sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Carta aberta aos humoristas do Brasil

Queridos humoristas do Brasil,
Essa carta é minha humilde tentativa de fazer vocês colocarem a mão na consciência.
Pra começar, me apresento.
Sou, ou fui, um de vocês. Durante grande parte da década de 90, escrevi para a Revista Mad in Brazil sob o pseudônimo Xandelon. Cheguei a ser subeditor uma época, publicava quase todo número e escrevi dezenas de matérias de capa sob encomenda. Com esse dinheiro, pagava minhas contas e vivia disso.
Essa matéria de capa, sobre a Feiticeira, é minha. Será que alguém ainda lembra dela?
Essa matéria de capa, sobre a Feiticeira, é minha.
Será que alguém ainda lembra dela?

Sei como é um trabalho duro sentar na redação e espremer a cabeça até sair uma piada. Sei como é frustrante achar que a piada está ótima, testá-la com o resto da equipe… e ninguém rir.
Então, aos trancos e barrancos, sem nunca ter sido lá brilhante, posso dizer que já fui sim humorista profissional.

A dura vida do humorista profissional


Em teoria, o humor  é simples: você cria uma expectativa, e depois a subverte.
Para o humor poder existir, são necessários uma série de pressupostos culturais coletivos, compartilhados pelo humorista e seu público que, convenhamos, muitas vezes são sim machistas, homofóbicos, racistas.
A piada “Sabe como afogar uma loira? Coloca um espelho no fundo na piscina!” só funciona porque tanto humorista quanto platéia “sabem” que loiras são fúteis, vaidosas e burras. Se não compartilhassem esse “conhecimento”, não é nem que a piada não seria engraçada: ela faria tão pouco sentido que não seria nem mesmo coerente enquanto narrativa.
Naturalmente, por esse mesmo motivo, o humor é sempre local: para pessoas de outras culturas, com outros pressupostos culturais compartilhados, a historinha também não faria sentido – pois não teriam a chave pra decodificar a piada, ou seja, que loiras “são burras, fúteis e vaidosas”. (Não são.)

Se é pra sacanear alguém, sacaneie os poderosos, e não os subalternos.
Se é pra sacanear alguém, sacaneie os poderosos,
e não os subalternos.

Outro dia, a revista norte-americana Wired fez uma matéria de capa sobre humor. Pouca gente sabe, mas existem muitos estudos acadêmicos sérios (sic) sobre o humor, muita gente brilhante tentando entender: porque o engraçado é engraçado?
Enfim, uma das últimas teorias, citadas na Wired, é que o humor viria de uma violação da ordem estabelecida, seja através de dignidade pessoal (tropeçar na casca de banana, deformidades físicas), normas linguísticas (gago, fanho, sotaques), normais sociais (comportamentos inusitados), e até mesmo normas morais (bestialidade, etc), mas que ao mesmo tempo não representasse uma ameaça ao público ou à sua visão de mundo.
Essa última parte é talvez a mais importante: a violação não pode ameaçar ou contradizer a visão de mundo do público, senão ela nem será compreensível.
Usando o mesmo exemplo acima, até dá pra fazer uma piada sem loiras, mas se a sua piada incluir uma loira, ela vai ter que ser burra, mesmo contra sua vontade, pois assim que mencionar “loira” o público já vai imaginá-la “burra“, mesmo se você acrescentar que é uma loira física nuclear ganhadora do Nobel. Nesse último caso, o público certamente pensaria que a piada era justamente sobre como a loira burra conseguiu virar física nuclear ganhadora do Nobel. Mas não dá pra desfazer a associação loira + burra.
Dois em uma: piada de loira portuguesa. E mexendo os dedinhos dos pés.
Dois em um: piada de loira E portuguesa.
E mexendo os dedinhos dos pés.

Por outro lado, e é por isso que estou escrevendo essa carta, se é impossível você humorista acabar sozinho com o estereótipo da loira burra, é possível não reforçá-lo:
Basta não fazer piadas de loira burra.
Eu sei, eu sei. O estereótipo da loira burra é até inofensivo. É verdade, algumas das pessoas mais inteligentes que já conheci eram lindas loiras que enfrentavam dificuldades constantes de serem levadas a sério no ambiente de trabalho, mas e daí, né? No cômputo geral das coisas, é um pequeno problema.
Fazer rir utilizando esses estereótipos (a loira burra, o preto macaco, a bicha travesti, etc) é muito fácil. E eu não estou dizendo que vocês não podem não. O país é livre e temos liberdade de expressão justamente para isso.
Mas dá pra fazer diferente, eu peço.
Na verdade, eu desafio.

O machismo mata


Dez mulheres são assassinadas por dia no Brasil, colocando-o no 12º lugar no ranking mundial de homicídios contra a mulher. Uma em cada cinco mulheres já sofreu violência de parte de um homem, em 80% dos casos o seu próprio parceiro. Em 2011, o ABC paulista teve um estupro (reportado!) por dia. Na cidade de São Paulo, uma mulher é agredida a cada sete minutos — além de não ter tempo de fazer nada, essa pobre mulher ainda é agredida no chuveiro, no ônibus, até na privada!
Riu? É, mas não tem graça. A solução está na mão dos homens.
Faça pouco dos poderosos que podem se defender.
Faça pouco dos poderosos que podem se defender.

As mulheres são mortas em tão grandes números, e por seus próprios homens, porque existe uma cultura machista no Brasil, onde as mulheres são vistas como tendo menos valor, onde as mulheres são rotuladas ou como santas ou putas, onde uma mulher viver abertamente sua sexualidade é considerado ofensivo ou repreensível, onde a sexualidade de uma mulher tem impacto direto sobre a honra de seu companheiro.
Se você faz piadas que confirmam os lugares-comuns dessa cultura machista, que objetificam a mulher, que estigmatizam seu comportamento sexual, então você possibilita e reforça essa cultura assassina.
Você é cúmplice.
(Não deixe de ler, aqui no PapodeHomem, meu texto: Feminismo para homens, um curso rápido.)

O racismo mata


Entre 2002 e 2007, o número de homicídios cujas vítimas eram jovens negros aumentou 49%. De cada 100 mil habitantes, morrem por homicídio 30,3 brancos e 68,5 negros. A probabilidade de ser vítima de homicídio é 12 vezes maior para adolescentes homens e, dentro desse grupo, quatro vezes maior para jovens negros. De cada três jovens assassinados, dois são negros. A população negra teve 73% de vítimas de homicídio a mais do que a população branca.
Os negros são mortos em proporções tão altas, em comparação ao restante da população, porque existe uma cultura racista no Brasil, onde os negros são vistos como tendo menos valor, onde os negros são hiperssexualizados como “negões pauzudos” ou “mulatas rebolantes”, onde o negro é sempre o preguiçoso ou o malandro, o atleta ou o faxineiro, mas nunca (ou raramente) o físico quântico ou o médico, o enxadrista ou galã pegador.
Rárárá! Esse Danilo é ótimo! Só que não.
Rárárá! Esse Danilo é ótimo! Só que não.

Se você faz piadas que confirmam os lugares-comuns dessa cultura racista, que denigrem o negro (inclusive usar o verbo “denegrir”), que comparam o negro a animais, que classificam o tipo de cabelo característico dos negros de ruim, que associam o negro à pobreza, ao crime, à ignorância e a tudo o que há de mais baixo na escala social, então você possibilita e reforça essa cultura assassina.
Você é cúmplice.

A homofobia mata


Em 2010, foram mortos 260 homossexuais no Brasil, 62 a mais que em 2009 (198), um aumento de 113% desde 2007 (122). Nos EUA, com 100 milhões a mais de habitantes, moram mortos 14. Um homossexual brasileiro tem 785% mais chances de morrer vítima de violência que um norte-americano. As coisas parecem estar piorando: só nos primeiros dois meses de 2012, foram 80 assassinatos confirmados. Mantido esse padrão, teremos 500 homossexuais assassinados até o final de 2012. Nenhum país do mundo mata tantos homossexuais quanto o Brasil.
Os homossexuais são mortos em proporções tão altas, em comparação ao restante da população, porque existe uma cultura homofóbica no Brasil, onde os homossexuais são vistos como tendo menos valor, onde os homossexuais são hiperssexualizados como máquinas de foder sempre prontos para o sexo casual, onde o homossexual é sempre retratado como ridículo, efeminado, exagerado, folclórico, onde a tentativa de ensinar às crianças que homossexualidade é normal é rotulada de “kit gay”, onde a tentativa de dar direitos iguais aos homossexuais é rotulada de “ditadura gay”, onde a pregação de que os homossexuais são pecadores que vão pro inferno é protegida pela “liberdade de expressão”.
Se você faz piadas que confirmam os lugares-comuns dessa cultura homofóbica, que estigmatizam e ridicularizam os homossexuais, que utilizam o homossexual como xingamento como se ser homossexual fosse intrinsecamente ruim, que associam o homossexual ao pecado e à devassidão, ao ridículo e ao nojento, então você possibilita e reforça essa cultura assassina.
Você é cúmplice.
(Não deixe de ler, aqui no PapodeHomem, esse depoimento: “Queria ser hétero, mas não consigo”, editado e comentado por mim.)

Não reclame da “patrulha”


“Patrulha” são soldados armados que podem te matar se você os desobedecer.
Torcer o nariz para as piadas racistas, homofóbicas ou machistas de um comediante não é “patrulha”.
É o público exercendo pacificamente sua liberdade de expressão de considerar babaca um comediante que faça piadas racistas, homofóbicas ou machistas.
Esses pobres humoristas “perseguidos” que reclamam da “patrulha politicamente correta” não estão defendendo a liberdade de expressão: liberdade de expressão de verdade é o cara poder fazer piada sobre mulher estuprada e nós podermos criticá-lo por isso.
Na verdade, a liberdade que querem esses paladinos do “politicamente incorreto” é a liberdade de falar os maiores absurdos sem nunca serem criticados.
Aí é fácil, né? Assim eu também quero.
Nunca vi ninguém não-babaca se dizendo "politicamente incorreto".
Nunca vi ninguém não-babaca se dizendo “politicamente incorreto”.

[E]sse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram racistas, gente. Pode ter certeza que seus tataravôs já comparavam negros com macacos. Aposto como seus tataravôs já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia teve em ser estuprada. Vocês não são moderninhos, não são ousados, não são criativos. Vocês estão apenas seguindo uma tradição.
Falar besteira, qualquer criança fala.
Adulto é quem sabe que falar significa se abrir para a possibilidade de ouvir a resposta. Adulto é quem entende que ele tem a mesma liberdade de falar que seus críticos tem de criticá-lo.
[O humor] não tem que ter limites. O que a gente tem que ter também é uma crítica ilimitada. O humor tem que ser solto como qualquer linguagem humana tem que ser solta e livre, o que a gente tem é que ter o direito de exercer o poder da crítica sobre isso permanentemente. Então você dizer que uma piada é racista, ou sexista, e argumentar nessa direção, não é censurá-la, é exercer seu direito de crítica.
Tudo que hoje falam do casamento gay era o que falavam do casamento interracial.
Tudo que hoje falam do casamento gay
era o que falavam do casamento interracial.
Pra encerrar, amigos humoristas, não esqueçam nunca qual é a função social mais importante da liberdade de expressão:
Sem ela, como saberíamos quem são os idiotas?

Façam pouco dos agressores e não dos agredidos


Não existe piada inofensiva: se alguém gargalhou é porque alguém se fudeu.
A questão é: quem se fode nessa piada?
Se é a vítima, o subalterno, a minoria, a mulher, o gay, o negro, etc, então essa piada é parte do problema. Ela confirma, apóia, sustenta a ideologia dominante. Ela está à serviço do machismo, do racismo, da homofobia.
Quando um gay é agredido com uma lâmpada na Av Paulista, os roteiristas do Zorra Total não podem levantar as mãos e se declarar inocentes. E nem quem assiste e ri.
O "santo" Monteiro Lobato era muito racista - e a Emília também.
O “santo” Monteiro Lobato era muito racista – e a Emília também.

Mas não é necessário vocês humoristas se autocensurarem ou se tornarem vendedores de seguros. Por que não fazer piadas de gays… onde são os homofóbicos que se fodem? Piadas de estupro… onde quem se fode são os estupradores?
Vocês, humoristas, são livres para fazer piadas sobre o que quiserem. Mas também são cidadãos dotados de consciência. Os números da violência contra a mulher são impressionantes. Somos o país que mais mata gays. Nossos jovens negros são vítimas da maioria desproporcional dos homicídios.
A escolha é nossa, tanto humoristas quanto consumidores e repassadores de humor: queremos ser parte da solução ou parte do problema? Queremos estar do lado de quem mata ou estender a mão à quem está morrendo?
Essa discussão não é abstrata. Não estamos falando sobre princípios filosóficos. Tem gente morrendo AGORA.
O humor ajuda a perpetuar o racismo.
O humor ajuda a perpetuar o racismo.
Ou a denunciá-lo. A escolha é de vocês.

É muito mais difícil fazer humor sem usar esses estereótipos que confirmam e fortalecem as culturas assassinas do nosso país: a homofobia, o machismo, o racismo.
Será que vocês conseguem? Será que conseguem, ao mesmo tempo, ser engraçados e não ser cúmplice dos assassinatos de mulheres, negros homossexuais.
Sei que não é fácil. Se fosse fácil, eu não estaria pedindo. Se fosse fácil, eu não estaria propondo o desafio.
Mas é tão necessário. É tristemente necessário.
Porque os humoristas alemães que faziam piadas de judeu em 1935 não são inocentes de Auschwitz não.
Fazer rir é relativamente fácil. Difícil é fazer rir sem ser babaca.
"Não tenho nenhum preconceito, mas... (sou babaca)"

Não deixem de assistir o documentário abaixo


Esse texto todo, na verdade, foi só pra apresentar esse documentário. Assistam. Todos os melhores argumentos estão aí. Os melhores comediantes do Brasil. Gente do mais alto gabarito.
Se você acha que a “patrulha do politicamente correto está insuportável”, assista agora.
E depois você me conta.

Link YouTube | “O Riso dos Outros”, magistral documentário sobre humor e politicamente correto, por Pedro Arantes.

* * *
Ah, atualmente, mantenho a minha veia de humorista ainda viva mantendo o tumblr Classe Média Sofre, minha humilde tentativa de fazer “humor do bem”, o que quer que isso seja. Deem uma olhada e me digam como estou me saindo.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // todos os meus textos são rigorosamente ficcionais. // se gostou, mande um email, me siga nofacebook, compre meus livros, faça uma doação ou venha às minhaspalestras (as próximas são em brasília, 14set, e porto alegre, 5out) // meu novo site: menos.vc

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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Proibição de máscaras revela limites do Estado Burguês




A Constituição Federal burguesa se reinventa em seus bastidores ao sabor da luta de classes. Por quê? Ora, a mesma Constituição Federal que garantiria “livre direito à manifestação”, face ao concreto da luta de classes, julga totalmente legítimo e inquestionável que políticos burgueses regionalizados, como no caso do Rio de Janeiro, legislem, pondo limites à essa própria Constituição Federal. Ora, se protestar com máscaras agora é proibido, o que isso significa? Que foi para as calendas gregas a ideia de “livre direito à manifestação”. Interessante que nenhum político constitucionalista vem a público defender a Lei Magna do país, nessa circunstância, ou seja, a lei anda de acordo com as conveniências da classe burguesa dominante e o resto é silêncio…
No Rio de Janeiro, portanto, claramente, a Constituição Federal sofreu essa modificação limitadora: ali “não se pode mais protestar livremente”, conforme garantiria a lei. Ou seja, não podendo usar máscaras em protestos, logo, a liberdade individual de protestar sofreu CENSURA. Aliás, fica a pergunta, até que ponto se pode protestar livremente no país de nossos dias, quando a cada novo protesto, aumenta a lista dos prisioneiros políticos do regime?
O que é que pode então? Escandalosamente, no Estado Burguês, o único tipo de protesto que pode ocorrer são aqueles que não vão incidir sobre a lógica constituída da reprodução das relações de produção. Em outras palavras, pode-se protestar à vontade, desde que nada de significativo altere na lógica da ordem social burguesa, mantendo intacto o seu sistema de exploração de mais-valia da classe trabalhadora, seguida da opressão dos pobres.
Por que, então, sindicatos e partidos de esquerda são “permitidos” no Estado Burguês, já que estes costumam falar em políticas que apontam para a “transformação das relações de produção”? Simplesmente porque estas instituições ainda estão sobre o total domínio jurídico-ideológico do Estado Burguês: suas políticas, na prática, não ameaçam o limite da ideologia-jurídica burguesa. Caso os sindicatos e partidos de esquerda comecem romper os limites da “legalidade política” burguesa, estes passarão a ser considerados como hordas de criminosos.
Refazemos aqui a questão que já lançamos anteriormente, em outro texto, nesse mesmo blog: por que só os políticos burgueses de plantão podem usar máscaras, desviando verbas dos serviços públicos, votando secretamente em suas instâncias representativas, prestando contas mascaradas dos gastos públicos? Ah, essas máscaras não incomodam a lógica do capitalismo.
Enfim, na verdade, os manifestantes mascarados colocaram o dedo na ferida do sistema capitalista burguês e este, com seus políticos mascarados-descarados, reagiu. Agora o Estado Burguês e seus cúmplices querem colocar os manifestantes que usam máscaras na cadeia, para que tudo volte a ser como antes, tudo docemente burguês! Essa medida vai conter os rebeldes que surgiram nesse país? Duvidamos muito. Enquanto houver exploração e opressão, haverá os que desafiam a ordem podre!
Por: Gílber Martins Duarte – Socialista Livre – Conselheiro do Sind-UTE / MG e diretor da subsede do Sind-UTE em Uberlândia – Professor da Rede Estadual de Minas Gerais – Doutorando em Análise do Discurso/UFU – Membro da CSP-CONLUTAS.

domingo, 8 de setembro de 2013

Médico cubano: 'Pessoas não compreendem que não viemos ao Brasil ganhar dinheiro'

Rodolfo Garcia tem três mestrados e já atendeu no Brasil entre 2002 e 2005. Ele elogia a vontade do governo em apostar no Mais Médicos e afirma que segredo de Cuba é prevenção 
Por Najla Passos da Carta Maior

Um ano antes de Brasil, Cuba e a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) firmarem o polêmico contrato que permitiu a vinda dos cubanos para atuar no programa Mais Médicos, eles já se preparavam para enfrentar os desafios da saúde pública brasileira. Um dos instrutores do curso de formação que englobou ensino da língua portuguesa e realidade da saúde no país foi o cubano Rodolfo Garcia, 50 anos, conhecedor dos sistemas de saúde das duas nações.
Com 26 anos de prática médica, uma especialização, três mestrados e um doutoramento recém-iniciado, Garcia trabalhou no Brasil de 2002 a 2005 e, agora, está de volta. Em Conceição do Araguaia, no sul do Pará, atuou à frente do Programa de Saúde da Família (PSF). Orgulha-se de ter melhorado a qualidade de vida de muitos idosos. “Tenho muitas saudades dos meus velhinhos de lá”, disse à reportagem de Carta Maior, com lágrimas escorrendo pela face. “Me apaixonei pelo povo brasileiro. E por isso voltei”.
Ciente de que em um país continental como o Brasil os desafios da saúde pública são muito maiores do que na pequena ilha onde vive, ele aponta como a experiência cubana poderá ajudar, disseca o funcionamento do sistema de saúde baseado em prevenção, lista as doenças transmissíveis já erradicadas da ilha e explica por que, em Cuba, os pacientes não morrem na fila de espera por um leito. Ele também fala sobre suas expectativas quanto ao Mais Médicos. “Com a vontade política que estou vendo agora, vai no caminho certo”.
Rodolfo Garcia - Foto: Bruno Peres/RBA

Rede Brasil Atual: Em que circunstâncias você veio trabalhar no Brasil, na década passada?

Rodolfo Garcia: Primeiramente, eu vim para o Amapá, como consultor de atenção básica, na frente de um grupo de 40 médicos, que viriam em seguida. Fiquei uns três ou quatro meses, mas não deu certo por causa da briga dos médicos de lá. Então, prestei um exame de proficiência em língua portuguesa, fui aprovado, e segui para o Sul do Pará, em Conceição do Araguaia, onde trabalhei com duas equipes de Programa de Saúde da Família (PSF). Depois passei rapidamente por Tocantins, mas foi em Conceição do Araguaia que fiquei mais tempo. E foi muito legal.
Me relacionei muito bem com as enfermeiras, com a equipe e com a Secretaria de Saúde da cidade. Nós fizemos muita coisa boa na reorganização da atenção básica às grávidas, às crianças, aos adolescentes, com planejamento familiar. Mas a ação de maior impacto, em parceria com organizações da sociedade civil, foi desenvolvida com um grupo de idosos. Eu tenho fotos, revistas e jornais da época, que divulgaram tudo. O projeto se chamava Agita Conceição. Nós começamos com poucos idosos, mas depois o projeto foi crescendo muito. Nós chegamos a fazer desfile de moda com pessoas de mais de 80 anos.

Então, era mais do que um programa de atenção à saúde, nos moldes que conhecemos aqui?
Acontece que em Cuba a medicina familiar tem outro conceito, um conceito muito social. Você olha a pessoa na consulta, depois você visita a pessoa na casa dela, conhece os problemas da família e tenta ajudar de algum jeito. Muitas vezes, as pessoas da terceira idade não são bem atendidas pela família. Então, nós tentamos integrá-las. Em Conceição do Araguaia nós fazíamos academia pela manhã, depois alguma atividade cultural, com muito apoio das organizações de massa da região, da secretaria municipal de saúde, das equipes de PSF. Nós íamos com os velhinhos à praia, fazíamos almoços coletivos, atividades esportivas. Era muito, muito, muito legal. Eu tenho muitas saudades da equipe, do pessoal da Secretaria de Saúde e dos meus velhinhos.

A barreira da língua não atrapalhava o atendimento aos pacientes?
Eu me entendia muito bem com eles. E tenho certeza que ocorrerá o mesmo com os colegas que estão chegando. Antes de vir para o Brasil, eu fiz um pequeno curso de um mês. Depois, já no Brasil, estudei mais. E toda a turma que está chegando agora já fez algumas aulas. E o curso de acolhimento do Programa Mais Médicos está reforçando a fala portuguesa dos médicos cubanos. Todos já conseguem entender tudo. E mais de 80% já estão falando muito bem. E nós chegamos ao Brasil há poucos dias.

Você acredita que este programa vai ajudar a melhorar a saúde pública brasileira?
Esse programa vai dar certo por causa da concepção da medicina preventiva. Em Cuba, o médico geralmente mora onde moram seus pacientes. Aqui também vai morar pertinho. A troca de experiências, a troca de sentimentos, a humanização da saúde que nós temos, a forma com que nós fomos formados vai ajudar a fazer acontecer. O médico vai acompanhar cada uma das famílias, com enfermeiros, auxiliares de enfermaria e agentes comunitários de saúde. O médico se converte em mais um membro das famílias.
É assim que trabalhamos lá. Fazemos um diagnóstico da situação de saúde e, além disso, um levantamento das pessoas mais carentes, as que mais precisam, que passam a ter prioridade. Então, o médico conhece a problemática. É uma missão muito integradora das condições sociais, higiênicas e epidemiológicas da região, das condições familiares, de mortalidade, das causas principais porque as pessoas ficam doentes e dos fatores de risco que condicionam isso. É uma medicina 100% trabalhada na prevenção, e não depois que o paciente fica doente. É trabalhar para que a pessoa não fique doente.

A diferença do sistema de saúde cubano tem a ver com a formação dos médicos, com essa visão mais integrada do paciente com seu meio?
Eu tenho trabalhado em vários países e tenho visto vários sistemas. A medicina cubana é preventiva, como eu falava. Nós olhamos muito para os fatores de risco, para evitar que a pessoa fique doente. É o princípio fundamental. Nós trabalhamos na prevenção e, se mesmo assim a pessoa fica doente, trabalhamos com a prevenção de outras doenças, tanto transmissíveis como não transmissíveis, para evitar as complicações. Além disso, trabalhamos com a reabilitação das pessoas que já ficaram doentes e ficaram com algum grau de incapacitação.
Foi o que fizemos com os idosos de Conceição de Araguaia, além de aproveitarmos a oportunidade para falar da alimentação, dos possíveis fatores de risco, dos problemas ou possibilidade que têm essas pessoas da terceira idade de sofrerem quedas, depressão... E tentamos de todo jeito apoiá-los. Eu fico muito emocionado quando falo porque tenho muitas saudades dos meus velhinhos de lá [lágrimas escorrem pela face].

Conceição do Araguaia é uma cidade pequena? É pobre?
Fica no Sul do Pará, na fronteira com Tocantins. É uma cidade pequena, é pobre, mas não muito. Mas uma coisa que pude observar é que lá as pessoas são felizes. Eu quero mandar um beijo muito grande e um abraço muito grande para todos os meus amigos que ficaram lá. Quero muito revê-los e ter notícias de todos.

Qual a sua especialidade médica?
Eu sou especialista em Medicina e Atenção à Saúde, mestre em saúde mental, mestre em doença infecciosa e mestre em biossegurança. Atualmente, trabalho em um instituto de pesquisa. Sou professor e sou pesquisador. E comecei agora o doutorado. Passei minha vida toda estudando.

Você é casado? Tem filhos?
Tenho um filho que se formou agora em engenharia mecânica. Sou divorciado e deixei em Conceição do Araguaia uma menina muito legal... quero mandar um beijo para ela!

Então você viveu uma história de amor com uma brasileira. Não teve vontade de desertar e ficar no país?
Eu sou muito apegado à família, a Cuba. Então, o coração ficou dividido. Foi muito difícil, mas sou cubano e volto sempre para Cuba. Eu posso trabalhar no Brasil dois, três, quatro, cinco anos, mas depois quero voltar para Cuba, sempre. Esta é a realidade.

Quanto ganha um médico em Cuba? Os salários que vocês receberão no Brasil, ainda que menores do que os pagos aos médicos de outras nacionalidades, são atrativos?
O salário varia um pouco: algo entre 500 e 900 pesos cubanos. Se você converter para dólares, dá uns US$ 30, muito pouquinho. Mas você tem que levar em conta que nós não pagamos seguro, saúde e educação. Eletricidade, água e gás, é tudo bem pouquinho. Então, temos muita coisa garantida. A verdade é que o salário tinha que melhorar um pouco, mas ter muitas coisas asseguradas para nós e nossas famílias é melhor do que ganhar um grande salário e não ter nada disso.
Mas eu quero deixar claro que não vim ao Brasil ganhar dinheiro. Vim por solidariedade. Eu falo isso e ninguém compreende. Nossa turma toda fala uma, duas, três, dez vezes, e as pessoas não compreendem que não viemos aqui para ganhar dinheiro. Viemos para ajudar, por solidariedade. Nós viemos aqui melhorar as condições de saúde das pessoas mais carentes do Brasil. Dar um pouco de carinho, um pouco de afeto, de acordo com a formação que recebemos em Cuba.

Em geral, é difícil para o brasileiro entender isso. Mas o povo de Conceição do Araguaia com que o senhor conviveu compreendia essa relação diferente que o cubano tem com a prática médica?
Ah, o povo não queria me deixar voltar para o meu país. “O doutor não pode voltar para Cuba”, diziam. Eles fizeram muitas coisas lindas para mim e fiquei muito emocionado, fiquei apaixonado pelas pessoas do Brasil. Eu conheci muitas pessoas boas no Brasil. E por isso eu voltei. Por essa experiência anterior tão boa. A diferença é que, agora, sou um profissional com mais 10 anos de experiência.

Nesse meio tempo, você trabalhou só em Cuba ou foi a outras missões internacionais?
Eu estive na África, por 2,5 anos, em Burkina Faso, um pequeno país no oeste africano [região do deserto do Saara]. É muito difícil trabalhar lá pelas condições climáticas: a poeira e a temperatura muito alta, de até 52 graus. E muitas doenças, muitas doenças mesmo. Mas a gente vai trabalhando, trabalhando, se tornando uma melhor pessoa, um melhor profissional. A gente vai acumulando experiências para melhor servir.

Como está sendo essa nova e recente experiência no Brasil?
O curso de acolhimento é de muita qualidade. Tem professores muito bem formados. Antes de vir para o Brasil, como eu já estive aqui, formei parte da turma que está vindo. Faz 11 meses que venho entrando no site do Ministério da Saúde do Brasil para aprender tudo sobre atenção básica e repassar para eles. Então, a turma já vem bem formada e agora está recapitulando tudo aqui. Os professores estão muito contentes, porque estudamos tudo previamente. Dei um curso de 11 meses, de português e doenças mais frequentes que aparecem no Brasil.

E quais são as doenças comuns no Brasil que vocês não têm em Cuba, em função da excelência do sistema de saúde e da vigilância epidemiológica?
Em Cuba, temos muitos médicos. A cobertura do sistema de saúde é de 100%. Essa é uma coisa muito boa, porque se pode fazer um diagnóstico de saúde baseado na realidade que se tem no país. No Brasil, há muita carência de médicos no Norte e Nordeste. São muitos municípios que não têm médico nenhum. O Ministério da Saúde conhece a situação, mas a coisa mais detalhada só se vai conhecer à medida que for dando cobertura nessas regiões. Em Cuba, não há doenças transmissíveis, como malária, mal de chagas, leishmaniose, acidentes ofídicos [acidentes por animais peçonhentos, como cobras e escorpiões].

E a dengue?
Dengue tem em toda a América Central, mas Cuba é um centro de referência para a Organização Pan-americana de Saúde (Opas). Antes dos nós virmos para o Brasil, houve um congresso internacional no Centro de Medicina Tropical sobre dengue. Lá é muito bem controlado porque há muita vontade política. Todo mundo fica em cima do problema: os médicos, os agentes de vetores, como chamamos lá. A direção do país coloca à disposição da saúde todos os recursos para regular a dengue. E aí a doença se controla muito rápido.

Outro problema grave que temos no Brasil é a longa espera na fila por um leito no sistema de saúde pública, que, muitas vezes, resulta em mortes de pacientes. Isso também acontece em Cuba?
Não. Já superamos isso. Há muito tempo não ocorre um caso desses. Temos os médicos de família. Além disso, tem a policlínica, que integra os consultórios. Esse é o nível primário. Depois, tem o nível secundário, formado pelos hospitais ginecológicos, pediátricos e de clínica geral. Além disso, tem os institutos de cardiologia, de nevrologia, o terceiro nível. Então, as pessoas que precisam vão transitar por todo esse sistema, sempre acompanhadas pelo médico da família. Pela organização, nós temos um sistema de saúde de primeiro mundo.

O que falta para o Brasil atingir esse nível de excelência, para ter uma medicina preventiva forte?
É preciso lembrar que o problema em Cuba é mais fácil de controlar, porque é uma pequena ilha. Já o Brasil é quase um continente. As coisas aqui são um pouco mais complicadas. Mas a vontade política que estou vendo agora vai no caminho certo. O Brasil precisa de mais médicos e precisa reconhecer que viemos por um contrato tripartite (Opas, Brasil e Cuba) para trabalhar em parceria com os colegas brasileiros. Não viemos tirar o trabalho de ninguém, o salário de ninguém. Nós vamos trabalhar nas regiões mais carentes, onde não há médicos.