sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Revista britânica ironiza ato pró-Aécio: “Só faltou champanhe”


Revista britânica ironiza ato pró-Aécio: “Só faltou champanhe”

The Economist chamou o protesto de “Revolução da Cashmere”, pela quantidade de socialites, roupas caras e iPhones vistos durante o ato em prol do candidato tucano; segundo a publicação, isso apenas reforça a imagem de que Aécio seria um verdadeiro representante da elite

Por Redação

A revista britânica The Economist publicou um texto ontem (23) sobre a mobilização de eleitores do presidenciável brasileiro Aécio Neves (PSDB). O evento ocorreu na noite de quarta-feira na Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. Mesmo tendo anunciado apoio ao candidato tucano, a publicação foi irônica e chamou a manifestação de “Revolução da Cashmere”, em referência à lã utilizada normalmente em roupas caras.

“Sujeitos de terno com camisas bem passadas e gravadas com suas iniciais, portando bandeiras de Aécio. Socialites bem vestidas, envoltas em elegantes cachecóis para afastar o frio fora de estação, entoando slogans contra o PT. Todos tirando selfies com caros iPhones”, dizia a matéria, que afirmou ter faltado apenas “taças de champanhe” no protesto.

A revista ressaltou que o ato foi uma cena sem precedentes na história das eleições, e não somente no Brasil, já que “barões dos negócios e financistas” não costumam ir às ruas para esse tipo de manifestação. Segundo o texto, a atitude e o perfil dos eleitores reforçariam ainda mais a imagem do candidato tucano de ser um “fantoche da elite rica”, como afirmam seus opositores.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Meritocracia, trapaça e depressão

    "Lógica do sistema é permeada por monitoramento, medição, vigilância e auditorias (...) Destrói a autonomia, o empreendimento, a inovação e a lealdade e gera frustração, inveja e medo"
“Lógica do sistema é permeada por monitoramento, medição, vigilância e auditorias (…) Destrói a autonomia, o empreendimento, a inovação e a lealdade e gera frustração, inveja e medo”


Psicanalista belga relaciona competição selvagem, que marca capitalismo pós-moderno, com comportamentos antiéticos dos “vencedores” e frustração da imensa maioria. “Sejamos desgarrados”, ele sugere

Por George Manbiot | Tradução Eduardo Sukys | Imagem: John Bellany

Estar em paz com um mundo atormentado: não é uma meta sensata. Ela pode ser conquistada apenas negando tudo aquilo que cerca você. Estar em paz com você mesmo dentro de um mundo atormentado: essa é, ao contrário, uma aspiração nobre. Este texto é para as pessoas que estão em conflito com a vida. Ele faz um apelo para você não se envergonhar disso.

Senti o ímpeto de escrevê-la ao ler um livro notável de Paul Verhaeghe, um professor belga de psicanálise. What About Me? The Struggle for Identity in a Market-Based Society [E quanto a mim? A luta por identidade em uma sociedade baseada no mercado,sem tradução em português] é uma dessas obras que, ao fazer conexões entre fenômenos aparentemente distintos, fomenta novos insights sobre o que está acontecendo conosco e porquê.

Somos animais sociais, argumenta Verhaeghe, e nossas identidades são formadas pelas normas e valores que absorvemos de outras pessoas. Toda sociedade define e molda sua própria normalidade e sua própria anormalidade, de acordo com narrativas dominantes, e busca fazer com que as pessoas obedeçam — caso contrário as exclui.

Hoje, a narrativa dominante é do fundamentalismo de mercado, amplamente conhecido na como neoliberalismo. O conto é que o mercado pode resolver quase todos os problemas sociais, econômicos e políticos. Quanto menos o Estado nos controlar e taxar, melhor será nossa condição. Os serviços públicos devem ser privatizados, os gastos públicos devem ser reduzidos e os negócios devem ser liberados do controle social. Em países como o Reino Unido e os EUA, essa história molda as normas e valores há cerca de 35 anos: desde que Thatcher e Reagan chegaram ao poder. E rapidamente está colonizando o restante do planeta.

Verhaeghe indica que o neoliberalismo se apoia na ideia grega de que nossa ética é inata (e regida por um estado de natureza que chama de mercado) e na ideia cristã de que a humanidade é inerentemente egoísta e gananciosa. Em vez de tentar suprimir essas características, o neoliberalismo as exalta: essa doutrina afirma que a competição irrestrita, guiada pelo interesse próprio, conduz à inovação e ao crescimento econômico, melhorando o bem estar de todos.

Toda essa história gira em torno da noção de mérito. A competição irrestrita recompensaria as pessoas talentosas, que trabalham duro e inovam. Ela rompe com as hierarquias e cria um mundo de oportunidades e mobilidade.

Mas a realidade é bem diferente. Mesmo no início do processo, quando os mercados foram desregulamentados pela primeira vez, não começamos com oportunidades iguais. Algumas pessoas já estavam bem à frente antes de ser dada a largada. Foi assim que as oligarquias russas conseguiram acumular tanta riqueza quando a União Soviética chegou ao fim. Eles não eram, em sua maioria, os mais talentosos, trabalhadores ou inovadores, mas sim os menos escrupulosos, os mais grosseiros e com os melhores contatos, frequentemente na polícia secreta — a KGB.

Mesmo quando os resultados resultam de talento e trabalho duro, a lógica não se mantém por muito tempo. Assim que a primeira geração de empresários liberados conquista seu dinheiro, a meritocracia inicial é substituída por uma nova elite, que isola seus filhos da competição por meio da herança e da melhor educação que o dinheiro pode comprar. Nos locais onde o fundamentalismo de mercado foi aplicado com mais vigor, em países como os EUA e o Reino Unido, a mobilidade social diminui bastante.

Se o neoliberalismo não fosse uma trapaça egoísta, e se seus gurus e thinktanks não fossem financiados desde o início por algumas das pessoas mais ricas do mundo (os multimilionários americanos Coors, Olin, Scaife e Pew, entre outros), seus apóstolos teriam exigido, como precondição para uma sociedade baseada no mérito, que ninguém deveria começar a vida com uma vantagem injusta — seja riqueza herdada ou educação determinada economicamente. Porém, eles nunca acreditaram em sua própria doutrina. O empreendimento, como resultado, rapidamente deu lugar à renda.

Tudo isso é ignorado, e o sucesso ou a falha da economia de mercado são atribuídos unicamente aos esforços do indivíduo. Segundo esta crença, os ricos são os novos justos; os pobres são os novos desviados, que fracassaram econômica e moralmente e hoje são classificados como parasitas sociais.

O mercado deveria nos libertar, oferecendo autonomia e liberdade. Em vez disso, entregou atomização e solidão.

O local de trabalho foi envolvido por uma estrutura louca, kafkiana, de monitoramento, medição, vigilância e auditorias, orientada centralmente, planejada de forma rígida e cujo objetivo é recompensar os vencedores e punir os perdedores. Ela destrói a autonomia, o empreendimento, a inovação e a lealdade e gera frustração, inveja e medo. Por meio de um paradoxo incrível, ela nos levou até o renascimento de uma antiga tradição soviética conhecida na Rússia como tufta. Ela significa falsificação de estatísticas com o objetivo de atender aos ditames do poder irresponsável.

As mesmas forças afetam aqueles que não conseguem encontrar trabalho. Agora, eles precisam disputar, além de sofrer as outras humilhações do desemprego, com um nível totalmente novo de vigilância e monitoramento. Tudo isso, de acordo com Verhaeghe, é fundamental para o modelo neoliberal, que sempre insiste na comparação, avaliação e quantificação. Somos tecnicamente livres, mas incapacitados. Quer seja no trabalho ou fora dele, devemos viver com base nas mesmas regras ou perecer. Todos os principais partidos políticos as promovem — então não temos poder político também. Em nome da autonomia e da liberdade, acabamos controlados por uma burocracia esmagadora e anônima.

Verhaeghe escreve que essas mudanças vieram acompanhadas de um aumento espetacular em certas condições psiquiátricas: automutilação, distúrbios de alimentação, depressão e distúrbios de personalidade.

Dentre os distúrbios de personalidade, os mais comuns são ansiedade por desempenho e fobia social: ambos refletem um medo da outra pessoa, que é percebida tanto como avaliadora quanto como competidora, as únicas funções que o fundamentalismo de mercado admite para a sociedade. Somos atormentados pela depressão e pela solidão.

Os ditames infantilizadores do local de trabalho destroem nosso respeito próprio. Aqueles que terminam no fim da fila são acometidos por culpa e vergonha. A falácia da autoatribuição tem dois lados: assim como nos regozijamos por nosso sucesso, nos culpamos por nosso fracasso, mesmo se não tivermos qualquer responsabilidade por isso.

Portanto, se você não se encaixa ou se sente um estranho no mundo, se sua identidade está perturbada ou rompida, se você se sente perdido e envergonhado, talvez seja porque você manteve os valores humanos que deveria ter descartado. Você é um desgarrado. Orgulhe-se.