sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Como se manipula a informação

271113 midia

Por Mário Augusto Jakobskind

William Bonner, ao vetar esta ou aquela reportagem, diz: "essa o Homer não vai entender". Ele refere-se ao "telespectador médio" do Jornal Nacional.



Não é de hoje que vários pensadores sérios estudam o mecanismo da manipulação da informação na mídia de mercado. Um deles, o linguista Noam Chomsky, relacionou dez estratégias sobre o tema. (Clique aqui para ler essas estratégias)

Na verdade, Chomsky elaborou um verdadeiro tratado que deve ser analisado por todos (jornalistas ou não) os interessados no tema tão em voga nos dias de hoje em função da importância adquirida pelos meios de comunicação na batalha diária de "fazer cabeças".

Vale a pena transcrever o quinto tópico elaborado e que remete tranquilamente a um telejornal brasileiro de grande audiência e em especial ao apresentador.

O tópico assinala que o apresentador deve "dirigir-se ao público como criaturas de pouca idade ou deficientes mentais. A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discursos, argumentos, personagens e entonação particularmente infantil, muitas vezes próxima da debilidade, como se o espectador fosse uma pessoa de pouca idade ou um deficiente mental. Quanto mais se tenta enganar o espectador, mais se tende a adotar um tom infantil".

E prossegue Chomsky indagando o motivo da estratégia. Ele mesmo responde: "se alguém se dirige a uma pessoa como se ela tivesse 12 anos ou menos, então, por razão da sugestão, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos".

Alguém pode estar imaginando que Chomsky se inspirou em William Bonner, o apresentador do Jornal Nacional que utiliza exatamente a mesma estratégia assinalada pelo linguista.

Mas não necessariamente, até porque em outros países existem figuras como Bonner, que são colocados na função para fazerem exatamente o que fazem, ajudando a aprofundar o esquema do pensamento único e da infantilização do telespectador.

De qualquer forma, o que diz Chomsky remete a artigo escrito há tempos pelo professor Laurindo Leal Filho depois de ter participado de uma visita, juntamente com outros professores universitários, a uma reunião de pauta do Jornal Nacional comandada por Bonner.

Laurindo informava então que na ocasião Bonner dissera que em pesquisa realizada pela TV Globo foi identificado o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional. Constatou-se, segundo Bonner, que "ele tem muita dificuldade para entender notícias complexas e pouca familiaridade com siglas como o BNDES, por exemplo. Na redação, o personagem foi apelidado de Homer Simpson, um simpático mas obtuso personagem dos Simpsons, uma das séries estadunidenses de maior sucesso na televisão do mundo".

E prossegue o artigo observando que Homer Simpson "é pai de família, adora ficar no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja, é preguiçoso e tem o raciocínio lento".

Para perplexidade dos professores que visitavam a redação de jornalismo da TV Globo, Bonner passou então a se referir da seguinte forma ao vetar esta ou aquela reportagem: "essa o Homer não vai entender" e assim sucessivamente.

A tal reunião de pauta do Jornal Nacional aconteceu no final do ano de 2005. O comentário de Noam Chomsky é talvez mais recente. É possível que o linguista estadunidense não conheça o informe elaborado por Laurindo Leal Filho, até porque depois de sete anos caiu no esquecimento. Mas como se trata de um artigo histórico, que marcou época, é pertinente relembrá-lo.

De lá para cá, o Jornal Nacional praticamente não mudou de estratégia e nem de editor-chefe. Continua manipulando a informação, como aconteceu recentemente em matéria sobre o desmatamento na Amazônia, elaborada exatamente para indispor a opinião pública contra os assentados.

Dizia a matéria que os assentamentos são responsáveis pelo desmatamento na região Amazônica, mas simplesmente omitiu o fato segundo o qual o desmatamento não é produzido pelos assentados e sim por grupos de madeireiros com atuação ilegal.

Bonner certamente orientou a matéria com o visível objetivo de levar o telespectador a se colocar contra a reforma agrária, já que, na concepção manipulada da TV Globo, os assentados violentam o meio ambiente.

Em suma: assim caminha o jornalismo da TV Globo. Quando questionado, a resposta dos editores é acusar os críticos de defenderem a censura. Um argumento que não se sustenta.

A propósito, o jornal O Globo está de marcação cerrada contra o governo de Rafael Correa, do Equador, acusando-o de restringir a liberdade de imprensa. A matéria mais recente, em tom crítico, citava como exemplo a não renovação da concessão de algumas emissoras de rádio que não teriam cumprido determinações do contrato.

As Organizações Globo e demais mídias filiadas à Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) raciocinam como se os canais de rádio e de televisão fossem propriedade particular e não concessões públicas com normas e procedimentos a serem respeitados.

Em outros termos: para o patronato associado à SIP quem manda são os proprietários, que podem fazer o que quiserem e bem entenderem sem obrigações contratuais.

No momento em que o Estado fiscaliza e cobra procedimentos, os proprietários de veículos eletrônicos de comunicação entram em campo para denunciar o que consideram restrição à liberdade de imprensa.

Os governos do Equador, Venezuela, Bolívia e Argentina estão no índex do baronato midiático exatamente porque cobram obrigações contratuais. Quando emissoras irregulares não têm as concessões renovadas, a chiadeira do patronato é ampla, geral e irrestrita.

Da mesma forma que O Globo no Rio de Janeiro, Clarin na Argentina, El Mercurio no Chile e outros editam matérias com o mesmo teor, como se fossem extraídas de uma mesma matriz midiática.


Fonte: Diário Liberdade

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Ritalina, a droga legal que ameaça o futuro


Com efeito comparável ao da cocaína, droga é receitada a crianças questionadoras e livres. Professora afirma: “podemos abortar projetos de mundo diferentes”
Por Roberto Amado, no DCM
É uma situação comum. A criança dá trabalho, questiona muito, viaja nas suas fantasias, se desliga da realidade. Os pais se incomodam e levam ao médico, um psiquiatra talvez.  Ele não hesita: o diagnóstico é déficit de atenção (ou Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH) e indica ritalina para a criança.
O medicamento é uma bomba. Da família das anfetaminas, a ritalina, ou metilfenidato, tem o mesmo mecanismo de qualquer estimulante, inclusive a cocaína, aumentando a concentração de dopamina nas sinapses. A criança “sossega”: pára de viajar, de questionar e tem o comportamento zombie like, como a própria medicina define. Ou seja, vira zumbi — um robozinho sem emoções. É um alívio para os pais, claro, e também para os médicos. Por esse motivo a droga tem sido indicada indiscriminadamente nos consultórios da vida. A ponto de o Brasil ser o segundo país que mais consome ritalina no mundo, só perdendo para os EUA.
A situação é tão grave que inspirou a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, a fazer uma declaração bombástica: “A gente corre o risco de fazer um genocídio do futuro”, disse ela em entrevista ao  Portal Unicamp. “Quem está sendo medicado são as crianças questionadoras, que não se submetem facilmente às regras, e aquelas que sonham, têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de mil  anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e pelas utopias. Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível”, diz ela.
O fato, no entanto, é que o uso da ritalina reflete muito mais um problema cultural e social do que médico. A vida contemporânea, que envolve pais e mães num turbilhão de exigências profissionais, sociais e financeiras, não deixa espaço para a livre manifestação das crianças. Elas viram um problema até que cresçam. É preciso colocá-las na escola logo no primeiro ano de vida, preencher seus horários com “atividades”, diminuir ao máximo o tempo ocioso, e compensar de alguma forma a lacuna provocada pela ausência de espaços sociais e públicos. Já não há mais a rua para a criança conviver e exercer sua “criancice.
E se nada disso funcionar, a solução é enfiar ritalina goela abaixo. “Isso não quer dizer que a família seja culpada. É preciso orientá-la a lidar com essa criança. Fala-se muito que, se a criança não for tratada, vai se tornar uma dependente química ou delinquente. Nenhum dado permite dizer isso. Então não tem comprovação de que funciona. Ao contrário: não funciona. E o que está acontecendo é que o diagnóstico de TDAH está sendo feito em uma porcentagem muito grande de crianças, de forma indiscriminada”, diz a médica.
Mas os problemas não param por aí. A ritalina foi retirada do mercado recentemente, num movimento de especulação comum, normalmente atribuído ao interesse por aumentar o preço da medicação. E como é uma droga química que provoca dependência, as consequências foram dramáticas. “As famílias ficaram muito preocupadas e entraram em pânico, com medo de que os filhos ficassem sem esse fornecimento”, diz a médica. “Se a criança já desenvolveu dependência química, ela pode enfrentar a crise de abstinência. Também pode apresentar surtos de insônia, sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações e correm o risco de cometer até o suicídio. São dados registrados no Food and Drug Administration (FDA)”.
Enquanto isso, a ritalina também entra no mercado dos jovens e das baladas. A medicação inibe o apetite e, portanto, promove emagrecimento. Além disso, oferece o efeito “estou podendo” — ou seja, dá a sensação de raciocínio rápido, capacidade de fazer várias atividades ao mesmo tempo, muito animação e estímulo sexual — ou, pelo menos, a impressão disso. “Não há ressaca ou qualquer efeito no dia seguinte e nem é preciso beber para ficar loucaça”, diz uma usuária da droga nas suas incursões noturnas às baladas de São Paulo. “Eu tomo logo umas duas e saio causando, beijando todo mundo, dançando o tempo todo, curtindo mesmo”, diz ela.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Mortes no Itaquerão expõem a triste rotina da construção

Detalhe do local do acidente no Itaquerão (AP Photo/Nelson Antoine)
Detalhe do local do acidente no Itaquerão (AP Photo/Nelson Antoine)

Por Leandro Stein e Ubiratan Leal

“Nos próximos anos, temos o PAC e a Copa do Mundo. São dois processos que trarão ao País um volume de obras espetacular. Nesse cenário, não dá para ser artesanal. Já estamos em dia com as melhores técnicas construtivas, mas teremos um novo impulso para buscar ainda mais racionalidade, qualidade e velocidade. Temos de ir lá fora, obter informações sobre as obras que são referências em suas áreas – como estádios – e avaliar como podemos implementar esse conhecimento na realidade brasileira.”
Esse foi Paulo Safady Simão, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, em 2007, assim que o Brasil foi oficializado como sede da Copa do Mundo de 2014. Era um pensamento recorrente, ainda mais porque a indústria da construção, impulsionada pelo crescimento econômico do País, vivia um enorme crescimento, a ponto de sentir falta de mão-de-obra qualificada e de fornecedores de material em alguns momento. Seis anos depois, vimos que a Copa do Mundo não deixou tal legado.
Não fomos capazes de fazer uma Copa sem mortes.
As mortes e a rotina
O acidente desta quarta no Itaquerão foi a maior tragédia das obras do Mundial. A queda de uma peça da estrutura da cobertura durante seu içamento provocou a morte de dois trabalhadores. Eles se juntam às vítimas fatais registradas nas obras do estádio Mané Garrincha (Brasília) e na Arena Amazônia (Manaus). Se formos estender a análise para outros grandes estádios construídos recentemente no Brasil, há mais duas mortes de operários, um na Arena do Grêmio (Porto Alegre) e outro no Allianz Parque (São Paulo), do Palmeiras. Além das mortes, outros graves acidentes ocorreram nos estádios e poderiam ter matado alguém, como elenca o site Superesporte.
Os problemas não se limitam às obras de estádios. Um estudo do Dieese mostra a participação da construção civil no total de mortes no trabalho pelo país entre 2009 e 2011. Praticamente não houve mudança. Foi de 16% do total de mortes no trabalho em 2009 para 17% em 2011. Não piorou, é verdade, mas tampouco melhorou. Não houve a evolução que as lideranças do setor esperavam. Isoladamente, a construção civil é o setor da economia em que as pessoas mais morrem.
Lá fora
Esse cenário é bem diferente do último grande evento esportivo. Em 2012, a União dos Trabalhadores da Indústria da Construção do Reino Unido divulgou um relatório em que atestava que os Jogos Olímpicos de Londres seriam os primeiros sem nenhuma fatalidade durante suas obras. Mesmo para os padrões ingleses era uma notícia relevante, pois um operário havia morrido na construção do novo Wembley. Os procedimentos adotados nos canteiros olímpicos viraram uma cartilha com lições que poderiam ser usadas em todas as obras britânicas.
Obras do estádio Olímpico de Londres
Se voltarmos mais dois anos, vamos encontrar a África do Sul, um país em situação social e tecnológica pior que o Brasil também precisando de muitas obras para organizar uma Copa do Mundo diante de atrasos, greves de trabalhadores e questionamentos internos e externos. Foram apenas dois operários mortos, um no estádio Green Point (Cidade do Cabo) e outro no Peter Mokaba (Polokwane).
O que os sul-africanos fizeram? Na época do Mundial de 2010, Danny Quan, diretor de desenvolvimento de negócios da Grinaker-LTA (construtora responsável pelas obras dos estádios Soccer City, Orlando e Nelson Mandela Bay), contou à revista Construção Mercado que foram pedir ajuda a três empresas alemãs que já havia trabalhado com grandes obras de estádios. “Elas têm excelente conhecimento e compreensão das exigências de projeto e execução para esse evento. Foram de grande ajuda em assumir algumas das partes mais complexas do projeto, como cobertura, construção do gramado, gerenciamento de acessos, distribuição de setores e prevenção de desastres.”
Isso não significa necessariamente que as construtoras brasileiras deveriam ter contratado empresas estrangeiras para gerenciar os trabalhos. Mas o investimento em segurança poderia ser maior que o usual. Infelizmente, boas práticas na construção civil nem sempre são a regra – e em um setor acostumado a lidar com valores que começam no milhão e vão até onde o bolso alcança.
Legado

Obras do Itaquerão após acidente que matou dois trabalhadores (AP Photo/Nelson Antoine)

O tal legado brasileiro se aproxima ao de outros países emergentes que muitas vezes olhamos, daqui do Brasil, como exemplos a não seguir. Não pelos números absolutos, porque os brasileiros ainda são melhores, mas por não fazer como ingleses e sul-africanos e aproveitar os milhões destinados a cada construção da Copa do Mundo para melhorar o cenário nos canteiros do País.
As obras da Copa de 2018, na Rússia, já têm dois mortos. A Euro 2012, somando os acidentes nos estádios de Polônia e Ucrânia, tirou a vida de 20 operários, o dobro de China na Olimpíada de 2008 e seis a mais que Atenas nos Jogos de 2004. E há uma série de contestações de fontes independentes em relação aos números oficiais chineses e gregos. A exceção são as obras do estádio Levi’s, em São Francisco. A futura casa do San Francisco 49ers, da NFL, já vitimou dois operários.
Obs.: não mencionamos o Catar porque é um caso absurdamente fora da curva. Há acusações de trabalho escravo e de que 70 trabalhadores nepaleses teriam morrido nas construções visando a Copa de 2022. O Brasil ainda não chegou nesse nível. Ainda bem.
As causas do acidente no Itaquerão ainda serão averiguadas. A partir daí pode-se cobrar punições aos responsáveis e avaliar o real prejuízo ao andamento das obras do estádio. De qualquer modo, o saldo nas obras do Mundial já é negativo. A Copa nem começou, mas esse legado o Brasil já perdeu.


Fonte: Trivela

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Não penso, logo relincho

Um pequeno glossário com a lista dos principais clichês repetidos pelas redes sociais para justificar, no discurso, um mundo de violência e exclusão.


Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que descamba para o clichê, que descamba para o discurso. E o discurso, quando mal calibrado, é o terreno para legitimar ofensas, preconceitos, perseguições e exclusões ao longo da História. Nem sempre é resultado da má fé. Por estranho que pareça, é na maioria das vezes fruto da indigência mental – uma indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as tribunas, as mesas de bares, as redes sociais. Com os anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre qualquer assunto e o exercício de moderação de comentários nos levam a reconhecer um clichê pelo cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo uma fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas relincho*.

“Negros tem preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio racismo, é a frase mais falada das redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É propagada justamente por quem mais precisa colocar a mão na consciência em datas como esta: pessoas que nunca tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em entrevistas de emprego sem motivos aparentes. O discurso é recorrente na boca de quem jamais se questionou por que a maioria da população brasileira não circula em ambientes frequentados pela elite financeira e intelectual do País, como universidades, centros culturais, restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar que Dia Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os processos históricos de dominação e exclusão de seu próprio país.

“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas perguntas no contrapé: o manifestante a exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca, nessas datas, se não a consciência humana? Ou ela seria necessária, com ou sem feriado, caso a cor da pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores de exclusão e agressão?

“Heteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm causas diversas: rouba-se ou mata-se por uma carteira, por ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol, mas não necessariamente por causa da orientação sexual da vítima. O argumento é utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e decide estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque este alguém gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma jaguatirica em plena Avenida Paulista.

“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito acorda, vê na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas pautas, sempre as mesmas gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas e para constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria para todos. Mostra documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa o tempo todo provar que trabalha e paga imposto (além, é claro, de trabalhar e pagar imposto). Chega ao trabalho e é recebido com deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa hoje (quando usa camisa preta)?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um macaco, jogando bananas ao campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas parem”. E ouve como resposta que ele tem preconceito contra a própria condição ou está em busca de privilégio. Resultado: precisamos de um novo glossário sobre privilégios.

“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como mulheres, é a confissão do recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre ao mantra para terceirizar a culpa de não controlar seus próprios instintos; a mulher, por pura assimilação dos mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois casos o interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina assume por sua conta e risco toda e qualquer violência contra sua pretensão. Para se vestir como quer, andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar; na pior, que foi ela quem provocou a agressão.

“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a relação entre gêneros seja equivalente. Na Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa porque foi chamado de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a língua sem pedir a opinião da mulher. Também não há relevância estatística para os homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos por grupos de mulheres que dominam as delegacias do País e minimizam os crimes ao perguntar: “Quem mandou tirar a camisa?”.
“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”. Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do outro lado da tela, ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu favor. Se um dia o vídeo vazar, será carregado nos braços como comedor. Ela, enquanto isso, vai a exibida. A puta. A idiota que se deixou ser flagrada. A vergonha da família. A piada na escola. Parece uma relação bastante equilibrada, não?

“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente incorreto serve para manter as posições originais ao riso: ricos rindo de pobres, paulistas ridicularizando nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos pobres, machões buscando graça na vulnerabilidade de gays e mulheres. As provocações são brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica com elas: a graça de uma piada sobre português é proporcional à distância do primeiro português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura se ofender quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco. Só não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento suspeito”, com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o artiodátilo.

“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da bronca – manifestada, ironicamente, por quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar hoje em dia uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma facilidade. A outra origem é da turma do “pegar o jornal e ler além o horóscopo ninguém quer”; se quisesse, o autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que também dispensa a enxada) consome muito mais o orçamento público do que programa de transferência de renda. Ou que a maioria dos beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como é obrigada a vacinar os filhos, manter a regularidade na escola e atravessar as portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é a mesma que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.

“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de Estocolmo. Entre 1964 e 1985, a economia crescia para poucos, às custas de endividamento externo e da subserviência a Washington; universalização do ensino e da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os seus representantes, a imprensa não podia criticar os generais e a sensação de segurança e honestidade era construída à base da omissão porque ninguém investigava ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era prontamente ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os bolos eram de fato melhores).

“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da sua família”.
É o sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das leis para que a lei seja garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e encarceramentos são privilégios bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o Estado só seria efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a vingança como base constitucional. Assim, a eventual agressão contra um integrante de uma família seria compensada com a agressão a um integrante da família do acusado. O acúmulo de experiência, aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são licença poética: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o filho dirigir bêbado, atropelar, agredir e violentar a família de quem, como ele, defende penas mais duras para crimes inafiançáveis.

“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o corredor da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o mais violento entre as nações desenvolvidas. Lá o crime pode não compensar (em algum lugar compensa?), mas está longe de ser varrido junto com seus meliantes.

“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de médico cubano”. Pelo raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo político que precisa de tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em que, na falta de médico brasileiro, o melhor é deixar morrer – ou quando as leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem governa na canetada.

“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do filho Pródigo que tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não aceita tratamento desumano contra os bichos, mas não liga para o tratamento desumano contra humanos. É repetida também por quem se imagina livre de todo pecado e das grandes ironias da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São Paulo que um certo dia criticou o direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava preso acusado de participação na máfia do ISS. É como dizem: teste de laboratório na cela dos outros (ou do filho dos outros) é refresco.

“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na banguela”.

domingo, 24 de novembro de 2013

Consciência negra e humana


Passaram-se os anos e o negro brasileiro ainda trás no lombo a marca do chicote da escravidão. A dicotomia entre casa grande e senzala, permanece. Os números são gritantes. Segundo DIEESE, os negros representam 48,2% dos trabalhadores nas regiões metropolitanas brasileiras, entretanto, a média de seu salário chega a ser 36,1% menor do que a de trabalhadores não negros
Por Gustavo Menon
Em um país onde o paladino do humor, Danilo Gentili, oferece bananas aos seus críticos, o dia da consciência negra serve de reflexão. O discurso do humorista segue a mesma lógica racista dos senhores de engenho: Gentili fala grosso (ou faz piada) com quem é subalterno e, por outro lado, fica manso quando está diante de coronéis, generais e gente graúda. Há muito preconceito entre nós. A explicação pra isso só nos remete a formação histórico-política na terra brasilis.
Lembremos que nosso querido país foi uma das últimas nações do mundo a extinguir oficialmente a escravidão, somente no final do século XIX, em 1888. Com uma velocidade digna de Rubens Barrichello (do Braziiuuu!), a inserção do negro na sociedade tupiniquim nunca foi uma prioridade. Na transição de Monarquia para República, por exemplo, não houve mudanças significativas nas estruturas de poder. Juntamente a isso, a abolição da escravatura se deu sem indenizações, reforma agrária e direitos elementares.
Sob o cenário do tronco e do açoite, para o negro, apenas, marginalização e a máxima exclusão.  Dizia-se, naquela época, que os negros deviam ser tratados com os três "P": pão, pano e pau.Por isso, apesar da “obrigação” de vestir e alimentar os escravos, seus proprietários tinham pleno direito de castigá-los.
Passaram-se os anos e o negro brasileiro ainda trás no lombo a marca do chicote da escravidão. A dicotomia entre casa grande e senzala, permanece. Os números são gritantes. Segundo DIEESE, os negros representam 48,2% dos trabalhadores nas regiões metropolitanas brasileiras, entretanto, a média de seu salário chega a ser 36,1% menor do que a de trabalhadores não negros.
Editora Globo
Outro dado alarmante é o extermínio da juventude negra nas periferias das cidades.  Foram registrados assassinatos de quase 35 mil negros no ano de 2010, conforme aponta estudo sobre violência da Faculdade Latino-Americana. A pesquisa que monitora informações da violência no Brasil aponta que de 2001 até 2010, enquanto a morte de jovens brancos no país caia 27,1%, a de negros crescia 35,9%. Em matéria de saúde, de acordo com estudo do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde, 41,5% das mulheres negras com mais de 40 anos nunca fizeram mamografia - contra 26,7% das mulheres brancas com a mesma idade.
Fizemos/fazemos pouco para combater a dominação. Existem avanços, claro; mas tal mentalidade retrógada e arcaica, herdada de nossas classes dominantes, permanece enraizada no seio da sociedade brasileira. É certo que alguns ainda sentem falta da chibatada.  Não é exagero dizer quea herança de quase quatro séculos de escravidão ainda encontra-se manifesta na população negra. Os resquícios abomináveis de outrora estão por aí: em Gentilis, Pondés, Azevedos e em outros porta-vozes da grande mídia.
Dia Consciencia Negra 3
Contudo, a cultura afro resiste. As comunidades quilombolas estão na luta pelo reconhecimento de seus direitos. As religiões afrodescendentes permanecem, em meio a perseguições de grupos religiosos radicais, sendo expoentes de liberdade e resistência.  Zumbi, mártir dos Palmares, permanece vivo no imaginário do movimento negro.
Que o dia da consciência negra, sirva, ao menos, para reflexão e luta - uma vez que igualdade racial está longe de ser alcançada. 
Por fim, um sorriso negro pra você, conservador de plantão, que não consegue compreender o significado desta data tão importante.
Gustavo Menoné mestre em ciências sociais pela PUC-SP. Docente no SENAC-SP e na Faculdade de Ciências de Guarulhos – FACIG/UNIESP.