sexta-feira, 27 de julho de 2012

A nostalgia do discurso de Nuzman e o precipício


"Linda a gravata dele, não? Compramos juntos em Paris"



Por Lúcio de Castro


Faltavam dois dias para o fim dos Jogos Olímpicos de Pequim. Suficiente para definir o tamanho do Brasil em Olimpíadas. Mais uma vez a desproporção entre o dinheiro disponível para o esporte olímpico verde e amarelo e resultados se desenhava enorme. (Dinheiro estatal em sua maior porcentagem e abundante desde 2001 com a lei Agnelo/Piva, com estimativa de R$ 145 milhões em 2012. A maior parte gasta no custeio de viagens de intercâmbio para atletas em competições. Leia-se passagens compradas na agência...você sabe...).

Salvo evoluções pontuais aqui e acolá para confirmar a regra ou histórias de heroísmos isolados, um atestado de fracasso no projeto de transformar o Brasil em potência olímpica. 

Aqui abro um breve parêntesis: em 2003, a convite de José Trajano, trabalhando ainda no jornal O Globo, participei de um Bola da Vez, na ESPN, com Carlos Arthur Nuzman. Minha primeira pergunta foi sobre uma promessa dele ao assumir o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) em 1996, quando garantia que em 8 anos seriamos uma potência olímpica. Perguntei o óbvio: oito anos depois, já somos uma potência olímpica, a promessa está cumprida? Não me lembro a resposta exata, mas tenho visto que o prazo agora é 2020.

Voltando no tempo para 2008 e no espaço para Pequim, lembro-me de um esbaforido proxeneta passando no corredor do estúdio em que eu estava e dando o recado para todos ali: era preciso bater no ponto do despreparo psicológico dos nossos atletas. O povo brasileiro tinha problemas na hora de decidir. Liguei os fios. Tinha lido algo sobre um pronunciamento de Nuzman exatamente igual naquela tarde. Defendia que seria preciso repensar a questão da preparação psicológica. Que todas as condições tinham sido dadas para a preparação, mas na hora de decidir os brasileiros falhavam. Repetindo sempre que o modelo de atleta a ser seguido é Robert Scheidt. Merecida lembrança, mas por que não Ademar Ferreira, Joaquim Cruz ou Romário, o favelado do Jacarezinho, frio como o aço na hora da decisão?

Faltavam poucos minutos para entrar no ar. Fiquei ali ligando os fios, conectando o aconselhamento de opiniões do proxeneta com o discurso de Nuzman naquela tarde. Estava claro. Existia um discurso pensado e construído para justificar a desporporção absurda entre os resultados do Brasil e o dinheiro investido. E o culpado tinha nome. Como o comissário corrupto de Casablanca, a ordem era prender os suspeitos de sempre: o povo brasileiro, o Zé Povinho, para eles a sub-raça, os incapazes psicologicamente.

Lembro como se fosse hoje que entrei no programa com um nó no estômago. Uma estratégia cínica demais. Fiz a única coisa que me cabia naquele momento: falei sobre a estratégia cínica e mentirosa que estava sendo montada. Botar a culpa de mais um ciclo olímpico abaixo do dinheiro existente na fragilidade e falta de estrutura dos mestiços, os impuros vindos dos negros e índios. Os Scheidts e afins, com sangue sem mistura, estavam a salvo da fraqueza juvenil nossa na hora de decidir. Falei que aquilo era cínico e não era aceitável. Ao fim daquela noite, ainda que com o embrulho travando até a garganta, dormi a noite do Oriente em plenitude. Não estou certo de que o proxeneta apto a repetir a voz do dono possa ter feito o mesmo.

Quatro anos depois, me assusta ver que o filme se repete. O discurso está pronto. Prudentemente posto em prática antes do apito soar na charmosa Londres. Nuzman tem passado sempre pela questão da “necessidade de maior preparação psicológica para nossos atletas”. E repetido sempre que “todas as condições foram dadas”. No cínico argumento que omite a vida escolar dos nossos atletas. A história de cada um antes de se tornar, sempre por esforço próprio, em atleta de alto nível. Omite que o esporte aqui ainda está longe de ser prática sistemática desde o mais tenro banco escolar. Omite que o esporte deve ser pensado como instrumento e promoção de saúde e educação, prática massiva desde os primeiros passos escolares. Sem o qual jamais seremos a tal prometida potência olímpica. Preparem-se. Em poucos dias provavelmente o tema vai voltar. Na equação que não se explica e traduz algo de muito errado, quando o volume de dinheiro aumenta e o Brasil não evolui na mesma proporção enquanto país olímpico, o resto é o discurso cínico de botar o peso no ombro da mestiçada.

Como farsa, como a história sempre se repete, bem sabemos. O discurso não é novo. Muito pelo contrário. Essa gente miscigenada e mestiça é incompatível com o êxito desde sempre na cabeça de alguns. Fracos mentalmente. Incapazes. O final do século XIX e início do XX talvez tenha sido o período mais explícito desse pensamento. Silvio Romero e outros defendiam com todas as letras o “clareamento” do nosso povo para que pudéssemos, a longo prazo, já livres dos traços negróides, sermos equivalentes aos então superiores. Modelos do que pensavam como sociedade para o Brasil. Como vemos, muitos tem nostalgia desse discurso. 

Meu bom amigo e grande historiador Luiz Antônio Simas costuma repetir em suas brilhantes aulas e palestras que “imigração aqui foi coisa de branco. Negro só podia chegar aqui de navio negreiro”. Por todas essas convicções acima citadas. Que perduram e são muletas perfeitas para justificar o fracasso e as incompetências. 

Contem os dias. O discurso está pronto. Em poucos dias veremos o debate sobre “a fraqueza de brasileiros na hora de decidir”. Tendo como maior arauto, Carlos Arthur Nuzman, seguido pelos proxenetas sempre aptos a repetir a voz do dono.

Ele, Carlos Arthur Nuzman, que em recente perfil na Revista Piauí, foi categórico ao responder a seguinte pergunta:

“Com quem o senhor pularia de um precipício de olhos fechados?”

Resposta: “O Havelange certamente é um deles”.

Bom, Havelange já foi pulou do precipício. Ou melhor, foi pulado com uma forcinha da justiça. Entregue aos crocodilos, para desespero de tantos proxenetas, envolto na confirmação de corrupção, despencado morro abaixo.

Conforme o prometido, vai encarar solidariamente o precipício, Nuzman? Ou quem sabe, assim como o amigo, aguardar alguma forcinha?


Marxismo e “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes




Exposição de Florestan Fernandes no "Ato em Defesa do Marxismo" em 1991



Por Carlos Nelson Coutinho

Não são muitos os pensadores sociais que formularam, em suas obras, o que poderíamos chamar de uma “imagem do Brasil”. Imagens desse tipo articulam sempre juízos de fato com juízos de valor, na medida em que não se limitam a fornecer indicações para a apreensão de problemas específicos da vida social de nosso País (como, por exemplo, o sistema colonial, a industrialização, a consciência do empresariado, o movimento sindical, etc., etc.), mas se propõem — para além e/ou a partir disso — a nos dar uma visão de conjunto, que implica não só a compreensão de nosso passado histórico, mas também o uso dessa compreensão para entender o presente e, mais do que isso, para indicar perspectivas para o futuro. Forçando um pouco os termos, poderíamos dizer que tais “imagens” contêm sempre uma articulação entre ciência e “ideologia”, ou entre ser e dever-ser, o que nos permite classificá-las — conforme sua perspectiva seja conservadora ou revolucionária — como de direita ou de esquerda. Para darmos uns poucos exemplos, há “imagens do Brasil” nas obras de Gilberto Freyre e de Oliveira Vianna, que são de direita, ou na de Caio Prado Júnior, que é de esquerda.


Florestan Fernandes insere-se entre esses poucos pensadores em cuja obra podemos encontrar uma “imagem do Brasil”. Diria mesmo que o mais valioso de sua vasta produção teórica — que abordou com competência tantos e tão variados temas, da organização social dos tupinambá aos fundamentos metodológicos da sociologia, dos problemas do negro às mudanças sociais no Brasil, das questões da escola pública às vicissitudes da revolução cubana — é precisamente essa “imagem do Brasil” que ela nos fornece. Tal “imagem” nos é apresentada, sobretudo, em A revolução burguesa no Brasil [1], que eu não hesitaria em definir como a sua obra-prima, entre outras coisas pelo papel central que ocupa em sua produção teórica, na qual representa, de resto, um claro ponto de inflexão. Com efeito, embora Florestan retome nesse livro temas já abordados em obras anteriores, o faz em outro nível: trata-se do seu primeiro texto onde o marxismo é assumido explicitamente como ponto de vista metodológico. Essa centralidade de RBB se confirma, de resto, quando constatamos que as análises da sociedade e da vida política brasileiras presentes nas produções posteriores de Florestan, sobretudo nos livros de combate e nos muitos artigos jornalísticos que reuniu em várias coletâneas, inspiram-se indubitavelmente nas formulações já expostas no livro publicado em 1975.


Antes de mais nada, é preciso sublinhar o fato de que a “imagem do Brasil” proposta por Florestan é uma imagem marxista e, portanto, revolucionária. Se não é difícil apontar a presença hegemônica do método funcionalista nos primeiros trabalhos de nosso autor, é também indiscutível que o seu empenho teórico-metológico assume, sobretudo a partir de RBB, uma explícita e consciente dimensão marxista. Com isso, Florestan se insere numa tradição que se inicia com Octávio Brandão — o qual, malgrado suas evidentes debilidades teóricas, é o primeiro a tentar formular uma “imagem do Brasil” à luz do marxismo [2] —, passa por Caio Prado Júnior e pelo Partido Comunista Brasileiro [3] e chega até nossos dias. Certamente, seria uma contribuição do maior valor a realização de uma pesquisa que situasse a obra de Florestan na história do marxismo brasileiro. Como é óbvio, trata-se de uma tarefa que não posso enfrentar aqui. Irei me limitar a propor algumas comparações entre a sua “imagem do Brasil” e aquela de Caio Prado, seu mais brilhante precursor marxista, tentando indicar tópicos concretos nos quais Florestan, em minha opinião, avança com relação ao autor de Formação do Brasil contemporâneo. (O que não anula o fato de que sua reflexão, como também veremos, continua a apresentar aspectos problemáticos.) Como subsídio inicial para encaminhar essa comparação, permito-me lembrar que — tal como em Caio Prado Jr. e outros autores marxistas — o tema central da “imagem do Brasil” em Florestan é a questão da “revolução burguesa”, ou, mais precisamente, 1) dos processos que nos conduziram à “modernidade” capitalista; 2) das especificidades que, em função do modo dessa “revolução burguesa”, tornaram-se próprias do nosso capitalismo; e, finalmente, 3) das tendências e caminhos que apontam para a superação dessa formação econômico-social em nosso País.


Uma das primeiras observações a fazer, nessa comparação entre Caio Prado e Florestan, é que ambos divergem, em pontos substantivos, da “imagem do Brasil” formulada pelo PCB e pela maioria dos seus “subprodutos”. De modo extremamente esquemático, poderíamos resumir assim essa “imagem” pecebista: segundo ela, o Brasil continuaria a ser um país “atrasado”, semicolonial e semifeudal, bloqueado em seu pleno desenvolvimento para o capitalismo pela presença do latifúndio e da dominação imperialista. Em conseqüência, careceríamos ainda de uma “revolução democrático-burguesa”, que deveria ser feita com a participação de uma “burguesia nacional” supostamente antiimperialista e antifeudal. Em grande parte, tratava-se da aplicação ao Brasil do modelo de análise dos países periféricos elaborado pelo VI Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1928, um modelo cujos principais elementos foram extraídos de uma abusiva generalização da realidade chinesa da época [4]. Independentemente do caráter mais ou menos sofisticado com que foi apresentada essa “imagem” pecebista, o que se pode constatar é que, em todas as suas variantes, ela desconhece o fato de que o Brasil já havia realizado sua revolução burguesa e que, em conseqüência, pelo menos desde a República, sua formação econômico-social já era, ainda que com importantes especificidades, de tipo capitalista. Ora, tanto Caio quanto Florestan rompem com essa visão: para eles, o Brasil contemporâneo é um país plenamente capitalista, que já teria experimentado portanto uma “revolução burguesa”, mas — e é esse “mas” que torna tão significativas as suas obras, inclusive no quadro do nosso marxismo — uma revolução burguesa de tipo “não clássico”.


Na tradição marxista, há pelo menos dois conceitos elaborados para apreender processos de transição “não clássica” para o capitalismo, ou seja, processos que não seguiram o paradigma das revoluções inglesas do século XVII ou da Grande Revolução Francesa do século XVIII: refiro-me à noção de “via prussiana”, elaborada por Lenin, e à de “revolução passiva”, cunhada por Gramsci. Em Lenin, a noção serve sobretudo para definir os processos de transição para o capitalismo no campo, evidenciando o fato de que, nos casos de “via prussiana”, conservam-se na nova ordem fundada pelo capital claras sobrevivências das formas pré-capitalistas, como, por exemplo, o uso da coerção extra-econômica na extração do excedente produzido pelos trabalhadores rurais; em Gramsci, o conceito é usado para conceituar processos de modernização promovidos pelo alto, nos quais a conciliação entre diferentes frações das classes dominantes é um recurso para afastar a participação das massas populares na passagem para a “modernidade” capitalista.


Embora Caio Prado não conhecesse nenhum desses dois conceitos, certamente chegou em sua obra a muitas conclusões análogas às de Lenin e de Gramsci, podendo-se assim dizer que ele “reinventou” os conceitos dos dois pensadores marxistas. Basta recordar aqui, por um lado, suas brilhantes análises da “questão agrária” no Brasil, nas quais mostra como a transição para a modernidade se deu entre nós não só com a conservação da grande propriedade rural herdada da Colônia, mas também com a manutenção de restos pré-capitalistas (corretamente definidos por ele como escravistas e não como feudais); e, por outro, sua instigante exposição do processo da Independência brasileira, definida como uma revolução pelo alto, produzida por meio de “arranjos” de cúpula entre as classes dominantes, com completa exclusão do protagonismo das camadas populares [5]. Decerto, Florestan Fernandes dispõe de um estoque de categorias marxistas bem mais rico do que aquele utilizado por Caio Prado. Com efeito, Florestan não só conhece muito bem a produção teórica de Marx e Engels [6], mas também revela ter estudado profundamente Lenin, cuja presença, de resto, é marcante em sua produção teórica a partir de RBB. Nessa obra, encontramos ainda uma referência a Gramsci, autor que Caio Prado, mesmo em sua obra posterior à publicação dos Cadernos, parece desconhecer inteiramente. Contudo, mesmo reconhecendo a grande familiaridade de Florestan com a literatura marxista, é importante fazer aqui dois registros. Embora cite várias obras de Lenin na substanciosa bibliografia contida em RBB, é surpreendente que não conste entre elas O programa agrário da social-democracia, escrito em 1907, que é o texto onde o revolucionário russo apresenta de modo mais sistemático o seu conceito de “via prussiana”, ou seja, de um caminho “não clássico” para o capitalismo. Talvez por isso, Florestan — embora se valha em sua análise do Brasil de determinações muito próximas daquelas contidas no conceito de Lenin — jamais emprega explicitamente, seguindo nisso Caio Prado, a noção de “via prussiana”. Por outro lado, embora o único texto de Gramsci indicado na mencionada bibliografia seja o volume da edição temática dos Cadernos do cárcerereferente a Il Risorgimento — ou seja, precisamente aquele onde estão contidas as principais observações sobre “revolução passiva” —, Florestan tampouco se vale desse conceito gramsciano. Mais do que isso, ele parece não ter apreendido corretamente o sentido dessa noção gramsciana, já que afirma (embora com a cautela de dizer “provavelmente”) o seguinte: “Se se considerar a Revolução Burguesa na periferia como uma ´revolução frustrada` , como fazem muitos autores (provavelmente seguindo implicações da interpretação de Gramsci sobre a Revolução Burguesa na Itália), é preciso proceder com muito cuidado” (RBB, 294, grifo meu). Na verdade, Gramsci não se refere à “revolução passiva” como uma “revolução frustrada”, isto é, fracassada ou inexistente; ao contrário, trata-se para ele de um tipo específico de revolução exitosa, ainda que feita através de conciliações pelo alto e da exclusão do protagonismo popular, o que gera um processo de transformações político-sociais efetivas do qual resulta, em suas palavras, uma “ditadura sem hegemonia” [7]. Ora, é precisamente esse o tipo de revolução burguesa que Florestan julga ter ocorrido no Brasil, sendo evidente, ademais, a analogia entre a “ditadura sem hegemonia” de Gramsci e sua própria noção (sobre a qual voltaremos em seguida) de “autocracia burguesa”. Cabe ainda observar que, quando Florestan emprega em sua obra (o que, aliás, faz com freqüência) os termos “hegemonia” e “sociedade civil”, nunca os emprega no sentido específico com que os mesmos são utilizados na obra de Gramsci.


De qualquer modo, como já disse, é indiscutível que Florestan elabora a sua “imagem do Brasil” mediante um estoque categorial marxista bem mais rico do que aquele presente na produção de Caio Prado. Ao contrário de Florestan, que quase sempre se apóia em conceitos, Caio constrói suas análises de modo bem mais “intuitivo”, o que as torna muitas vezes ambíguas ou pouco precisas. Vejamos um exemplo concreto. Florestan diz explicitamente que o Brasil evoluiu para o presente capitalista a partir de uma formação econômico-social que não era capitalista. Já no autor de Formação do Brasil contemporâneo, ao contrário, a definição da natureza econômico-social de nosso passado aparece de modo impreciso: atribuindo às formas da circulação a prioridade na definição de uma estrutura econômica [8] — atribuição que contradiz claramente a lição marxiana —, Caio termina por confundir a presença de relações mercantis na era colonial e imperial com a existência de uma ordem capitalista (ainda que “incompleta”), o que o leva, entre outras coisas, a falar de uma suposta “burguesia agrária” para definir os nossos latifundiários escravocratas. Isso, evidentemente, prejudica sua “imagem do Brasil” não só no que se refere ao passado, mas também ao presente. Por exemplo: embora ele diga, superando os limites da “imagem” pecebista, que o Brasil moderno já é plenamente capitalista, ainda que conservando “prussianamente” elementos da velha ordem colonial, termina por subestimar as novidades introduzidas em nosso País e por construir assim uma imagem do Brasil contemporâneo onde o que predomina não é a emergência do novo, mas sim a conservação do velho. Escrevendo em 1977 e referindo-se ao presente, Caio não hesita em afirmar que “o sistema colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante, isto é, uma economia fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentares demandados pelo mercado internacional”; ou que, entre nós, ainda não há “nada que se assemelhe a um processo de industrialização digno deste nome” [9]. Tais afirmações, sem dúvida, comprometem gravemente a sua visão do presente brasileiro e, em conseqüência, tornam imprecisas as tarefas político-estratégicas da “revolução brasileira” que ele nos propõe em sua última obra significativa.


Florestan, ao contrário, afirma explicitamente que o Brasil, nas épocas colonial e imperial, não era capitalista, razão pela qual sua classe dominante — formada pelos latifundiários escravistas — não se movia, ao contrário do que supunha Caio, com base numa lógica capitalista, mas se orientava por outra “racionalidade”, chamada por ele de “patrimonialista”. É precisamente essa correta percepção que lhe permite constatar a emergência, a partir da expansão de relações comerciais na época imperial, de duas novas camadas sociais, a dos fazendeiros de café e a dos imigrantes (RBB, sobretudo 86 s.), as quais — embora sem romper inteiramente com a “velha ordem” patrimonialista — começam a agir segundo uma racionalidade propriamente capitalista, o que lhes possibilita desempenhar o papel de protagonistas principais da “revolução burguesa” que se processou em nosso País. Com efeito, tampouco Florestan escapa de algumas ambigüidades. Revelando estar ainda preso ao “ecletismo bem temperado” [10] que marca sua produção inicial (mas do qual, a meu ver, ele se liberta quase inteiramente a partir da última parte de RBB), Florestan — seguindo nisso Max Weber — define essa ordem pré-capitalista como uma “sociedade estamental e de casta”, reservando apenas para o capitalismo a designação de “sociedade de classes”. Não posso aqui me deter sobre o fato de que, segundo o marxismo — pelo menos depois de A ideologia alemã, onde Marx e Engels parecem ainda supor que classes sociais só existem no capitalismo —, a presença de estamentos ou de ordens, isto é, de segmentos fundados numa explícita desigualdade jurídica, não implica de nenhum modo a negação da realidade econômico-social das classes [11]. Se é verdade, como lemos no Manifesto comunista, que “a história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe”, então é tarefa dos marxistas definir com precisão quais eram as classes sociais que formavam a estrutura do Brasil nas épocas colonial e imperial e como se processavam as lutas entre elas.


Na verdade, já em RBB, Florestan não se recusa a enfrentar essa tarefa: embora se valha de uma terminologia weberiana (“patrimonialismo”, “estamento”, etc.), ele nos apresenta nesse livro uma análise das motivações comportamentais dos senhores de escravos que se aproxima em muitos casos de uma análise marxista, já que tais motivações são vinculadas à sua gênese nas relações sociais de produção. De resto, quando analisa os processos de transição da “sociedade estamental” para o capitalismo, Florestan não deixa de fazer intervir nessa análise a noção da luta de classes, o que novamente o aproxima do marxismo. Por outro lado, cabe anotar que o uso de noções weberianas em RBB restringe-se, essencialmente, às partes I e II do livro, que Florestan nos adverte, na “Nota explicativa” (RBB, 9), terem sido escritas em 1966; na parte III, redigida em 1973-1974, como ele também nos informa, a noção de “sociedade estamental” cede lugar aos conceitos de “escravismo” ou “escravismo colonial”, oriundos da tradição marxista. Tudo indica — mas trata-se apenas de uma sugestão para posterior exame — que, entre 1966 e 1973, Florestan aprofundou os seus estudos marxistas, em particular do pensamento de Lenin, cujos conceitos, de resto, estão fortemente presentes nessa parte III de RBB, precisamente aquela mais madura do livro em questão.


Há ainda um outro tópico no qual Florestan vai certamente além de Caio Prado. Enquanto esse último deixa o problema da especificidade de nossa “revolução burguesa” na sombra — mais sugerindo pistas do que efetivamente formulando conceitos —, o primeiro coloca explicitamente a questão e busca dar-lhe um tratamento teórico adequado. Ele diz com clareza, tendo provavelmente como alvo os autores pecebistas: “Não existe, como se supunha a partir de uma concepção europocêntrica (válida para os casos ´clássicos` da Revolução Burguesa), um único modelo básico democrático-burguês de transformação capitalista. [...] Até recentemente, só se aceitavam interpretativamente como Revolução Burguesa manifestações que se aproximassem tipicamente dos ´casos clássicos`. [...] Tratava-se, quando menos, de uma posição interpretativa unilateral” (RBB, 289-90). Florestan se coloca assim, com plena consciência, o mesmo problema já enfrentado por Lenin e por Gramsci, ou seja, o da definição de vias “não clássicas” para o capitalismo. Ora, essa consciência lhe permite, ainda em comparação com Caio Prado, o uso de recursos teóricos mais precisos para entender não apenas o específico modo da revolução burguesa no Brasil, mas também a particularidade do capitalismo que irá resultar dessa revolução. Sem negar que a conservação do “atraso”, da dependência externa, da “selvagem” exploração do trabalho, do autoritarismo, etc., gera importantes determinações específicas de nosso “moderno” capitalismo, Florestan evita porém, ao mesmo tempo, a tendência caiopradiana de dar prioridade a tais elementos “atrasados” na caracterização de nosso presente: graças a uma visão mais mediatizada, ele ressalta também os traços novos que o capitalismo introduz na vida social brasileira, destacando entre eles a industrialização e a urbanização, o revolucionamento do universo de valores, a nova estratificação social, etc. Com isso, a “imagem do Brasil” elaborada pelo nosso marxismo dá um significativo passo à frente, possibilitando uma visão mais precisa e complexa não só das contradições do nosso presente, mas também das tarefas estratégicas que se colocam aos que pretendem construir um novo futuro.


Lenin, na definição dos pressupostos de uma via “não clássica” para o capitalismo, recorre sobretudo ao modo de resolução da “questão agrária”. Florestan, ao contrário, sublinha uma outra característica para explicar a “não-classicidade” brasileira: para ele, com efeito, a peculiaridade de nossa revolução burguesa resultaria essencialmente do fato de que a mesma se processa num país dependente, primeiro do colonialismo, hoje do que ele chama de “imperialismo total”. Para ele, residiria sobretudo nesse caráter dependente e subalterno de nossa formação social a razão por que não seguimos uma “via clássica” para a modernidade; ou, mais precisamente, foi por termos sempre ocupado uma posição dependente no quadro do capitalismo internacional que não pudemos conhecer uma revolução burguesa capaz de forjar em nosso País uma superestrutura política que, referindo-se a Barrington Moore Jr., Florestan chama de “liberal-democrática”. Ao elencar os traços mais perversos do que define como a “autocracia burguesa” brasileira, Florestan nos adverte para o fato de que tais traços “são típicos da organização e do funcionamento da sociedade de classes sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido (e não se manifestam da mesma forma onde a Revolução Burguesa segue seu curso ´clássico`  ou liberal-democrático)” (RBB, 327). Além dessa dependência ao colonialismo e ao imperialismo, Florestan menciona também, como fator explicativo da via “não clássica” no Brasil, o caráter tardio de nosso desenvolvimento capitalista, que se processaria num momento histórico no qual, já tendo o socialismo se colocado na agenda política mundial, ocorreria uma batalha de vida ou morte entre ele e o imperialismo (RBB, 352). Ora, segundo Florestan, isso faz com que a burguesia brasileira prefira se aliar às velhas classes dominantes e aos segmentos militares, ao invés de tentar um compromisso mais permanente com as classes subalternas, compromisso que, se realizado, implicaria uma ampliação dos direitos de cidadania entre nós. Em estreita articulação com a dependência, que torna a burguesia brasileira carente de autonomia, o temor ao proletariado e ao socialismo contribuiu ainda mais para fazer com que essa classe adotasse, na busca da consolidação de seu domínio, o caminho de uma “contra-revolução prolongada” (RBB, 310 s.), que se apóia politicamente em formas mais ou menos explícitas de poder “autocrático”.

Decerto, esse caráter dependente e tardio de nosso desenvolvimento capitalista explica muito do caráter de nossa “revolução burguesa”, mas — ao contrário de Florestan — penso que não explica tudo [12]. A Alemanha e o Japão, por exemplo, embora não fossem países dependentes, experimentaram vias “não clássicas” para o capitalismo, marcadas também, pelo menos durante um longo período, pela construção e preservação de estruturas políticas abertamente ditatoriais; além disso, embora em ambos os casos estivéssemos diante de capitalismos “tardios”, isso não impediu que Alemanha e Japão se tornassem, por sua vez, países imperialistas. Como vimos, para Lenin (e, de certo modo, também para Gramsci), o fator decisivo na geração de uma via “não clássica” para o capitalismo é um fator interno, residindo sobretudo no modo pelo qual o capitalismo resolve a “questão agrária”: a via clássica implica uma solução revolucionária, com a destruição da grande propriedade pré-capitalista e a criação de um campesinato livre, enquanto o caminho não clássico tem lugar quando a grande propriedade e a velha classe latifundiária se conservam, introduzindo progressivamente e “pelo alto” novas relações capitalistas. Ora, a percepção disso é um dos pontos fortes da “imagem do Brasil” presente na obra de Caio Prado, que dedicou importantes estudos à analise de nossa “questão agrária” [13], nos quais mostra que o velho latifúndio se tornou capitalista sem perder muitas de suas velhas características, em particular o uso e o abuso de formas de “coerção extra-econômica” sobre o trabalhador. Penso assim que a definição florestaniana da especificidade da “revolução burguesa” no Brasil ganharia ainda mais em densidade se, além das determinações resultantes do caráter dependente e tardio do desenvolvimento capitalista entre nós, incorporasse também as determinações provenientes do modo de resolução (ou de não resolução) da nossa “questão agrária”, tão bem conceptualizado na obra de Caio Prado.


Mas, independentemente disso, o fato é que, com base em seu conceito de uma revolução burguesa de tipo “não clássico”, Florestan não só reexaminou momentos essenciais de nosso passado, mas também propôs uma brilhante interpretação marxista — talvez a mais lúcida de que dispomos até hoje — daquilo que, na época em que RBB foi publicado, constituía o nosso presente histórico. Essa análise florestaniana do presente desdobra-se em três complexos problemáticos estreitamente articulados entre si. No primeiro deles, Florestan disseca as lutas de classe que culminaram no golpe de 1964, por ele corretamente definido como uma “contra-revolução preventiva”, desfechada por uma burguesia finalmente unificada pelo temor comum de seus vários segmentos à tumultuosa ascensão dos movimentos populares no início dos anos 60. No segundo, ele conceitua os principais traços político-institucionais do regime que resultou do golpe, regime ao qual dá o nome de “autocracia burguesa” [14]; segundo Florestan, esse regime — que Gramsci certamente subsumiria sob o tipo geral definido por ele como “ditadura sem hegemonia” — seria a expressão da impossibilidade estrutural da burguesia brasileira de ampliar minimamente suas bases de consenso junto aos segmentos subalternos, o que a obrigaria a recorrer de modo sistemático e permanente à coerção aberta contra os “de baixo”.


Finalmente, no terceiro de tais complexos problemáticos, Florestan já se revelava capaz — embora estivesse escrevendo em 1973-74 — de apontar as principais características do “projeto de abertura” que então apenas se iniciava, um projeto proposto pelo regime militar para enfrentar as crescentes dificuldades econômicas e políticas em que estava sendo envolvido. Para nosso autor, a implementação desse projeto significaria apenas que “a autocracia burguesa leva a uma democracia restrita típica, que se poderia designar como uma democracia de cooptação” (RBB, 358-359). Ou seja: mediante um processo que Gramsci chamaria de “transformismo”, o regime buscava perpetuar-se no poder por meio da cooptação de alguns segmentos moderados da oposição, mas sem abandonar — um fato sobre o qual Florestan insistia sem vacilações — a sua natureza essencialmente autocrática. Com base em sua análise das características específicas da nossa burguesia, Florestan negava enfaticamente a possibilidade de que ela pudesse se reciclar estruturalmente, adotando formas mais consensuais ou democráticas (hegemônicas, como diria Gramsci) no exercício do seu poder de classe. Por isso, ele nos adverte que “não se pode dizer que tal ditadura de classe [implantada em 1964] seja transitória” (RBB, 350). De resto, como veremos, essa negação se mantém em seus escritos posteriores a RBB: até sua morte, Florestan sempre supôs que — embora pudesse alterar alguns traços inessenciais do seu modo de dominação — a burguesia brasileira seria incapaz de renunciar a estruturas autocráticas de dominação, já que tal renúncia poria seriamente em risco não só o seu poder, mas a sua própria existência como classe.


Essa suposição me parece estar na raiz de concepções equivocadas presentes na produção teórica e jornalística do último Florestan. Embora denunciasse com lucidez os limites “transformistas” do projeto de “abertura”, Florestan parece ter subestimado — em seus trabalhos posteriores a RBB — o fato de que tal projeto foi atravessado e contraditado por um processo de abertura, isto é, por um movimento social objetivo que resultou da ativação da sociedade civil, em particular dos segmentos ligados às classes trabalhadoras [15]. O “processo” de abertura, atuando de baixo para cima, abriu e conquistou espaços que nem de longe estavam previstos no “projeto” geiseliano-golberiano, que previa apenas uma reforma da autocracia “pelo alto”, com a conservação de suas características essenciais. Ora, em 1974, no momento em que escreveu a última parte de RBB, era absolutamente compreensível que Florestan subestimasse as potencialidades desse processo de abertura, já que ele só iria efetivamente tomar corpo e dimensão nacional a partir das greves do ABC, ocorridas entre 1978 e 1980, e da memorável campanha pelas “diretas-já”, que culmina em 1984. Por isso, também é compreensível — embora isso expresse mais um wishfull thinking do que uma análise realista — que sua obra-prima se encerre sugerindo que tínhamos apenas uma alternativa: ou a permanência da “autocracia burguesa” (ainda que sob as novas vestes da “democracia de cooptação”) ou a “revolução socialista” (concebida, de resto, como uma explosão violenta). Vejamos o que ele diz, no último parágrafo de RBB: “No contexto histórico de relações e conflitos de classe que está emergindo, tanto o Estado autocrático poderá servir de pião para o advento de um autêntico capitalismo de Estado, stricto sensu, quanto o represamento sistemático das pressões e das tensões antiburguesas poderá precipitar a desagregação revolucionária da ordem e a eclosão do socialismo” (RBB, 366).


Os fatos subseqüentes à publicação de RBB, embora tenham confirmado algumas das previsões ali formuladas, parecem-me ter desmentido outras tantas. Por não ter avaliado adequadamente as potencialidades do processo de abertura, Florestan continuou subestimando, em seus últimos trabalhos, o peso que os setores populares — e, em particular, a nova classe trabalhadora — tiveram nos fenômenos da transição democrática e, conseqüentemente, na definição das instituições políticas (sobretudo a Constituição de 1988) que daí derivaram. Dada a concreta correlação de forças que então se manifestou, essa nova institucionalidade foi fortemente marcada pelas lutas das classes subalternas; a meu ver, a transição — embora, em seu momento resolutivo, tenha reproduzido a velha tradição brasileira dos “arranjos” pelo alto — também foi determinada, em parte, pelas pressões que provinham “de baixo”. Por isso, não é de modo algum casual que a Constituição de 1988, que recolheu em seu texto muitas dessas pressões, tenha se tornado — desde o Governo Collor até o atual Governo Cardoso — um dos principais alvos da luta que a burguesia vem travando para consolidar entre nós uma nova forma de dominação de classe. Em sua caracterização do período, Florestan reteve apenas o momento da “reforma pelo alto”, tanto assim que designou o processo de transição em curso como uma “transação conservadora”; em conseqüência, a nova institucionalidade lhe aparecia como nada mais do que uma enésima manifestação da “autocracia burguesa”, ou, em suas próprias palavras, como o “último e surpreendente refúgio [da ditadura]” [16]. Por isso, ele continuou a supor que o único caminho para a luta pela democracia e pelo socialismo no Brasil seria o de uma revolução explosiva e violenta. Assim, escrevendo em final de 1985, ele nos diz: “O que se destroçou ? A ilusão de que um país como o Brasil possa expungir-se de iniqüidades seculares por meios pacíficos [...]. A democracia exige uma revolução social [que] rebenta de baixo [...]. Os caminhos pacíficos estão bloqueados e as ´esquerdas`  [...] precisam aprender a avançar revolucionariamente na direção de sua organização institucional” [17]. Desse modo, Florestan parece não ter visto que as novas condições abertas pela derrota da ditadura impunham às forças populares a adoção de uma nova estratégia de luta, estratégia que — para usar os conhecidos conceitos de Gramsci — já não devia recorrer à “guerra de movimento”, ao choque frontal, mas sim à “guerra de posição”, o que implicava a necessidade de substituir a proposta de uma revolução “explosiva” e violenta pela de uma revolução “processual” e hegemônica.


Esses limites da “imagem do Brasil” no último Florestan, contudo, parecem-me resultar não só dessa subestimação do processo de abertura na avaliação da nova institucionalidade construída depois de 1985, mas também de uma discutível afirmação já presente em RBB. Nesse livro, como vimos, sua correta análise da revolução burguesa no Brasil como manifestação de uma via “não clássica” que implicou em momentos decisivos o uso sistemático de formas abertamente ditatoriais e coercitivas, combina-se com uma generalização problemática, isto é, com a idéia de que a nossa burguesia careceu e carecerá sempre, para poder exercer seu domínio de classe, dessas formas ditatoriais ou “autocráticas” de poder político. (Uma análise empírica constata que o recurso a formas “não clássicas” de revolução burguesa não impede que o país que as adotou conheça, em determinadas etapas de sua história, estruturas políticas liberal-democráticas; basta recordar aqui os casos do Japão, da Alemanha, da Itália ou da Espanha.) Essa generalização faz com que Florestan não leve em consideração, em suas análises, alguns períodos históricos em que a burguesia brasileira se viu obrigada a recorrer a formas de dominação que implicam elementos de hegemonia (no sentido gramsciano), ou seja, à busca de um relativo consenso junto às classes subalternas. Penso que um movimento desse tipo ocorreu durante o chamado “período populista”, quando a burguesia — através da ideologia nacional-desenvolvimentista — buscou (e em grande medida obteve) uma hegemonia “seletiva” junto a segmentos das classes subalternas, em particular junto aos trabalhadores urbanos enquadrados na CLT [18]. Mas é outra a opinião de Florestan. Para ele, “a ´demagogia populista`  [...] era uma aberta manipulação consentida das massas populares. [...] Não existia uma democracia burguesa fraca, mas uma autocracia burguesa dissimulada” (RBB, 340). Também o período que se inicia com o “processo de abertura” e que chega até nossos dias pode ser caracterizado, a meu ver, como um contexto no qual a burguesia — constrangida pelas condições impostas pela nova correlação de forças entre ela e as classes subalternas — volta a buscar formas hegemônicas para consolidar sua dominação [19]. Mas, assim como afirma que o populismo não passou de uma “autocracia burguesa dissimulada”, Florestan também supõe, como vimos, que o período iniciado em 1985 é apenas o “último refúgio da ditadura”. Ao fazer essas observações críticas, não pretendo de modo algum negar o fato indiscutível de que, com seu salutar radicalismo, Florestan desmistificou muitas das ilusões que dominavam setores importantes da esquerda em sua avaliação da situação aberta com a chamada “Nova República”, uma expressão que, lucidamente, ele sempre fazia acompanhar ou de aspas ou de um ponto de interrogação. Quando hoje — à luz do que agora sabemos sobre os Governos Sarney, Collor e Cardoso — reexaminamos a denúncia florestaniana das tendências regressivas e conservadoras contidas na nova fase histórica que então se iniciava, somos forçados a constatar que muito daquilo que a alguns de nós parecia na época manifestação do “sectarismo” do velho Florestan era, ao contrário, uma confirmação da sua lucidez analítica e da sua capacidade de previsão. Decerto, continuo pensando que as alternativas contidas na conjuntura que se inicia no Brasil depois de 1985 não cabem no estreito dilema formulado no final de RBB e reproduzido nos últimos textos de Florestan: ou “autocracia burguesa”, ainda que mascarada sob novas formas, ou “revolução socialista”, concebida como um processo explosivo que rompe radicalmente com a nova institucionalidade que resultou da transição. Essa institucionalidade, que os trabalhadores contribuíram para criar, parece-me ser o ponto de partida da nossa difícil luta para derrotar a reestruturação do poder burguês (que agora tenta se consolidar sob uma hegemonia neoliberal) e, ao mesmo tempo, para construir — por meio de uma estratégia reformista-revolucionária — as condições para a implantação do socialismo em nosso País. Mas o fato é que, graças entre outras coisas ao radicalismo de Florestan, sabemos agora que a esquerda brasileira não pode travar essa luta se não se libertar de uma dupla ilusão: por um lado, a de que os avanços obtidos na construção de nossa democracia já estão consolidados; e, por outro, a de que, ainda que os consigamos consolidar, tais avanços sejam suficientes para realizar a verdadeira emancipação humana do nosso povo. A democracia que começamos a construir só se consolidará de modo definitivo e só realizará plenamente seu valor universal no horizonte da sua progressiva radicalização, ou seja, da sua transformação em democracia socialista.


As críticas que sugerimos aqui, ao tentar analisar a herança teórica e política de Florestan Fernandes, não pretendem ser mais (mas também não ser menos) do que propostas de autocrítica. Embora nenhum marxista tenha elaborado uma “imagem do Brasil” tão rica e lúcida como a que Florestan nos legou, sabemos — como ele também o sabia — que “o proletariado não deve recuar diante de nenhuma autocrítica, pois só a verdade pode levá-lo à vitória e, por isso, a autocrítica deve ser seu elemento vital” [20]. A tarefa coletiva de elaborar uma “imagem do Brasil” com base no marxismo — para a qual, depois de Caio Prado Júnior e de Nelson Werneck Sodré, Florestan deu certamente a maior contribuição — é uma tarefa sempre em aberto, pelo que jamais poderemos nos satisfazer com os resultados já obtidos. Ora, para o cumprimento de tal tarefa, malgrado os seus eventuais limites, Florestan não contribuiu apenas com suas brilhantes reflexões teóricas, mas também com o seu extraordinário exemplo moral. O radicalismo com que ele empreendeu sua atividade intelectual e política, sobretudo na última fase de sua vida, é uma lição que nós, intelectuais marxistas (mas não só marxistas), não podemos e não devemos esquecer. Contra os trânsfugas e os capitulacionistas, contra os que optaram pela falsa “democracia de cooptação”, a lição de Florestan nos recorda que o lugar dos intelectuais dignos desse nome é ao lado das classes subalternas, na difícil mas cada vez mais necessária luta pela revolução democrática e socialista.

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Carlos Nelson Coutinho é professor titular da UFRJ.

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Notas
[1] Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica.Rio de Janeiro: Zahar, 1975, a seguir citada no corpo do texto como RBB, seguida, quando couber, pelo número da página.

[2] Cf. Fritz Mayer [pseudônimo de Octávio Brandão]. Agrarismo e industrialismo. Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de S. Paulo e a guerra de classes no Brazil. Buenos Aires [na verdade, essa localização visava a confundir a censura], s. e., 1926. Para uma devastadora crítica desse livro de Brandão, cf. Leandro Konder. A derrota da dialética. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 144-8. 
[3] Em 1933, Caio Prado Jr. publica seu primeiro ensaio marxista, Evolução política do Brasil. Em 1942 e 1945, respectivamente, publicará Formação do Brasil contemporâneo. Colônia eHistória econômica do Brasil. Os três livros conheceram inúmeras reedições, sobretudo pela Brasiliense, São Paulo. A “imagem do Brasil” presente na trajetória do PCB pode ser reconstruída a partir dos documentos coletados em Edgard Carone. O P.C.B. São Paulo: Difel, 1982, 3 v. Para a “imagem do Brasil” própria do PCB, caberia também consultar as significativas obras de Nelson Werneck Sodré, sobretudo as escritas a partir do final dos anos 50.

[4] Para a exposição e crítica dessa “imagem” pecebista, cf. Caio Prado Júnior. A revolução brasileira. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987 (1. ed., 1966), sobretudo p. 29 s.; e Jacob Gorender. “A revolução burguesa e os comunistas”. In: M. A. D`Incao (Org.). O saber militante. Ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Unesp-Paz e Terra, 1987, p. 250-9.

[5] Sobre Caio Prado, cf. meu ensaio “Uma via ´não-clássica` para o capitalismo”. In: M. A. D`Incao. História e ideal. Ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 115-31 (reproduzido como “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”. In: C. N. Coutinho. Cultura e sociedade no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990, p. 167-83).

[6] Basta recordar aqui a longa “Introdução” que Florestan escreveu para o volume sobreMarx-Engels. História. Coleção “Grandes Cientistas Sociais”. São Paulo: Ática, 1983, p. 9-144.

[7] Antonio Gramsci. Quaderni del carcere. Ed. crítica de V. Gerratana. Turim: Einaudi, 1975, p. 1.824.

[8] “A análise da estrutura comercial de um país revela sempre, melhor que a de qualquer um dos setores particulares da produção, o caráter de uma economia, sua natureza e organização” (Caio Prado Jr. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1957, p. 266).

[9] Caio Prado Jr. A revolução brasileira, cit., p. 240 e 243. Sobre isso, cf. C.N. Coutinho. “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”, cit., p. 180 s.

[10] Gabriel Cohn. “O ecletismo bem temperado”. In: M. A. D`Incao (Org.). O saber militante, cit., p. 48-53.

[11] Aliás, é isso o que Florestan parece supor em trabalhos imediatamente posteriores a RBB: “Ao se evitar o emprego simultâneo de conceitos como ´casta`, ´estamento` e ´classe`, perde-se aquilo que seria a diferença específica na evolução da estratificação social no Brasil” (F. Fernandes. Circuito fechado. São Paulo: Hucitec, 1976, p. 47).

[12] Parece-me importante registrar que há autores marxistas brasileiros que, embora por caminhos diferentes aos de Florestan, também insistem em definir nossa “não-classicidade” na transição para o capitalismo recorrendo prioritariamente a tais determinações provenientes da dependência do Brasil ao mercado internacional. É o caso, por exemplo, de J. Chasin (O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Ciências Humanas, 1978) e de Antonio Carlos Mazzeo (Estado e burguesia no Brasil. Belo Horizonte: Oficina do Livro, 1989), que se referem a uma “via colonial” ou “colonial-prussiana” para definir a modalidade de nossa “revolução burguesa”.

[13] Cf., por exemplo, os textos reunidos em Caio Prado Júnior. A questão agrária no Brasil.São Paulo: Brasiliense, 1979.

[14] Embora Florestan tenha indicado com precisão os traços essenciais do regime ditatorial implantando no Brasil entre 1964-1985, inclusive negando corretamente que ele pudesse ser caracterizado como “fascista” (já que não recorria à organização das massas), parece-me impróprio o seu emprego do termo “autocracia burguesa”. Recorrendo a uma periódica mudança de “Presidentes”, o poder ditatorial brasileiro da época não se encarnou numa única pessoa e, nessa medida, não pode ser chamado de “autocrático”. Indagado sobre as razões do uso desse termo por Florestan, o amigo Octávio Ianni me deu uma explicação convincente: o autor de RBB teria se valido de uma expressão cunhada por Lenin para caracterizar a autocracia czarista em sua última fase, quando — sem deixar de ser autocrático (o czar se dizia mesmo “autocrata de todas as Rússias”) — o czarismo já atuava essencialmente como um Estado burguês. Insisto, porém, em que a “licença poética” a que Florestan recorreu não anula de nenhum modo a sua correta caracterização conteudística do poder ditatorial resultante do golpe de 1964.

[15] Para a dialética entre “projeto” e “processo” de abertura, cf. C.N. Coutinho. “Democracia e socialismo no Brasil de hoje”. In: Id. Democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 1992, p. 47-78.

[16] Florestan Fernandes. Nova República?. Rio de Janeiro: Zahar, 1986, p. 8 passim. Cf. também os artigos e intervenções reunidos em Id. A Constituição inacabada. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, passim.

[17] Florestan Fernandes. Que tipo de República?. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 54.

[18] Sobre essa “hegemonia seletiva” na época populista, cf C.N. Coutinho. “Crise e redefinição do Estado brasileiro”. In: A.M. Peppe e I. Lesbaupin (Orgs.). Revisão constitucional e Estado democrático. São Paulo: Loyola, 1993, p. 84 s.

[19] Cf. C.N. Coutinho. “Democracia e socialismo no Brasil de hoje”, cit.

[20] Georg Lukács. História e consciência de classe. Porto-Rio de Janeiro: Escorpião-Elfos, 1989, p. 107.


Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

26 de Julho de 1953 - "A História me absolverá!" (16 de outubro de 1953)

Quando no dia 26 de Julho de 1953 um grupo de 135 jovens comandados por Fidel Castro participou no assalto ao Quartel Moncada em Santiago de Cuba, na tentativa de a partir daí armar a população para derrubar o governo fantoche de Fulgêncio Batista, estavam muito longe de imaginar o que viria a passar-se nos seis anos seguintes. Desta acção resultou a morte da maioria dos revolucionários e a prisão dos restantes, tendo Fidel sido condenado a 15 anos de prisão, em cujo julgamento proferiu a célebre frase de que “a história me absolverá”.

Pese embora a derrota militar sofrida, este dia acabou por marcar definitivamente o rumo do futuro movimento revolucionário que adoptou a sigla M-26, desenvolvendo-se por todo o país acções de sensibilização e recrutamento de apoiantes que na clandestinidade se preparavam para o momento em que os principais líderes seriam libertados, já que a pressão exercida quer por instituições, quer pelo povo anónimo a isso conduziria inevitavelmente.

Por isso, foi com enorme expectativa e interesse que tive a oportunidade de visitar o “presídio modelo” na Ilha da Juventude onde Fidel, Raul e os restantes companheiros estiveram encarcerados, podendo, pelo que vi, imaginar as precárias condições e o total isolamento a que foram submetidos até à sua libertação em 15 de Maio de 1955, beneficiando de uma amnistia presidencial. Nesse mesmo dia e instado pelos jornalistas que o aguardavam, Fidel afirmou: “continuaremos lutando até obter a independência de Cuba”.

Exilando-se no México dois meses após a sua libertação, Fidel inicia de imediato os preparativos para voltar a Cuba com uma expedição de revolucionários, desembarcando do pequeno iate “granma” no dia 2 de Dezembro de 1956 na praia “Las Coloradas” e daí seguindo para a “Sierra Maestra” onde permaneceu dois anos até ao triunfo da Revolução em 1 de Janeiro de 1959.

Se até aí o “Movimento 26 de Julho” tinha desempenhado um extraordinário trabalho na organização política de inspiração Martiana, a partir do início da luta armada passou também à acção militar e ao apoio logístico dos revolucionários que combatiam o exército governamental.

Assim e em homenagem a todos os “Moncadistas” é celebrado em 26 de Julho o Dia Nacional de Cuba com manifestações patrióticas por todo o país, nunca esquecendo aqueles que nesse dia deram a sua vida para que hoje Cuba possa ser livre e independente de qualquer subjugação imperialista.

Como escreveu José Marti, “Pátria é comunhão de interesses, unidade de tradições, unidade de fins, fusão docíssima e consoladora de amores e esperança”.






A HISTÓRIA ME ABSOLVERÁ!

Discurso de defesa de Fidel Castro, por ocasião de seu julgamento pelo ataque ao quartel de Moncoda, em 16 de outubro de 1953.

“A primeira condição da franqueza e da boa fé num propósito é fazer exatamente o que ninguém faz, ou seja, falar com absoluta clareza e sem medo. Os demagogos e os políticos profissionais querem praticar o milagre de estar bem com tudo e com todos, enganando necessariamente a todos em tudo. Os revolucionários devem declarar suas idéias com coragem, definir seus princípios e revelar suas intenções para que nenhuma pessoas se engane, nem amigos nem inimigos...”

(...) “Cuba poderia abrigar maravilhosamente uma população três vezes maior. Não existe, portanto, razão para que haja miséria entre seus habitantes. Os mercados deveriam estar repletos de produtos. As despesas das casas deveriam estar cheias. Todos os braços poderiam estar produzindo com labor. Não, isso não é concebível. O inconcebível é que existam homens que durmam com fome enquanto uma polegada de terra sem semear. O inconcebível é que existam crianças que morrem sem cuidados médicos. O inconcebível é o fato de 30 por cento de nossos camponeses não saberem assinar o próprio nome e 99 por cento não conhecerem a história de Cuba. O inconcebível é a maioria das famílias de nossos campos estarem vivendo em condições piores que os índios encontrados por Colombo ao descobrir a terra mais bonita que os olhos humanos já contemplaram...”

(...) “Vou contar-lhes uma história. Era uma vez uma república. Tinha uma Constituição, suas leis, suas liberdades. Presidente, Congresso, tribunais. Todo mundo podia se reunir, associar-se, falar e escrever com inteira liberdade. O governo não satisfazia o povo, mas este podia mudá-lo, e faltavam apenas poucos dias para fazê-lo. Havia uma opinião pública respeitada e acatada, e todos os problemas de interesse da população eram discutidos com liberdade. Havia partidos políticos, (...) programas polêmicos de televisão, manifestações, e palpitava no povo o entusiasmo. Esse povo tinha sofrido muito, e se não era feliz queria sê-lo, e possuía tal direito. Tinha sido enganado muitas vezes, e via o passado com verdadeiro horror. Acreditava cegamente que esse passado não poderia voltar. Estava orgulhoso de seu amor à liberdade e vivia convicto de que ela seria respeitada como coisa sagrada. Sentia uma confiança digna, de que ninguém ousaria cometer o crime de atentar contra as instituições democráticas. Queria uma mudança, algo melhor, queria um avanço e os percebia próximos. Toda a sua esperança estava no futuro.

“Pobre povo! Uma manhã a população acordou estremecida. Nas sombras da noite, os fantasmas do passado se haviam conjurado, enquanto ela dormia, e eis que a tinham agarrado pelas mãos, pelos pés e pelo pescoço. Aquelas garras eram conhecidas, (...), aquelas botas... não era um pesadelo, tratava-se da horrível realidade: um homem, chamado Fulgêncio Batista, acabava de combater o terrível crime que ninguém esperava.

“Aconteceu, então, que um simples cidadão daquele povo, que desejava acreditar nas leis da república e na integridade de seus magistrados, a quem vira muitas vezes enraivecer-se contra os infelizes, procurou o Código de Defesa Social para ver quais castigos previa a sociedade para o autor de semelhante ato...

(...) “Sem dizer nada a ninguém, com o código em uma mão e os papéis na outra, o tal cidadão apresentou-se no antigo casarão da capital, onde funcionava o tribunal competente, que tinha a obrigação de instaurar processo e punir os responsáveis por aquele ato, e apresentou um documento em que denunciava os delitos e pedia para Fulgêncio batista e seus dezessete cúmplices a condenação a 108 anos de prisão, como previa o Código de Defesa Social, com todas as agravantes de reincidência, perfídia e ação na calada da noite.

(...) “Senhores juízes: sou eu aquele humilde cidadão que um dia apresentou-se inutilmente diante dos tribunais para lhes pedir que punissem os ambiciosos que violaram as leis e destroçaram as nossas instituições. E agora, quando sou eu o acusado de querer derrubar esse regime ilegal e restabelecer a Constituição legítima da república, sou mantido incomunicável numa cela por 76 dias, sem poder falar com ninguém nem sequer ver meu filho. Sou levado pela cidade entre duas metralhadoras (...), sou transferido a este hospital para ser julgado em segredo com toda a severidade e um promotor, com o Código na mão, solenemente, pede para mim 26 anos de prisão.

“Dirão que aquela vez os juízes da república não atuaram porque estavam impedidos pela força. Confessem, então: desta vez também a força os obriga a condenar-me. Da primeira vez não puderam punir o culpado. Da segunda, terão de castigar o inocente. A donzela da Justiça é duas vezes violada pela força.

“E quanta impostura para justificar o injustificável, explicar o inexplicável, conciliar o inconciliável! Até que decidiram por fim afirmar, como motivo supremo, que o fato cria o direito. Ou seja, que o fato de ter lançado os tanques e os soldados à rua, tomando o palácio presidencial, o Tesouro da república, e os demais edifícios oficiais, e de apontar armas para o coração do povo cria o direito de governá-lo. Argumento semelhante utilizaram os nazistas que dominaram os países da Europa e neles instalaram governos ditadores.

Reconheço e aceito que a revolução seja fonte de direito. Mas não se poderá chamar nunca de revolução o assalto noturno, a mão armada, de 10 de março...”

(...) ”Nem no sentido de modificações profundas no sentido social, nem sequer na superfície do pântano público moveu-se uma onda que agitasse a podridão reinante. Se no regime anterior existia politicagem, roubo, pilhagem e ausência de respeito pela vida humana, o atual regime multiplicou por dez a pilhagem e multiplicou por cem a falta de respeito pela vida humana.”

(...)”...Como considerar juridicamente válida a alta traição de um tribunal cuja missão era defender nossa Constituição? Com que direito mandar para a prisão homens que vieram para dar seu sangue e sua vida pelo decoro de sua pátria? Isso é monstruoso diante dos olhos da nação e os princípios da verdadeira justiça!”

(...) “...e a ilha se afundará no mar antes que consintamos em ser escravos de alguém.”

(...) “Termino minha defesa, mas não como fazem sempre todos os advogados, pedindo a liberdade do acusado. Não posso pedi-la enquanto meus companheiros sofrem na ilha de Pinos ignominiosa prisão. Mandem-me para perto deles a fim de compartilhar a sua sorte. É concebível que os homens de valor estejam mortos ou presos numa república em que o presidente é um criminoso e um ladrão.

“Aos senhores juízes, minha sincera gratidão por terem permitido que eu falasse livremente, sem mesquinhas coações. Não lhes tenho rancor. Reconheço que em alguns aspectos foram humanos e sei que o presidente deste tribunal, homem honrado, não pode dissimular sua repugnância pelo estado de coisas reinante, que faz ditar uma sentença injusta...

“Quanto a mim , sei que a prisão será dura como nunca foi para ninguém repleta de ameaças, de provocações covardes e vis. Mas não temo isso, como não temo a fúria do tirano desprezível que extinguiu a vida de setenta irmãos meus. Condenem-me, não importa.

A História me absolverá!








quarta-feira, 25 de julho de 2012

Estados Unidos, Venezuela e Paraguai


Por Samuel Pinheiro Guimarães


A política externa norte-americana na América do Sul sofreu as consequências totalmente inesperadas da pressa dos neogolpistas paraguaios em assumir o poder, com tamanha voracidade que não podiam aguardar até abril de 2013, quando serão realizadas as eleições, e agora articula todos os seus aliados para fazer reverter a decisão de ingresso da Venezuela. A questão do Paraguai é a questão da Venezuela, da disputa por influência econômica e política na América do Sul


Não há como entender as peripécias da política sul-americana sem levar em conta a política dos Estados Unidos para a América do Sul. Os Estados Unidos ainda são o principal ator político na América do Sul e pela descrição de seus objetivos devemos começar.

Na América do Sul, o objetivo estratégico central dos Estados Unidos, que apesar do seu enfraquecimento continuam sendo a maior potência política, militar, econômica e cultural do mundo, é incorporar todos os países da região à sua economia. Esta incorporação econômica leva, necessariamente, a um alinhamento político dos países mais fracos com os Estados Unidos nas negociações e nas crises internacionais.

O instrumento tático norte-americano para atingir este objetivo consiste em promover a adoção legal pelos países da América do Sul de normas de liberalização a mais ampla do comércio, das finanças e investimentos, dos serviços e de “proteção” à propriedade intelectual através da negociação de acordos em nível regional e bilateral.

Este é um objetivo estratégico histórico e permanente. Uma de suas primeiras manifestações ocorreu em 1889 na I Conferência Internacional Americana, que se realizou em Washington, quando os EUA, já então a primeira potência industrial do mundo, propuseram a negociação de um acordo de livre comércio nas Américas e a adoção, por todos os países da região, de uma mesma moeda, o dólar.

Outros momentos desta estratégia foram o acordo de livre comércio EUA-Canadá; o NAFTA (Área de Livre Comércio da América do Norte, incluindo além do Canadá, o México); a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio das Américas - ALCA e, finalmente, os acordos bilaterais com o Chile, Peru, Colômbia e com os países da América Central.

Neste contexto hemisférico, o principal objetivo norte-americano é incorporar o Brasil e a Argentina, que são as duas principais economias industriais da América do Sul, a este grande “conjunto” de áreas de livre comércio bilaterais, onde as regras relativas ao movimento de capitais, aos investimentos estrangeiros, aos serviços, às compras governamentais, à propriedade intelectual, à defesa comercial, às relações entre investidores estrangeiros e Estados seriam não somente as mesmas como permitiriam a plena liberdade de ação para as megaempresas multinacionais e reduziria ao mínimo a capacidade dos Estados nacionais para promover o desenvolvimento, ainda que capitalista, de suas sociedades e de proteger e desenvolver suas empresas (e capitais nacionais) e sua força de trabalho.

A existência do Mercosul, cuja premissa é a preferência em seus mercados às empresas (nacionais ou estrangeiras) instaladas nos territórios da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai em relação às empresas que se encontram fora desse território e que procura se expandir na tentativa de construir uma área econômica comum, é incompatível com objetivo norte-americano de liberalização geral do comércio de bens, de serviços, de capitais etc que beneficia as suas megaempresas, naturalmente muitíssimo mais poderosas do que as empresas sul-americanas.

De outro lado, um objetivo (político e econômico) vital para os Estados Unidos é assegurar o suprimento de energia para sua economia, pois importam 11 milhões de barris diários de petróleo sendo que 20% provêm do Golfo Pérsico, área de extraordinária instabilidade, turbulência e conflito.

As empresas americanas foram responsáveis pelo desenvolvimento do setor petrolífero na Venezuela a partir da década de 1920. De um lado, a Venezuela tradicionalmente fornecia petróleo aos Estados Unidos e, de outro lado, importava os equipamentos para a indústria de petróleo e os bens de consumo para sua população, inclusive alimentos.

Com a eleição de Hugo Chávez, em 1998, suas decisões de reorientar a política externa (econômica e política) da Venezuela em direção à América do Sul (i.e. principal, mas não exclusivamente ao Brasil), assim como de construir a infraestrutura e diversificar a economia agrícola e industrial do país viriam a romper a profunda dependência da Venezuela em relação aos Estados Unidos.

Esta decisão venezuelana, que atingiu frontalmente o objetivo estratégico da política exterior americana de garantir o acesso a fontes de energia, próximas e seguras, se tornou ainda mais importante no momento em que a Venezuela passou a ser o maior país do mundo em reservas de petróleo e em que a situação do Oriente Próximo é cada vez mais volátil.

Desde então desencadeou-se uma campanha mundial e regional de mídia contra o Presidente Chávez e a Venezuela, procurando demonizá-lo e caracterizá-lo como ditador, autoritário, inimigo da liberdade de imprensa, populista, demagogo etc. A Venezuela, segundo a mídia, não seria uma democracia e para isto criaram uma “teoria” segundo a qual ainda que um presidente tenha sido eleito democraticamente, ele, ao não “governar democraticamente”, seria um ditador e, portanto, poderia ser derrubado. Aliás, o golpe já havia sido tentado em 2002 e os primeiros lideres a reconhecer o “governo” que emergiu desse golpe na Venezuela foram George Walker Bush e José María Aznar.

À medida que o Presidente Chávez começou a diversificar suas exportações de petróleo, notadamente para a China, substituiu a Rússia no suprimento energético de Cuba e passou a apoiar governos progressistas eleitos democraticamente, como os da Bolívia e do Equador, empenhados em enfrentar as oligarquias da riqueza e do poder, os ataques redobraram orquestrados em toda a mídia da região (e do mundo).

Isto apesar de não haver dúvida sobre a legitimidade democrática do Presidente Chávez que, desde 1998, disputou doze eleições, que foram todas consideradas livres e legítimas por observadores internacionais, inclusive o Centro Carter, a ONU e a OEA.

Em 2001, a Venezuela apresentou, pela primeira vez, sua candidatura ao Mercosul. Em 2006, após o término das negociações técnicas, o Protocolo de adesão da Venezuela foi assinado pelos Presidentes Chávez, Lula, Kirchner, Tabaré e Nicanor Duarte, do Paraguai, membro do Partido Colorado. Começou então o processo de aprovação do ingresso da Venezuela pelos Congressos dos quatro países, sob cerrada campanha da imprensa conservadora, agora preocupada com o “futuro” do Mercosul que, sob a influência de Chávez, poderia, segundo ela, “prejudicar” as negociações internacionais do bloco etc. Aquela mesma imprensa que rotineiramente criticava o Mercosul e que advogava a celebração de acordos de livre comércio com os Estados Unidos, com a União Européia etc, se possível até de forma bilateral, e que considerava a existência do Mercosul um entrave à plena inserção dos países do bloco na economia mundial, passou a se preocupar com a “sobrevivência” do bloco.

Aprovado pelos Congressos da Argentina, do Brasil, do Uruguai e da Venezuela, o ingresso da Venezuela passou a depender da aprovação do Senado paraguaio, dominado pelos partidos conservadores representantes das oligarquias rurais e do “comércio informal”, que passou a exercer um poder de veto, influenciado em parte pela sua oposição permanente ao Presidente Fernando Lugo, contra quem tentou 23 processos de “impeachment” desde a sua posse em 2008.

O ingresso da Venezuela no Mercosul teria quatro consequências: dificultar a “remoção” do Presidente Chávez através de um golpe de Estado; impedir a eventual reincorporação da Venezuela e de seu enorme potencial econômico e energético à economia americana; fortalecer o Mercosul e torná-lo ainda mais atraente à adesão dos demais países da América do Sul; dificultar o projeto americano permanente de criação de uma área de livre comércio na América Latina, agora pela eventual “fusão” dos acordos bilaterais de comércio, de que o acordo da Aliança do Pacifico é um exemplo.

Assim, a recusa do Senado paraguaio em aprovar o ingresso da Venezuela no Mercosul tornou-se questão estratégica fundamental para a política norte americana na América do Sul.

Os líderes políticos do Partido Colorado, que esteve no poder no Paraguai durante sessenta anos, até a eleição de Lugo, e os do Partido Liberal, que participava do governo Lugo, certamente avaliaram que as sanções contra o Paraguai em decorrência do impedimento de Lugo, seriam principalmente políticas, e não econômicas, limitando-se a não poder o Paraguai participar de reuniões de Presidentes e de Ministros do bloco.

Feita esta avaliação, desfecharam o golpe. Primeiro, o Partido Liberal deixou o governo e aliou-se aos Colorados e à União Nacional dos Cidadãos Éticos — UNACE e aprovaram, a toque de caixa, em uma sessão, uma resolução que consagrou um rito super-sumário de “impeachment”.
Assim, ignoraram o Artigo 17 da Constituição paraguaia que determina que “no processo penal, ou em qualquer outro do qual possa derivar pena ou sanção, toda pessoa tem direito a dispor das cópias, meios e prazos indispensáveis para apresentação de sua defesa, e a poder oferecer, praticar, controlar e impugnar provas”, e o artigo 16 que afirma que o direito de defesa das pessoas é inviolável.

Em 2003, o processo de impedimento contra o Presidente Macchi, que não foi aprovado, levou cerca de 3 meses enquanto o processo contra Fernando Lugo foi iniciado e encerrado em cerca de 36 horas. O pedido de revisão de constitucionalidade apresentado pelo Presidente Lugo junto à Corte Suprema de Justiça do Paraguai sequer foi examinado, tendo sido rejeitado in limine.
21- O processo de impedimento do Presidente Fernando Lugo foi considerado golpe por todos os Estados da América do Sul e de acordo com o Compromisso Democrático do Mercosul o Paraguai foi suspenso da Unasur e do Mercosul, sem que os neogolpistas manifestassem qualquer consideração pelas gestões dos Chanceleres da UNASUR, que receberam, aliás, com arrogância.

Em consequência da suspensão paraguaia, foi possível e legal para os governos da Argentina, do Brasil e do Uruguai aprovarem o ingresso da Venezuela no Mercosul a partir de 31 de julho próximo. Acontecimento que nem os neogolpistas nem seus admiradores mais fervorosos - EUA, Espanha, Vaticano, Alemanha, os primeiros a reconhecer o governo ilegal de Franco - parecem ter previsto.

Diante desta evolução inesperada, toda a imprensa conservadora dos três países, e a do Paraguai, e os líderes e partidos conservadores da região, partiram em socorro dos neogolpistas com toda sorte de argumentos, proclamando a ilegalidade da suspensão do Paraguai (e, portanto, afirmando a legalidade do golpe) e a inclusão da Venezuela, já que a suspensão do Paraguai teria sido ilegal.

Agora, o Paraguai procura obter uma decisão do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul sobre a legalidade de sua suspensão do Mercosul enquanto, no Brasil, o líder do PSDB anuncia que recorrerá à justiça brasileira sobre a legalidade da suspensão do Paraguai e do ingresso da Venezuela.

A política externa norte-americana na América do Sul sofreu as consequências totalmente inesperadas da pressa dos neogolpistas paraguaios em assumir o poder, com tamanha voracidade que não podiam aguardar até abril de 2013, quando serão realizadas as eleições, e agora articula todos os seus aliados para fazer reverter a decisão de ingresso da Venezuela.

Na realidade, a questão do Paraguai é a questão da Venezuela, da disputa por influência econômica e política na América do Sul e de seu futuro como região soberana e desenvolvida.

Samuel Pinheiro Guimarães é diplomata e embaixador

Fonte: Algo a Dizer