quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Zapatismo, vinte anos depois

O levante, ocorrido no México em janeiro de 1994, influenciou a esquerda política em todo o mundo e até mesmo as manifestações de junho no Brasil.



Por Piero Locatelli
Em 1º de janeiro de 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) tomou o controle de parte da pobre província mexicana de Chiapas. Formado em sua maior parte por indígenas, o EZLN ocupou cidades, libertou presos e desafiou o poder do Estado na região. Depois de longas disputas com o governo do México, o grupo abaixou as armas e adotou estratégias de resistência civil. Hoje, controla parte de Chiapas.
Quase vinte anos depois do levante, a influência do movimento zapatista ainda pode ser sentida. Não apenas no México. Características do zapatismo puderam ser vistas nas manifestações que tomaram o Brasil em junho de 2013. Estopim dos protestos, o Movimento Passe Livre (MPL) compartilha ideias vindas de Chiapas. O MPL é herdeiro da luta antiglobalização do final dos anos 1990. Naquele momento, o EZLN teve sua maior influência dentro da esquerda política, quando movimentos ao redor do mundo, organizados na Ação Global dos Povos, questionavam as políticas neoliberais em evidência na época.
“O zapatismo conseguiu soprar novos ares sobre os cânones da esquerda tradicional, inspirando-nos a ir além dos caminhos mais defendidos e usuais”, diz um integrante do MPL que preferiu não se identificar. Ele se encontrava em Chiapas, junto a outros militantes do movimento que participavam da Escuelita Zapatista, um encontro de ativistas na região.
Uma das características comuns ao EZLN e ao MPL é a negação de figuras destacadas, em contraposição aos líderes da esquerda organizada em partidos e sindicatos. Alguns porta-vozes em Chiapas atendem pelo nome de “subcomandante”, sendo Marcos o mais conhecido deles. A partir da ideia de que ninguém se destaca, surge a imagem mais familiar dos zapatistas: a dos rostos cobertos por capuzes pretos. A imagem dos “encapuchados”, junto com a estrela vermelha em um fundo preto, se tornaram os ícones mais conhecidos do movimento.
Os integrantes do MPL não chegam a se “encapuchar” da mesma forma que os zapatistas, mas se queixaram do tratamento recebido por parte da imprensa, que caracterizava alguns deles como líderes do movimento, ou divulgavam características e interesses pessoais de militantes. Para eles, a personalização feita pela imprensa é uma “contra-ofensiva”, que procura desvincula-los de uma causa maior. “Costumamos dizer que a horizontalidade é um horizonte, um ideal que devemos perseguir ativamente. A cada vez que relaxamos, facilmente terminamos por reproduzir essas práticas [hierarquizadas]. Por isso, a horizontalidade é algo ativo. É um combate constante contra a hierarquiazação a que nos empurram a todo momento,” diz um militante do MPL.
Territórios autônomos
Quem chega perto das terras em Chiapas encontra placas com a inscrição: “Esta usted en territorio zapatista em rebeldia, aqui manda el pueblo y el governo obedece.” Lá dentro, os zapatistas mantêm a educação, o judiciário, e tudo o que for possível em seu próprio controle. Os zapatistas não tentam tomar o controle do Estado mexicano e não disputam eleições, tentando manter o poder onde se encontram.
Alguns movimentos urbanos de moradia em São Paulo atuam de forma parecida e buscam ter autonomia em suas áreas. A Rede Extremo Sul diz compartilhar de algumas das características da luta em Chiapas. “Temos referência na ousadia zapatista, na sua postura antidogmática, e sobretudo na percepção de que não basta trocar patrões e governantes, maquiar os regimes políticos", diz Carolina Catini, porta-voz da Rede Extremo Sul. "Mas [devemos] colocar como tarefa a construção de novas relações sociais, a tomada de controle de maneira ativa, consciente e coletiva das diversas dimensões da vida social”, afirma.
Nas ocupações de terrenos feitas pelo movimento, no bairro do Grajaú, os moradores têm diversas funções dentro da ocupação. A intenção é que eles possam participar ao máximo em atividades ligadas à educação, comunicação, cultura e à resolução de conflitos, por exemplo. Nas assembleias, todos têm vez para falar e existe um esforço para que as decisões relevantes sejam tomadas em conjunto. “A experiência da vida coletiva nas ocupações representa certa ruptura com o individualismo da vida cotidiana, de modo que elas se apresentam como espaços propícios a este exercício de autonomia e de mudança de cultura política,” diz Catini.
Zapatistas mostraram que a história não tinha acabado
O levante dos zapatistas aconteceu poucos anos após o fim da União Soviética e a queda do muro de Berlim, em meio à uma globalização sem precedentes do capital financeiro. Na avaliação de Gilmar Mauro, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), estes eventos causaram uma crise nas organizações socialistas do mundo todo. Para o militante, o levante zapatista foi um “contraponto fundamental” a esse quadro: Chiapas mostrava ao mundo que a democracia liberal não era o fim da história, como havia escrito o historiador norte-americano Francis Fukuyama em 1992.
Anterior ao levante zapatista, o MST é uma organização assumidamente hierarquizada. Nela, há direções em diferentes esferas (nacional, estadual e local). Embora não haja a figura de um presidente, há integrantes que se destacam pela sua participação e direção do movimento. Apesar de não ter candidatos próprios, o MST se posiciona e também disputa a política dentro dos meandros do Estado. Faz isso, por exemplo, apoiando determinados candidatos e dialogando mais com o poder público do que os movimentos autonomistas (como o MPL) o fazem.
Mesmo com as diferenças entre os movimentos, Mauro diz que o EZLN e o MST mantêm uma relação de respeito mútuo e solidariedade. “O zapatismo cumpriu um papel de influência na juventude de todo planeta com o discurso que se diferencia da visão clássica da tomada do poder na esquerda. Ou seja, eles mostram a ideia de poder popular,” diz Mauro, que já esteve em Chiapas algumas vezes. “A construção de poder popular é muito importante, ou seja, a ideia de construir novas formas, uma nova metodologia para alterar a ordem do capital e construir outra sociedade. A participação de todos e de todas é muito importante.”
Para Mauro, este outro tipo de organização surge porque sindicatos e partidos foram construídos quando o desenvolvimento do capitalismo permitia ganhos para todos, ao contrário do que acontece hoje, quando os trabalhadores são mais prejudicados. “É preciso construir novas formas organizativas. Mas isso não significa colocar na lata do lixo o que a gente construiu [em sindicatos, partidos, e movimentos sociais], pois estas novas formas não dão conta de organizar o conjunto da classe trabalhadora.” Qual seria essa nova forma? “É a experimentação concreta que vai permitir testar e construir novas formas de luta.”

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

50 verdades sobre a Revolução Cubana


Símbolo dos desejos de independência da América Latina e do Terceiro Mundo, a Revolução Cubana marcou a história do século XX. 

por Salim Lamrani,*
1. O triunfo da Revolução Cubana, no dia 1 de janeiro de 1959, é o acontecimento mais relevante da história da América Latina no século XX.
2. As raízes da Revolução Cubana remontam ao século XIX e às guerras de independência.
3. Durante a primeira guerra de independência, de 1868 a 1878, o exército espanhol derrotou os insurgentes cubanos atolados em profundas divisões internas. Os Estados Unidos apoiaram a Espanha, vendendo ao país armas mais modernas e se opôs aos independentistas perseguindo os exilados cubanos que tentavam dar sua contribuição à luta armada. No dia 29 de outubro de 1872, o secretário de Estado Hamilton Fish compartilhou com Daniel Sickles, então embaixador estadunidense em Madrid, seus “desejos de êxito para a Espanha na supressão da rebelião”. Washington, contrário à independência de Cuba, desejava tomar posse da ilha.
4. Cuba é efetivamente uma das mais antigas inquietudes da política exterior dos Estados Unidos. Em 1805, Thomas Jefferson observou a importância da ilha, salientando que sua “posse [era] necessária para assegurar a defesa de Luisiana e da Flórida porque [era] a chave do Golfo do México. Para os Estados Unidos, a conquista seria fácil”. Em 1823, John Quincy Adams, então Secretário de Estado e futuro presidente dos Estados Unidos fez alusão ao tema da anexação de Cuba e elaborou a teoria da “fruta madura”: “Cuba, separada pela força de sua própria conexão desnaturalizada com a Espanha, e incapaz de sobreviver por si própria, terá necessariamente que gravitar ao redor de união norte-americana, e unicamente ao redor dela”. Assim, durante o século XIX, os Estados Unidos tentaram 6 vezes comprar Cuba da Espanha.
5. Durante a segunda guerra de independência, entre 1885 e 1898, os revolucionários cubanos, unidos em volta de seu líder José Martí, tiveram de enfrentar outra vez a hostilidade dos Estados Unidos, que deu sua ajuda à Espanha vendendo-lhe armas e prendendo os exilados cubanos que tentavam apoiar os independentistas.
6. José Martí, em uma carta profética ao seu amigo Gonzalo de Quesada, escrita no dia 14 de dezembro de 1889, advertiu sobre a possibilidade de uma intervenção estadunidense. “Sobre a nossa terra, Gonzalo, há outro plano mais tenebroso [....]: a iníqua de forçar a Ilha, de precipitá-la à guerra, para ter o pretexto de intervir nela, e com o crédito de mediador e  garantidor, ficar com ela”.


7. Em 1898, apesar de sua superioridade material, a Espanha estava à beira do abismo, vencida no campo de batalha pelos independentistas cubanos. Em uma carta ao presidente estadunidense William McKinley, datada de 9 de março de 1898, o embaixador Woodford, de Madrid, disse que “a derrota” da Espanha era “segura”. “[Os espanhóis] sabem que perderam Cuba”. Segundo ele, “se os Estados Unidos desejam Cuba, devem consegui-la mediante a conquista”.

8. Em abril de 1898, depois da explosão misteriosa do navio de guerra estadunidense The Mainena baía de Havana, o presidente McKinley solicitou autorização do Congresso para intervir militarmente em Cuba e impedir que a ilha conseguisse sua independência.
9.Vários congressistas denunciaram uma guerra de conquista. John W. Daniel, senador democrata do estado da Virginia, acusou o governo de intervir para evitar uma derrota dos espanhóis: “Quando chegou a hora mais favorável para um êxito revolucionário e a mais desvantajosa para a Espanha, [...] se exige ao congresso dos Estados Unidos entregar o exército dos Estados Unidos ao Presidente para impor um armistício pela força às duas partes, enquanto uma delas já entregou as armas”
10. Em três meses, os Estados Unidos tomaram controle do país. Em dezembro de 1898, os Estados Unidos e a Espanha assinaram um tratado de paz em Paris sem a presença dos cubanos, destroçando assim seu sonho de independência.
11. De 1898 a 1902, os Estados Unidos ocuparam Cuba e obrigaram a Assembleia Constituinte a adotar a emenda Platt na nova Constituição, sob pena de prorrogar a ocupação militar.
12. A emenda Platt proibia Cuba de assinar qualquer acordo com um terceiro país ou contrair dívida com outra nação. Também dava direito aos Estados Unidos de intervir em qualquer momento nos assuntos internos de Cuba e obrigava a ilha a conceder indefinidamente a Washington a base naval de Guantánamo.
13. Em uma carta de 1901, o general Edward Wood, então governador militar de Cuba, parabenizou o presidente McKinley. “Desde então há pouca ou nenhuma independência para Cuba sob a emenda Platt e a única coisa importante agora é buscar a anexação”.
14. De 1902 a 1958, Cuba tinha o status de república neocolonial, política e economicamente dependente, apesar da revogação da emenda Platt em 1934, então obsoleta.
15. Os Estados Unidos interviram militarmente em Cuba em 1906, 1912, 1917 e 1933, depois da queda do ditador Gerardo Machado, e cada vez que um movimento revolucionário ameaçava o status quo.
16.  A Revolução de 1933, liderada por Antonio Guiteras, foi frustrada pela traição de um sargento chamado Fulgencio Batista, que se tornou general e colaborou com a embaixada dos Estados Unidos para manter a ordem estabelecida. Dirigiu o país nos bastidores até sua eleição como presidente em 1940.
17. Depois das presidências de Ramón Grau San Martín (1944-1948), e Carlos Prío Socarrás (1948-1952), gangrenadas pela violência e pela corrupção, Fulgencio Batista pôs fim à ordem constitucional no dia 10 de março de 1952, orquestrando um golpe de Estado militar.
18. No dia 26 de junho de 1953, um jovem advogado chamado Fidel Castro, membro do Partido Ortodoxo fundado por Chibás, se pôs à frente de uma expedição de 131 homens e atacou o quartel Moncada na cidade de Santiago, a segunda fortaleza militar do país, assim como o quartel Carlos Manuel de Céspedes, na cidade de Bayamo. O objetivo era tomar o controle da cidade — berço histórico de todas as revoluções — e lançar um chamado à rebelião em todo o país para derrubar o ditador Batista.


19.  A operação foi um fracasso e numerosos combatentes — 55 no total — foram assassinados depois de serem brutalmente torturados pelo exército. De fato, apenas 6 deles morreram em combate. Alguns conseguiram escapar graças ao apoio da população.
20.  Fidel Castro, capturado alguns dias depois, deveu a vida ao sargento Pedro Sarría, que se negou a seguir as ordens de seus superiores e executar o líder de Moncada. “Não disparem! Não disparem! As ideias não se matam!”, exclamou frente a seus soldados.
21.  Durante sua histórica alegação intitulada “A História me Absolverá”, Fidel Castro, que se encarregou de sua própria defesa, denunciou os crimes de Batista e a miséria em que se encontrava o povo cubano e apresentou seu programa para uma Cuba livre.
22.  Condenado a 15 anos de prisão, Fidel Castro foi liberado em 1955 depois da anistia que lhe concedeu o regime de Batista e se exilou no México, onde organizou a expedição de Granma, com um médico argentino chamado Ernesto Guevara.

23.  No dia 2 de dezembro de 1956, Fidel Castro desembarcou na província oriental de Cuba comandando 81 revolucionários com o objetivo de desatar uma guerra de guerrilhas nas montanhas de Sierra Maestra.
24.  Ao contrário do que se diz, os Estados Unidos jamais deram apoio ao Movimento 26 de Julho, organização político-militar dirigida por Fidel Castro, durante toda a guerra insurrecional, de 2 de dezembro de 1956 a 1 de janeiro de 1959.
25.  Ao contrário, Washington perseguiu cruelmente todos os simpatizantes do Movimento 26 de Julho exilados nos Estados Unidos, que tentavam fornecer armas aos rebeldes.
26.  Ao mesmo tempo, o Presidente Dwight D. Eisenhower seguiu fornecendo armas ao exército de Batista, inclusive depois da instauração do embargo de fachada, em março de 1958.
27.  No dia 23 de dezembro de 1958, a uma semana do triunfo da Revolução, enquanto o exército de Fulgencio Batista estava em plena debandada apesar de sua superioridade em armas e homens, aconteceu a 392ª reunião do Conselho de Segurança Nacional, com a presença do presidente Eisenhower. Allen Dulles, então diretor da CIA, expressou claramente a posição dos Estados Unidos: “Temos de impedir a vitória de Castro”.
28. Assim como aconteceu em 1898, o Presidente Eisenhower estava a favor de uma intervenção armada para impedir o triunfo de Fidel Castro. Perguntou se o Departamento de Defesa tinha pensado em uma “ação militar que poderia ser necessária em Cuba”. Seus assessores tiveram êxito em dissuadi-lo.
29. Assim, a hostilidade dos Estados Unidos para com a Revolução Cubana não tem nada a ver com o contexto da Guerra Fria. Começou antes de Fidel Castro chegar ao poder, antes da aliança com Moscou, em maio de 1960, e continuou depois de desaparição do bloco soviético em 1991.
30. No dia primeiro de janeiro de 1959, cinco anos, cinco meses e cinco dias depois do ataque ao quartel Moncada no dia 26 de julho de 1953, a Revolução Cubana triunfou.


31. Em janeiro de 1959, os Estados Unidos acolheram com os braços abertos os partidários do antigo regime, incluindo os criminosos de guerra, que haviam roubado 424 milhões de dólares do Tesouro cubano.

32.  Desde o começo, a Revolução Cubana teve de edificar seu projeto de sociedade em um contexto de estado de sítio permanente, frente à crescente hostilidade dos Estados Unidos. Desde 1959, Cuba nunca desfrutou de um clima de paz para construir seu futuro. Em abril de 1961, Cuba teve de enfrentar a invasão armada da Baía dos Porcos organizada pela CIA, e em outubro de 1962, a ilha foi ameaçada de desintegração nucelar durante a crise dos mísseis.


33.  Desde 1959, os Estados Unidos, decididos a derrotar Fidel Castro, deram início a uma campanha de terrorismo contra Cuba com mais de 6 mil atentados, que custaram a vida de 3478  civis e incapacitaram 2099 pessoas. Os danos materiais são avaliados em vários bilhões de dólares e Cuba teve de gastar somas astronômicas em sua segurança nacional, o que limitou o desenvolvimento dos programas sociais. O próprio líder da Revolução foi vítima de 637 tentativas de assassinato.
34. Desde 1960, Washington impõe sanções econômicas sumariamente severas, ilegais de acordo com o Direito Internacional, que afetam as categorias mais vulneráveis da população, ou seja, as mulheres, as crianças e os idosos. Este estado de sítio, condenado pela imensa maioria da comunidade internacional (188 países de 192), constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento da ilha, que a Cuba custou mais de um bilhão de dólares.
35. Apesar de todos esses obstáculos, a Revolução Cubana é um inegável êxito social. Ao dar prioridade aos mais desfavorecidos com a reforma agrária e com a reforma urbana, ao erradicar o analfabetismo, ao desenvolver a educação, a saúde, a cultura e o esporte, Cuba criou a sociedade mais igualitária do continente e do Terceiro Mundo.
36. De acordo com a UNESCO, Cuba tem a mais baixa taxa de analfabetismo e a mais alta taxa de escolarização da América Latina. A organização das Nações Unidas nota que “a educação tem sido prioridade em Cuba há [mais de] 40 anos. É uma verdadeira sociedade de educação”. Seu relatório sobre a educação em 13 países da América Latina classifica Cuba como primeira em todas as disciplinas. De acordo com a UNESCO, Cuba é a nação do mundo que usa a maior parte de seu orçamento em educação, cerca de 13% do PIB.

37. Cuba tem uma taxa de mortalidade infantil de 4,6 por mil, ou seja, a mais baixa do continente americano, mais baixa que a do Canadá ou a dos Estados Unidos.
38.  Cuba é a nação que tem o maior número de médicos per capita do mundo. Segundo o New England Journal of Medicine, a revista médica mais prestigiada do planeta, “o sistema de saúde [de Cuba] resolveu problemas que o nosso [o dos Estados Unidos] não conseguiu resolver”. A revista destaca que “Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante que os Estados Unidos”.
39. Segundo a UNICEF, “Cuba é um exemplo na proteção da infância” e um “paraíso para a infância na América Latina”, e enfatiza que Cuba é o único país da América Latina e do Terceiro Mundo que erradicou a desnutrição infantil.
40. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Cuba é o único país da América Latina e do Terceiro Mundo que se encontra entre as dez nações do mundo com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano sobre os três critérios: expectativa de vida, educação e nível de vida, durante a última década.
41. A Revolução Cubana fez da solidariedade internacional um pilar essencial de sua política exterior. Cuba acolhe dezenas de milhares de estudantes procedentes de países pobres, lhes oferece formação universitária gratuita de alto nível e se encarrega de todos os gastos. A Escola Latino-americana de Medicina de Havana é uma das mais famosas do continente americano e formou vários milhares de profissionais de saúde procedentes de mais de 123 países.
42. Desde 1963 e da primeira missão internacionalista na Argélia, cerca de 132 mil médicos  cubanos e outros funcionários de saúde trabalharam voluntariamente em 102 países. Atualmente, 38.868 médicos colaboradores, entre eles 15.407 médicos, oferecem seus serviços em 66 nações do Terceiro Mundo.
43. Graças à Operação Milagre lançada por Cuba em 2004, que consiste em operar gratuitamente populações pobres vítimas de doenças oculares, cerca de 2,5 milhões de pessoas de 28 países recuperaram a visão.
44. O programa de alfabetização cubano “Sim, eu posso” (“Yo, sí puedo”), lançado em 2003, permitiu que 7 milhões de pessoas dos cinco continentes aprendessem a ler, escrever e somar.
45. De acordo com a World Wild Fund for Nature (WWF), organização mais importante de defesa da natureza, Cuba é o único país do mundo que alcançou um desenvolvimento sustentável.
46. Cuba desempenhou um papel chave na luta contra o apartheid, com a participação de 300 mil soldados em Angola entre 1975 e 1988 para enfrentar a agressão do exército suprematista sul-africano.  O elemento decisivo que pôs fim ao apartheid foi a abrupta derrota militar que as tropas cubanas infringiram ao exército sul-africano em Cuito Cuanavale, no sudeste de Angola, em janeiro de 1988. Em um discurso, Nelson Mandela rendeu homenagem a Cuba: “Sem a derrota infringida em Cuito Cuanavale, nossas organizações não teriam sido legalizadas! A derrota do exército racista em Cuito Canavale tornou possível que hoje eu possa estar aqui com vocês! Cuito Cuanavale é um marco na história da luta pela libertação da África Austral!”.

47. Ao contrário do que se diz, a Revolução Cubana teve quatro presidentes diferentes: Manuel Urrutia, de janeiro de 1959 a julho de 1959, e Osvaldo Dorticós, de julho de 1959 a janeiro de 1976, sob o antigo regime da Constituição de 1940, e Fidel Castro, de fevereiro de 1976 a julho de 2006, e Raúl Castro, desde 2006, depois da adoção da Constituição de 1976.
48. A imprensa ocidental, propriedade de conglomerados econômicos e financeiros, vilipendia a Revolução Cubana por uma razão muito precisa que não tem nada a ver com a democracia ou os direitos humanos: o processo de transformação social iniciado em 1959 sacudiu a ordem das estruturas estabelecidas, levou a juízo o poder dos dominantes e propõe uma alternativa social onde os recursos são destinados à maioria e não à minoria.
49. A principal conquista da Revolução é ter feito de Cuba uma nação soberana e independente.
50. A Revolução Cubana, edificada por várias gerações de cubanos, possui todas as virtudes e defeitos da condição humana e nunca teve a pretensão de ser um modelo. Segue sendo, apesar das dificuldades, um símbolo de dignidade e resistência no mundo.
Salim Lamrani é doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. 

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Que 2014 seja um ano de transformações!!!!!!!!!!!


segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Entre as Jornadas de Junho e as Lutas de Outubro: esboço para uma narrativa em aberto

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Por Germano Nogueira Prado, blogdoantifon

Em tempo de retrospectivas, o texto que segue é uma tentativa, ainda que franciscana e provisória, de contribuir para a construção da narrativa em aberto do que foram e tem sido as manifestações que tomaram conta do Brasil entre os meses de junho e outubro deste ano, tentando assinalar aqui e ali as perspectivas de futuro presentes nesse(s) acontecimento(s). Foi (quase) inevitável que a ênfase recaísse, em mais de um lugar, nos protestos que mal ou bem pude acompanhar mais de perto, isto é, os do Rio de Janeiro. Isso não implica – espero – que mesmo o que é dito em referência explícita ao Rio não possa ajudar a pensar o que tem acontecido em várias partes do país e, a partir disso, ajudar a projetar os próximos passos. Em outras palavras, trata-se de apresentar uma retrospectiva que possa servir não apenas para lembrar o passado, mas para trazer à luz algo do que, naquilo que tem passado, pode abrir outros, diversos horizontes ao porvir.
O estopim das manifestações foi o anúncio do aumento das passagens do transporte público. Em pouco tempo, sobretudo através de eventos convocados via facebook e twiter, se seguiram alguns dias de ruas ocupadas por multidões. Essas mesmas redes sociais (e quiçá outras) serviram aos mais diferentes fins comunicativos antes, durante e depois de cada protesto. De fato, foram úteis não só para discutir e convocar os eventos, mas também para potenciá-los, (re)organizá-los e repercuti-los em tempo real, bem como para repensá-los depois de acontecidos, visando a organização dos próximos passos.
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 Não foram poucas as mídias “fora do eixo” que surgiram nesse processo, e não foi pequena a surpresa de alguns ao constatar que o deslocamento do eixo, em alguns desses casos, servia não à mudança, mas à manutenção do capitalismo. Mais, ainda: não só à manutenção, mas talvez à potencialização do capitalismo: um capitalismo 2.0., em que o trabalho intelectual dos sujeitos é arregimentado 24 horas por dia em coletivos para a produção e agenciamento de eventos culturais em uma rede que cada vez mais amplia seus fios, aumentando, com isso, seu capital humano, seu campo de extração de mais-valia (econômico-cultural), o que propicia cada vez mais créditos (econômico-culturais) para ganhar editais do governo. Em tais coletivos, aderir a uma nova forma de vida em que a individualidade (por demais capitalista…) se perde e “viver para produzir (‘cultura’)” parecem ser componentes de uma nova ideologia (do capital) disfarçada de novo modo de organização do trabalho e novo modo de viver. Um novo que, todavia, no parecer de muitos, se assemelha a uma reedição, no século XXI, de uma espécie de “servidão voluntária” e que, além disso, parece se adaptar muito bem, se não mesmo “parasitar” as “brechas” deixadas pelo que seria o eixo dominante e pelo Estado que corresponderia a este.
Por outro lado, os efeitos das manifestações e das novas mídias a ela ligadas sobre a mídia tradicional, corporativa parecem não ter sido pequenos, pelo menos no calor dos acontecimentos. Num primeiro momento, a mídia corporativa tentou esvaziar e/ou deslegitimar os protestos, dando-lhes uma cobertura muito limitada e/ou colocando-os sob a rubrica dos problemas de trânsito “causados” pelo grande número de pessoas nas ruas. Num segundo momento, percebendo que as manifestações seguiam crescendo exponencialmente, a mesma mídia mudou o discurso: passou a se dizer favorável aos protestos como parte da “festa da democracia”. Ao mesmo tempo, contudo, colocava em marcha uma segunda estratégia para esvaziá-los do poder de mudança que poderiam ter. Tratava-se de por em primeiro plano as bandeiras mais “classe média sofre”, ou mais “coxinha”. Este último termo, uma injusta degradação do nobre salgado, ganhou o Brasil como designação pejorativa daqueles que, em geral enrolados em uma bandeira do Brasil, sustentavam insossas “reivindicações” como sobretudo o “Fim da corrupção”, mas também “Mais saúde, mais educação, mas menos Estado e menos impostos”. “Insossas” seja porque mantinha a raiz dos problemas inquestionada, seja porque se perdem em lemas muito gerais e, por isso, aceitáveis inclusive por aqueles a quem a crítica estaria dirigida. A corrupção, por exemplo, seria um problema (apenas) moral, fruto de um desvio de caráter de um político – e não (sobretudo) um sintoma de um problema sistêmico de caráter socioeconômico ou, pelo menos, um desvio cuja raiz está nos interesses econômicos que corrompem ao menos tanto quanto no “mal caráter” que se deixa corromper. Esse mesmo “mal caráter”, aliás, costuma levantar sem nenhum problema, e talvez sem traço de cinismo, a bandeira da “Educação de qualidade” ou da “Saúde de qualidade”. Nesse sentido, a questão está não no apoiar estes lemas gerais, mas na disputa do estofo, do sentido, do processo que se põe em marcha quando estes lemas estão em jogo.
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Mais ou menos cientes dessa estratégia de manipulação por parte da mídia corporativa; ou, ao menos, cientes das críticas standard e de fácil circulação (e nem por isso menos verdadeiras) em aulas de história, sociologia, geografia e filosofia sobre a manipulação e o papel de manutenção da “ordem dominante”, do “sistema” cumpridos seja pela “indústria cultural” em geral, seja pela Globo (e quejandos) em particular, não foram raros os episódios em que a mídia corporativa “sofreu” escrachos e foi “convidada a se retirar” de mais de um protesto. Algumas vezes, a mídia corporativa chegou a renunciar ao emblema da empresa nos seus microfones para que os seus jornalistas pudessem seguir transmitindo in loco; mas, seja pelos rostos, seja pelas posturas de sempre, estes acabavam reconhecidos. O que passou a predominar então foram as tomadas aéreas, distantes das manifestações – uma metáfora bastante eloquente da “real” relação da mídia corporativa com o potencial de transformação ali presente. Isso não aconteceu, claro, sem que essa mesma mídia reclamasse do cerceamento da “liberdade de expressão”.
Em um terceiro momento, por fim, mais ou menos contemporâneo ao segundo, com a eclosão da violência nas manifestações, a mídia corporativa passou a operar a distinção entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”. Tal operação possibilitou que ela, a um tempo, apoiasse as pautas coxinhas e seus representantes nas manifestações, apoiasse a repressão policial e condenasse a resistência e as táticas de enfrentamento de certos grupos de manifestantes (protagonizados pelos chamados Black Blocs), procurando minar as leituras que poderiam ver na violência um potencial transformador, uma arma de crítica aos símbolos do poder econômico e político dominantes ou, ao menos, um meio legítimo de resistência de classe à truculência do poder constituído.
Se, por um lado, a estratégia da mídia corporativa se baseava em anseios de pessoas que estavam efetivamente nas ruas, por outro, parece ter dado um gás ao clima antipolítica e nacionalista que já aparecia nas ruas. O fato é que não foram poucos os episódios de militantes de partido de esquerda ou nem tanto (PSOL, PSTU, PCB, PT, etc.) que tiveram os materiais com seus emblemas rasgados ou chegaram a ser agredidos fisicamente, sobretudo no segundo momento mencionado acima. Os agressores, por sua vez, iam desde descontentes coxinhas bombados de classe média, que odeia sem distinção tudo que se relaciona a política, até, ao que parece, seguidores mais ou menos “conscientes” de ideologias fascistas, passando por policiais disfarçados. Bem entendido, a violência contida em tais episódios não implica que os problemas com os meios (tradicionais) de representação que aparecem aí não tenham um conteúdo de verdade. Mais, ainda: a própria violência pode ser lida como um sintoma deste conteúdo.
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Todavia, a violência não se deu apenas entre manifestantes, mas sobretudo da força policial com relação aos manifestantes. Não foram poucos os episódios de truculência, arbitrariedade, desrespeito aos direitos humanos e à democracia – ou, se quisermos, episódios que mostravam claramente o Estado “democrático de direito” (ou seria de direita?) como órgão opressor a serviço dos interesses do capital e da apropriação da cidade por esses interesses, muitas vezes em função da exploração econômica de grandes eventos (a Copa e as Olimpíadas) – eventos que são especialmente lucrativos para a indústria do turismo, do entretenimento e da construção civil, bem como para a especulação imobiliária (mas não só). Tudo isso com o beneplácito dos governos municipal, estadual e federal (este último, não custa lembrar, capitaneado por aquele que provavelmente foi o principal partido de esquerda da história do Brasil).
Em tais episódios, ficou claro também o caráter classista e racial da repressão estatal: nas manifestações nas áreas “mais nobres” da cidade, a bala de borracha machuca e até cega, mas não mata, e só comparece quando há algum tipo de protesto; nas zonas mais pobres, nas periferias em geral, as balas estão presentes havendo ou não manifestação, e não são de borracha. Mas nos dois casos tende a comparecer o mesmo alvo preferencial: o preto pobre. A repressão trata diferentemente quem ela visa reprimir. Os presos políticos foram quase todos soltos, exceto um morador de rua, Rafael Braga Vieira, detido durante os protestos e acusado de incendiário por portar uma garrafa de detergente, acaba de ser condenado a cinco anos de prisão. A coisa fica ainda mais gritante se colocarmos esse exemplo ao lado do recente episódio do helicóptero de um oligarca e político mineiro, encontrado portando com 450 de cocaína – político contra o qual, diz-se apesar disso tudo, “não há nenhuma prova”. Tudo isso com o beneplácito do judiciário responsável pela heroica prisão dos “mensaleiros”, sob os auspícios da condenação prévia da mídia corporativa e seus coxinhas de plantão.
Em todo esse processo, a pauta inicial da revogação do aumento da passagem se ampliou e se diversificou. Isso teve efeitos positivos e negativos. Dentre os efeitos positivos, está o fato de que a luta contra o aumento se apresentou imediata e estrategicamente como uma luta pelo transporte público de qualidade, através do lema “Não é só por 20 centavos”. Não foram poucos os analistas que apontaram que este tema e, mais ou menos a reboque dele, o tema da melhora dos serviços públicos em geral (não só transporte, mas saúde, educação, etc.) era um dos motes dos protestos. E o era, segundo muitos desses analistas, porque quem estava nas ruas seria aquela “nova classe média”, ou seus filhos, que, depois de conseguir a inserção no mercado de consumo nos anos do PT (de Lula, sobretudo), agora reivindicavam do governo o acesso a uma cidadania mais plena, através do acesso a serviços públicos de qualidade. Ao mesmo tempo, isso apontaria para um esgotamento ou, ao menos, para o limite do modelo conhecido como “lulismo” – isto é, um modelo de distribuição de renda e diminuição da miséria e da desigualdade via geração de emprego e programas de renda mínima; um modelo caracterizado pela conciliação de classes, pelo não enfrentamento do capital especulativo e por algum incetivo ao capital industrial; uma conciliação que, por sua vez, foi feita através de alianças entre espectros a princípio opostos do cenário político, possibilitando a tão desejada “governabilidade”; governabilidade que, por fim, na forma de manutenção do poder a todo custo, vem se mostrando, também ela, um grave limite do governo do PT (e, talvez mais amplamente, do nosso próprio sistema representativo). Se tudo isso é verdade, um dos efeitos mais positivos das manifestações foi o de abrir um horizonte de lutas para uma cidadania mais plena e, quiçá, para mudanças estruturais que seriam o pressuposto desta.
A isso se soma um segundo efeito positivo, intimamente ligado a esse conjunto de pautas ligados à melhora dos serviços públicos e ao consequente exercício pleno da cidadania. Trata-se do problema do uso da cidade. Como David Harvey procura mostrar em um (já clássico) artigo de 2008, foi através da reconfiguração de grandes cidades que o capitalismo se reestruturou depois de graves crises, nas quais ele pode reinvestir o capital excedente e seguir o seu espiral de crescimento (como teria sido o caso de Paris no século XIX e de Nova York a certa altura do séc. XX). Parece que algo análogo pode ser visto em muitas grandes cidades hoje em dia. No Rio de Janeiro, por ex., é claríssima a tentativa de estruturar a cidade segundo os interesses privados em detrimento do uso público que dela podem fazer os cidadãos. Para além da oposição ente público e privado, poder-se-ia inserir nessa discussão, via Negri e Hardt, a questão da produção do comum: tratar-se-ia então de pensar uma gestão dos espaços da cidade que não fosse colocada nas mãos nem da iniciativa privada, nem do poder público (do Estado), mas sim diretamente da comunidade de usuários [1].
Dentre os efeitos negativos das manifestações, poder-se-ia destacar a emergência de pautas e atitudes fascistas ou, ao menos, marcadamente antidemocráticas, e mesmo de movimentos que já falam abertamente na volta da ditadura. Houve momentos em que tais pautas pareceram tão fortes que não foram poucos os que aventaram a necessidade de uma frente ampla da esquerda para barrar o seu crescimento. As atitudes chamadas (às vezes um pouco apressadamente) de fascistas se confundem um pouco com a atitude mais geral e difusa dos que são “antipolítica” ou, antes, dos que são antipolíticos. Mas mesmo isso que poderia ser apenas um efeito negativo, teve também seu lado positivo: de fato, outro tema que teria surgido nas ruas seria justamente o tema da “crise da representação” (uma crise mais ampla de legitimidade não só da democracia, mas da noção mesma de representação) e, mais especificamente, da forma-partido. Bem entendido: que haja tal crise, não é necessariamente bom nem ruim; mas que essa questão tenha vindo à tona claramente, me parece algo positivo.
Ligada a essa crise da representação, apareceram também alternativas à organização da luta, como as diversas formas de democracia direta, de organização horizontal e de autogestão, potenciados pelos novos meios de comunicação. Estas formas de organização podem ajudar a prover maneiras de articular contemporaneamente múltiplas e diversas pautas, das quais as que mencionamos aqui são uma pequena mostra, posto que seja uma mostra das que mais tiveram peso nos protestos. Quiçá, até o modelo de disciplina experimentado nas casas do “Fora do Eixo” possa servir, de algum modo, para pensar novas maneiras de organizar a vida e o trabalho (talvez via uma superidentificação [2] que subverta o seu sentido).
Por outro lado, mesmo sem reduzir a política à eleição, mesmo procurando construir esta para além daquela, há que se pensar porque, com toda essa “crise de representação”, o governo Dilma se recuperou da queda de aprovação que experimentou durante as manifestações e agora vai muito bem, obrigado, rumo a uma eleição, até agora, sem grandes adversários à altura – no campo da representação partidária, ao menos… No sentido oposto, há de se pensar por que isso não ocorreu – e esperamos que não ocorra – com o governo Cabral, por ex., ainda que em ambos os casos nenhuma alternativa no âmbito político-eleitoral tenha tido um papel importante preponderante na queda da aprovação dos respectivos governos e ambos tenham sido alvos das manifestações.
A proximidade do governo estadual e a relativa distância do governo federal em relação às manifestações pode ajudar a compreender esse quadro. Posto que o governo Dilma tenha dado o seu aval à repressão estatal, os manifestantes sentiram na pele não esse aval, mas a polícia do Cabral – o que, bem entendido, em nada tira a responsabilidade do governo federal pelos episódios de repressão violenta e arbitrária que ocorreram em várias cidades do país. Além disso, talvez a visão de que a Dilma ainda representa mal ou bem (mal ou mal, diria) a continuidade dos avanços do governo Lula, bem como o passado de lutas do PT, (morto-)vivo ainda no presente de luta de muitos dos militantes de base do partido junto aos movimentos sociais, podem ter contribuído para amenizar o impacto das manifestações na esfera federal. A imagem de Cabral, por outro lado, um político sem nenhuma raiz nos movimentos sociais, vem se desgastando há um tempo, pelo menos desde o episódio dos lencinhos em Paris. Se esse quadro não explodiu antes, isso não parece se dever à “habilidade política” do governador, mas sobretudo aos fortes interesses econômicos que ele representa. Dilma fez pelo menos um aceno (falso ou verdadeiro que seja, ou tenha se demostrado) de que escutaria as ruas, com o anúncio dos cinco pactos já no início das manifestações. Os recuos tardios de Cabral soaram mais como uma derrota do governo diante da força das ruas do que como uma abertura daquele para a escuta destas. Sob esse aspecto, aliás, o da “habilidade política”, poder-se-ia compará-lo também ao prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que mesmo em toda a sua arrogância, tem se mostrado bem mais habilidoso, ardiloso, escorregadio – para o que contribui, claro, a distância das eleições municipais. A isso poder-se-ia acrescentar, entre outras coisas, que o peso dos protestos tende a ser proporcional à extensão do governo em questão: uma mobilização que é capaz de abalar uma cidade ou um estado não tem necessariamente força suficiente para abalar (de maneira idêntica) um país inteiro.
Longe de ser exaustivo, esse conjunto de fatores pode dar algumas coordenadas para pensar o problema. Resta saber se quem sairá queimado dessa história, sobretudo no Rio de Janeiro, serão apenas as figuras públicas específicas, como até agora parece ser o caso, ou se a coisa vai respingar para seus respectivos partidos. Quanto a isso, convém não só esperar a resposta das urnas e das ruas, mas também ajudar a construí-la.
Do ponto de vista estratégico, parece que as mobilizações de junho a outubro deste ano mostraram que as pautas simples, diretas, que afetem claramente a classe trabalhadora e possam ter um efeito imediato – como a pauta “contra o aumento da passagem” – têm uma capacidade maior de mobilização do que pautas mais vagas e distantes como “10% do PIB para a educação”. Tal estratégia foi brilhantemente seguida pelo MPL. A reboque destas, outras pautas coligadas acabam por aparecer.
Todavia, não sei se o movimento dos professores do Rio de Janeiro, que fechou (cronologicamente, mas manteve, com isso, aberto o tempo de lutas) as lutas de outubro (cariocas, ao menos), pode ser lido nessa mesma chave. Embora a pauta simples e direta dos salários fosse o carro-chefe, acho que entraram aí o prestígio social que a profissão ainda goza de certa maneira na sociedade e o gritante contraste deste com o prestígio econômico da classe, bem como, claro, a maré das jornadas de junho-julho(-agosto). Convém notar que a luta dos professores concentrou quase todos, se não todos os elementos recorrentes nas manifestações: o uso das redes sociais; a cobertura ambígua e tendenciosa por parte da mídia corporativa; a ampliação da pauta de uma luta (fundamental) por melhores salários para uma luta (tão ou mais fundamental) por um outro modelo de educação; a crise entre a representação (sindical, no caso) e a base (não) representada; e, por fim, mas não por último, a brutal repressão policial, respaldada “até” pelo STF, em resposta à qual surgiu a bela aliança entre os professores e adeptos da tática Black Bloc – amalgamada no emblema “Black Prof”.
Uma última nota para concluir, por enquanto, essa narrativa provisória e aberta: para alguns, um dos limites das manifestações talvez esteja no fato de que elas parecem se dirigir sobretudo ao Estado e ao governo constituído para ter suas demandas atendidas. Todavia, nesse mesmo movimento, novas organizações e articulações ou, ao menos, novas possibilidades de organização e articulação das lutas parecem ter surgido, a partir das quais se pode pensar seja um projeto alternativo de governo, seja (por que não?) a constituição de outros, inéditos espaços para a política; outros, singulares espaços para a decisão do futuro de cada e de toda(s) a(s) comunidade(s) – um âmbito em que, talvez, o comum seja cada vez mais o lugar aberto da criação do singular.
[1] Sobre o comum para além do público e do privado, cf.:http://uninomade.net/tenda/nem-do-estado-nem-do-mercado-o-maraca-e-nosso/