sábado, 7 de julho de 2012

STÉDILE: GOLPE NO PARAGUAI FOI ARMAÇÃO CONTRA O MERCOSUL

No Brasil coordenador do MST garante que reforma agrária está parada. Foto: Agência Brasil
No Brasil coordenador do MST garante que reforma agrária está parada.
Foto: Agência Brasil



Coordenador do MST afirma que atiradores de elite mataram camponeses e policiais

Por: Júlio Gardesani  (julio@abcdmaior.com.br)

O economista João Pedro Stédile, membro da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), denuncia uma armação que facilitou o golpe que depôs o presidente do Paraguai, Fernando Lugo. Stédile, em visita à Região, disse ao ABCD MAIOR que as balas encontradas nos corpos de camponeses e policiais, após um confronto por terra, foram disparadas por atiradores de elite. Para o dirigente do MST, o objetivo do golpe foi desestabilizar o Mercosul.


ABCD MAIOR - O conflito agrário que culminou com a morte de policiais e camponeses na divisa com o Brasil foi utilizado pela oposição paraguaia para derrubar o presidente Lugo. O senhor concorda com isso?
João Pedro Stédile - As pessoas precisam ter claro que houve um golpe de estado no Paraguai, que estava preparado pelas oligarquias desde o primeiro dia da posse. Lá, assim como no México, não existe segundo turno. As oligarquias foram surpreendidas com a vitória popular de Lugo. Assim, desde o primeiro dia de governo, as oligarquias tentam depor Lugo de todas as maneiras possíveis. Até o golpe, a direita já tinha registrado 23 tentativas de impeachment. 


O episódio do conflito de terra, que envolvia trabalhadores sem terra paraguaios, foi na verdade um conflito que muito acontece  no Brasil e também na América Latina. O problema foi a armadilha que a oposição a Lugo preparou: durante o processo de despejo, começou a haver tiroteios que pegou a todos de surpresa, policiais e também camponeses, que resultou em 18 mortos. A questão é que as balas que mataram os policiais e os sem terra tinham a mesma origem: rifles de franco-atiradores. O que houve foi uma emboscada. Os atiradores de elite atingiram os dois lados construindo uma comoção nacional, que os órgãos de imprensa multiplicaram por dez e, assim, criaram um clima para o impeachment.




Este golpe deve servir de atenção para outros países da América Latina ou causar instabilidade política na região?
Todas as forças progressistas e democráticas do Brasil devem se preocupar com o que aconteceu no Paraguai. Uma armação da direita mais reacionária possível, que contou com os serviços de inteligência dos Estados Unidos. Independentemente dos governos de plantão, seja Clinton, Bush ou Obama, os Estados Unidos operam de acordo com os interesses do capital norte-americano. 

Nos últimos quatro anos, os Estados Unidos trabalham sistematicamente para colocar barreiras ao avanço dos governos progressistas na América Latina. Este movimento teve início em países mais frágeis, como Honduras, Equador, Peru e agora no Paraguai. Na verdade, o que ocorreu no Paraguai tinha outro objetivo mais perigoso: debilitar o Mercosul. Vale lembrar que o Senado paraguaio já tinha conseguido barrar a entrada da Venezuela, o que não faz sentido algum, já que ninguém mais precisa tanto do comércio com os países latino-americanos do que o Paraguai. 


O que eles almejam é frear o Mercosul, que é um contraponto aos acordo bilaterais depois que os Estados Unidos perderam a Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Mas o tiro saiu pela culatra, já que o Brasil, a Argentina e o Uruguai aprovaram a entrada da Venezuela no organismo.



No Paraguai, grandes jornais chegaram a acusar o Brasil de intromissão. Existe imperialismo brasileiro na América Latina?
Sou contrário a usarmos a categoria de que a economia brasileira é imperialista, seja com a Bolívia ou com o Paraguai, pois o conceito de economia política do imperialismo não se aplica ao Brasil. Imperialismo é quando uma economia é tão forte que o país precisa buscar o controle de outros mercados externos. O que ocorre por aqui é que o Brasil ainda é uma economia subordinada a um imperialismo maior. Isso não quer dizer que empresas brasileiras não operam no exterior.




E no Brasil, como estão as discussões sobre a reforma agrária?
A reforma agrária está completamente parada no Brasil. No período Lula ainda houveram algumas desapropriações, o que causou uma euforia na base com muitos ocupações e acampamentos. Mas isso não ocorre, infelizmente, no governo Dilma. 

Entre os motivos está a hegemonia do agronegócio na economia brasileira. Com a crise do capitalismo, ao invés de o agronegócio se fragilizar, ele se fortaleceu. Acabamos tendo um volume muito grande de capital estrangeiro sendo aplicado na agricultura, como nas megaproduções de soja ou etanol. Além disso, o governo Dilma ainda não se deu conta, por estar dominado no segundo escalão por um quadro de tecnocratas, que a reforma agrária é um instrumento poderosíssimo para erradicar a pobreza. 
Para completar, a mídia burguesa nos faz um combate permanente, que assusta o governo.




Fonte: ABCD Maior


sexta-feira, 6 de julho de 2012

MONTEIRO LOBATO E O RACISMO




Cartas inéditas reforçam que o autor do Sítio do Picapau Amarelo se entusiasmou com a eugenia - pretensa ciência que ajudou a embasar o nazismo e o holocausto.

por André Nigri



O escritor Monteiro Lobato (1882-1948) era racista? Eis uma polêmica que vai e volta na vida cultural brasileira e recentemente foi reativada pelo Conselho Federal de Educação. No ano passado, o organismo emitiu um parecer classificando o livro As Caçadas de Pedrinho, de 1933, como racista. Na análise, eram citados trechos da obra em que a personagem Tia Nastácia, que é negra, era tratada de forma ofensiva: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão". O Conselho Federal de Educação endossou, na verdade, uma corrente acadêmica que já há algum tempo vê sinais de racismo no tratamento dispensado à personagem ao longo da obra infantil do escritor. Embora o Ministério da Educação tenha vetado o parecer, alguns estados, como Mato Grosso e Paraíba, chegaram a tirar o livro do currículo escolar.
A polêmica esquentou ainda mais no início deste ano, quando alguns intelectuais aderiram a ela. Em geral, esgrimindo por Lobato e usando o tom do panfleto e da galhofa. O jornalista e escritor Ruy Castro foi veemente: "As pessoas que acusam Monteiro Lobato de racismo e de querer 'extinguir a raça negra' certamente nunca leram uma linha do que ele escreveu. Trata-se de uma atitude 'politicamente correta de galinheiro', como diria Nelson Rodrigues". O cartunista Ziraldo criou um desenho em que o autor do Sítio do Picapau Amarelo aparece abraçado a uma passista negra para satirizar os que viam racismo em sua obra - e a história toda se tornou tema de um samba de bloco no Carnaval do Rio de Janeiro em março deste ano.
A polêmica mudou de nível, indo para o terreno do factual, quando Arnaldo Bloch, colunista de O Globo, formulou a pergunta que precisava ser feita: mas, afinal, o que o próprio Lobato escreveu sobre o tema, para além das interpretações que se fazem de sua ficção? Em um texto para o jornal em que trabalha, Bloch alinhavou trechos de cartas do escritor. Em uma delas, aparecia a frase fortíssima que saiu na capa desta edição de BRAVO!: "País de mestiços, onde branco não tem força para organizar um Kux-Klan (sic) é país perdido para altos destinos", escreveu Lobato, citando a mais famosa organização racista da história norte-americana. Seguindo a trilha sugerida por Bloch, BRAVO! foi conferir a correspondência de Lobato. Foram garimpadas cerca de 20 cartas inéditas. E o seu conteúdo é estarrecedor.
É possível depreender algo sobre o teor de suas cartas ao examinar os seus três principais destinatários. Um deles é o escritor Godofredo Rangel - e o próprio Lobato havia publicado uma seleção da correspondência enviada a ele no livro A Barca de Gleyre, 1944. Os outros dois - fato incomum entre intelectuais - são cientistas. O paulista Renato Kehl (1889-1974) nasceu em Limeira e as cartas enviadas por Lobato a ele estão depositadas na Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. O baiano Arthur Neiva (1880-1943) foi aluno do próprio Oswaldo Cruz e é um dos fundadores do Instituto Biológico de São Paulo, lugar onde está guardada parte da correspondência que ele manteve com Lobato - entre elas, a missiva citada acima, exaltando a Ku Klux Klan. Outro lote de cartas - a Kehl e a Neiva - foi garimpado nos arquivos da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.
Uma ideia unia Monteiro Lobato, Renato Kehl e Arthur Neiva. Os três eram adeptos de um conceito esdrúxulo chamado eugenia. A ideia, surgida na França na metade do século 19 e sistematizada pelo médico François Galton, era definida pelo próprio como "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer qualidades raciais das futuras gerações, física ou mentalmente" - e na prática representava, entre outras coisas, uma exaltação da superioridade da raça "branca" em relação às outras. Ou seja, racismo. Nas primeiras décadas do século 20, a eugenia ganhou status de ciência. Renato Kehl era um dos principais estudiosos do tema no Brasil. Redigiu uma vasta obra defendendo os princípios eugênicos. Foi por iniciativa dele que foi criada, em 1918, a Sociedade Eugênica de São Paulo. Em sua obra, ele defende princípios como a proibição de imigrantes que não fossem de raça branca e esterilização de pessoas que, em sua ótica, apresentassem "problema físicos ou mentais". Os princípios professados por Kehl são muito parecidos com aquilo que, na Europa, ficou conhecido como "eugenia negativa" - ou seja, proibição de que seres humanos considerados "inferiores" se reproduzissem. Como mostra o cineasta sueco Peter Cohen em seu filme Homo Sapiens, essa eugenia negativa está na base da ideologia racial que embasou o nazismo - e esse pensamento, levado ao extremo, culminaria no holocausto.
A correspondência de Monteiro Lobato mostra que, no fim dos anos 20, ele foi um entusiasta das ideias eugênicas e da obra de Renato Kehl. A primeira carta do escritor ao cientista data de 1918 e, nela, Lobato diz: "Lamento só agora travar conhecimento com um espírito tão brilhante como o seu". No mesmo ano, Lobato convidou Kehl para escrever o prefácio de seu livro O Problema Vital, uma coletânea de artigos do escritor publicados no jornal O Estado de S.Paulo. O entusiasmo de Lobato pela obra do cientista só aumentou na década seguinte, em que Kehl deu uma virada em seu pensamento ao abraçar radicalmente os princípios da eugenia negativa. Em 1921, Kehl publicou um artigo chamado A Esterilização sob o Ponto de Vista Eugênico, no qual defende a prática como "um auxiliar poderoso da redução dos degenerados". Para Lobato, em carta de 9 de outubro de 1929, Renato Kehl era "um D. Quixote científico (...) a pregar para uma legião de panças" (gíria que, nos anos 20, significava pessoas ignorantes). No mesmo ano, Monteiro Lobato viajou para os Estados Unidos e se entusiasmou com o país pelas razões erradas. Na terra de Abraham Lincoln, a eugenia havia ganhado status científico como em nenhum outro lugar, e Lobato lamenta que seria difícil publicar um livro de Renato Kehl no país por causa da concorrência. "Não pode haver país onde a eugenia esteja mais proclamada, estudada, praticada, 'livrada' (no sentido de publicada em livros) do que este", escreveu Lobato.
"EUgenia tão adiantada"
Nessa mesma carta, se lê um dos trechos mais chocantes dentro do conjunto de missivas ao qual BRAVO! teve acesso exclusivo. Lá, num trecho repleto de termos em inglês, Lobato descreve uma história abjeta como se fosse uma experiência positiva: "Nos Estados Unidos, a eugenia está tão adiantada que já começam a aparecer 'filhos eugênicos'. Uma senhora da alta sociedade meses atrás ocupou durante vários dias a front page [primeira página] dos jornais mexeriqueiros graças à audácia com que, rompendo contra todos os preceitos da ciência e sem se ligar legalmente a nenhum homem, escolheu um admirável tipo macho, fê-lo estudar sobre todos os aspectos e, achando-o fit [adequado] para o fim que tinha em vista, fez-se fecundar por ele. Disso resultou uma menina que está sendo criada numa farm [fazenda] especialmente adaptada para nursery [creche] eugênica. E lá vai ela conduzindo a sua experiência de ouvidos fechados a todas as censuras da bigotry [fanatismo]". Esse trecho impressiona porque mostra Lobato entusiasmado por uma prática adotada na Alemanha nazista. Por ideia de Heinrich Himmler, um dos asseclas delirantes de Hitler, implantou-se no país um programa conhecido como Lebensborn ("fonte da vida", em alemão arcaizado). Pelo programa, mulheres "arianas" solteiras eram incentivadas a engravidar de líderes "arianos" com o objetivo de expandir, nos dizeres de Himmler, uma "raça líder e pura".
No Brasil, as ideias eugênicas proliferaram principalmente em dois estados: Bahia e São Paulo. Se Kehl foi o líder da corrente em terras bandeirantes, o principal prócer da ideia na Bahia era Arthur Neiva. É interessante notar que a Faculdade de Medicina de Salvador era um centro de discussão de ideias eugenistas, como Jorge Amado bem retrata em seu livro Tenda dos Milagres. Criado nesse ambiente, Neiva era, no entanto, menos radical do que Kehl. Sua principal preocupação eram as ações sanitárias nas cidades brasileiras. Mesmo assim, fazia questão de definir a si próprio como "germânico", e não "mestiço", como a maior parte da população de seu estado.
Foi para Neiva que Lobato enviou alguns de seus mais impressionantes desabafos sobre a questão racial, entre as cartas inéditas garimpadas por BRAVO!. Ele tocou várias vezes, por exemplo, no tema da Ku Klux Klan, o grupo fundado logo após o fim da Guerra Civil Americana (1861-1865) no estado do Tennessee e que tinha como principal objetivo impedir a integração social dos negros recém-libertados - proibindo-os, por exemplo, de adquirir terras e também promovendo assassinatos traiçoeiros como uma forma de "higiene racial". Escreve Lobato a Neiva, em 1938: "Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva".
Três anos antes, em 1935, Lobato esteve na Bahia e escreveu uma carta ao cientista, que então morava em São Paulo. Lobato inicia o texto dizendo-se maravilhado com a terra de Neiva, com sua comida, arquitetura e igrejas - "Sua Bahia, dr. Neiva, positivamente enfeitiçou-me". No quarto parágrafo, no entanto, ele fala das pessoas do lugar: "Mas que feio material humano formiga entre tanta pedra velha! A massa popular é positivamente um resíduo, um detrito biológico. Já a elite que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas". O comentário comparando a população pobre da Bahia a "esterco" é francamente racista - assim como as observações que, numa carta relativamente conhecida enviada a Godofredo Rangel (leia acima), ele faz sobre os mestiços cariocas - mas também tem a ver com o preconceito que Lobato nutria em relação a habitantes de outros estados brasileiros que não fossem São Paulo. Aparecem em sua correspondência, por exemplo, referências desairosas a cariocas e mineiros.
Diante de tal conjunto de cartas, é inevitável perguntar: ao abraçar a causa da eugenia, Lobato não teria sido apenas um homem de seu tempo? A resposta é: em termos. É certo que tal ideia tinha status de ciência na época, era bem aceita em determinados círculos intelectuais, e o termo estava tão na moda que aparecia até na poesia (o fluminense Raul de Leoni escreveu um famoso soneto chamado Eugenia, em que o vate se dirige à musa com versos de péssimo gosto, como "tens legendas pagãs nas carnes claras"). A eugenia, no entanto, não era uma ideia majoritária, tanto que Lobato chamou Kehl de "Quixote". Um fato relevante a mostrar que havia muita gente consciente do absurdo da coisa foi o lançamento, em 1933, de Casa Grande e Senzala, o clássico de Gilberto Freyre - obra-prima que é resposta eloquente às bobagens defendidas por Kehl e pelo "baiano germânico" Neiva. Em sua prosa irresistível, Freyre mostra o óbvio. O que influencia as características dos povos, se é que isso existe, é a cultura, como pregava o antropólogo alemão Franz Boas, e não a raça. O livro apresenta, também, a mestiçagem que horrorizava os eugenistas como um valor positivo.
Cabe finalizar dando a medida justa e apresentando Lobato em toda a sua complexidade. O escritor é um dos mais talentosos de sua geração. Legou ao Brasil um bem inestimável: uma literatura infantil de altíssimo nível, que pode ser lida até hoje. As eventuais alusões racistas a personagens como a Tia Nastácia não tiram o prazer da leitura - talvez constituam até um bom tema de discussão em aula. No caso específico da Tia Nastácia, é possível fazer até a leitura contrária, dado que a personagem é sempre apresentada de forma bastante positiva ao longo da obra de Lobato. Que, como escritor, chegou a denunciar maus tratos contra negros em alguns de seus contos, caso de Os Negros, incluído no livro Negrinha (1923). Lobato também foi um polemista brilhante e extremamente atilado quando defendeu as ideias certas. Sua impaciência quanto a certo costume brasileiro de empurrar a solução dos problemas para depois é altamente louvável. É válida até hoje, assim como as críticas contra a falta de saneamento básico e a triste burocracia do país.
Tais qualidades tornam ainda mais espantoso o fato de Lobato - mesmo relativizando a época em que ele viveu - ter-se encantado com ideias tão estapafúrdias, como as defendidas por Arthur Neiva e Renato Kehl. Ele parou de falar no assunto quando o nazismo, embasado na eugenia, gerou os horrores do holocausto, mas nunca se retratou publicamente pelas ideias que defendeu durante pelo menos três décadas (dado que parte de sua correspondência continua inédita, existe a esperança de que ainda apareça uma carta com um mea-culpa). É tarde demais para condenar Lobato pelo crime intelectualmente imperdoável - e hoje inafiançável juridicamente - do racismo. Ler suas cartas com a distância dos anos proporciona uma reflexão: mesmo as mentes mais sólidas podem, em determinados momentos, sofrer um amolecimento radical.


Em várias de suas cartas, Monteiro Lobato se refere de forma elogiosa à entidade racista fundada no estado do Tennessee no fim da Guerra Civil Americana. A Ku Klux Klan tinha como objetivo evitar que os negros recém-libertos adquirissem direitos civis e ainda organizava assassinatos traiçoeiros como uma forma de "purificação racial"
"País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan (sic), é país perdido para altos destinos. (...) Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva"
(carta enviada a Arthur Neiva em 10 de abril de 1928)


Foi o nazista Heinrich Himmler quem instituiu na Alemanha as Lebensborn - "fazendas" onde mães solteiras de bebês supostamente arianos podiam criar seus filhos. Lobato teve conhecimento de prática semelhante nos EUA e se referiu a ela de forma elogiosa.
"Nos Estados Unidos, a eugenia está tão adiantada que já começam a aparecer 'filhos eugênicos'. Uma senhora da alta sociedade meses atrás ocupou durante vários dias a front page [primeira página] dos jornais mexeriqueiros graças à audácia com que, rompendo contra todos os preceitos da ciência e sem se ligar legalmente a nenhum homem, escolheu um admirável tipo macho, fê-lo estudar sobre todos os aspectos e, achando-o fit [adequado] para o fim que tinha em vista fez-se fecundar por ele. Disso resultou uma menina que está sendo criada numa farm [fazenda] especialmente adaptada para nursery [creche] eugênica."
(carta enviada a Renato Kehl em 8 de julho de 1929)
A eugenia pregava que a mestiçagem "enfraquecia" a raça. Tal ideia esteve em voga no Brasil nos anos 20 e 30, mas não era majoritária - tanto que Gilberto Freyre glorificou a mistura de raças em seu clássico "Casa Grande e Senzala". Monteiro Lobato, no entanto, jogava no time dos eugenistas - e fez comentários ofensivos ao povo mestiço da Bahia durante uma visita a Salvador."Mas que feio material humano formiga entre tanta pedra velha! A massa popular é positivamente um resíduo, um detrito biológico. Já a elite que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas."
(carta enviada a Arthur Neiva em 15 de dezembro de 1935)
Foi na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, que começou a amizade de Monteiro Lobato com o escritor mineiro Godofredo Rangel. Eles trocaram centenas de cartas durante várias décadas. Em muitas delas, Lobato faz observações sobre a mistura de raças no Rio de Janeiro.
"Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral - e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas - todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível - amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde."
(carta a Godofredo Rangel incluída na primeira edição do livro "A Barca de Gleyre", em 1944)


Fonte: Bravo!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Venezuela no Mercosul: o sentido de um ingresso


Presidentes ampliam integração sul-americana e desmascaram Senado paraguaio — que se dizia defensor da democracia mas derrubou um presidente em 24 horas
Por Gilson Caroni Filho, da Carta Maior
Ao decidir suspender o Paraguai e incorporar a Venezuela como membro pleno do Mercosul, Brasil e Argentina sinalizaram para o aprofundamento do conceito de democracia na América Latina. Uma decisão que nos compromete no fluxo da vida, pela responsabilidade que criamos em relação a novas possibilidades de presente e futuro.
Os donos de colunas fixas na grande imprensa costumavam – e ainda costumam – invocar o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998, pelo Mercado Comum do Sul e por seus países associados, que define o regime democrático como condição indispensável para a existência e para o desenvolvimento dos processos de integração. A isso supostamente se aferravam – e ainda se aferram – para protelar a aprovação da Venezuela como membro pleno do bloco.Usam o argumento de que o “impeachment” de Lugo foi executado dentro das normas legais previstas na Constituição paraguaia, esquecendo-se o que todos sabem: nem sempre legalidade é sinônimo de licitude. O mundo jurídico é especialista em romper com o espírito da lei dentro da letra da lei.
Não houve tempo para o exercício da defesa. O golpe ruralista foi perpetrado e calculado num tempo que impedisse qualquer articulação nacional em defesa do governo democraticamente constituído.
O mesmo vale para o suposto déficit democrático da Venezuela. Nunca é demais lembrar que Hugo Chávez chegou à presidência numa eleição, em 1998, em que obteve 56,2% dos votos. Dois anos depois resistiu a uma tentativa de golpe de Estado orquestrada pelas velhas oligarquias em conluio com o baronato midiático.
Em 2004, venceu o referendo revogatório da oposição para, dois anos depois, renovar seu mandato presidencial com quase 60% dos votos. Em 2008, o secretário geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), José Miguel Insulza, não poupou elogios ao processo democrático venezuelano ao se referir às eleições regionais.
Na ocasião, Insulza parabenizou o governo da Venezuela pela “situação de normalidade” e destacou a participação maciça da população no pleito.
Destacou também o comportamento dos partidos e agradeceu pelos “tempos de paz e tranquilidade”. Em que país os cidadãos participaram mais ativamente de processos decisórios que os 16 milhões de eleitores venezuelanos?
É chegada a hora de os historiadores e os bons jornalistas cumprirem o seu papel em um continente marcado por uma institucionalidade construída por estruturas de dependência entre as oligarquias e os interesses do imperialismo. Comparar o que éramos com o que somos é imperativo.
É fundamental que nós, latino-americanos, nos reconheçamos nas culturas e histórias que moldaram o mundo como o temos, vemos e vivemos hoje. Precisamos confrontar os que – detendo o monopólio da narrativa – impedem o diálogo tão necessário entre sociedades, tempos, histórias, gerações e sujeitos, para continuarmos lutando por um mundo justo e democrático.
Nessa tensão dialética, a vida e seus atores são mobilizados por forças centrípetas e centrífugas, por meio, principalmente, de discursos que se reproduzem no cotidiano social. No sentido dessas forças, refletindo sobre o momento histórico, os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e Dilma Roussef não tomaram uma decisão meramente conjuntural. O ingresso da Venezuela no Mercosul sinaliza para um processo pedagógico inequívoco.
A luta pela hegemonia só é eficaz quando governar é educar para a mudança, desfazendo nós semânticos sobre golpes e democracia.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Quem são os Libertadores da América



Simon Bolívar, José de San Martin, Bernardo O´Higgins, Francisco Miranda, Tupac Amaru, Miguel Hidalgo, José Maria Morelos, Pedro I, Jose Antonio Sucre, Jose Gervásio Artigas, Jose Joaquín de Olmedo e Manuel Belgrano.

O Destino Manifesto do Povo Estadunidense: Uma Análise dos Elementos Delineadores do Sentimento Religioso Voltado à Expansão Territorial


O “Destino Manifesto” legitimou a Marcha para o Oeste nos EUA, no século XIX
e o Imperialismo do século XX


Por Priscila Borba da Costa


O presente artigo analisa de que forma o Destino Manifesto, conjunto de crenças nacionalistas e expansionistas embevecidas pela religião e pela ética protestante, serviu de princípio legitimador para a ocupação e anexação de territórios do Oeste dos Estados Unidos durante o século XIX. Para tanto, o estudo examina  a origem do conceito de Destino Manifesto dos estadunidenses e de que forma ele está relacionado com um espírito colonizador europeu intensificado pelo sentimento de ruptura do novo homem guiado por Deus na América a partir do século XVIII, isto é, da figura religiosa do Adão que tinha somente o futuro pela frente, desvinculado da história. A partir do arcabouço teórico delineado por Mary Anne Junqueira, João Feres Junior e Shane Mountjoy, o presente artigo apresenta, com base em pesquisa bibliográfica, como a expressão “Destino Manifesto” foi cunhada em meados do século XIX por John O’Sullivan, condensando uma ampla gama de crenças relacionadas ao papel designado por Deus para os estadunidenses, responsáveis por levar o progresso para os chamados selvagens (povos nativos) e expandir o território da grande nação em construção. Neste sentido, o Destino Manifesto caracteriza-se pelo sentimento de superioridade étnica do branco frente ao indígena, pela auto-suficiência do povo estadunidense em face dos colonizadores britânicos e pelo destino pré-determinado por Deus para o progresso ilimitado e propagação de valores inerentes ao povo estadunidense, tal como a liberdade, a religião civil e a democracia. Constata-se que a forte religiosidade foi um fator determinante para o florescimento do Destino  Manifesto como princípio legitimador para ações expansionistas no século XIX, visto que o povo estadunidense acreditava que Deus estava conduzindo a progressiva expansão da civilização moderna para territórios distintos das antigas colônias. O Oeste era considerado um território repleto de possibilidades e pronto para ser desbravado por aqueles que detinham o conhecimento e a missão divina de levar a civilização onde haveria selvageria. De acordo com  o Destino Manifesto, a expansão territorial não era motivada apenas por interesses  econômicos, mas era legitimada pelo convencimento de que aquela era a missão divina a ser cumprida na terra pelos estadunidenses. Pelo simples fato dos habitantes locais, vítimas da dominação, recusarem-se a aceitar a anexação dos territórios aos Estados Unidos, estes eram considerados pecadores, pois estavam negando o representante enviado por Deus para realizar a missão do progresso. 
O artigo conclui que, passado mais de um século, o  sentimento expressado no Destino Manifesto ainda é presente nos estadunidenses, os quais vinculam grande parte das intervenções externas a motivos religiosos de propagação da liberdade e dos valores da nação protegida por Deus.



Introdução

Os ex-colonos dos Estados Unidos da América são conhecidos por seu espírito desbravador, responsáveis por levar o “progresso da civilização” para locais anteriormente ocupados com comunidades tradicionais, hoje extintas em solo estadunidense. A história da ocupação e anexação de territórios nos Estados Unidos é marcada por um sentimento peculiar deste povo, caracterizado pela ideia de que os Americanos exerciam um papel designado por Deus. 
O presente artigo busca explorar as origens deste conjunto de crenças que legitimou a ocupação do Oeste e outros territórios durante o século XIX. Tal espírito expansionista é chamado de  Manifest Destiny. Em síntese, o Destino Manifesto foi uma doutrina estadunidense baseada em preceitos religiosos que legitimava e justificava a expansão dos estadunidenses a territórios alheios para a sua anexação ao território dos Estados Unidos.  Tal ideia implicava que os estadunidenses eram um povo  abençoado por Deus e escolhido especialmente para levar o esclarecimento aos “povos inferiores” da América do Norte. Apesar de o termo ter sido utilizado pela primeira vez em meados do século XIX por John O’Sullivan em um ensaio sobre a anexação do Texas, o espírito do Destino Manifesto é ainda mais antigo e carrega fortes significados no  imaginário estadunidense. Com o aval religioso e a missão enviada diretamente dos céus, por Deus, os Estados Unidos tomavam o direito de agir da forma mais arbitrária a fim de ocupar territórios e aniquilar populações contrárias ao seu destino. A doutrina foi amplamente utilizada por políticos, meios de comunicação e até hoje deixa vestígios no espírito do cidadão estadunidense. Este sentimento é ainda perceptível nas condutas militares, econômicas e políticas, principalmente no que diz respeito às relações externas do país.  


O Destino Manifesto: um sentimento que conduz à ação 

Nos Estados Unidos da América, o século XIX foi fortemente marcado pela conquista da parte Oeste do que é hoje o seu território nacional. Neste breve estudo, será analisado o sentimento por trás da ação expansionista dos estadunidenses e de que forma este sentimento está ligado com uma ideia religiosa de superioridade étnica e progresso civilizatório, característicos do calvinismo e da ética protestante. Especificamente, será abordado o fenômeno do Destino Manifesto, conjunto de crenças  dos estadunidenses que marcou esta sociedade em determinado momento histórico. Uma das características que auxiliam na compreensão do perfil expansionista do povo estadunidense é a íntima correlação com o espírito colonizador dos britânicos e europeus que criaram os Estados Unidos. Todavia, o que diferencia o estadunidense é o rompimento com a metrópole e a ideia de que o Novo Mundo, a América, significava um começo a partir do zero, uma ruptura com o passado, sendo o “povo americano” a síntese do novo homem, o Adão que teria apenas o futuro pela frente. Baseados na crença de serem parte de uma nova nação especialmente escolhida por Deus e destinada  a ser a maior de todas elas, os estadunidenses deram intensificaram sua expansão territorial. Ramos e Miranda, em seu artigo para a revista Ameríndia, colocam a importância do discurso religioso e sua influência no aspecto político dos Estados Unidos ao longo da sua história: 

"Ao se estudar os acontecimentos político-sociais dos Estados Unidos na própria emancipação das ditas “Treze Colônias”, base territorial fundante do país, percebemos a importância da coletividade, diversificada, porém agregada pelo discurso unificador de “One Nation Under God”, que se apropria dos valores que estas sociedades já traziam, tais como a família, o trabalho, o esforço individual (aquilo que Weber coloca como Ética Protestante) e  os difundem, legitimando-os como valores-base para a nova Nação que se coloca no cenário mundial. Em suma, uma sociedade de imigrantes que quer se unir em torno do discurso do nacionalismo" (RAMOS E MIRANDA, 2007) 

Como expressam os autores, a religião civil está presente a todo o momento – e isso é verificado atualmente – nos discursos políticos, nos programas de entretenimento, nos espaços públicos, nas valorizações dos heróis cívicos e de guerra. “No imaginário estadunidense, a importância de certos ritos e práticas coletivas reflete a ênfase da religião civil, disfarçada de ‘moral e ética cristãs’ em compreender Deus como elemento unificador da pátria” (RAMOS e MIRANDA, 2007). Os autores colocam que é notável a presença da religiosidade, da crença em Deus e dos valores cristãos, mas alertam que este sentimento permeia as relações políticas e sociais.  
A doutrina Destino Manifesto vem dos preceitos calvinistas de que “Deus escolhe seus "eleitos” e é um conceito estruturado a partir da premissa de que o povo estadunidense é escolhido por Deus e tem como missão levar o esclarecimento aos povos considerados inferiores (pressupõe, ainda, que os estadunidenses são soberanos, portanto todos seriam submetidos a eles nesta missão).

"Deus escolheu a América para que aqui se construísse a sede do paraíso terrestre, por isso, a causa da América será sempre justa e nada de mal jamais lhe será imputado. Os colonos são os verdadeiros herdeiros do povo eleito, pois prestavam a Santa Fé. Nossa missão é liderar os exércitos de luz em direção aos futuros milênios." (Pregações Puritanas, 1660 apud OLÍMPIO & MAIA, 2006, p. 6) 

Embora não seja a época abordada neste trabalho, é importante relembrar a questão das peregrinações do século XVII, que permite entender o pano de fundo desse sentimento religioso e de responsabilidade divina do estadunidense. A questão está amplamente desenvolvida no trabalho de Mary Anne Junqueira, Ao Sul do Rio Grande (2000), onde é possível perceber a relação do apego religioso desde o século XVII quando os primeiros peregrinos recusavam-se a manter relações com a igreja inglesa e comprometiam-se com a imagem dos hebreus, o povo eleito por Deus. Junqueira conta que os peregrinos permaneceram fortemente no imaginário estadunidense no que diz respeito à colonização. Ainda, no momento da conquista, embora num primeiro momento houvesse uma relação com os índios, – e fica claro no texto de Junqueira que esta relação era de interesse pelo conhecimento dos nativos à nova terra – num segundo momento, procuravam civilizar o novo território e acreditavam ter poder sobre o destino de seus antigos habitantes. (JUNQUEIRA, 2000, p. 74-76)
Esta perspectiva é interessante, pois auxilia a compreender um primeiro ponto essencial que é a exploração do  wilderness, conceito amplamente trabalhado no livro de Junqueira: áreas nunca antes exploradas pelos estadunidenses, habitados pelos chamados homens selvagens e bestas.

"O  wilderness e a fronteira marcaram profundamente o imaginário  nacional nos Estados Unidos, permitindo reforçar o excepcionalismo norte-americano. Segundo este imaginário, foi no Oeste que se construiu a nação norte-americana. Portanto, entender como os norte-americanos percebiam o seu próprio espaço territorial é importante para compreender como eles viam a si mesmos e às outras culturas" (JUNQUEIRA, 2000, p. 69). 

Junqueira explica ainda que, embora sejam tratados  como fato heróico na história estadunidense (e ocidental), esses fatos configuraram uma cena de forte devastação e aniquilação de comunidades indígenas para o estabelecimento da pequena propriedade privada. No entanto, a fronteira era vista como um mundo de possibilidades não existentes na civilização. Neste novo mundo era possível enriquecer, construir uma nova vida com um espaço ilimitado pronto para novas produções e descobertas (JUNQUEIRA, 2000, p. 70). O wilderness trazia uma ideia de recursos ilimitados e de desenvolvimento econômico. Todas essas questões, na visão do povo estadunidense, permitiam e legitimavam a conquista territorial e a violência cometida nessas explorações.   
Após a formação deste contexto vem a Independência  e, não por acaso, todo esse quadro influenciou fortemente no ideário de nação que se desenvolveu a seguir. É ainda na obra de Mary Anne Junqueira que é possível configurar essa pintura de uma nação única formada por estadunidenses, descendentes diretos dos peregrinos, o povo considerado eleito por Deus. Junqueira explica com detalhes que os estadunidenses 

"acreditavam que o mundo que constituíam era diferente e superior a todos os outros que existiam na Europa. (...) Com a Independência criou-se ainda outra ideia: a de que o norte-americano era um novo tipo de homem, completamente desvinculado do passado, “emancipado da História”. (...) o início de uma nova História desconectada do passado: o Adão norte-americano tinha apenas o futuro pela frente. (...) a nascente democracia norte-americana vinha acompanhada por um enorme sentimento de possibilidades, mas também por sentimentos de impaciência, intolerância e hostilidade. Ao novo homem norte-americano, tido como inocente e dotado de energia excepcional, cabia uma tarefa incomum: construir um mundo a partir do zero." (JUNQUEIRA, 2000, p. 77)

Tendo em mente esse sentimento de ruptura explicado por Junqueira que é possível compreender a ideia nacionalista expressada no século XIX nos Estados Unidos como Destino Manifesto. Shane Mountjoy, professor de História da Universidade de York e autor de um esclarecedor livro sobre o tema, explica que o termo Destino Manifesto, criado no século XIX, condensava sentimentos nacionalistas e expansionistas já enraizados nos estadunidenses. A origem do termo está ligada à política expansionista de meados do referido século. Foi John O'Sullivan quem o utilizou para descrever seu sonho a respeito do futuro da América. No ensaio chamado "Annexation", escrito em 1839 (publicado somente em 1845), declarou apoio à aquisição do Texas pelos estadunidenses, defendendo que era o cumprimento do destino manifesto espalhar o continente e que lhes era atribuído pela Providência (MOUNTJOY, 2009, p. 9).

"Why, were other reasoning wanting, in favor of now elevating this question of the reception of Texas into the Union, out of the lower region of our past party dissensions, up to its proper level of a high and broad nationality, it surely is to be found, found abundantly, in the manner in which other nations have undertaken to intrude themselves into it, between us and the proper parties to the case, in a spirit of hostile interference against us, for the avowed object of thwarting our policy and hampering our power, limiting our greatness and checking the fulfillment of our manifest destiny to overspread the continent allotted by Providence for the free development of our yearly multiplying millions" (O’SULLIVAN, 1945).

Neste documento, é discursada a missão destinada aos Estados Unidos e é explícita a noção de que eram eles os responsáveis pela propagação dos princípios divinos, deixando claro que sentiam que eram capazes de espalhar o progresso e o desenvolvimento e que estavam fazendo o mesmo pela Providência Divina e, de acordo com essa lógica, não havia sentido algum em interromper a vontade divina. Além disso, sentiam que constituíam a nação do progresso, da liberdade individual e da emancipação universal, como apontam os autores Olímpio e Maia.  
O uso do termo “Destino Manifesto” neste primeiro ensaio de O’Sullivan foi praticamente imperceptível. Mais tarde, no mesmo ano, ele usou o termo novamente, com relação à anexação do território do oeste, Oregon. Defendia que a Providência ordenava que os EUA estendessem sua única forma de governo, o então chamado "grande experimento de liberdade e autogoverno federativo" (MOUNTJOY, 2009, p. 10). Entretanto, foi na terceira vez que O'Sullivan usou a expressão, que quase imediatamente foi adotada pelos demais. Os Democratas foram os primeiros a usar o termo à exaustão. O termo passou a simbolizar a ideologia e o desejo dos Estados Unidos de expandir. A frase era um termo breve e prático para expressar apoio ao projeto de expansão ao Oeste. Essas terras eram adquiridas da Grã-Bretanha e especialmente do México e, em particular, o Texas e Oregon. Quando em guerra com o México, os EUA buscaram outros territórios como o Novo México e Califórnia. Tais expansões eram naturais para os estadunidenses, afinal era o "destino". No início do século XIX, surge, então, a manifestação nacionalista que considera seu destino a anexação de territórios. O Destino Manifesto está inserido num contexto histórico, desenrolado por Junqueira, de uma religiosidade e uma missão divina que permitia a anexação e governo de territórios que não pertenciam aos Estados Unidos. Os estadunidenses, que já se consideravam privilegiados e enviados por Deus, acreditavam ter a responsabilidade de civilizar o bárbaro e o impuro. A missão era carregada de nobreza e altruísmo. Este desenho nos permite contemplar com mais clareza a ideia de Destino Manifesto. Foi, então, a partir dessas premissas que os estadunidenses consideravam que deveriam anexar (comprando ou tomando) o território dos povos inferiores e aplicar um processo civilizatório, fazendo com que os povos destes territórios anexados se submetessem ao seu governo e ao seu modo de
vida.  
Olímpio e Maia ainda explicam que a diferença racial é outro fator bem presente. Ela justifica os padrões morais e ainda considerava-se  impossível associar as práticas estadunidenses com más ações neste contexto de expansão, já que estariam cumprindo uma ordem divina. Os mexicanos, por outro lado, pecariam apenas por recusar a oferta dos estadunidenses de anexação do seu território, contrariando o desejo de Deus. 
Feres Júnior aborda esta questão, através do pensamento de Ralph Waldo: o “sentimento de superioridade racial americana está amparada por um poder ainda mais alto: a vontade de Deus, a Divina providência - frente a qual as ‘questões seculares’ perdem importância” (FERES JUNIOR, 2004, p. 83).  Vê-se, portanto, a clara percepção de superioridade legitimada pela autoridade maior e indiscutível, Deus. Sendo que o objetivo é o triunfo e nada ou pouco importam os motivos para a realização dessas ações.
Nos conflitos que se seguiram, dentre os territórios anexados, estavam os das colônias espanholas (Cuba, Porto Rico, Filipinas e a ilha de Guam) e consideravam os habitantes destas colônias "raças indesejáveis" e indagavam-se o que fazer com eles. Albert Beveridge (historiador e senador - 1900) declara:  

"Ele [Deus] nos fez os mestres organizadores do mundo para estabelecer um sistema onde reina o caos. (...) Ele nos fez adeptos do bom governo para que possamos administrá-los aos povos selvagens e senis (...) ele marcou o povo americano como Sua nação escolhida para finalmente liderar no trabalho de regeneração do mundo. Essa é a missão divina da América (...) Nós somos os depositários do progresso mundial, os guardiões da paz virtuosa" (BEVERIDGE apud FERES JUNIOR, 2004, p. ).  

Feres Júnior ainda explica que, “segundo essa concepção, a graça divina é o princípio organizador da história humana, e os americanos seus agentes verdadeiros e legítimos” (FERES JUNIOR, 2004, p. 85). E continua: o expansionismo estadunidense se dá por terra, mas essas ações se justificam, pois são de ordem divina e o estadunidense é o portador dessa missão, tendo ele o conhecimento privilegiado do divino, ficando inviável contra-argumentar com uma razão prática de ordem secular.
Vemos ainda, em Mountjoy, que em termos práticos, os Estados Unidos não adotaram o Destino Manifesto como política. O conceito influenciou a política do país, especialmente nas ultimas seis décadas do séc XIX e incorporou muitas crenças como o expansionismo, nacionalismo, excepcionalismo estadunidense e, em alguns casos, a ideia de superioridade racial. A expressão é, dessa forma, carregada de muitas ideias que serviam de justificativas e
entraram no imaginário do cidadão estadunidense. Os expansionistas de 1840 e 1850 reconheciam o lugar e a época como cenário perfeito para expandir os EUA e estavam convencidos de que seriam bem sucedidos e que as condições superiores dos estadunidenses propagariam o progresso. Três conceitos-chave que fundamentavam a doutrina: virtude, missão, e destino. Isso queria dizer que, primeiramente, a sociedade estadunidense e seus cidadãos eram virtuosos e isso justificava a expansão. Segundo, era a missão dos estadunidenses estenderem sua sociedade. Fazendo isso, iriam influenciar o restante do mundo. Por fim, era o destino dos Estados Unidos assumirem a tarefa de cumprir essas predestinações (Mountjoy, 2009, p.12).  


Progresso Americano, 1872. Por John Gast. 

Possivelmente a imagem mais conhecida do século XIX que representa o Destino Manifesto seja uma pintura de 1872 por John Gast, chamada "Progresso Americano". A pintura traz uma mulher de cabelos claros, vestida de forma clássica, com tecidos brancos e leves revestindo seu corpo, e que está guiando os estadunidenses ao Oeste. Ela está conduzindo pioneiros, fazendeiros, mineiros, vagões e trilhos. O quadro ilustra a visão de que a conquista estadunidense era um sinal de progresso e que levava a civilização e a prosperidade a pessoas não-esclarecidas (MOUNTJOY, 2009).


Conclusão 

A análise da doutrina do Destino Manifesto e os caminhos tomados a partir dela permitem algumas reflexões. O cientista político João Feres Junior, amplamente citado neste trabalho, defende que o único resultado possível almejado pelos estadunidenses seria a realização completa da missão de civilizar os inferiores. No entanto, o impasse da diferença racial seria permanentemente um fato complicador, analisando pela perspectiva da doutrina, pois se trata de um fator biologicamente determinado, impossibilitando a equiparação dos povos inferiores aos estadunidenses. Diante disso,  é possível imaginar um quadro de intolerância e incompatibilidade de anseios. O ato de expandir é obviamente limitado, indo ao extremo quase que inimaginável de uma conquista de território mundial (mesmo sabendo que este não era o objetivo dos Estados Unidos), por outro lado, tomando como base a visão de Feres Junior, à medida que o estadunidense avançasse e conquistasse novos territórios, logo enfrentariam choques culturais, sociais, políticos e econômicos, fatores incompatíveis com a vida dos estadunidenses. A solução seria adaptar os colonizados ou, no limite, exterminá-los. A intolerância da diferença cultural, econômica, política e social é refletida até hoje no cenário mundial – e é notável a interferência (na maioria das vezes partindo do Ocidente) em outros contextos, por vezes ferindo o modo de vida  de outras culturas – sob o manto legitimador dos direitos humanos, da democracia e da liberdade individual.  
A doutrina do Destino Manifesto, como explicado, passou a significar um espírito ideológico e a carregar significados muito fortes, além de sustentar ideais convenientes para o crescimento e fortalecimento hegemônico do país. A religião exerce papel determinante aqui. Tal sentimento é ainda presente na percepção dos cidadãos dos Estados Unidos com relação aos demais países e povos, dando suporte às decisões políticas que envolvem guerras e conflitos como, por exemplo, os eventos que sucederam o “11 de Setembro” e a missão do povo cristão estadunidense em exterminar o “Eixo do Mal” e garantir a existência de um suposto ambiente democrático no Oriente Médio.  
O fortalecimento desse espírito no imaginário do cidadão estadunidense (e que conquista cidadãos aliados à causa estadunidense de diversas partes do mundo) contribui para que haja um sólido apoio da população frente às decisões, por vezes polêmicas, do governo dos Estados Unidos, em nome da manutenção da paz, da liberdade e prosperidade da democracia e dos valores individuais.  
Um exemplo ilustrativo do resquício do sentimento religioso do Destino Manifesto é a parte final do discurso do atual Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em 02 de Maio de 2011 ao anunciar a morte de Osama Bin Laden, inimigo declarado da nação: 

"Esta noite, mais uma vez lembramos que os Estados Unidos podem fazer tudo a que se determinar fazer. Essa é a história de nossa história, seja a busca da prosperidade para nosso povo, ou a luta pela igualdade de nossos cidadãos; nosso compromisso é lutar pelos nossos valores no exterior, e nossos sacrifícios é fazer do mundo um lugar mais seguro. Deixem-nos lembrar de que podemos fazer essas coisas não apenas por riqueza e poder, mas por causa do que somos: uma nação, sob um Deus, com liberdade e justiça para todos. (...) Que Deus  abençoe os Estados Unidos da América" (FOLHA DE SÃO PAULO, 2011) 


Referências Bibliográficas:

FERES JÚNIOR, João. Spanish America como o Outro da América, Revista Lua Nova, n.62, São Paulo, CEDEC, 2004, p. 69-89.
  
FOLHA DE SÃO PAULO, Discurso de Obama sobre a morte de Bin Laden, São Paulo, 02 de Maio de 2011. 

MOUNTJOY, Shane.  Manifest destiny: westward Expansion. Milestones in American History. Infobase Publishing. New York, 2009 

O’SULLIVAN, John. "Annexation" United States Magazine and Democratic Review 17, no.1 (July-August 1845): 5-10 http://web.grinnell.edu/courses/HIS/f01/HIS202-01/Documents/OSullivan.html - Última vez acessado em 26/07/2011. 

OLÍMPIO, Marise Magalhães; MAIA, Jorge Henrique. Estados Unidos e o Destino Manifesto. Disponível em http://meuartigo.brasilescola.com/historia-geral/estadosunidosdestino-manifesto.htm - Última vez acessado em 26/01/2011 

RAMOS, André L. A., MIRANDA, Augusto R. A. Religião Civil, Destino Manifesto e Política Expansionista Estadunidense. Ameríndia, vol. 4, número 2/2007