ocorrido sob o regime militar, esta observação é importante e vai ao encontro da crítica que apresentei na Carta Capital(04/12/2011) à obsessão com o crescimento econômico. Numa forma de “keynesianismo vulgar”, ela coloca a desconcentração de riqueza (entre classes e países) e a sustentabilidade ambiental em segundo plano.
No pós-neoliberalismo latino-americano, a esquerda se dividiu em duas matizes contraditórias. Segundo Immanuel Wallerstein, há uma esquerda do Buen Vivir e uma esquerda neodesenvolvimentista. A primeira, concentrada nos Andes, defende uma sociedade alternativa e sustentável, baseada no equilíbrio entre economia e natureza. A segunda, que predomina no Brasil, tem o crescimento econômico como objetivo primordial. Mesmo nos Andes, há conflitos intensos entre as duas vertentes (especialmente na indústria extrativista). Ficar estimulando o investimento das empresas e o consumo das famílias sem assegurar sua sustentabilidade ambiental e distribuição justa de benefícios é dar um empurrão num carro momentaneamente afogado sem questionar se esse veículo consome gasolina demais ou porque nele há tanta gente sentada apertada no banco de trás e só duas pessoas confortavelmente sentadas na frente. A crise é o momento ideal para se fazer tais questionamentos.
Finalmente, é preciso pensar em que atores políticos estarão mais propensos e serão mais capazes para responder positivamente a tais desafios. Não é difícil concluir que não se trata dos partidos conservadores (PSDB, DEM, PMDB, PSD), pois são herdeiros da tradição neoliberal e históricos instrumentos políticos do status quo. O PT, por outro lado, precisaria reforçar seus laços com os movimentos sociais (trabalhista, ambientalista, etc.), superando o “presidencialismo de coalizão” (mencionado por Vladimir Safatle) e sua total incorporação ao establishment brasileiro, os quais reduziriam o PT a mais uma força reprodutora do subdesenvolvimento nacional.
Felipe Amin Filomeno é Economista e Doutor em Sociologia pela Johns Hopkins University. 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Em nome do futuro, Rio está destruindo o passado


Por Theresa Williamson e Maurício Hora


Os Jogos Olímpicos de Londres terminaram no domingo, mas no Rio de Janeiro a batalha pelos próximos Jogos acaba de começar; as manifestações contra despejos ilegais de alguns dos moradores mais pobres da cidade estão se espalhando. De fato, as Olimpíadas do Rio parecem dispostas a aumentar a desigualdade em uma cidade já conhecida por essa característica. 

Em julho, a UNESCO atribuiu a uma parte substancial da cidade do Rio de Janeiro o status de Patrimônio Mundial da Humanidade. É uma área que inclui algumas de suas favelas e morros em que vivem mais de 1,4 milhão dos seus seis milhões de habitantes. Nenhuma favela pode reivindicar maior importância histórica do que a primeira a surgir no Rio, a do Morro da Providência. No entanto, os projetos de construção olímpica estão ameaçando precisamente o futuro dessa área. 

Providência: 115 Anos de Luta

A favela Providência começou a se formar em 1897, quando veteranos da sangrenta Guerra de Canudos, no nordeste do Brasil, receberam a promessa de concessão de terras no Rio de Janeiro, que na época era capital federal. Ao chegarem, descobriram que não havia terras disponíveis. Depois de acamparem em frente ao Ministério da Guerra, os soldados foram removidos para um morro das proximidades, que pertencia a um coronel, mas não receberam os títulos de propriedade da terra. Originalmente batizada de “Morro da Favela”, nome da planta espinhosa típica das colinas de Canudos, onde haviam passado inúmeras noites, a Providência cresceu ao longo do começo do século 20, à medida que escravos libertos se juntavam aos antigos combatentes. Grupos de novos migrantes europeus também se estabeleceram por lá; esse era o único modo acessível de viver perto dos empregos no centro da cidade e no porto. 

Com vista para o local por onde centenas de milhares de escravos africanos entraram no Brasil pela primeira vez, a Providência é parte de um dos sítios culturais mais importantes da história afro-brasileira, berço da criação primeiros sambas comerciais, onde floresceram tradições afro-brasileiras como a capoeira e o candomblé e onde se fundou o Quilombo Pedra do Sal. Hoje, 60% dos moradores da área continuam sendo afro-brasileiros. 

Mais de um século após o surgimento, a favela da Providência ainda carrega a marca cultural e física dos seus primeiros habitantes. Mas agora está ameaçada de destruição em nome das melhorias olímpicas: a ideia é demolir quase um terço da comunidade, uma decisão que inevitavelmente desestabilizará o que restar da favela. 

Até meados de 2013, a Providência terá recebido 131 milhões de reais (US $65 milhões) em investimentos do plano de revitalização da zona portuária carioca, capitaneado pelo setor privado, iniciativa que engloba um teleférico, um bonde funicular e ruas mais amplas. As intervenções municipais anteriores, realizadas com o intuito de melhorar a comunidade, sempre reconheceram sua importância histórica, mas os projetos atuais não têm essa preocupação. 

Embora a prefeitura alegue que esses investimentos beneficiarão aos moradores da região, um terço da comunidade já foi marcada para remoção e as únicas “reuniões públicas” organizadas visavam apenas informar aos moradores qual seria seu destino. Durante o dia, as iniciais da Secretaria Municipal de Habitação e um número são pintados nas paredes das casas com tinta-spray. Moradores voltam para casa e descobrem que suas casas serão demolidas, mas não recebem nenhuma orientação sobre o que vai acontecer com eles e nem quando será. 

Um passeio rápido pela comunidade revela a assustadora situação de insegurança em que os habitantes estão vivendo: no topo da colina, aproximadamente 70% das casas estão marcadas para despejo: uma área que a princípio deverá ser favorecida pelos investimentos que estão sendo realizados em transporte. Mas o teleférico de luxo vai transportar entre mil e três mil pessoas por hora durante os Jogos Olímpicos. Portanto, não serão os moradores os beneficiados, e sim os investidores


Os habitantes da Providência estão temerosos. Apenas 36% deles possuem documentos comprovando seus direitos de propriedade, em comparação com 70 a 95% na mesma situação em outras favelas. Mais do que em outras comunidades pobres, esses moradores estão muito desinformados sobre os seus direitos e apavorados diante da possibilidade de perderem suas casas. Some-se a isso a abordagem da prefeitura de “dividir para conquistar”, — os residentes são confrontados individualmente para assinar o reassentamento e não se permitem negociações comunitárias — e a resistência é silenciada de modo efetivo. 

A pressão exercida pelos grupos de direitos humanos e pela mídia internacional tem ajudado. Mas os despejos brutais continuam e surgem formas de remoção novas, mais sutis. Como parte do plano da prefeitura para a revitalização do porto, as autoridades declaram que os “reassentamentos” são do interesse dos próprios moradores, porque vivem em “áreas de risco” onde pode haver deslizamentos de terra, e porque supostamente é necessário que haja uma “desdensificação” para melhorar a qualidade de vida. 

Porém, existem poucas evidências de risco de deslizamentos ou de superlotação perigosa; 98% das casas da Providência são feitas de concreto e tijolos robustos, e 90% delas têm mais de três cômodos. Além disso, um relatório importante produzido por engenheiros locais demonstrou que os fatores de risco anunciados pela prefeitura haviam sido inadequadamente estudados e são imprecisos. 

Se o Rio conseguir desfigurar e desmantelar sua favela mais histórica, abrirá o caminho para novas destruições em centenas de outras favelas da cidade. O impacto econômico, social e psicológico dos despejos é calamitoso: famílias removidas para unidades isoladas perdem o acesso aos significativos benefícios econômicos e sociais da cooperação comunitária, e também perdem a proximidade do trabalho e das redes de contato, sem mencionar os investimentos feitos por várias gerações familiares em suas casas. 

O Rio de Janeiro está se tornando um playground para ricos. E a desigualdade gera instabilidade. Seria muito mais eficaz economicamente investir em melhorias urbanas, definidas com a ajuda das comunidades dentro um processo democrático participativo. Em última instância, essa estratégia poderia fortalecer a economia e desenvolver a infraestrutura da cidade; e ao mesmo tempo, reduzir desigualdades e fortalecer a população afro-brasileira, que ainda hoje é marginalizada. 

Theresa Williamson, fundou a Comunidades Catalisadoras, um grupo que trabalha em defesa das favelas e publica RioOnWatch. Maurício Hora, fotógrafo, dirige o programa Favelarte na favela Providência. Esta reportagem foi traduzida do inglês por Mónica Baña-Alvarez.



Fonte: NY Times

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Entrevista de Fidel Castro ao Roda Viva em 1990


Para comemorar os 86 anos do Comandante Fidel Castro, publico a sua entrevista dada ao Programa Roda Viva da TV Cultura em 1990.

Jorge Escosteguy: Boa noite. Estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. Hoje é um Roda Viva especial, gravado fora dos estúdios. Portanto, os telespectadores não poderão fazer perguntas por telefone. É um Roda Viva especial, porque trazemos um convidado especial e, de certa forma, difícil de ser entrevistado até pelas preocupações com a segurança da sua equipe. Nós vamos entrevistar hoje, o presidente de Cuba, Fidel Castro.

Para entrevistar Fidel Castro esta noite no Roda Viva nós convidamos os seguintes jornalistas: Márcio Chaer, doJornal do Brasil; Clóvis Rossi, da Folha de S. Paulo; José Antônio Severo, da Gazeta Mercantil; e Alceu Náder, doJornal da Tarde. Esta é a segunda visita que Fidel Castro faz ao país. Há trinta anos ele governa Cuba e tem se tornado, ao longo dos anos, uma espécie de inspiração ou mito para os movimentos de esquerda na América Latina, junto com Ernesto Che Guevara. Nesses últimos meses, de Perestroika no resto do mundo, de certa forma Fidel Castro tem sido colocado no meio de uma polêmica: sobre que mudanças poderão ocorrer em Cuba diante dos reflexos da Perestroika, principalmente no leste Europeu.

Boa noite, presidente. Eu gostaria primeiro de lhe fazer uma pergunta específica sobre a questão de segurança. O senhor chegou ao Brasil cercado de certa forma por um aparato de segurança muito grande. O senhor tem medo de algum atentado? Medo de que alguém atente contra a sua vida?

Fidel Castro: Eu não tenho temor de um atentado. Mas pode ser que os responsáveis por minha segurança tenham medo. Falou-se também de algumas armas que teriam vindo de lá e que foram devolvidas. O que eu sei... Eu não me ocupo disso. Sou mesmo quem protesta contra isso... A política que se adotou é que cada uma das delegações poderia tomar suas medidas de segurança, além das medidas de segurança que tomassem as autoridades do governo. Comigo há alguns antecedentes. Durante muito tempo a CIA e o governo dos Estados Unidos tentaram me eliminar fisicamente. Isso foi reconhecido no próprio Senado dos Estados Unidos. E eles não abandonaram esta prática. Assim, cada vez que eu me movimento, os setores contra-revolucionários, os inimigos do país, geralmente fazem planos. Sempre têm a esperança de caçar Castro. Em um lugar ou em outro. E isso, naturalmente, desperta inquietações nos companheiros em nosso país quanto à segurança; e tratam de tomar o máximo possível de medidas de segurança. Agora eu, como disse recentemente, confio nas autoridades do país. Quem pode dar verdadeiras medidas de segurança são as autoridades do país. Foi assim na minha viagem ao Equador, ao México, à Venezuela e ao Brasil. Se dependesse de mim, eu não necessitaria de qualquer tipo de segurança. Mas os companheiros acham que devem ajudar no equipamento, numa série de coisas. Mas minha segurança aqui no Brasil quem garante são as autoridades do Brasil. Pude observar muito profissionalismo, muita organização, eficiência no pessoal da segurança.

Jorge Escosteguy: O senhor tem acompanhado, de certa forma, esses movimentos no Leste Europeu, principalmente na União Soviética, a chamada Perestroika e os movimentos de liberalização em outros países europeus. Que reflexos o senhor acha que esses movimentos terão em Cuba? Há alguma perspectiva de mudanças a nível institucional no seu país?

Fidel Castro:
 Bom, tudo isso é um fenômeno que ganhou destaque recentemente. Eu não tenho certeza de que os que elaboraram as idéias na União Soviética, com objetivo correto de aperfeiçoar o socialismo, o que não pode ser questionado, sabiam que repercussões isso poderia ter na Europa Oriental. Porque realmente o processo que está ocorrendo na Europa Oriental é um processo de desmantelamento do socialismo.

José Antônio Severo:
 O senhor acredita que os países do Leste Europeu entrarão no capitalismo, simplesmente, ou eles manterão muitas das chamadas conquistas do socialismo?

Fidel Castro: Acho que havia erros que deveriam ser corrigidos. Havia coisas que deveriam ser superadas. Mas o fenômeno que realmente está ocorrendo é o desmantelamento do socialismo. Em alguns com maior força que em outros. Em países como a Polônia já se está fazendo um desenvolvimento capitalista. E inclusive orientado por especialistas norte-americanos. Privatizar a indústria, estabelecer uma economia de mercado. E o que é o capitalismo se não a propriedade privada e a economia de mercado? Ou agora se chama de outra maneira?

Clóvis Rossi:
 Os erros que havia nesses países: há também em Cuba esse tipo de erro e quais são?

Fidel Castro: 
Eu creio que em Cuba havia poucos erros como os que existiam nesses países. E vou explicar por que. Nós nunca cometemos muitos dos erros que se cometeram lá na Europa Oriental. Posso dar um exemplo. E sempre diferenciando a União Soviética dos países socialista da Europa. Porque são situações diferentes. Dois papéis diferentes jogados na história. Na URSS, houve uma revolução autêntica. Não foi uma revolução importada de algum lugar. Como na China houve uma revolução autêntica. Como em Cuba houve uma revolução autêntica. E as revoluções autênticas que nascem do povo são diferentes daquelas revoluções que ocorrem por razões conjunturais. E não há dúvidas de que as revoluções socialistas nos países do Leste ocorreram por razões conjunturais, em função do final da II Guerra Mundial. Não esqueçam que mesmo no caso da República Democrática Alemã [Alemanha Oriental], o socialismo se constrói a partir das ruínas do fascismo na parte menos desenvolvida da antiga Alemanha. Mas, na União Soviética, ocorreram problemas como o stalinismo. E esse fenômeno do stalinismo nunca se conheceu em nosso país, nem nada parecido. De abuso de autoridade, de crimes que evidentemente se cometeram na URSS. Fizeram grandes coisas por um lado. Mas, de outro, ocorreram muitos abusos de autoridade, grandes erros nesse terreno que foram reconhecidos. Nós não temos que retificar um problema que não conhecemos, que não sofremos. Quem conhece a verdadeira história de Cuba - não a que escrevem os ianques - sabe como são as coisas em Cuba. Em nosso país se criou um sentimento muito forte contra todo o abuso de autoridade, pois nosso país conheceu isso, conheceu abusos, torturas, crimes. E nós resolvemos defender a Revolução sem abuso do poder, sem cometer violências contra a pessoa humana. Temos leis e tribunais e se aplicam as punições e algumas são duras. Mas nunca saímos da lei. Em nosso país não há um só caso de desaparecido. Em nosso país não há um só caso de assassinato político. Mas posso dizer mais - e digam o que digam mil vezes na propaganda imperialista - em nosso país nunca houve homem torturado. Porque os primeiros a não admitir isso seríamos nós, os revolucionários, os que nos educamos no ódio contra isso. Nosso povo não é um povo capaz de ser cúmplice de fatos dessa natureza. Temos uma folha na história de nosso país que creio que um dia a história vai contar. Creio que não há um país no mundo que seja mais cuidadoso e mais escrupuloso no exercício do poder. Na URSS, se criou o fenômeno do governo unipessoal e se cometeram abusos historicamente comprovados. E fenômeno como o stalinismo, nós não conhecemos em Cuba.

Jorge Escosteguy: 
O senhor mencionou o poder unipessoal. No caso de Cuba, a sua presença durante três décadas não seria um exemplo de unipersonalismo?

Fidel Castro: 
Poderia parecer, porque simplesmente me coube jogar um papel. Então, tudo se atribui a Castro. Dizem: a revolução de Castro, o governo de Castro. Castro decidiu isso. Eu tinha um poder unipessoal como o comandante-em-chefe das forças revolucionárias quando estávamos na luta. E ainda assim tínhamos uma direção coletiva. Desde que se organizou nosso movimento, desde que éramos dez ou doze, já tínhamos uma direção coletiva de vários membros da direção do movimento. E três de nós éramos os executivos. Os que tinham o segredo das coisas fundamentais. Depois vem a guerra, eu era chefe da expedição. Tinha a responsabilidade de tomar as decisões, como em qualquer ação desta natureza. Depois, na "Sierra Maestra", era chefe das unidades de combate. Mas ainda assim nosso movimento tinha uma direção. E as questões políticas fundamentais eram analisadas e discutidas. E mais de uma vez nos enganamos. E mais de uma vez eu tinha um critério e a direção tinha outro. E cumpríamos os critérios da direção. Quando triunfa a Revolução em Cuba, eu sou comandante-em-chefe de um exército vitorioso que foi dirigido na guerra, as responsabilidade das operações na guerra eram minhas. Mesmo assim o primeiro que fizemos tão logo termina a guerra, foi construir uma direção coletiva. E depois, quando unimos todas as organizações revolucionárias, após um longo processo, foi constituída uma direção da Revolução. E desde então tem sido a prática em nosso país, quando se fundou o partido, o Comitê Central, direção coletiva do partido, a direção coletiva do Estado. Não temos um governo presidencialista. Nós temos uma direção coletiva. Eu sou o presidente do Conselho de Estado. Não vou negar que tenho autoridade, que tenho influência. Bom, porque todos que fundaram a Revolução têm autoridade e têm influência. Se não cometeram grandes erros, se conseguem contar com a confiança dos outros. Nesse sentido tenho influência grande. Mas as decisões estratégicas fundamentais em nosso país são tomadas coletivamente. O presidente dos Estados Unidos tem muito mais atribuições do que eu. Incomparavelmente mais atribuições.  Anda inclusive com uma maletinha onde estão as chaves atômicas e pode começar uma guerra nuclear sem consultar ninguém. O presidente dos Estados Unidos tem poderes que nem Nero tinha. Nero é acusado de ter incendiado Roma. Nero podia incendiar o mundo. E temos nos Estados Unidos um presidente com muito mais poder que um imperador romano. Ele pode prestar contas depois. Vinte ou trinta dias depois. Imaginem, na era nuclear o presidente dando contas vinte ou trinta dias depois de seus atos. Invade tal país e depois presta contas. Faz a guerra... eu não tenho nenhuma dessas atribuições, nem parecidas. E digo a vocês que os presidentes da América Latina têm mais direitos presidenciais do que eu. Eu posso ter influência. Não nego que a tenho. Mas não tenho essas atribuições, não gosto de usar e muito menos de abusar das atribuições que me conferem a lei e a Constituição. E não só a lei e a Constituição, mas nossos próprios princípios, nossas normas históricas.

Alceu Náder: Levando em conta que o ser humano é mortal, o que será de Cuba depois de Fidel?

Fidel Castro: Bom, creio que se depois de Fidel, Cuba não fosse nada, que se depois de Fidel a revolução não pudesse ir adiante, o trabalho de nosso povo durante trinta anos teria sido inútil. Primeiro, isso me tiraria o sono, se não confiasse no povo, se não confiasse nas gerações de milhares e dezenas de milhares e de centenas de milhões de jovens que se educaram, que receberam um nível educacional, cultural, científico, político... Porque o importante é que os homens compartilhem idéias, um pensamento, um estilo de governo, uma tradição. Eu tenho uma confiança plena e absoluta, porque o que fizemos foi promover muitos novos quadros e também distribuir funções. Eu não sou um indivíduo que gosta de centralizar tudo. Em toda a minha vida distribui o máximo possível as funções da direção e administração do Estado e da direção política do país. E há um nível de atribuições muito grande. Eu coordeno, ajudo, estimulo, inspiro, falo... Mas em nosso país há muita gente que aprendeu qual é o seu ofício e suas funções. Estamos organizados e preparados para isso. Assim, se eu por enfermidade não puder exercer as funções, não seria nenhum problema. Se eu morro, não seria nenhum problema. Porque não creio no providencialismo. Sei que os homens têm um papel na história. Mas creio que o papel na história quem tem são os povos. E um homem não é nada sem o povo. Não há nada sem a colaboração de centenas de milhares, de milhões de pessoas. Nós temos instituições. Teria sido talvez pior no meio da guerra, ou nos primeiros tempos, ou em certos momentos muitos difíceis. Mas, na medida em que passa o tempo, é extraordinária a quantidade de valores que sobem e que nós promovemos. E nossa esperança inclusive é nos que venham depois de nós... Como aconteceu em muitos outros países. Tivemos por exemplo Juarez (Benito Juarez; presidente do México entre 1864-1872. Seu governo é caracterizada pela promulgação das Leis de Reforma), grandes dirigentes na Revolução Mexicana. Depois, a Revolução Mexicana se institucionalizou e manteve a continuidade de governo durante mais de cinqüenta anos. Mudaram os homens, mas não mudou o partido. Por isso as instituições são mais importantes. Há um ditado que diz: o rei morreu, viva o rei. É possível que os homens... e como regra os homens são de si tudo o que são capazes quando assumem uma responsabilidade. Não há nada melhor do que dar responsabilidade aos homens. Então os homens demonstram do que são capazes. Eu nunca acreditei que possa haver um homem superior aos demais. Ao contrário, eu creio na capacidade mais ou menos igual de todos os homens... E é a oportunidade que faz os homens exercerem seu papel. Talvez venha um dia aqui a São Paulo, espero que assim seja, que venham homens que tenham bom... não tanta experiência, mas que sejam mais capazes que eu para representar o meu país e para fazer o trabalho que eu estou fazendo agora.

Clóvis Rossi: O senhor já criticou em vários discursos o que chama de desmantelamento do socialismo em países do leste Europeu. Mas não é apenas no Leste Europeu, os partidos comunistas do Ocidente e até um herói estrangeiro da revolução cubana, como o presidente da Etiópia, o presidente Menristo, da Etiópia, acaba de fazer uma autocrítica condenando o sistema de centralização econômica.

Fidel Castro: A posição que eu tenho em relação aos meus erros do socialismo é de que esses erros têm que ser superados. Eu não me oponho a nada que seja para aperfeiçoar o socialismo. Nem na URSS, nem em nenhuma parte. 

Clóvis Rossi: Quais são... 

Fidel Castro: Agora...[fazendo silêncio para Clóvis Rossi]...Nós temos corrigido erros. E antes que se falasse em Perestroika, no último congresso do nosso partido, que foi em princípio de 1986, há mais de quatro anos, nós colocamos a questão da retificação de erros e tendências negativas. Venho fazendo um forte trabalho nessa direção. Isso se referia principalmente às questões relacionadas com a construção do socialismo. Porque mesmo nossa Revolução tendo sido muito criativa e muito autóctone e cometeu erros por sua própria conta... Cometeu nos primeiros anos da Revolução no que se refere à organização das empresas, à utilização dos recursos. Nós num certo momento quase tínhamos desprezo pela contabilidade. Cometemos erros desse tipo. Eu diria que tentamos acelerar o processo. Quisemos saltar etapas históricas. Estávamos quase querendo construir uma sociedade comunista, e não uma sociedade socialista. Isso se explica, porque ocorreu a revolucionários de qualquer época. Houve conseqüências positivas, mas também negativas. E quando nós fomos retificar aqueles erros, cometemos o erro de copiar muitas coisas do socialismo que aparentemente já estavam provadas pela vida, pela história, pelas experiências na URSS e em outros países socialista. E copiamos. Para entender bem isso, é preciso remontar à época de Che (Guevara), quando ele foi nomeado ministro da Indústria e viu-se na necessidade de organizar a produção socialista... Aquelas indústrias. Como organizá-las. Ia ser com conceitos de rentabilidade, os salários, os prêmios, os estímulos materiais, os estímulos morais... Então eu posso dizer e assegurar categoricamente que minha admiração pelo Che cresceu na medida em que vejo e compreendo que foi um grande visionário, um grande profeta. Porque nos primeiros anos da Revolução, e quando se viu frente à tarefa, começou a questionar o método de construção do socialismo que estava estabelecido na URSS e nos países socialistas. Ele dizia que não se podiam utilizar as categorias do capitalismo na construção do socialismo. Estava contra uma série desses conceitos. Ele não viveu o tempo suficiente porque sua impaciência de lutador levou-o a entrar em ação de novo e a morrer em combate. Eu digo que foi uma perda muito grande. Na época nós víamos tudo isso como uma coisa mais ou menos acadêmica. Entre o método orçamentário que o Che propunha e o método chamado de autofinanciamento que prevalecia, que se aplicava nos países socialistas. Quando nós em 1975 copiamos muito isso, tomamos a decisão no momento em que corrigíamos os erros de idealismo e utilizamos esse método. Era o único provado. Começaram a surgir problemas. No começo não nos demos conta, só com o correr dos anos, da conseqüência altamente negativa para nosso país da aplicação desses métodos. Por isso, em 75 resolvemos dar uma virada. Não uma virada no sentido de desbaratar e desorganizar tudo o que havia, e sim retificando progressivamente e sem trauma e sem desorganizar o país... retificando aqueles erros. E às vezes fomos fazendo setor por setor. Ainda não terminou esse processo, mas estamos indo muito bem. E os resultados disso são realmente extraordinários. Mas veja, naqueles países, é claro que nem tudo o que se fez naqueles países foi ruim. Eu não poderia dizer... Estou em desacordo com uma crítica destrutiva da história da URSS.

José Antônio Severo: O Estado cubano é mais eficiente do que as máquinas, os aparatos do Estado do Leste Europeu? Ou seja, você acha que o cubano é mais eficiente que os seus correspondentes no Leste?

Fidel Castro: Antes de responder gostaria que me deixasse terminar a idéia anterior... de que eu sou contrário a uma política destrutiva da história e dos grandes méritos da União Soviética. Porque esse povo resistiu à intervenção. defendeu a primeira revolução, deu vinte milhões de vida na luta contra o fascismo. A contribuição da União Soviética foi muito grande. Deu condições de liberação aos países que estavam ainda colonizados. A União Soviética foi capaz de alcançar as armas nucleares num momento em que estava em condições de inferioridade. Capaz de participar da corrida espacial. Há grandes contribuições. É um país que produz mais de 600 milhões de toneladas de petróleo. É o maior produtor de petróleo do mundo, é o maior produtor de gás no mundo, quase um trilhão de metros cúbicos. Construiu linhas férreas, oleodutos, gasodutos, sistema energético. É uma coisa colossal. Eles construíram no meio do bloqueio, de situações difíceis. Vamos admitir os erros, mas temos que reconhecer também os grandes méritos desse país. Eu penso que na medida em que foram empregados os mecanismos do capitalismo, começaram os problemas. Foram capazes de conquistar o espaço, mas não foram capazes de faze um bom par de sapatos. 
[risos] 

Fidel Castro:Foram capazes de fazer um foguete que chegasse a Vênus, mas não faziam boas roupas. Se atrasarm em alguns campos, como o da saúde e cometeram erros no campo da educação. Houve de tudo. Mas... Foram incapazes de resolver alguns problemas. Creio que tinham um planejamento rígido. Muito rígido. Eu não posso dizer que nosso Estado funciona, melhor, assim, de forma genérica. Mas posso dizer que funciona melhor em muitas coisas. No campo da saúde pública funciona melhor que qualquer Estado socialista. E está a caminho... Funciona melhor não só que os países socialistas, mas funciona melhor que grande número de países capitalistas. Nosso sistema de saúde é superior ao dos Estados Unidos, digamos... apesar dos recursos tecnológicos e científicos daquele país, nosso sistema de educação funciona melhor, já não digo que dos países socialistas. Funciona melhor que o dos Estados Unidos. E os índices de analfabetismo são maiores nos Estados Unidos que em Cuba. Os problemas de lacunas culturais e políticas e de instrução que tem um cidadão médio nos Estados Unidos... ele está muito abaixo do nível de instrução do nosso país. Já não nos comparamos a países do Terceiro Mundo em muitos desses índices. Porque temos uma mortalidade infantil de 11,1 pontos, estamos nos comparando a países mais desenvolvidos. Ficam alguns poucos com índice melhor e nós pensamos que com as medidas que estamos adotando vamos chegar e estar entre os primeiros do mundo. A instituição do médico da família, criada em nosso país, não tem em nenhum país socialista e em nenhum capitalista, do jeito que nós temos. Nas atividades esportivas, digamos... Nosso país tem os melhores per capita do mundo em medalhas ganhas em olimpíadas, competições internacionais, em tudo... Apesar de ser um país de apenas dez milhões de habitantes. Que não era nada, nem se ouvia falar do nosso país neste campo... E creio que estamos introduzindo na organização da produção, conceitos que são muito superiores aos dos países socialistas. E estes conceitos começaram a dar frutos. Estamos num processo de retificação e de aperfeiçoamento de nosso Estado e de nosso sistema. Nós não temos o sistema de eleição como na União Soviética, em que se têm o candidato único nos distritos e este é o candidato. Nós não fazemos nada disso. Nós estabelecemos um sistema de eleição em que não é o partido que postula, mas as massas de vizinhos. Reunidos numa circunscrição, podem postular até oito candidatos, no máximo, e um mínimo de dois. E temos um segundo turno e muitas vezes há o segundo turno. Aí se elegem os delegados que nomeiam os poderes do Estado. O municipal, o provincial, o nacional. E mais de 60 por cento da Assembléia Nacional são delegados eleitos desta forma, na base, isso não fizeram outros países. Acontece que isso não se sabe... Porque desgraçadamente se conhece muito pouco. Se conhece tudo o que os Estados Unidos queiram... seus colossais meios de comunicação de massa, sua televisão... vocês sabem porque são da televisão. Mas vocês não poderiam me dizer agora o que está acontecendo na Somália. Se há um acontecimento no Egito, estou certo que vocês têm imediatamente a câmera e o satélite para informar em São Paulo o que ocorre no Egito, ou dizem eles que ocorre no Egito. Têm uma quantidade de recursos fabulosa, enorme, mobilizaram tudo, e o que se conhece no mundo é o que eles dizem. Se um país pequeno não tem esses recursos, é muito difícil fazer conhecer seu ponto de vista, sua verdade. E eu ficava assombrado com a ignorância que há em geral no mundo sobre o que ocorre em nosso país. E alguns nos criticam, porque não divulgam mais. E eu digo: mas com o quê e como? Se... bom, temos uma oportunidade como esta, magnífica, eu posso falar com o povo brasileiro, neste caso com uma grande população, de um grande país, através desses meios. Porque estou aqui, estou conversando com vocês. Mas eu não posso me encontrar com vocês todos os dias. O que eu digo em Cuba as pessoas não sabem em São Paulo. A não ser um telegrama de uma das grandes agências transnacionais ou o que os Estados Unidos enviam por satélite.

Márcio Chaer: Por todas as informações que se tem aqui no Brasil, se houvesse uma eleição para presidente hoje em Cuba, o senhor ganharia. Por que o senhor não faz essa eleição? Eu gostaria de saber se o senhor teme que um processo eleitoral vá provocar um processo de desmantelamento como o senhor diz.

Fidel Castro: Se dissesse que sim, que ganho as eleições de forma absoluta, não haveria outro argumento além do que eu estou dizendo. Qual seria sua validade? Eu tenho que me ater a outros enfoques... e dizer o seguinte: Se a Revolução não tivesse o apoio absolutamente majoritário do povo, não conseguiria se manter por mais de 30 anos, frente ao país mais poderoso da Terra, que representa uma ideologia, que tem os meios de comunicação mais sofisticados que pode ter um país, que tem um poderio econômico enorme, que nos bloqueou por todos os lados, que nos ameaçou... E o povo resistiu. Resistiu a todas a campanhas de subversão, resistiu à invasão mercenária de Giron (Baia dos Porcos), resistiu à ameaça de guerra nuclear em 1962 e resistiu a anos de bloqueio e agressões. Este pequeno país tem colaborado com outros países com médicos, professores... mais de 400 mil pessoas de Cuba prestam ajuda internacionalista em dezenas de países do mundo. Só um povo com uma alta consciência, alta cultura, faz isso. Quando os nicaragüenses nos pediram mil professores, apareceram 30 mil voluntários. Foram dois mil porque era o necessário no começo da Revolução. E quando os contras mataram alguns professores, se ofereceram cem mil. Pergunto se há algum povo no mundo capaz de praticar a solidariedade nesta escala. E eu posso dizer, por exemplo... não tomem isso como uma falta de modéstia... Se hoje alguma parte do mundo precisar de voluntários, como professores, médicos, enfermeiras, técnicos, Cuba sozinha ofereceria seguramente o dobro ou o triplo que todo o resto da América Latina junta...
 [interrompido]

Fidel Castro:...Porque em nosso país não se têm apenas os votos. Porque aqui não se sabe que em Cuba há uma Constituição. Aqui não se sabe que em Cuba há uma eleição a cada dois anos e meio. Ignora-se. Porque em nosso país o povo não tem apenas os votos. Tem as armas. Nosso país é um povo todo organizado, milhões de pessoas, homens e mulheres constituem o sistema defensivo de nosso povo... Não só um voto. 

[  ]: O senhor considera que Cuba está em guerra... 

Fidel Castro: Para que usem este direito a cada dois anos ninguém mais se lembre dele. Em nosso país, o delegado eleito pelo povo e os representantes têm que estar prestando contas incessantemente de sua gestão, e podem ser cassados. Mas, além disso, o povo tem as armas. Os estudantes têm as armas, os operários têm as armas, os camponeses, todos os cidadãos têm instrução militar. Os homens e as mulheres. Os brancos e os negros, a juventude. Poderia ser oprimido um povo, poderia aceitar um governo por 24 horas, por uma semana, uma sociedade que tem, não só os votos, mas também as armas? Às vezes me perguntam o que estaria ocorrendo na Espanha, por exemplo, se ali, em outros lugares, mesmo na Europa que os reprime com cães, com bombas de gás lacrimogêneo. Em nosso país jamais se usou um gás lacrimogêneo, um cão, um policial com máscara e capacete. Isso não se conhece lá. Como todos os dias se pode ver isso no mundo capitalista desenvolvido tão democrático... Que garantias têm quando há milhares de operários em greve ou saem em uma manifestação e são reprimidos de maneira cruel. As revistas e os jornais estão cheios dessas notícias. Jamais a Revolução fez isso. Porque há um povo unido. Entendam que nós somos uma fortaleza sitiada. Um povo unido, cercado pelos Estados Unidos. Então esse povo se defende. E são as massas, o povo organizado, as mulheres, as crianças, os pioneiros, os estudantes de nível médio, de nível superior. Isso é uma realidade. Há uma pátria a defender, uma independência, uma grande obra social a defender. Por desgraça  os sandinistas não tiveram tempo de fazer essa obra, não deixaram, com a guerra suja que lhes custou dezenas de milhares de vida, com o bloqueio. Mas vocês devem considerar que se começamos a discutir aqui e trazemos alguns dados estatísticos da situação social e da vida dos países latino-americanos, esses dados não resistem a qualquer comparação. A mim quase daria pena expô-los, porque me dói a situação terrível de mendicância, crianças abandonadas, desnutrição, desemprego, os níveis de saúde, as perspectivas de vida, a mortalidade infantil. Na América Latina está em torno de 60, e em nosso país é 11,1. Não é nem a metade, é seis vezes menos praticamente. Se virmos os índices de analfabetismo, de educação, de escolarização, se vemos a atenção que recebem nossas crianças nas escolas especiais, se vemos as instituições aonde vão os filhos das mães trabalhadoras. Considera-se que a mulher incorporada ao trabalho ganhou mais dignidade. Cinqüenta e oito por cento da força técnica do país são mulheres. E houve mudanças colossais. Eu digo que nós já resolvemos em 30 anos o que a América Latina não resolveu em 200 anos. Essa é a realidade.

Jorge Escosteguy: Presidente, o senhor mencionou o seu país como uma fortaleza sitiada e falou há pouco da Nicarágua. Cuba não se sente de certa forma isolada, solitária, diante da derrota do sandinismo no Nicarágua e os acontecimentos do L este Europeu?

Fidel Castro: Bom, é uma fortaleza sitiada no sentido militar, pode-se dizer. Em função do risco que representa a vizinhança de um país tão poderoso como os Estados Unidos. Vocês não podem imaginar isso porque são um país grande, enorme, oito milhões e meio de quilômetro, estão muito longe dos Estados Unidos, para sorte de vocês. Porque o México está perto. Tem três mil quilômetros de fronteira, o que lhe custou essa vizinhança? Primeiro foi mais da metade de seu território, as terras mais ricas em minerais e petróleo, e o que têm que sofre por isso. Nós estamos a 90 milhas. Temos até uma base ianque que está lá pela força, porque tem vontade, porque não quer sair. Sem ter qualquer direito de estar lá. E nos agridem e nos ameaçam com os meios de guerra mais sofisticados. Quero dizer então que nós temos que defender a independência e a soberania do país frente a este poder militar. Isso não significa outro tipo de isolamento. Bom, nos bloqueiam economicamente e sua capacidade de bloqueio é muito grande...

José Antônio Severo: Essa base de Guantánamo será retirada dentro de poucos anos, né?

Fidel Castro: Mais tarde ou mais cedo terão que se retirar. Nós transformamos esta questão num ponto prioritário. Em qualquer mudança nas relações de Estados Unidos e Cuba, seja qual for a solução, têm que retirar a base de Guantánamo. Eles só têm o direito de uma base militar pela força no território de outro país. Bom, então... na economia, sofremos o bloqueio. Estávamos falando...
 
Jorge Escosteguy: Dessa mudança da Nicarágua e o Leste...

Fidel Castro: Estados Unidos não só impedem o comércio de outros países com Cuba, se podem tomar alguma medidade represália... a toma. Se Cuba exporta níquel a algum país europeu eles dizem: Se tem níquel cubano, não compro. O bloqueio tem muitos tentáculos em muitos lugares. Mas também temos relações econômicas com muitos países. Temos relações políticas com muitos países. E muitos países do Terceiro Mundo. Cuba foi o presidente do Movimento de Países Não Alinhados. E Cuba acaba de ser eleita para o Conselho de Segurança das Nações Unidas por 145 votos. É uma das maiores votações já registradas. Nós mesmos nos assombramos. Porque quando as votações são secretas, muita gente se vinga e vota a nosso favor. Quando são públicas, como em Genebra, sabem que podem vir represálias econômicas... Mas nas votações secretas na ONU ( Organização da Nações UNidas) sempre temos um grande número de votos. Isso não reflete isolamento. E isso ocorreu há uma semana. Temos um companheiro que durante o mês de fevereiro presidiu o Conselho de Segurança. Fez um excelente trabalho, e tem experiência neste campo. Na África, todos os governos de esquerda ou de direita têm uma relação extraordinária com Cuba. Não esqueçam que nós temos lutado contra o Apartheid, contra a África do Sul, que durante quinze anos ajudamos a defender a soberania de Angola. Lutamos, combatemos, tivemos vitórias decisivas, que tornaram possível a solução do problema. A independência da Namíbia e grandes avanços se estão conseguindo, um processo que parece irreversível para a solução dos problemas da África do Sul e fim do Apartheid. Então, as relações que temos com países africanos, do Terceiro Mundo, não alinhados... Com a América Latina, no ano de 1965 não ficou ninguém além do México. E hoje temos relações respeitosas e crescentes com os diferentes governos da América Latina, com a maioria. Independente da ideologia polí. 

Jorge Escosteguy: Com a derrota do sandinismo na Nicarágua e esses acontecimentos no Leste Europeu, o senhor não se sente um pouco isolado politicamente?

Fidel Castro: As relações com a URSS se mantêm perfeitamente bem, e a URSS realiza grandes esforços para manter todas as relações comerciais que tem com Cuba e relações de amizade. Faz todo o esforço. Problema haverá se surgirem dificuldades grandes na própria URSS. Se surgir um conflito interno, se produz um processo desintegrador na União Soviética, isso sim poderia afetar-nos. Mas já faz tempo, vários anos, a URSS leva seu programa de reforma e de mudanças. Outra coisa são os países do Leste. Eu creio que se exagera um pouco o tipo de colaboração. Porque certamente nós vendemos nossos produtos, mas na verdade exportamos fundamentalmente alimentos, açúcar. O que nós exportamos em açúcar a esses países vale hoje exatamente 400 milhões de dólares. Exportamos cítricos, níquel, matérias-primas estratégicas. E vão crescendo neste sentido. Enquanto isso recebemos alimentos, entre 40 e 50 milhões. Para nós os alimentos são mais importantes. Se não vem a cevada checa, compramos em outro lugar. Se não vem o frango que compramos da Bulgária, não era muita quantidade, compramos em outro lugar. Porque não nos davam essas coisas de presente. E compramos deles muitos equipamentos industriais de má qualidade. Que só nós éramos capazes de fazer com isso o que fazíamos, porque nos tornamos especialistas em trabalhar com carregadeiras búlgaras, ou o ônibus Icaro. Realmente os que vocês produzem aqui no Brasil são muito melhores. Então o que vale comprar três carregadeiras, se três meses depois todas estão paradas. E tem que ir buscando peça aqui, componente ali, para fazê-lo andar, modificando a peça. É melhor comprar dois, e que os dois andem.

Jorge Escosteguy: Há pouco tempo o presidente brasileiro disse que o carro brasileiro era uma carroça. O senhor acha que o carro com os equipamentos do Leste Europeu são equivalentes às nossas carroças?

Fidel Castro: E que sentido tem a palavra carroça?

Jorge Escosteguy: Má qualidade.

Fidel Castro: Nós não temos essa opinião dos equipamentos brasileiros...

Jorge Escosteguy: O que digo é: os países do Leste Europeu compram de vocês? Porque os equipamentos são de muita má qualidade...

Fidel Castro: Sim, como regra são de tecnologia atrasada. Você compra artigos industriais e são de tecnologia atrasada.

José Antonio Severo: Isso é um defeito da organização?

Fidel Castro: Posso dizer o que fazemos com a ciência para que não aconteçam esses problemas. Em matéria de informática estamos mais avançados que esses países. As vezes compramos um torno de um desses países e o automatizamos. Fazemos os elementos de automatização, o cérebro cubano. Já estamos fabricando até robôs. E no robô não é importante apenas a parte mecânica, mas a parte de programação. Então eles descuidaram disso. E acho que foram esses mecanismos, foi essa prática de utilizar os mecanismos capitalistas, em que as empresas começaram a entrar em choque com os interesses da sociedade. Queriam saber como ganhar mais. O conceito de renda, que prevaleceu sobre o conceito de qualidade. Políticas erradas, desatenção às coisas científicas. Nós testemunhamos tudo isso. Mas nós também compramos equipamentos de muitas partes do mundo. Tornos automáticos, tornos programados e indústria de processo químico. Nós fazemos uma central açucareira completa. Quase completa, nem todos os componentes. E as centrais que fazemos são excelentes. Então, a questão da qualidade tem que ser uma política. E os mecanismos de construção do socialismo não podem entrar em conflito, não podem conspirar contra a qualidade. E muitos dos métodos salariais conspiravam contra a qualidade. "Esta parede, eu te pago tanto por esta parede. Quando terminares, te pago." E o homem saía a por tijolos a toda a velocidade, sem se importar como, qual era a qualidade. Eu posso me referir a montes de exemplos que para mim influíram nesse tipo de problema e que é precisamente o que nós precisamos evitar. Nós fazemos equipamentos e aqui no Brasil temos alguns equipamentos. O sistema ultramicroanalítico é um equipamento que levamos anos aperfeiçoando e tem todas as condições para funcionar. É um equipamento muito importante na luta, na investigação sobre AIDS, sobre diferentes doenças, trabalha com reagente produzido por nós, de uma qualidade excelente. Lembro que o primeiro que veio para o Brasil dei de presente ao governador Quércia. E já há em vários lugares do Brasil esses equipamentos. Se os produtos não têm ótima qualidade, nós não os exportamos, pois isso desprestigia o país. Mas como tínhamos relação de comércio, vendíamos alguma coisa, alguma coisa tínhamos que comprar. Assim, que danos podem fazer a nós se eles do Leste passam para o outro campo, como disseram em Genebra,  para conseguir crédito no Banco Mundial, no Fundo Monetário, cláusulas de nação mais favorecida, ficaram junto dos EUA frente à Cuba, Hungria e Bulgária, Polônia e Tchecoslováquia. Eu não vou dizer que tudo é ruim, porque não seria justo. Mas em geral são de má qualidade e de tecnologia atrasada, essa é uma grande verdade.
[  ] No próximo bloco, Fidel Castro diz que um país socialista se quiser, tem todo o direito de se tornar capitalista. Veja logo após o intervalo.

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva que hoje entrevista o Presidente de Cuba, Fidel Castro.

Fidel Castro: Foi uma idéia que se teve. Assim nós também podemos tomar muitas idéias daqui e levar para lá. Nós nos comprometemos a comprar dos brasileiros tudo o que os brasileiros comprarem de nós. O Brasil não gasta uma só divisa com Cuba. Uma só divisa conversível. Todo o dinheiro que recebemos do Brasil, colocamos numa conta à parte e vamos investir no Brasil. Mas se um dia não está contrabalançado o comércio e nós vendemos produtos em outro lugar. Podemos também comprar no Brasil, ainda que o Brasil não tenha comprado de nós determinado produto. Eu dizia que também agora, com as dificuldades no Leste, quem sabe quantas coisas... é preciso estudá-las porque temos que conhecer toda a produção de vocês na área química. Se muitas coisas que compramos de vocês, algumas quantidades de aço, pneus - porque é deficitária nossa produção de pneus - produtos químicos variados, produtos sintéticos, enfim, poderia fazer uma lista muito grande.

Alceu Náder: Não parece uma contradição que empresários brasileiros invistam em Cuba, querendo obter lucros com isso? Como explicar essa contradição?

 Fidel Castro: Bem, vou explicar o correto. Qualquer país gostaria de ser dono de tudo. Os brasileiros, vocês também têm multinacionais aqui.  Vocês gostariam que estas empresas fossem de vocês. Mas não tinham capital para fazê-las. Não seria razoável se nós nos puséssemos a desenvolver uma central açucareira em Cuba, em sociedade mista. Não creio que seja razoável que façamos muita coisa para o consumo interno. Mas sim se o fizermos para exportar. Se o fazemos para o consumo interno é porque pode sair mais barato do que comprar fora. Produzi-lo em sociedade, com uma empresa de outro país. Começamos com os hotéis. Nós temos centenas de quilômetros de praias em lugares excelentes. Estamos unindo os recifes que têm magníficas praias com a terra, usando pedras. Há condições de construir 250 mil habitações. Seria um negócio de bilhões. Agora, se você não tem o capital, se não tem o mercado, se não tem tecnologia, porque o turismo também é tecnologia, acima de tudo. Não pode fazer nada. Mas se aparece mercado, capital e tecnologia aí me convém. Cuba pode dizer em 50 anos fazemos isso com nossos próprios recursos. Mas nós não necessitamos tanto dinheiro para daqui a 50 anos. Precisamos dentro de oito, de dez, doze. Então, é de mútua conveniência, é uma coisa pragmática. Esse lugar que não se exportaria, esse ar, esse mar, num mundo que está desesperado por causa da contaminação, se exploraria assim. Mas não é só no turismo. Há países que têm a tecnologia, o capital e mercado. Bom, vamos ser sócios dele. Agora teremos que dar facilidades, senão não investem. Recuperam o capital em pouco tempo, mas nós também o recuperamos em pouco tempo, porque o hotel não se faz só com o capital dele, mas com o nosso também. Coloco a moeda conversível para determinados materiais e elevador de um tipo determinado que deve ser muito seguro, ou quadros elétricos de tal capacidade, ou outros artigos. E nós construímos, colocamos a força de trabalho. Construímos o cimento, a areia, a pedra, a máquina da construção, o mármore, temos um excelente mármore, e somos donos de quase metade do hotel. Se você não dá essa oportunidade a essa campanha, não investe. Você não pode se aferrar a uma idéia pura que não quer que haja nenhum investimento estrangeiro. Mas agora eu estou buscando outra coisa, investimentos nossos no exterior. Se tem uma espécie de compensação e de garantia recíproca. Vocês têm lá, nós temos aqui. Mas às vezes, um exemplo, há obstáculos de todo o tipo para o desenvolvimento do comércio. Pode-se encontrar um obstáculo alfandegário. E tem uma tecnologia, mas não vai vencer esse obstáculo. Não resta alternativa a não ser fazer um investimento fora para vencer esse obstáculo alfandegário e poder exportar o produto. Assim, que a vida é muito rica em possibilidades. E isso sem abandonar uma ponta de nossos princípios. Veja é o Estado que, de uma ou outra forma, está fazendo isso e o está fazendo para o povo. Mas o que esperamos? Que haja socialismo em toda a América para fazer integrações? Ou que nós nos tornemos capitalistas? Creio que não faz falta nenhuma das duas coisas para que possamos abrir a integração. Essa é uma coisa das mais interessantes que constatei.

Alceu Náder: Em cima desse exemplo que o senhor acabou de dizer, o senhor não acha que nós estamos caminhando para a morte definitiva da ideologia e para uma nova era de pragmatismo entre os países?

Fidel Castro: Não penso que exista a morte da ideologia. Porque te digo que todas deixaram algo. O cristianismo foi uma ideologia e deixou muitas coisas que ainda vigoram como quando falou dos pobres e de toda uma série de coisas. Da Bíblia tirei muitas idéias que posso dizer que são idéias, que do meu ponto de vista político, têm vigência,digamos. A revolução francesa tem toda uma ideologia. E criou mil formas. Avançou. Recuou. Pelos erros de Napoleão os disparates e as loucuras que ocorreram à Napoleão que quis invadir o império dos czares e fazer uma Europa napoleônica, e no fim a Revolução Francesa retrocedeu e vieram outra vez os poderes absolutos. Mas sem dúvida as idéias das revoluções que avançaram e retrocederam, hoje são as idéias que prevalecem.  Há idéias que são eternas. A da dignidade do homem, da liberdade do homem. E elas não existiram sempre, foram surgindo. E cada uma delas irá deixando o melhor. Então nunca faltará a ideologia. Nunca sobrará ... para nós, a ideologia. A solução dos problemas de que falamos, a divisão eqüitativa da riqueza, para nós é um sonho que o homem tenha, trabalhe segundo sua capacidade e receba segundo sua necessidade. Isso é o comunismo, não é o socialismo. Estamos na etapa socialista - que o homem trabalhe segundo sua capacidade e receba segundo seu trabalho, porque temos a diferença salarial. Procuramos que, entre a menor e a mais alta, não exista uma grande distância. Mas lógico, nossa fórmula socialista implica que um médico eminente ganhe mais e outro menos. Mas também pode haver um operário muito especializado que ganhe mais que um médico. Quem sabe um dia se você quiser um coveiro, talvez tenha que pagar a ele mais que a um médico.

Jorge Escosteguy: Presidente, um pouco antes de gravarmos a entrevista, comentávamos o pacote econômico brasileiro e falávamos principalmente desse confisco bancário das contas correntes. O senhor fala que houve uma revolução na economia brasileira a partir do dia 15, o senhor fez uma revolução em Cuba, houve confisco de conta corrente em Cuba quando o senhor tomou o poder?

 Fidel Castro: Este é um tema que eu e você estávamos falando, comentando e fazendo análise e eu transmitia algumas experiências. Para mim, eu devo evitar fazer análises de medidas do governo, porque já estaria me metendo em tema interno. Podem dizer que é falta de cortesia de minha parte, que faça isso. Posso falar e pensar em termos gerais. Eu estou muito interessado em todas as medidas que vocês tomarem, porque conheço os problemas que tem a América Latina. O problema da inflação e tudo isso, a dívida e as enormes dificuldades que tem qualquer governo hoje na América Latina. E sempre estou muito curioso para ver que medidas elaboram, de que forma vão resolver seus problemas, porque já tem um tempo que os governos latino-americanos tentam encontrar a solução para os seus problemas. E sabemos todos que é uma coisa muito difícil. Por isso é melhor observar o que vai ocorrer e com muito interesse, sobretudo porque vamos enriquecer nossos conhecimentos, nossa experiência sobre esses temas. E a mim como político, como dirigente, me ajuda a aprofundar na magnitude dos problemas e nas possibilidades ou não que determinadas fórmulas os resolvam. Falando disso, vocês me perguntaram como nós fizemos na Revolução. Nós tomamos medidas, naquele momento não estávamos abordando um problema de inflação, mas sim o fato de que Batista [ Fulgêncio Batista, ditador militar de Cuba entre 1952-1959] e muita gente tinha levado muito dinheiro. Havia muito dinheiro na mão de toda aquela gente e estavam começando a usar para combater a Revolução. Fizemos uma troca de moeda, mas na troca de moeda dissemos: "Depositem. Todos que tenham dinheiro em sua casa, depositem". E a todos que tinham dinheiro devolvemos uma parte. Não tudo. Quem tinha mil dólares, devolvemos os mil. Até uma quantidade determinada devolvemos tudo. Daí para cima confiscamos o dinheiro. Prestem atenção, esse era o dinheiro que não estava nos bancos. O dinheiro que havia nos bancos não tocamos nele. Havia gente que tinha até meio milhão de pesos e o peso equivalente ao dólar. Havia gente que tinha dinheiro nos bancos e nós não tocamos, nunca tocamos no dinheiro. No dinheiro que estava depositado nos bancos, porque sempre demos importância prioritária que as pessoas tenham segurança. E elas guardam seu dinheiro. Esse foi o caso. Mas não estávamos buscando o objetivo de resolver a inflação. Estávamos buscando o objetivo de privar do dinheiro a todos aqueles que haviam roubado, haviam acumulado dinheiro e o tinham escondido, enterrado ou tinham no estrangeiro e iam usá-lo contra a Revolução. São dois objetivos diferentes. Realmente não sei como faríamos. Nós evitamos medidas, por razão política evitamos medidas. Claro que nós nos defendemos por outras vias, porque temos um número de produtos racionados, estabelecidos ou tabelados. Porque ninguém nos financia. Porque se nós emitíssemos e o preço fosse livre, não teríamos regulamentação, mas tivemos que fazer diante da situação do nosso país. Qualquer aumento de dinheiro em circulação afetaria gravemente os setores de renda mais baixa. Por isso, esse mínimo que se necessita nós garantimos a preço econômico e até mesmo subsidiado, muitos deles. E também temos o mercado paralelo. Para os que ganham mais e querem comprar um produto muito mais caro. Esta é uma fonte de arrecadação importante. No nosso sistema nós podemos subsidiar certo produto e cobrar outro mais caro. Por exemplo: nós subsidiamos o leite, mas cobramos cara a cerveja, o rum, os cigarros, todas essas coisas que não são essenciais e ao mesmo tempo ajudam de certa forma os programas de saúde. Nós sabemos também, quando queremos arrecadar dinheiro... neste momento estamos emitindo. Não nos acontece o desastre do aumento dos preços das coisas com que as pessoas se alimentam todos os dias. Os preços se mantêm. Como temos um programa de saúde, nós decidimos emitir 400 milhões. Mas nós sabemos como vamos recolher estes 400 milhões. O que temos que importar em matéria-prima e a que produtos dedicar para que, com um gasto relativamente pequeno em divisas, possamos arrecadar grandes quantidades de dinheiro interno. São mecanismos que nós utilizamos para nos defender, porque os excedentes de dinheiro podem criar problemas. Se não afeta o preço dos alimentos que você está comprando, pode afetar o interesse no trabalho. Se há um casal, um pode dizer que com o trabalho dele pode resolver, pode desestimular o trabalho, e por isso nós evitamos muitos esses fenômenos que não poderíamos chamar de inflacionários, mas de excedentes de dinheiro em circulação, além da quantidade total de bens e serviços em oferta. Nestas condições, nós pudemos, e não sabem como nós nos alegramos todos os dias, nos livrar do flagelo da inflação. E assim financiamos o nosso desenvolvimento. Porque nós não temos Banco Mundial, nem Banco Interamericano, nem Fundo que nos fizesse empréstimo. Temos que tirar de nossos próprios recursos e de nossa própria imaginação .

José Antônio Severo: Presidente, o que se comenta no mundo hoje, é que o senhor estaria aprofundando pouco a pouco divergências com o presidente Gorbatchov [Mikhail Sergueievitch Gorbatchov (1933- ), presidente da URSS entre 1985-1991] da União Soviética, pela condução da política, evidentemente pela política interna dele no seu país. O senhor apoiou a intervenção na Thecoslováquia, por exemplo, em 68. O senhor acha que se deveria novamente voltar a esse tipo política para impedir casos como o da Lituânia que declara uma independência unilateral, separação da União Soviética? E isso está realmente conturbando as suas relações pessoais com o presidente soviético? 

Fidel Castro: Minhas relações com Gorbatchov sempre foram muito boas. Sempre houve um bom nível de comunicação. Falei mais de uma vez com ele na URSS. Ele visitou Cuba. Foi uma visita de muito êxito. E as relações entre os dois países seguem bem, ainda que eles façam as coisas de uma forma e nós fazemos de outra. Há uma certa tendência internacional de mostrar divergências ou inimizade, falta de amizade entre Gorbatchov e Cuba. Entre Gorbatchov e eu. É uma coisa curiosa que antes nos acusavam de ser satélites dos soviéticos e nós nunca fomos satélites dos soviéticos, porque fazíamos coisas que faziam os soviéticos. E nos criticavam. Agora nos criticam porque não fazemos as mesmas coisas que fazem os soviéticos. E eu pergunto: que dia teremos direito de fazer o que nos dê vontade? E atuar livre e soberanamente. Nós o que fazemos sempre é seguir princípios. Formávamos parte de um mundo socialista muito estreito nos períodos de maior isolamento. Não o de agora. Períodos em que quase as únicas relações que tínhamos era com os países socialistas, de cuja colaboração econômica naquele momento e também a colaboração militar dependia nossa segurança. Isso não quer dizer que nós estivéssemos sempre de acordo com todas as coisas que faziam os soviéticos. Eu pessoalmente tinha muitas críticas sobre épocas passadas. O pacto "Molotov Ribbentrop" sempre questionei e era ainda quase uma criança. Me pareceu que tirou muita simpatia da URSS. Eles sempre alegavam que o Ocidente queria jogar-lhes Hitler [Adolf Hitler - 1889-1945 - ditador da Alemanha entre 1933-1945] por cima, e eles tinham que ganhar tempo, pagar um custo político alto. Eu sempre fui crítico ao fato de que um país se deixe agarrar desprevenido. Porque com a experiência de nos defender dos Estados Unidos, estamos sempre em guarda, sempre estamos observando movimento que fazem as esquadras e as tropas dos Estados Unidos. É impossível que se possa acumular 3 milhões de homens e milhares de tanques sem que se dêem conta que vão ser invadidos. Sempre critiquei o fato de durante a guerra não terem retirado os aviões, a profundidade da retaguarda. Deixavam ali na primeira linha e foram liquidados quase que no primeiro momento com um ataque surpresa. Stalin adotou uma atitude de avestruz. Meteu a cabeça no buraco. Ele tem responsabilidade por ter deixado o país ser atacado, sem estar mobilizado. Se estivessem mobilizados, a história teria sido outra. Não teriam chegado perto de Moscou. Tenho muitas idéias e tenho conversado com eles sobre isso. Claro que não vou sair dizendo publicamente. Não é o meu papel. Não sou um professor de uma academia de história, nem de ciências políticas para estar dizendo o que me dê na veneta, na cátedra. Os governadores têm que atuar com um sentido de responsabilidade e não de maneira irresponsável, em guerra contra todo o mundo e brigando com todo o mundo. Eles fizeram, cometeram erros, não há dúvida que um dos desastres da política soviética foi a questão da Tchecoslováquia. Agora, nós não podemos nos colocar do lado dos Estados Unidos. Porque no momento em que todo o mundo... Nós atuamos com um sentido de solidariedade, e não foi a única vez, porque depois veio o "presente" do Afeganistão. E outra vez nos presentearam com a ausência da Olimpíada. Então, quando acontece a Tchecoslováquia, não podíamos nos colocar no lado contrário. Podíamos ter ficado em silêncio. Ou podíamos fazer uma análise crítica. Se é preciso salvar o campo socialista, estamos de acordo. Rompe-se o equilíbrio militar e pode por em perigo toda a comunidade, é um remédio amargo, mas bom. Podemos aceitar. Mas fiz uma análise crítica que podia estar relacionada com as coisas que me perguntaram aqui. Podem buscar. Nós imprimimos. Porque ninguém fez, nunca mais, críticas sobre nós, sobre a maneira de se conduzir... e a pergunta: por que isso acontece? Por que um país tem que ser salvo do exterior? Com os tanques do exterior. E nós meditávamos sobre isso. Porque estamos longe da URSS. Porque se um dia, por erros da revolução cubana, tivéssemos uma contra-revolução, os tanques que ali desembarcariam seriam os dos ianques. E tudo isso nos obrigou a trabalhar com esmero e a manter as relações mais estreitas entre a Revolução e o povo, entre o partido e o povo. Os outros estavam tranqüilos, sob o guarda-chuva nuclear da URSS. Parece que a política interna não preocupou. E todos esses mecanismos de que falo deixam as pessoas distantes. Passamos por essas experiências. As pessoas chegam a um ponto em que não importa mais nem pátria nem nada, importa apenas o dinheiro, o salário. Se enfraquecem a ideologia e os grandes objetivos históricos que se persegue. Eu fiz uma crítica fortíssima e por que, e por que, e por que? Se naquela ocasião ocorresse algo como a Afeganistão, nós não nos oporíamos a que se ajudasse o Afeganistão, e a URSS o ajudava. Nós íamos a outros países. O que não fizemos foi ir a algum país da fronteira e com um governo na maleta para ajudar esse país. Ajudamos os angolanos durante 15 anos. Mas sempre tivemos respeito absoluto pelo governo do país e pelos problemas internos do país. Eles eram os donos, os governantes do país. E nós éramos apenas os aliados que os ajudavam contra a África do Sul. Ajudamos a Etiópia contra a invasão estrangeira. E todos os povos viram isso como uma ajuda, porque fomos por nossa conta. Fomos porque nos pediram os governos desses países. Bom, é uma generosidade inédita, se pode dizer. Nós com toda a luta com os Estados Unidos, na luta contra o isolamento, sentíamos a necessidade de desenvolver nossas relações com o Terceiro Mundo. Mas nunca houve o menor problema, e aí estão os governos que nós ajudamos. Ninguém os trocou, ninguém mudou esses governos. E eu, não é porque me opunha ao Afeganistão, mas a forma como fizeram, entrando pela fronteira com as tropas e com um governo. Esta é uma forma de ajudar? Isso também nos criou uma situação difícil. Quando decidem por uma questão com os ianques ausentar-se das Olimpíadas de Los Angeles e nós também. Nós, cujo único contato com os Estados Unidos era através do esporte. Não é que não gostamos da idéia, mas por questão de solidariedade decidimos não ir. Quando as Olimpíadas eram na Coréia, aí perguntamos: E vão à Coréia? Por acaso lá há mais segurança que em Los Angeles? E vão esquecer da República Democrática da Coréia [do Norte]? Bom, não vamos ajudar. Nós fizemos a proposta que se dividissem os Jogos... Agora, todos eles foram de cabeça para lá, para a Coréia do Sul, nós não fomos às Olimpíadas, porque era uma questão de princípio. No momento nos sacrificávamos por solidariedade. Quando víamos que havia uma de solidariedade com outros países, nós não compartilhávamos isso. E não fomos à Olimpíada, porque é a linha que seguimos. Mas sem dúvida, foi um dos episódios tristes dessa história. Nós também sacrificamos simpatia e apoio, porque decidimos. Aos Estados Unidos, não vamos de maneira alguma, é o nosso adversário, é adversário do mundo, nós não somos nenhuma grande potência. O que nós podemos fazer é uma análise crítica, séria, dos fatores que podem ter determinado isso. Bom, é claro, estavam em crise sem dúvida esses socialismos. Porque um socialismo que tem que ser salvo desde o exterior... O que penso, bem no fundo, é que socialismo que não seja capaz de defender-se, não merece continuar sendo socialismo. Este é um ponto muito importante. Quando Gorbatchov foi à Cuba e falamos ante a Assembléia Nacional, eu coloquei publicamente meu critério de que se um país socialista - e foi antes de todos esses problemas - queria construir o capitalismo, se deveria respeitar esse direito. Que o país socialista construísse o capitalismo. Da mesma forma que entendíamos e reclamávamos e exigíamos que se um país capitalista queria construir o socialismo, é preciso respeitar e não ficar agredindo... Coloquei isso de maneira bem clara ante a Assembléia Nacional. E falei com Gorbatchov depois meus critérios sobre este assunto. Assim é possível que tenhamos colocado um pequeno grão de areia em favor do respeito desse processo, ainda que no fundo da minha alma eu não posso estar me sentindo feliz. Foi realmente muito respeitoso.

Jorge Escosteguy: E o Gorbatchov, o que disse para o senhor?

Fidel Castro: Em relação a quê?
 
Jorge Escosteguy: Que se quisesse construir o capitalismo um país socialista....

Fidel Castro: E eu creio que, minha impressão, a atitude dele foi mais de dizer: "Tomara que isso não aconteça". Mas de sua filosofia e de suas posições, de suas reações, sua maneira de pensar, eu tinha a confiança e tinha a segurança de que se ocorresse esse fenômeno, a União Soviética ia respeitá-lo. Porque eu falei primeiro que ele. Eu não tinha um discurso escrito. Ele tinha o discurso escrito. Depois, numa ceia, falamos de tudo isso. Tudo estava gravado, mas por desgraça, nesse último jantar, já mais descansados, nada se gravou, porque houve mudança de tradutor...

Jorge Escosteguy: Era um aparato da Bulgária, não é?

Fidel Castro: Não, creio que era japonês. [muitos risos]

Fidel Castro: Foram muitos temas, mas principalmente este e num momento ele disse: "é melhor não pensar". Não foi uma coisa que ele dissesse, nem eu podia perguntar-lhe isso, nem eu podia dizer, ouça, senhor... Perguntei-lhe sobre o que eu havia dito. E ele me disse que era muito interessante. Que tinha escutado com muito interesse e que era muito interessante. Mas nesse momento não deu nenhuma definição. Mas no contexto geral da conversação, ficou evidente para ele que algumas coisas não poderiam voltar a acontecer. O que eu penso e aceito, estou de pleno acordo, que se tenha respeitado o direito desses países, de fazer as mudanças que julgaram necessárias, independentemente de nos agradar ou não, as mudanças que faça.

Clóvis Rossi: O senhor tenta separar a União Soviética, dos países do Leste Europeu que estão saindo do regime socialista. Mas é evidente que a União Soviética também está adotando mecanismos capitalistas. Ou já vinha adotando mais, ainda agora. Isso se aplica também a países da África que haviam adotado o regime socialista. O senhor não se sente em algum momento como aquela pessoa que vê uma tropa marchando numa direção, o senhor está marchando numa outra direção e eles é que estão marchando errado?

Fidel Castro: Claro, as tropas que marcham numa mesma direção se dirigem ao inimigo, são as tropas que estão marchando corretamente. Não há duas situações iguais. A URSS está fazendo reformas, introduz elementos... Nós estamos fazendo. A URSS está fazendo, fala-se em arrecadar terras. Nós não falamos disso. Nós fizemos outro tipo de reforma agrária. Não obrigamos ninguém a se unir pela força. Ainda há em Cuba 70 mil camponeses independentes. Ninguém pode nos falar de camponeses independentes, uns privilegiados porque damos tudo e perdoamos as dívidas quando há seca ou calamidades. Este é o camponês de Cuba. E vemos as cooperativas que se fizeram de forma voluntária, as empresas estatais modernas, bem mecanizadas. Fizemos tudo diferente. Para nós, pegar nossas plantações de cana e dividi-las em pedaços é a ruína. Deixaríamos de ser produtor de açúcar, deixaríamos inclusive de ter a oportunidade de fazer acordo com vocês para elaborar políticas externa em relação ao desenvolvimento da produção açucareira, como dois grandes produtores. Nós não poderíamos fazer isso. Não teríamos nem a quem dar essas terras. Elas funcionam porque semeiam com avião e trabalham com máquinas, com colheitadeiras e são lugares distantes. E você não encontra em Cuba alguém para dar um pedaço. Que vá lá a um pedacinho isolado arrendar uma terra. Na realidade, na prática, não se poderia fazê-lo. A URSS não declarou que se propõe a construir uma economia capitalista, mas disse que mantém o socialismo, que mantém princípios essenciais. Os outros disseram que vão à economia de mercado e à privatização das propriedades estatais, isso de maneira aberta. A URSS não fez isso. A URSS atua com mais prudência nisso tudo. E com mais cuidado. Está ensaiando... Mas ainda assim, vamos supor que a URSS queira fazer algumas mudanças. Não é assunto nosso. Tudo depende como vão ser as relações futuras. Não é necessário ser um país socialista, quimicamente puro, para poder negociar com ele. China também fez uma série de reformas e nós mantemos excelentes relações econômicas com a China e crescem essas relações econômicas com ela. A URSS pode fazer as reformas econômicas que queira e se mantém as relações econômicas. Necessitam de nosso açúcar, nosso níquel, nosso cobalto, nossos cítricos. Até mesmo está crescendo em produtos biotecnológicos, indústria farmacêutica, equipamentos médicos. Este ano vamos mandar à URSS o equivalente a 300 milhões de rublos. Assim é a situação. Não é igual a situação de um e de outro. Eu acho que o melhor é que cada um ande onde ache melhor andar. E se respeitem os direitos dos outros, entre eles o nosso, de andar para onde cremos que devemos andar.

Jorge Escosteguy: Presidente, o nosso tempo está quase esgotado. Os seus assessores avisam que o senhor tem outro compromisso. Eu lhe faria uma última pergunta: uma das críticas que se têm feito muito ao regime cubano, é a ausência de liberdade de imprensa. No recente seminário do Memorial da América Latina, o representante da imprensa latina disse que está havendo uma certa mudança na imprensa cubana. A imprensa cubana caminha para ser mais moderna, mais aberta? Para dar mais liberdade de expressão?

Fidel Castro: Bom, nossa imprensa tem um status diferente da imprensa dos outros países latino-americanos, que são cadeias de instituições privadas. Em Cuba temos a imprensa distribuída. As organizações de massa têm seu jornal, a juventude tem o seu jornal, os camponeses têm o seu jornal, os operários têm seus órgãos de imprensa. Os militares têm seu órgão de imprensa, o Partido tem seu órgão de imprensa, as mulheres têm seu órgão de imprensa. Estão distribuídas por essas organizações de massa. Elas são os responsáveis pelo que se diz. O Partido é responsável pelo dele. E cada província tem seus órgãos de imprensa, o que nós estamos fazendo é incrementar a crítica, as análises. Estamos tratando de ampliar ao máximo a liberdade de expressão dentro das condições e do status que tem a nossa imprensa. Eu não devo negar que os que estão contra a Revolução, os que estão em sintonia com os EUA, que é uma batalha velha, de muito tempo, mas que ainda não terminou. Ao contrário, o futuro nos aguarda com períodos mais duros do que jamais tivemos. E a tarefa muito séria. Os contra-revolucionários não têm imprensa. Para eles não existe imprensa em Cuba. E a imprensa do Partido não vai fazer eco. Creio que nem em Cuba, nem em qualquer lugar da campanha dos contra-revolucionários. Nem a outra imprensa. Esta é a situação, pois eu não vou estar aqui inventando coisas. Serão sempre assim? Não tem que ser necessariamente sempre assim e nada será nunca sempre de uma forma. Mas essas são as situações que nós temos agora. E que agora não podemos mudar. É o que lhe posso responder com toda a franqueza.

Jorge Escosteguy: Muito bem. Nós agradecemos então, a entrevista com o presidente cubano, Fidel Castro. Se o senhor quiser fazer alguma última observação para se despedir dos nossos telespectadores...

Fidel Castro: Realmente tenho me sentido muito bem. Senti todo o calor da hospitalidade, da amizade e da familiaridade dos brasileiros, em especial aqui em São Paulo onde fui muito bem tratado. Ontem, no brinde final da ceia com o governador e Daniel [José Daniel Ortega Saavedra (1945-  ), presidente da Nicarágua entre 1985-1991. Regresoou ao cargo em 2006] disse: "Bom, logo vou embora". Eu quando terminei, me ocorreu dizer é que eu não vou embora, eu fico. Queria expressar com grande sinceridade que meu corpo, meu peso, minha bagagem, tudo vai embora, mas meu coração, ou uma grande parte de meu coração ficaria aqui em São Paulo.

Jorge Escosteguy: Muito obrigado então ao presidente de Cuba, Fidel Castro. Agradecemos também aos nossos jornalistas convidados. E o programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira.


Vídeo da entrevista:


Link para o download da entrevista via torrent: Entrevista Fidel ao Roda Viva