sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Por que a Suécia está revendo a privatização do ensino


Escolas introduziram publicidade maciça, pressão sobre professores e estímulo permanente à competição. Resultados lastimáveis estão levando defensores da “novidade” a pedir desculpas públicas.
Quando uma das maiores empresas privadas de educação faliu, alguns meses atrás, deixou 11 mil alunos a ver navios e fez com que o governo da Suécia repensasse a reforma neoliberal da educação, feita nos moldes da privataria com o Estado financiando a entrega dos serviços públicos aos oligopólios capitalistas e assim causando graves prejuízos para os trabalhadores e a população.
No país de crescimento mais acelerado da desigualdade econômica entre todos os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os aspectos básicos do mercado escolar desregulamentado estão agora sendo reconsiderados, levantando interrogações sobre o envolvimento do setor privado em outras áreas, como a de saúde.
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Duas décadas após o início de seu experimento de “livre” mercado na educação, cerca de 25% dos alunos do ensino médio da Suécia frequentam agora escolas financiadas com recursos públicos, mas administradas pela iniciativa privada. Essa proporção é quase o dobro da média mundial. Quase metade desses alunos estudam em escolas parcial ou totalmente controladas por empresas de “private equity”, que compram participações em outras empresas.
Na expectativa das eleições do ano que vem, políticos de todos os matizes estão questionando o papel dessas empresas, acusadas de privilegiar o lucro em detrimento da educação, com práticas como deixar alunos decidirem quando aprenderam o suficiente para passar e não manter registro de notas.
O oposicionista Partido Verde – que, a exemplo dos moderados, apoia há muito as escolas de gestão privada, mas que agora defende um recuo – divulgou um pedido público de desculpas num jornal sueco no mês passado sob o título “Perdoe-nos, nossa política desencaminhou nossas escolas”.
No início da década de 1990, os pais recebiam vales do Estado para pagar a escola de sua preferência. A existência de escolas privadas foi autorizada pela primeira vez, e elas podiam até ter fim lucrativo.
O Reino Unido absorveu muitos aspectos desse sistema, embora não tenha chegado a permitir que escolas custeadas com dinheiro público visassem lucro. Empresas de educação suecas alcançaram países tão distantes como a Índia.
A falência, neste ano, da JB Education, controlada pela empresa dinamarquesa de “private equity” Axcel, foi o maior, mas não o único, caso do setor educacional sueco.
O fechamento da JB custou o emprego de quase mil pessoas e deixou mais de 1 bilhão de coroas suecas (US$ 150 milhões) em dívidas. Os alunos de suas escolas ficaram abandonados.
Uma em cada quatro escolas de ensino médio é deficitária e, desde 2008, o risco de insolvência subiu 188% e é 25% superior à média das empresas suecas, disse a consultoria UC. “São poucos os setores que exibem cifras tão ruins como essas”, disse a UC. Parte do problema resulta da distribuição etária da população, com os números totais das escolas secundárias sofrendo queda significativa desde 2008 e pouca probabilidade de voltar ao antigo nível por uma geração ou mais.
A permissividade do ambiente regulatório também contribuiu. A Suécia substituiu um dos sistemas escolares mais rigidamente regulamentados do mundo por um dos mais desregulamentados, o que levou a escândalos como um caso de 2011 em que um pedófilo condenado pôde abrir várias escolas de forma absolutamente legal.
“Eu disse muitas vezes que é mais fácil abrir uma escola do que uma barraca de cachorro-quente”, disse Eva-Lis Siren, diretora do sindicato de professores Lärarförbundet, o maior da Suécia.
As escolas privadas introduziram muitas práticas antes exclusivas do mundo corporativo, como bônus por desempenho para funcionários e divulgação de anúncios no sistema de metrô de Estocolmo. Ao mesmo tempo, a concorrência pôs os professores sob pressão para dar notas mais altas e fazer marketing de suas escolas.
No início, disseram que a participação privada na educação se daria por meio de escolas geridas individualmente e em nível local. Poucos vislumbraram que haveria empresas de “private equity” e grandes corporações administrando centenas de unidades. “Era uma coisa que não estava sequer nos sonhos mais delirantes das pessoas”, tenta se justificar Staffan Lundh, responsável por questões escolares no governo do primeiro-ministro na época e que hoje dirige a Skolverket, a agência sueca de escolas.
É tão obvio que envolvimento do setor privado e a queda da qualidade estão diretamente ligados que a Skolverket já começa a “vê indícios” de que as reformas de mercado contribuíram para aprofundar o fosso do desempenho escolar.
O referencial Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, nas iniciais em inglês) da OCDE pinta um quadro sombrio, em que a Suécia ocupa atualmente classificação inferior à da Rússia em matemática.
Vinte e cinco por cento dos garotos de 15 anos não conseguem entender um texto factual básico, disse Anna Ekstrom, diretora da Skolverket. Um estudo da agência divulgado no ano passado mostrou um diferencial crescente entre estudantes, em que um número cada vez maior deles não preenche os requisitos necessários para ingressar no ensino médio.
Uma pesquisa da GP/Sifo realizada neste ano com mil pessoas mostrou que 58% são amplamente favoráveis a proibir a geração de lucro em áreas financiadas com dinheiro público, como a educação.
O ministro da Educação, Jan Bjorklund, de centro-direita, dirigente do segundo maior partido da coalizão de governo, formada por quatro partidos, disse que empresas de “private equity” também deveriam ser vetadas como controladoras de empresas do setor de assistência médica, inclusive de assistência aos idosos.
“Acho que acreditamos cegamente demais na possibilidade de mais escolas privadas garantirem maior qualidade da educação”, disse Tomas Tobé, diretor da comissão de educação do Parlamento e porta-voz de educação do governista Partido Moderado. Como são “ingênuos” os neoliberais…
O fechamento de escolas e a piora dos resultados tiraram o brilho de um modelo de educação admirado e imitado em todo o mundo pelos mesmos privatistas e neoliberais que propagandeiam o mercado capitalista como uma espécie de solução milagrosa para todos problemas da sociedade, quando na verdade é o capitalismo quem gera todos os problemas e desigualdades sociais ao concentar toda a riqueza, poder e oportunidades nas mãos de uma classe dominante privilegiada, as custas da miséria, exploração e exclusão de grande parte da humanidade e do empobrecimento crescente dos povos.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Capitalismo vive da desigualdade; educação falha só justifica

José Carlos Peliano


Por José Carlos Peliano

O mercado é um funil por onde entram os aptos para o trabalho e onde ficam colocados uns poucos em boas vagas e os demais nas vagas menos favorecidas. Esta a regra fria do capitalismo. O que os olhos não veem o coração não sente. Não adianta se iludir com promessas nem com números de melhores salários e benefícios. A máquina do sistema extrai o máximo dos trabalhadores de maneira diferenciada, tabelada. A tabela mostra rendas e grupos escalonados em forma de pirâmide. Até os dias atuais, de lá a pirâmide não sai, de lá ninguém a tira.

Duas explicações usuais são fornecidas por um grupo de estudiosos para a desigualdade. Uma o desenvolvimento diferenciado de regiões, outra o nivelamento por baixo da formação educacional de boa parte dos trabalhadores. Enquanto esta abriria as portas para a entrada no mercado com salários menores e condições piores de trabalho, aquela pioraria o quadro com oportunidades de trabalho modestas nas regiões menos desenvolvidas e outras aquinhoadas nas regiões mais desenvolvidas. Estas explicações, no entanto, apenas justificam o que se vê, mas não o que está por baixo, o que se numera, senão vejamos. 

Tanto o desenvolvimento quanto a educação são diferenciados não porque assim apareceram um dia as regiões e nasceram os trabalhadores, mas porque assim foram produzidos e colocados na tabela da desigualdade pelo sistema econômico capitalista. Este vive das diferenças de mercado, naturais ou por ele mesmo aproveitadas ou provocadas. Dessas diferenças é que são fabricados padrões distintos de lucratividade, eficiência e produtividade, molas mestras do sistema. Se todas as regiões tivessem níveis próximos de desenvolvimento e os trabalhadores formações educacionais semelhantes o sistema estaria estagnado ou trataria ele mesmo de provocar suas crises autodestrutivas para renascer em bases distintas das anteriores de onde voltaria a obter padrões mais confortáveis de expansão. 

Uma outra saída dessa armadilha é a mudança de parâmetros tecnológicos e/ou de bases técnicas das quais são produzidos novos produtos e processos e/ou refeitos conceitos e condições distintas de produção. Tais tipos de mudanças ensejam novos ciclos de expansão do sistema que, por seu turno, engendram outros padrões de lucratividade, eficiência e produtividade bem como novas infraestruturas e superestruturas de comando, controle e produção. Logo, as diferenças de desenvolvimento entre as regiões e de níveis educacionais entre os trabalhadores são resultados ou produtos dessas mudanças. 

O mundo está aí para serem vistas essas diferenças. Vejam o mesmo padrão entre os eixos norte-sul e oeste-leste de países mais e menos desenvolvidos; entre outros, os continentes europeu e africano de um lado e americano e centro-americano de outro, e entre países específicos, tipo França e Uganda. Desse quadro pode-se igualmente deduzir, medir e confirmar os níveis de desigualdade de renda existentes. Em geral, boa parte dos continentes e países mais desenvolvidos vieram de experiências históricas colonizadoras, enquanto os menos desenvolvidos de fardos seculares de dominação direta ou indireta. Exploradores e explorados marcaram o mapa da desigualdade mundo afora, aqueles nitidamente menos desiguais que esses. 

Como o capitalismo vive e se nutre das diferenças para que perpetue seu padrão ótimo de lucratividade, eficiência e produtividade, as diferenças regionais e educacionais continuarão a existir e serem produzidas. Não são elas, portanto, as causas da desigualdade, mas produtos dessa. A desigualdade vem junto com o processo de expansão capitalista, ele vive dela. 

Já a educação, dita e defendida como a solução para a melhoria de vida e trabalho, ela é o bode expiatório da persistência dos males das diferenças de patrimônio e renda dos indivíduos. Os educados conseguem mais que os demais, como é dito, ouvido e visto por aí afora. De fato, uma boa escola propicia aos estudantes conhecimento geral, capacidade de crítica e reflexão, civilidade e cidadania. Essa formação básica, a sociedade requer e defende. A esta base educacional, no entanto, o mercado dá menos valor. Em geral, ela serve apenas como uma credencial para entrar nos nichos ocupacionais do mercado ao tempo em que serve também como uma condição de defesa da profissão garantida pelas associações profissionais. 

O mercado, no entanto, requer, defende e dá mais valor a algo distinto. No fundo, ele busca conhecimento sim, mas específico, voltado ao seu perfil tecnológico e ocupacional diferenciado, mas também e principalmente ele está atrás de competência e habilidade dos candidatos a vagas. Coisas que não é a escola que propicia, mas a própria experiência de trabalho ofertada por ele mesmo, o mercado. 

Assim, os indivíduos entram desiguais em formação e oportunidades no mercado e continuam nele mais ou menos desiguais de acordo com as condições específicas prevalecentes. A mobilidade deles, seja ocupacional ou social, resulta também dessas condições. Neste particular, só é cego quem não quer ver. É só pegar os números e fazer as contas. Até aqui tanto a igualdade quanto a mobilidade ascendente são uma quimera, uma ilusão da sociedade, a desigualdade e a mobilidade decorrente a solução do sistema. 


Fonte: Carta Maior

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

"2013 é o pior ano da reforma agrária", diz coordenador do MST


Para João Paulo Rodrigues, quase nada se fez, sendo que em muitos casos o governo teve a proeza de andar para trás.
por Luiz Felipe Albuquerque,

O ano de 2013 não deixará saudades aos Sem Terra de todo o país. No que tange a luta pela terra, o balanço é positivo, já que as mobilizações, marchas e ocupações de terras e prédios públicos aconteceram praticamente durante o ano inteiro.

Mas no que se remete à política de reforma agrária, quase nada se fez, sendo que em muitos casos o governo teve a proeza de andar para trás. Essas são as avaliações de João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST, sobre a política agrária estimulada pelo governo federal durante todo esse ano.    

Como consta Rodrigues, algo que sempre esteve ruim nesse governo conseguiu piorar ainda mais. “Até agora, só 159 famílias foram assentadas em todo o país. É uma vergonha. Não passam de 10 os imóveis desapropriados pelo governo Dilma. Pior que o último governo militar do general Figueiredo, quando foram desapropriados 152 imóveis”, destaca. 

Confira a entrevista: 

MST - Como você avalia a luta pela terra em 2013 num período de completa paralisia da Reforma Agrária?

João Paulo Rodrigues - Apesar de ter sido um ano completamente negativo em relação à Reforma Agrária, os camponeses seguem firmes na luta pela terra.

Em março, por exemplo, montamos um acampamento permanente em Brasília durante três meses, realizando lutas constantemente na capital federal, como marchas, ocupações de ministérios e atos políticos.

No mesmo mês aconteceu a jornada das mulheres, quando mais de 10 mil camponesas se mobilizaram para exigir o assentamento das 150 mil famílias acampadas em todo país, ocupando terras, empresas de agrotóxicos, prédios públicos, fazendo marchas e trancando rodovias. 

Logo na sequência, no mês de abril, os Sem Terra fizeram outra jornada de caráter nacional, com mobilizações em 19 estados mais no Distrito Federal. Novamente trancaram dezenas de rodovias, ocuparam mais terras, prédios públicos, prefeituras e realizaram marchas e atos políticos por todo o país. 

Em junho e julho o Movimento se somou às manifestações que saíram nas ruas das principais cidades do país trancando diversas rodovias. Nessa onda, a juventude Sem Terra organizou sua jornada de lutas no começo do mês de agosto. No final desse mês, o conjunto do Movimento realizou, junto às centrais sindicais, uma mobilização nacional, com as centrais realizando greves e paralisações nas cidades, enquanto nós do campo trancávamos as rodovias.

No mês de outubro mais de 12 estados se mobilizaram em torno da Jornada Unitária por Soberania Alimentar, quando mais uma vez a população do campo promoveu marchas, ocupações de terras e prédios públicos. Nesse mesmo mês, a jornada dos Sem Terrinha repautou a luta no campo e necessidade da Reforma Agrária, ocupando ministérios e secretarias estaduais. 

Tudo isso só para falar das lutas de caráter nacional, sem contar as lutas regionais, nos estados. Ou seja, falar que não há mais luta no campo é uma grande mentira.

E onde entra a questão da Reforma Agrária?

Aí é que vem o grande problema, com um balanço extremamente negativo. Trata-se do pior ano da Reforma Agrária. O governo Dilma, que sempre esteve péssimo nessa questão, conseguiu piorar ainda mais. Até agora, só 159 famílias foram assentadas em todo o país. É uma vergonha.

Não passam de 10 os imóveis desapropriados pelo governo Dilma. Pior que o último governo militar do general Figueiredo, quando foram desapropriados 152 imóveis. 

Outro grave problema é o que o governo federal está chamando de “emancipação dos assentamentos”, passando o título dos lotes para os assentados. Na prática, isso serve para o Estado deixar de ter responsabilidade sobre as famílias. Mas o pior é que essa política vai criar uma contra Reforma Agrária, já que grandes fazendeiros passariam a pressionar os assentados para que vendessem seus lotes, colocando tudo por água abaixo e aumentando ainda mais a concentração da terra no país.    

E a que se deve essa dificuldade em avançar na Reforma Agrária?

Podemos citar duas grandes questões cruciais.

A primeira é o fato do governo estar completamente refém da Bancada Ruralista, a maior frente no Congresso Nacional. São 162 deputados e 11 senadores, sem contar a legião de adeptos de última hora.

Só para se ter uma dimensão do problema, por mais absurda que seja a pauta desse setor, eles estão conseguindo sair vitoriosos em todas, mesmo em propostas inconstitucionais. 

Podemos pegar desde o estrangulamento do Código Florestal, passando pela alteração da PEC do Trabalho Escravo, o retrocesso sobre a legislação referente à demarcação de terras indígenas, a criação de uma comissão especial para liberar com maior facilidade novos agrotóxicos – ignorando o trabalho de avaliação da Anvisa e do Ibama - e a liberação de novas sementes transgênicas.

Nenhuma dessas propostas é de interesse da sociedade brasileira. Todas são exclusivamente dos interesses particulares desse setor e estão sendo vitoriosas. A Bancada Ruralista é um câncer no povo brasileiro.

A outra questão é a ilusão do governo em relação ao agronegócio. As grandes exportações de commodities promovidas por esse setor permitem ao governo a manutenção da política de geração sistemática de superávit primário, garantindo o destino de recursos orçamentários para o setor financeiro, como o pagamento de juros e serviços da dívida pública, o que é lamentável.

Mas ao mesmo tempo tem se criado algumas políticas públicas para a agricultura familiar e camponesa.  

Primeiro é muito importante ressaltarmos que todas as políticas públicas são conquistas das lutas dos movimentos sociais. Lutamos pela garantia da compra de alimentos e conquistamos o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Lutamos pela educação no campo e conquistamos o  Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).

Lutamos pela agroindustrialização da nossa produção, e conquistamos o Programa Terra Forte. Lutamos por um outro modelo de agricultura, e conquistamos o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Brasil Agroecológico. Isso só para constar alguns exemplos.

No entanto, temos em mente que embora essas medidas sejam importantes, elas também têm seus limites. São muito desproporcionais se comparadas com os investimentos destinados ao agronegócio. Para se ter uma idéia o Plano Safra 2013/2014 da agricultura familiar representa pouco mais de 20% em relação ao que é destinado a agronegócio.

Além disso, contamos com essas políticas públicas hoje, mas nada nos garante que poderemos contar com elas amanhã. Uma simples troca de governo, por exemplo, pode acabar com todas as nossas conquistas.  

O que é preciso fazer, então?

É preciso priorizar a produção camponesa e familiar, e não tratá-las como algo secundário. O governo precisa entender que a única solução à pobreza é uma ampla Reforma Agrária, criando milhares de empregos no campo. Ao contrário disso, resta apenas o inchaço dos grandes centros urbanos e a favelização das periferias ao redor dessas grandes cidades.   

Ou seja, mudar a lógica e a estrutura da produção agrícola no Brasil. A própria FAO reconheceu que a única saída à crise ambiental e a garantia da soberania alimentar está na agricultura familiar. Quem disse isso foi o José Graziano, diretor da FAO. Tanto é que 2014 será o Ano Internacional da Agricultura Familiar pela ONU. 

Mas por que ambos os modelos de agriculturas não podem ser conciliadas?

São modelos que se contrapõem em sua lógica e essência. A ganância do agronegócio junto aos seus gigantescos recursos econômicos inviabiliza outro tipo de agricultura, pois sempre buscarão incorporar as terras dos camponeses e os recursos naturais ao seu modelo de produção de commodities.

Para se ter uma idéia, nas duas últimas décadas mais de 6 milhões de pessoas foram expulsas pelo agronegócio no campo brasileiro. E foram para onde? Para as favelas dos grandes centros urbanos. O agronegócio não gera emprego, já que mais de 70% da mão de obra empregada no campo é da agricultura familiar, e se apropria das pequenas e médias propriedades, uma vez que a concentração de terras no Brasil segue aumentando ano a ano.

No âmbito da produção de alimentos básicos do povo brasileiro a situação também é gravíssima. De 1990 a 2011, as áreas plantadas com alimentos básicos como o arroz, feijão, mandioca e trigo declinaram entre 20 a 35%, enquanto os produtos nobres do agronegócio, como a cana e soja, aumentaram 122% e 107%. E tudo voltado à exportação. Estamos tendo que importar até arroz e feijão da China. Isso é alarmante.

Em fevereiro de 2014 o MST realizará seu 6° Congresso Nacional. O que o Movimento pretende com essa atividade?

Nele consolidaremos nossa proposta em torno da Reforma Agrária Popular. Mais do que nunca a Reforma Agrária é urgente e necessária. No entanto, é uma Reforma Agrária de novo tipo, o que chamamos de Popular.

Entendemos que a Reforma Agrária não é mais uma política voltada apenas para a população do campo. Ela é urgente e necessária para o conjunto da sociedade como um todo. 

Se quisermos comer um alimento cheio de veneno que nos dará câncer, se quisermos cultivar uma produção que destrói o meio ambiente e contribui com a crise climática, expulsa os camponeses do campo aumentando a população pobre das grandes cidades, então a Reforma Agrária de fato não é necessária.

Mas se quisermos, por outro lado, um modelo produtivo que concilie sua produção com a preservação ambiental, que o povo brasileiro tenha alimentos saudáveis e sem agrotóxicos, que a miséria e a pobreza deixem de existir em nosso país, então ela nunca se fez tão necessária.

Por isso, temos que mostrar sua importância à sociedade para que o conjunto da classe trabalhadora ajude na realização da Reforma Agrária Popular, que só será possível com uma ampla reforma no sistema político.

E quais as perspectivas da luta para o próximo período?

Nesse último período, construímos e ampliamos a unidade entre todos os movimentos sociais do campo, com os olhos voltados para um programa de agricultura que realmente interesse ao povo brasileiro. E isso tende a se fortalecer cada vez mais.

Paralelamente a isso, aumentam as evidências das contradições do modelo do agronegócio, como sua destruição do meio ambiente, o enorme uso de agrotóxicos e a insegurança quanto aos preços dos alimentos.

Além disso, fruto das grandes lutas desse ano, as organizações sociais construíram o Plebiscito Popular por uma profunda reforma política em 2014, que permitiria mudar drasticamente o quadro atual.


terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Benito Muros enfrenta a obsolescência programada


Após lançar lâmpada que dura cem anos, espanhol quer debater uma das práticas mais difundidas – e devastadoras – da produção capitalista contemporânea
Por Cibelih Hespanhol
Em 1999, quando o espanhol Benito Muros visitou o quartel de bombeiros de Livermore, na Califórnia, conheceu uma lâmpada que está acesa há 112 anos no local. E iluminou-se numa ideia: “Se em 1901 foi produzida uma lâmpada que dura mais de cem anos, por que não agora?”.
Foi então que Muros compreendeu o conceito de obsolescência programada – as lâmpadas no século XXI, e uma infinidade de outros produtos, não duram e não interessa que durem – simplesmente para que o consumidor precise comprar mais, fazendo lucrar as corporações. Benito conta em entrevista: para demonstrar que tal prática não é inevitável, resolveu fabricar sua própria lâmpada. Assim foi produzida a OEP Eletrics, que possui garantia de 219 mil horas de funcionamento e gasta 70% menos energia que as lâmpadas fluorescentes convencionais. Também propôs um movimento chamado Sem Obsolescência Programada.

Muros afirma que tem sido ameaçado de morte. É carismático e às vezescontroverso. Seja como for, sua iniciativa ajuda a lançar luz sobre uma prática capitalista cada vez mais anacrônica e devastadora e, no entanto, cada vez mais empregada. Aobsolescência programada surgiu há quase cem anos, no coração da indústria automobilística. Em 1924, diante de uma das primeiras crises de estagnação da venda de carros novos, Alfred Sloan Jr, executivo-chefe da General Motors, teve a ideia de mudar, a cada ano, algumas das características dos modelos fabricados. Foi amplamente criticado – inclusive por Henry Ford, para quem a nova prática prejudicaria a produção em escala.

Mas sua iniciativa mudou a indústria. Aos poucos, dezenas de pequenos produtores de automóveis fecharam as portas, por não poderem pagar os custos de design e reprogramação das fábricas implicados. A GM ultrapassou a Ford, assumindo a condição de principal fabricante norte-americana e mundial. Mais tarde, durante adepressão econômica vivida pelos EUA nos anos 30, o industrial Brook Stevens teria inventado o jargão: “um produto que não se desgasta é uma tragédia para os negócios”.
Na indústria automobilística, lançar um modelo a cada ano tornou-se prática quase obrigatória. Mas obsolescência programada esparramou-se rapidamente por todos os ramos da produção capitalista. Uma de suas marcas contemporâneas são as imensas filas formadas, em lojas de todo o mundo, nas noites de lançamento de novos modelos do Ipad. Não é preciso muito para compreender suas consequências ambientais, num mundo de recursos finitos e produção incessante de lixo.
O espanhol Muros persevera. Para ele, as ameaças (e as dificuldades em encontrar intermediários para a venda das lâmpadas) não são um problema: “Meu objetivo não é vender, mas sim chamar atenção para a necessidade de mudar o nosso sistema econômico atual, baseado no consumo e no desperdício, no deitar fora e comprar. Não fiz isto para vender lâmpadas. Apenas para dizer ao mundo que as coisas podem ser de outra forma, sem enganar ninguém, sem destruir o planeta e sem usar recursos de que não se precisa”.
Quanto à lâmpada de Livermore, que inspirou Muros e é considerada um verdadeiro destino turístico, vale ressaltar: as câmeras webcans que a vigiam diariamente já precisaram ser trocadas.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

"Golpe" pode antecipar fim da 1ª prefeitura do PSOL

Sem base de apoio na Câmara, prefeito do interior do Rio de Janeiro sofre CPI e mobiliza a cúpula do partido para evitar destituição.

Gelsimar Gonzaga
Prefeito discursa durante a manifestação do dia 12

De Itaocara
“Povo itaocarense! Aqui é o prefeito Gelsimar Gonzaga. Querem me tirar do cargo, mas só com o povo na rua conseguiremos acabar com essa tentativa de golpe.” Um carro de som percorria diversas vezes o município do interior fluminense na tarde da última quinta-feira 12. Nas ruas íngremes da periferia da cidade, panfletos chamavam para uma manifestação “contra o golpe” naquela noite.
A prefeitura passava à população a ideia de que o chefe do Executivo poderia ser retirado do cargo a qualquer momento, uma possibilidade plausível diante dos atos da Câmara de Vereadores durante o primeiro ano de mandato do prefeito do PSOL. Gelsimar enfrenta a resistência do Legislativo municipal, onde somente um vereador o apoia e uma CPI foi aberta para investigá-lo.
Itaocara tem somente 23 mil habitantes, mas recebe atenção nacional do PSOL. A cidade é uma das duas primeiras prefeituras do partido, após quase dez anos como oposição no Legislativo. O PSOL acredita que Itaocara poderia servir como uma vitrine de suas administrações, um exemplo da possibilidade de governar sem se comprometer com as concessões da “governabilidade” –principal motivo para dissidentes do PT terem formado o partido no começo da década passada.
Figuras mais conhecidas do PSOL, como o deputado estadual Marcelo Freixo (RJ) e a ex-deputada Luciana Genro (RS), já estiveram na cidade para demonstrar apoio ao prefeito. O diretório nacional e as bancadas do Congresso seguem na mesma linha, argumentando que a investigação na cidade é um golpe contra o prefeito.
Câmara não divulga motivo da CPI
A Câmara instalou a comissão no dia 3 de dezembro, com somente um voto contrário. Os aliados do prefeito Gelsimar Gonzagaargumentam que a CPI não tem um objeto claro e não investiga nada relacionado à corrupção. Segundo informações da Câmara, a comissão foi aberta porque um cidadão fez um ofício à casa pedindo informações da prefeitura. De lá, os requerimentos foram enviados ao prefeito, mas ele não deu respostas.
A reportagem tentou ter acesso aos pedidos não respondidos, mas o presidente da Câmara, Robertinho Cruz (PR), não os forneceu. O vereador alegou que o requerimento é um “documento da casa, interno”, e seria necessário o aval de toda a mesa diretora para ele ser acessado. Em entrevista, Robertinho não especificou quais foram os pedidos:
CartaCapital: No que consistem esses pedidos que não foram respondidos?
Robertinho: Informações do executivo, da administração.
CC: E o senhor sabe dizer quais informações são essas?
R: Assim de memória, todos, não. Se qualquer pessoa que faz a denúncia, você tem que se explicar. E agora, quem tem que se explicar é o prefeito. Nós não temos a resposta porque ele foi omisso.
CC: Mas quais foram os requerimentos?
R: Eu já entendi sua pergunta e você já teve sua resposta.
A reportagem tentou falar com os três integrantes da CPI para entender o que seria investigado nela. O vereador Edson da Sinuca (PMN) e a vereadora Aveline (PMN) se recusaram a dar entrevista. O vereador Renato do Papagiao (PMDB) não foi encontrado.
O único vereador do PSOL, Fernando Arcenio, diz que não teve acesso aos requerimentos e não conhece seu conteúdo. O vereador solicitou à mesa diretora acesso aos pedidos. Caso o pedido seja negado, Arcenio vai recorrer à Justiça.
O prefeito diz estar disposto a dar respostas, mas não tem como faze-lo sem saber do que tratam os requerimentos. “Não responder requerimento... tem sentido isso? CPI é para quando tem corrupção comprovada, ou mesmo não comprovada. Mas essa não tem justificativa nenhuma”, diz Gelsimar.
A prefeitura diz que esta não foi a primeira resistência da Câmara dos Vereadores. Outro episódio ocorreu na aprovação do aumento de salário de todos os servidores da cidade, feito em dezembro de 2012. Isso fez com que o custo dos salários em Itaocara extrapolasse os limites permitidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal quando o novo prefeito assumiu o cargo. Gelsimar se recusa a demitir funcionários e tenta outra forma de sanar as contas, enquanto rompe os limites da lei federal.
O prefeito também alega que a compra de remédios na cidade foi impedida durante 25 dias porque a Câmara não permitia o remanejamento de verbas, deixando os cidadãos cerca de um mês sem medicamentos. O presidente da Câmara, por sua vez, rebate. Segundo Robertinho Cruz, o problema foi gerado pela má administração do prefeito, a quem ele se referiu como “bobo da corte”. Assim como no caso da CPI, a prefeitura tentou mobilizar a população para conter os danos. Foram distribuídos panfletos em que se explicava a dificuldade com a Lei de Responsabilidade e os remédios.
Ex-cortador de cana, Gelsimar foi eleito na sétima tentativa
O atual prefeito de Itaocara perdeu seis eleições antes de ser eleito. Tentou ser deputado, vereador e prefeito em outros pleitos. Cortador de cana na infância, Gelsimar fez parte do sindicato dos bancários no Rio de Janeiro e entrou para o PT. De volta a Itaocara, militou no sindicato dos servidores públicos na cidade. Quando foi candidato a vereador pela primeira vez, em 1992, recebeu 56 votos.
Sua votação cresceu nos 18 anos seguintes. Neste período, migrou do PT ao PSOL, quando os “radicais” do PT foram expulsos porque votaram contra a Reforma da Previdência proposta por Lula. Em sua primeira tentativa de se eleger prefeito, em 2008, Gelsimar obteve pouco mais de 6% dos votos. Em 2010, conseguiu quase 25% dos votos para deputado estadual da cidade, quando anunciou que deveria ser candidato novamente. Em 2012, foram 44,3% do total – 6.796 votos.
Gelsimar diz que seu principal programa na prefeitura foi a instituição do “passe livre” para os estudantes que moram em Itaocara e estudam em faculdades de outras cinco cidades do noroeste carioca.
O prefeito também tem tentado aumentar a participação da população no mandato. Seus secretários, por exemplo, foram escolhidos em praças públicas. O prefeito também tem feito reuniões na periferia da cidade, onde responde qualquer questionamento dos cidadãos. Robertinho, o presidente da Câmara, diz que os secretários eram pré-indicados e que as assembleias do prefeito são “um circo”.
Gelsimar alega que não consegue governar por não ter aceitado se submeter às práticas de corrupção da cidade. O combate à corrupção é a principal bandeira do prefeito, que inclusive usa o termo “marajás” em seus discursos. Antes de Gelsimar assumir a prefeitura, Itaocara povoou o noticiário político com casos de funcionários fantasmas no serviço público e a dispensa ilegal de licitação pública, ambos denunciados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Em 2012, um secretário foi preso por desviar marmitas de um hospital público. No ocasião, foram apreendidas 16 quentinhas.
Itaocara é prefeitura mais radical do PSOL
Itaocara foi a única cidade em que o PSOL venceu no primeiro turno da eleição municipal de 2012. A outra prefeitura do partido é Macapá, a capital do Amapá, onde Clécio Luis foi eleito com apoio de outros partidos e doações de empresas. A postura gerou críticas das tendências mais à esquerda do PSOL.
Em Itaocara, uma ala menos sujeita a alianças foi vitoriosa. Para Gelsimar, Clécio pratica o “mensalão” para se manter na cidade, já que busca alianças amplas. Ele também diz que não irá apoiar a candidatura do senador Randolfe Rodrigues (AP) à presidência se ele não “vier mais para a esquerda”.
Gelsimar faz parte da tendência de influência trotskista Corrente Socialista dos Trabalhadores, cujo nome mais conhecido é o ex-deputado federal Babá (PA). Ele esteve no protesto da cidade na última quinta-feira, quando cerca de 300 militantes foram à frente da prefeitura em apoio ao prefeito. Um ônibus de militantes do PSOL, vindo do Rio de Janeiro, também compunha o ato.
O chefe de gabinete do prefeito, Marco Antonio, faz parte da mesma corrente de Gelsimar e Babá. Críticos à nomeação de Marco Antonio, vereadores se mobilizaram contra a presença do que chamavam de “forasteiros” na prefeitura. Em junho, eles chegaram a fazer protestos pedindo a saída do chefe de gabinete, nascido em Macapá e radicado no Rio de Janeiro. “Ninguém sabe suas origens. O que é, para que veio. Esse rapaz caiu de paraquedas e hoje é o homem que manda no município, um cidadão que nem voto tem. O prefeito eleito não escuta ninguém, só esse rapaz,” diz Robertinho.
O chefe de gabinete diz ter buscado diálogo com os vereadores desde que chegou, no ano anterior, mas não foi bem sucedido. “Somos revolucionários, mas não somo porra-loucas,” diz Marco Antonio.
Isolado, Gelsimar diz que governar desta forma era sua única alternativa, e faz um paralelo com o ex-presidente Lula. “[Os vereadores] falaram: ou você dá o dinheiro, ou você não vai governar. Nós vamos bagunçar seu orçamento e nós vamos tentar te afastar de todas as formas,” diz Gelsimar. “Eu resolvi não dar. Eu prefiro ser cassado do que implementar a corrupção que era antes aqui, e que acontece no Brasil todo”.