sábado, 14 de dezembro de 2013

E o povo reinventou as ruas: olhares diversos sobre as manifestações de 2013


As manifestações que ocuparam o país em 2013 não são um assunto encerrado, nem foram algo passageiro. Para além das reivindicações e conquistas, ficou um legado de debate e inquietações, junto a certeza de que algo de novo está sendo construído (ou seria a destruição do velho?). 

É neste sentido que surge E O POVO REINVENTOU AS RUAS: OLHARES DIVERSOS SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DE 2013, que foi lançado no dia 13/12, sexta-feira, 18h, na Avenida Mem de Sá, 126, Lapa, RJ/RJ, no Espaço Multifoco.
Organizado pelo site Juntos na Contramão, é composto por 10 artigos. 
O livro será vendido a R$ 15,00 e pode ser adquirido na Editora Multifoco, através do site www.editoramultifoco.com.br.

Autores:
Marcelo Biar - (organizador) 
Eliana Vinhaes Barçante
Cristovão Fernandes Duarte
Flávia Vinhaes
Flora Daemon 
José Antônio Sepúlveda
Kadu Machado
Karla Vargas 
Leonardo Marques de Mesentier 
Lincoln Penna 
Marcelo Barbosa



quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Educação no Rio: entre a luta tradicional e a greve selvagem

Para professor da rede municipal, agitação entre profissionais da educação continua escalando em função do desprezo com que são tratadas suas demandas pelos governos e, por vezes, pelo próprio sindicato.
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Por Silvio Pedrosa
Nas ruas do Rio de Janeiro, ainda é possível topar com muros, postes e portões onde se veem afixados adesivos com as inscrições ‘Fora Cabral, vá com Paes’ ou ‘Educação em greve’. São indícios do movimento grevista que tomou conta da capital fluminense nos últimos meses de agosto, setembro e outubro e que foi capaz de tensionar os poderes constituídos, enunciando com clareza sua pauta antiprivatista, antimeritocrática, em suma, seu caráter antineoliberal. Os adesivos, no entanto, não são capazes de transmitir a natureza completamente extraordinária que a greve atingiu, principalmente após a radicalização de fins de setembro, início de outubro.
Iniciado ainda no início de agosto, o movimento conseguiu atingir fortes níveis de mobilização das categorias envolvidas com o trabalho escolar (professores, inspetores, cozinheiros, etc.) – na educação municipal – e num dos seus primeiros atos teria sido capaz de impressionar a todos, colocando 15 mil pessoas nas ruas, não estivéssemos ainda todos tão impressionados com as jornadas de junho. Os atos dos educadores continuaram, intermitentes, durante mais alguns dias e o poder executivo, antes infenso a qualquer negociação com os trabalhadores, foi obrigado a ceder, reunindo-se com o representantes do sindicato da categoria, o SEPE.
Logo na primeira negociação, foi fechado um acordo prevendo aumentos salariais. O poder constituído cedia anéis para não perder os dedos: frente a uma forte mobilização, procurava manter intacta a ideologia neoliberal que anima o projeto educacional da prefeitura peemedebista. A pressão da cúpula sindical para que o acordo fosse fechado e a greve encerrada era o prenúncio do que viria pela frente, mas as categorias foram capazes de sustentar a greve contra a burocracia do sindicato durante duas semanas, quando o retorno sob ‘estado de greve’ foi acordado. Aguardava-se a proposta da prefeitura, a respeito da grande demanda dos trabalhadores: a aprovação de um plano de carreira, cargos e remuneração (PCCR) que garantisse condições melhores de trabalho (carga horária compatível com a boa preparação das aulas, maior valorização da qualificação profissional, entre outros pontos). Enquanto isso, o governo do estado, bem ao seu estilo, era insensível às demandas, respondendo na forma como parece conceber a resolução de todo e qualquer problema social e político: para responder à ocupação da sede da secretaria estadual de educação, enviou a polícia militar para espancar os ocupantes.
Após alguns dias da volta ao trabalho, entretanto, os grevistas da educação municipal foram surpreendidos por um PCCR radicalmente neoliberal. O poder executivo redigira um projeto que consolidava as modificações que vinham sendo operadas na educação do município. A situação de fato transformava-se em situação de jure. A radicalização da ofensiva neoliberal por parte da prefeitura provocaria, a partir desse momento, uma radicalização dos professores que, imediatamente, retornaram à greve e ocuparam o palácio Pedro Ernesto, sede da câmara municipal do município, onde seria votado o projeto e aonde a enorme base governista já havia sido articulada para tratorar qualquer oposição.
A desocupação violenta, operada pela tropa de choque, promovida pelo consórcio peemedebista empossado no estado e no município – e feita de forma completamente arbitrária, sem qualquer ordem legal – promoveria, no fim de setembro, um encontro pujante: os trabalhadores da educação expulsos das galerias da câmara seriam socorridos pelos ativistas do OcupaCâmara e por praticantes da tática black bloc.
Os movimentos autonomistas que, desde junho, vinham sacudindo vários pontos da cidade, deixando o poder constituído completamente de joelhos e explodindo o consenso da pacificação olímpica, compraram a briga dos professores que, por sua vez, organizaram-se num bloco de defesa dos black blocs. Ocorria ali um agenciamento inesperado e, por isso mesmo, potentíssimo: black profes eram o signo de que a pedagogia da multidão processava uma autoformação política, forjada na luta.
Os acontecimentos (no sentido forte do termo) se sucederam: a batalha da Cinelândia – quando ativistas e professores, durante dez horas, combateram a PM e a tropa de choque nas ruas do centro da cidade – , ocorrida no dia em que o estado de exceção ampliado do consenso olímpico se materializou com a votação do PCCR (feita com a câmara cercada e ao som das bombas da repressão), deu ensejo a uma gigantesca mobilização multitudinária organizada em defesa dos grevistas. A manifestação do 7 de outubro (7-O) colocou mais de 100 mil pessoas nas ruas e o sobressalto das elites foi patente. Frente a uma multidão que radicalizava o movimento de junho, extirpando os resíduos moralistas, governos e imprensa responderam como avestruzes: enfiaram a cabeça na terra. Não sem antes gritar contra o ‘vandalismo’ e a ‘baderna’, promovendo editoriais, respondidos, como num balé, com promessas de aplicação de maior rigor aos ‘vândalos’.
O 15 de outubro (Dia dos Professores) aparecia no horizonte como data promissora para mais uma demonstração da multidão. O que se confirmou: novamente dezenas de milhares de pessoas tomaram o centro da cidade. Mas, ali, o poder já havia mobilizado todos os seus tentáculos mais extremos. Invocara, inclusive, o próprio sindicato (recheados de membros da ‘esquerda partidária’) a abrir caminho para a repressão, sendo prontamente atendido: a greve selvagem, completamente à margem das vontades da cúpula de burocratas do sindicalismo, tensionava os limites de uma esquerda que, a despeito de se dizer ‘radical’, insiste em jogar o jogo nos limites do possível, imitando as práticas e o discurso pacificador do poder. Mais de 200 ativistas foram presos única e exclusivamente por estarem sentados na escadaria da câmara, numa imagem que evoca o que de pior produziram as ditaduras do cone sul. Mais de 70 deles foram enviados, ao arrepio do estado de direito, a presídios de segurança máxima, como o de Bangu, sob acusações como a de participar de organizações criminosas. Foram enquadrados numa lei criada para combater milicianos, justamente aqueles contra quem dão aguerrido combate, mirando seus prepostos nos poderes municipal e estadual.
Alguns dias depois, após pactuar, em reunião no STF, em Brasília, com os executivos, a cúpula do sindicato operou sórdido golpe (na assembleia da greve municipal, foram promovidas três votações, encerrando-as apenas quando a continuidade da greve foi derrotada) para encerrar as greves do estado e do município.
Os ventos de junho, entretanto, alteraram, em profundidade, a relação das trabalhadoras com o sindicato: na assembleia mais recente, ainda era grande o temor de que a selvageria daquelas pudesse promover o retorno à greve e não é incomum ouvir ou ler brados e desejos por uma nova organização, autônoma, para responder pelos trabalhadores. Num tempo em que os professores e demais educadores parecem ser o ‘combustível das chamas da nova revolta’, a greve de 2013 parece anunciar um novo horizonte das lutas do trabalho no Brasil.

Fonte: UniNômade

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Democracia ou Capitalismo?


A democracia liberal foi derrotada pelo capitalismo e não me parece que seja derrota  reversível. Portanto, trata-se de inventar nova democracia.
Por Boaventura de Sousa Santos 
No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centro-me no primeiro desafio.
Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante muito tempo foi chamado Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.
Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia. Nesta carta concebo o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço referência ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro. No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi teorizada pelo liberalismo.
O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que nem têm capital nem razões para se identificar com as “necessidades” do capitalismo, bem pelo contrário. O conflito é, no fundo, um conflito de classes pois as classes que se identificam com as necessidades do capitalismo (basicamente a burguesia) são minoritárias em relação às classes (classes médias, trabalhadores e classes populares em geral) que têm outros interesses cuja satisfação colide com as necessidades do capitalismo.
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Sendo um conflito de classes, afirma-se social e politicamente como um conflito distributivo: por um lado, a pulsão para a acumulação e concentração da riqueza por parte dos capitalistas e, por outro, a reivindicação da redistribuição da riqueza criada em boa parte pelos trabalhadores e suas famílias. A burguesia teve sempre pavor de que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as revoluções do século XIX lhe concederam para impedir que tal ocorresse. Concebeu a democracia liberal de modo a garantir isso mesmo através de medidas que mudaram no tempo mas mantiveram o objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade individual, sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão violenta de atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização dos lobbies. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta a possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes.
No imediato pós-segunda guerra mundial, muito poucos países tinham democracia, vastas regiões do mundo estavam sujeitas ao colonialismo europeu que servira para consolidar o capitalismo euro-norte-americano, a Europa estava devastada por mais uma guerra provocada pela supremacia alemã, e no Leste consolidava-se o regime comunista que se via como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal.
Foi neste contexto que surgiu na Europa mais desenvolvida o chamado capitalismo democrático, um sistema de economia política assente na ideia de que, para ser compatível com a democracia, o capitalismo deveria ser fortemente regulado, o que implicava a nacionalização de sectores-chave da economia, a tributação progressiva, a imposição da negociação coletiva e até, como aconteceu na então Alemanha Ocidental, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No plano científico, Keynes representava então a ortodoxia económica e Hayek, a dissidência. No plano político, os direitos econômicos e sociais (direitos do trabalho, educação, saúde e segurança social garantidos pelo Estado) foram o instrumento privilegiado para estabilizar as expectativas dos cidadãos e as defender das flutuações constantes e imprevisíveis dos “sinais dos mercados”.
Esta mudança alterava os termos do conflito distributivo mas não o eliminava. Pelo contrário, tinha todas as condições para o acirrar logo que abrandasse o crescimento econômico que se seguiu nas três décadas seguintes. E assim sucedeu.
Desde 1970, os Estados centrais têm vindo a gerir o conflito entre as exigências dos cidadãos e as exigências do capital, recorrendo a um conjunto de soluções que gradualmente foram dando mais poder ao capital. Primeiro, foi a inflação (1970-1980), depois, a luta contra a inflação acompanhada do aumento do desemprego e do ataque ao poder dos sindicatos (1980-), uma medida complementada com o endividamento do Estado em resultado da luta do capital contra a tributação, da estagnação econômica e do aumento das despesas sociais decorrentes do aumento do desemprego (meados de 1980-) e, logo depois, com o endividamento das famílias, seduzidas pelas facilidades de crédito concedidas por um setor financeiro finalmente livre de regulações estatais, para iludir o colapso das expectativas a respeito do consumo, educação e habitação (meados de 1990-).
Até que a engenharia das soluções fictícias chegou ao fim com a crise de 2008 e se tornou claro quem tinha ganho o conflito distributivo: o capital. Prova disso: a conversão da dívida privada em dívida pública, o disparar das desigualdades sociais e o assalto final às expectativas de vida digna da maioria (os trabalhadores, os pensionistas, os desempregados, os imigrantes, os jovens em busca de emprego,) para garantir as expectativas de rentabilidade da minoria (o capital financeiro e seus agentes). A democracia perdeu a batalha e só não perderá a guerra se as maiorias perderem o medo, se se revoltarem dentro e fora das instituições e forçarem o capital a voltar a ter medo, como sucedeu há sessenta anos.
Nos países do sul global que dispõem de recursos naturais a situação é, por agora, diferente. Nalguns casos, como por exemplo em vários países da América Latina, pode até dizer-se que a democracia está a vencer o duelo com o capitalismo e não é por acaso que em países como a Venezuela e o Equador se tenha começado a discutir o tema do socialismo do século XXI — mesmo que a realidade esteja longe dos discursos. Há muitas razões para tal mas talvez a principal tenha sido a conversão da China ao neoliberalismo, o que provocou, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, uma nova corrida aos recursos naturais.
O capital financeiro encontrou aí e na especulação com produtos alimentares uma fonte extraordinária de rentabilidade. Isto tornou possível que governos progressistas, entretanto chegados ao poder no seguimento das lutas e dos movimentos sociais das décadas anteriores, pudessem proceder a uma redistribuição da riqueza muito significativa e, em alguns países, sem precedente.
Por esta via, a democracia ganhou uma nova legitimação no imaginário popular. Mas por sua própria natureza, a redistribuição de riqueza não pôs em causa o modelo de acumulação assente na exploração intensiva dos recursos naturais e antes o intensificou. Isto esteve na origem de conflitos, que se têm vindo a agravar, com os grupos sociais ligados à terra e aos territórios onde se encontram os recursos naturais, os povos indígenas e os camponeses.
Nos países do sul global com recursos naturais mas sem democracia digna do nome oboom dos recursos não trouxe consigo nenhum ímpeto para a democracia, apesar de, em teoria, a mais fácil resolução do conflito distributivo facilitar a solução democrática e vice-versa. A verdade é que o capitalismo extrativista obtém melhores condições de rentabilidade em sistemas políticos ditatoriais ou de democracia de baixíssima intensidade (sistemas de quase-partido-único) onde é mais fácil a corrupção das elites, através do seu envolvimento na privatização das concessões e das rendas extrativistas. Não é pois de esperar nenhuma profissão de fé na democracia por parte do capitalismo extrativista, até porque, sendo global, não reconhece problemas de legitimidade política.
Por sua vez, a reivindicação da redistribuição da riqueza por parte das maiorias não chega a ser ouvida, por falta de canais democráticos e por não poder contar com a solidariedade das restritas classes médias urbanas que vão recebendo as migalhas do rendimento extrativista. As populações mais diretamente afetadas pelo extrativismo são os camponeses — em cujas terras estão as jazidas de minérios ou onde se pretende implantar a nova economia de plantation, agro-industrial. São expulsas de suas terras e sujeitas ao exílio interno. Sempre que resistem, são violentamente reprimidas e sua resistência é tratada como um caso de polícia. Nestes países, o conflito distributivo não chega sequer a existir como problema político.
Desta análise conclui-se que o futuro da democracia atualmente posto em causa na Europa do Sul é manifestação de um problema muito mais vasto que está a aflorar em diferentes formas nas várias regiões do mundo. Mas, formulado assim, o problema pode ocultar uma incerteza bem maior do que a que expressa. Não se trata apenas de questionar o futuro da democracia. Trata-se também de questionar a democracia do futuro.
A democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não me parece que a derrota seja reversível. Portanto não há que ter esperança em que o capitalismo volte a ter medo da democracia liberal, se alguma vez teve. Esta última sobreviverá na medida em que o capitalismo global se puder servir dela. A luta daqueles e daquelas que veem na derrota da democracia liberal a emergência de um mundo repugnantemente injusto e descontroladamente violento tem de centrar-se na busca de uma concepção de democracia mais robusta cuja marca genética seja o anti-capitalismo.
Depois de um século de lutas populares que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário da emancipação social seria um erro político grave desperdiçar essa experiência e assumir que luta anti-capitalista tem de ser também uma luta anti-democrática. Pelo contrário, é preciso converter o ideal democrático numa realidade radical que não se renda ao capitalismo. E como o capitalismo não exerce o seu domínio senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente, do colonialismo e do patriarcado, tal democracia radical, além de anti-capitalista tem de ser também anti-colonialista e anti-patriarcal.
Pode chamar-se revolução democrática ou democracia revolucionária — o nome pouco importa — mas é necessariamente uma democracia pós-liberal, que não aceita ser descaracterizada para se acomodar às exigências do capitalismo. Pelo contrário, assenta em dois princípios: o aprofundamento da democracia só é possível à custa do capitalismo; em caso de conflito entre capitalismo e democracia é a democracia real que deve prevalecer.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Florianópolis: Canasvieiras quer expulsar os mendigos


Os poucos “manifestantes” que sairam pelas ruas de  de Canasvieiras querem seguir pela via mais curta. Destruir o que lhes dá medo. Precisam saber que não adianta. O sistema ao qual seguem e no qual querem ascender sempre vai produzir mais e mais excluídos. Logo, esse,  serão um exército. Quem sabe, aí, tudo mude!

Por Elaine Tavares
Buscando as raízes da palavra mendigo, diz-se que vem do indo-europeu  ‘men-’ (pensar) e ‘dhe-’ (por, colocar), mais o verbo latino ‘facio’ (fazer), no qual o prefixo  ‘de-’ significa carecer (de-fecto). Vem daí também a origem do significado real que foi dado a palavra. Nos tempos muito antigos, mendigo era aquele que carecia de algumas funções mentais, o louco, ou ainda os que tinham alguma deficiência física. Sem que ninguém quisesse arcar com eles, viviam como caminhantes, esperando pela compaixão das gentes. 

Nas sociedades antigas, como na Grécia, por exemplo, havia aqueles que decidiam por vontade própria, viver na rua, daquilo que encontrassem. Era os cínicos. E já naquele tempo eram bastante criticados por isso. Outros, como Francisco de Assis, chegaram a fundar ordens religiosas, compostas por medicantes. Viver de esmolas para dedicar mais tempo as coisas espirituais. Também, no seu tempo, eram rechaçados, chamados de loucos, apartados da vida social. Só mais tarde Francisco virou santo mas, quando vivo era um pária. Seria expulso da praia de Florianópolis se aqui vivesse.
Hoje, os mendigos já não são só aqueles que tem deficiência , ou cínicos, ou religiosos. São os que não conseguem permanecer dentro da bolha de “consumo” capitalista. Assim, os empobrecidos, os que não tem trabalho, os abandonados, os que caíram em algum vício, os desgraçados, os excluídos, os que não conseguem ganhar o pão do dia, são os que vivem nas ruas, esperando a compaixão das gentes.

Mas, no mundo coloridos do capitalismo selvagem não há espaço para compaixão. Aquele que não é igual só consegue fomentar o medo. Assim, os que, por algum motivo, conseguem se manter na bolha da vida “normal”, que é ter um emprego, um pequeno negócio, uma casa para morar, passam a olhar com desconfiança os que não tem. Sentem medo, nunca compaixão. E, para purgar o sentimento de medo, atacam. Preferem tirar do alcance das vistas aqueles que, de alguma forma, são a denúncia viva de uma sociedade falida.
Os gregos, que são a base da cultura ocidental já diziam: o ser é, o não-ser não é. Ou seja. Só existe aquele que é igual. O diferente, não-é, logo, deve ser exterminado. Foi essa lógica que sustentou a matança dos indígenas no chamado “novo mundo”, que permitiu a escravidão dos negros, e que vem sustentando o extermínio de todos aqueles que não estão enquadrados nos cânones da “normalidade” social. Não é sem razão que um morador de rua tenha sido condenado a cinco anos de prisão por estar portando pinho sol e água sanitária num dia de protesto no Rio de Janeiro, ou que o pedreiro Amarildo tenha sido barbaramente assassinado numa favela carioca. Outros tantos exemplos poderíamos colar aqui: o desordeiro, o black bloc, o grevista, o pichador, o crítico. É diferente? Crucifiquem-no!
Por isso não é de surpreender a passeata feita no bairro de Canasvieiras, em Florianópolis, pedindo a expulsão dos mendigos e dos viandantes da praia. Comunidade praieira, turística, já há muitos anos virou o destino preferido da classe média alta argentina e brasileira. Ali abundam os hotéis, as propriedades protegidas e os negócios medianos. Ou seja, reduto da pequena burguesia, sempre tão cruel, tentando escalar a montanha da riqueza, custe o que custar.
A essa gente, tão afeita em subir no contexto social, em acumular riquezas, as criaturas mal-vestidas, sem trabalho e, muita vezes drogadas ou alcoolizadas, são muito mais do que uma ameaça. Elas acabam sendo uma espécie de espelho às avessas. O horror do qual todos querem escapar. Por isso reagem tão mal. Alguns desses seres podem sim ser bandidos, ou ladrões, ou monstros, mas a maioria é formada por gente que, por algum motivo, não consegue penetrar na roda do mundo normótico.
Ou seja, criaturas iguais a nós, só que desprovidas dos meios para ganhar a vida. Daí que deambulam pela cidade, esperando a compaixão daqueles que são seus iguais, humanos. Mas, por detrás das janelas, os olhos assustados que observam os viandantes não conseguem os ver como iguais, ao contrário, são os não-seres. Então, o grito: expulsem, crucifiquem!
Enrique Dussel, criador da filosofia da libertação fez um exercício bem simples usando a velha máxima grega “o ser é, o não-ser não-é”  que nos governa. Para que a gente se liberte desse axioma racista e discriminatório há que caminhar a partir de outro. E ele o inventou. Disse: “o ser é, o não-ser é real”.  E isso muda tudo. Se aquele que não é igual a mim é real, significa que eu não posso simplesmente dizer: matem-no, crucifiquem-no! Tenho de enfrentar essa diferença, olhar nos olhos, compreender. A partir daí outras práticas humanas podem ser possíveis.
Esse é um trabalho gigante que temos de cumprir. Mudar os axiomas, transformar a filosofia, destruir todo o edifício cultural que perdura por mais de dois mil anos. Não é coisa fácil. Mas, o fato de não ser fácil não significa que não possa acontecer.  Nesse sentido, talvez o grande trabalho que precisa se cumprir é o de alfabetizar a pequena burguesia de Canasvieiras sobre isso. Mostrar que os mendigos não são necessariamente um perigo. São pessoas que precisam ser compreendidas no seu contexto.
Muito mais perigoso por ser o traficante bem vestido, o playboy estuprador ou o milionário assassino que se hospeda nos hotéis de luxo da praia e tem muito dinheiro no bolso. Mas, que, às vezes, por parecer igual, passa batido.
A sanha raivosa contra o pobre não é coisa de hoje. Parece ser “normal” bater no que está no chão. É mais fácil “malhar o judas” do que enfrentar a dura verdade que o velho Marx já apontava: no capitalismo, para que um viva outro tem de morrer. Os poucos “manifestantes” que sairam pelas ruas de  de Canasvieiras querem seguir pela via mais curta. Destruir o que lhes dá medo. Precisam saber que não adianta. O sistema ao qual seguem e no qual querem ascender sempre vai produzir mais e mais excluídos. Logo, esse,  serão um exército. Quem sabe, aí, tudo mude! …

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

50 verdades sobre Nelson Mandela

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Por Salim Lamrani

As grandes potências ocidentais opuseram-se até ao último instante à sua luta e apoiaram sempre o governo racista de Pretória, mas o herói da luta contra o apartheid marcou para sempre a história da África.



No crepúsculo da sua existência, Nelson Mandela passou a ser louvado por aqueles que sempre o combateram ou o ignoraram – como por exemplo Cavaco Silva.
Eles agora choram lágrimas de crocodilo.

1. Nascido no dia 18 de julho de 1918, Nelson Rolihlahla Mandela, apelidado de Madiba, é o símbolo por excelência da resistência à opressão e ao racismo na luta pela justiça e pela emancipação humana.

2. Procedente de uma família de treze filhos, Mandela foi o primeiro a estudar em uma escola metodista e a cursar direito na Universidade de Fort Hare, a única que aceitava, então, pessoas de cor no governo segregacionista do apartheid.

3. Em 1944, aderiu ao Congresso Nacional Africano (ANC) e, particularmente, à sua Liga da Juventude, de inclinação radical.

4. O apartheid, elaborado em 1948 depois da vitória do Partido Nacional Purificado, instaurava a doutrina da superioridade da raça branca e dividia a população sul-africana em quatro grupos distintos: os brancos (20%), os indianos (3%), os mestiços (10%) e os negros (67%). Esse sistema segregacionista discriminava 4/5 da população do país.

5. Foram criados "bantustões", reservas territoriais destinadas às pessoas de cor, para amontoar as pessoas não brancas. Assim, 80% da população tinha de viver em 13% do território nacional, muitas vezes sem recursos naturais ou industriais, na total indigência.

6. Em 1951, Mandela transformou-se no primeiro advogado negro de Johanesburgo e assumiu a direção do ANC na província de Transvaal um ano depois. Também foi nomeado vice-presidente nacional.

7. À frente do ANC, lançou a campanha de desafio (defiance campaign), contra o governo racista do apartheid, e utilizou a desobediência civil contra as leis segregacionistas. Durante a manifestação do dia 6 de abril de 1952, data do terceiro centenário da colonização da África do Sul pelos brancos, Mandela foi condenado a um ano de prisão. Da sua prisão domiciliar em Johanesburgo, criou células clandestinas do ANC.

8. Em nome da luta contra o apartheid, Mandela preconizou a aliança entre o ANC e o Partido Comunista Sul-Africano. Segundo ele, "o ANC não é um partido comunista, mas um amplo movimento de libertação que, entre seus membros inclui comunistas e outros que não o são. Qualquer pessoa que seja membro leal do ANC, e que respeite a disciplina e os princípios da organização, tem o direito de pertencer às suas fileiras. Nossa relação com o Partido Comunista Sul-Africano como organização é baseada no respeito mútuo. Unimo-nos ao Partido Comunista Sul-Africano em torno daqueles objetivos que nos são comuns, mas respeitamos a independência de cada um e a sua identidade. Não houve tentativa alguma por parte do Partido Comunista Sul-Africano de subverter o ANC. Pelo contrário, essa aliança nos deu força política".

9. Em dezembro de 1956, Mandela foi preso e acusado de traição com mais de uma centena de militantes antiapartheid. Depois de um processo de quatro anos, os tribunais o absolveram.

10. Em março de 1960, depois do massacre de Sharperville, perpetrado pela polícia contra manifestantes antisegregação, que custou a vida de 69 pessoas, o governo do apartheid proibiu o ANC.

11. Mandela fundou então o Umkhonto we Sizwe (MK) e preconizou a luta armada contra o governo racista sul-africano. Antes de optar pela doutrina da violência legítima e necessária, Mandela inspirava-se na filosofia da não violência de Gandhi: "Embora tenhamos pegado em armas, não era nossa opção preferida. Foi o governo do apartheid que nos obrigou a pegar em armas. Nossa opção preferida sempre foi a de encontrar uma solução pacífica para o conflito do apartheid."

12. O MK multiplicou, então, os atos de sabotagem contra os símbolos e as instituições do apartheid, preservando ao mesmo tempo as vidas humanas, lançou com êxito uma greve geral e preparou o terreno para a luta armada com o treinamento militar de seus membros.

13. Durante sua estada na Argélia, em 1962, depois da intervenção do presidente Ahmed Ben Bella, Mandela aproveitou para aperfeiçoar seus conhecimentos sobre guerra de guerrilhas. A Argélia colocou à disposição do ANC campos de treinamento e deu apoio financeiro aos residentes antiapartheid. Mandela recebeu ali uma formação militar. Inspirou-se profundamente na guerra da Frente de Libertação Nacional do povo argelino contra o colonialismo francês. Quando libertado, Mandela dedicou sua primeira viagem ao exterior à Argélia, em maio de 1990, e rendeu tributo ao povo argelino: "Foi a Argélia que fez de mim um homem. Sou argelino, sou árabe, sou muçulmano! Quando fui ao meu país para enfrentar o apartheid, senti-me mais forte". Recordou ter sido "o primeiro sul-africano treinado militarmente na Argélia."

14. Mandela estudou minuciosamente os escritos de Mao e de Che Guevara. Transformou-se em um grande admirador do guerrilheiro cubano-argentino. Depois de ser libertado, declarou: As "façanhas revolucionárias [de Che Guevara] — inclusive no nosso continente — foram de tal magnitude que nenhum encarregado de censura na prisão pôde escondê-las. A vida do Che é uma inspiração para todo ser humano que ame a liberdade. Sempre honraremos sua memória".

15. Cuba foi um dos primeiros países a dar ajuda ao ANC. A esse respeito, Nelson Mandela destacou: "Que país solicitou a ajuda de Cuba e lhe foi negada? Quantos países ameaçados pelo imperialismo ou que lutam pela sua libertação nacional puderam contar com o apoio de Cuba? Devo dizer que quando quisemos pegar em armas nos aproximamos de diversos governos ocidentais em busca de ajuda e somente obtivemos audiências com ministros de baixíssimo escalão. Quando visitamos Cuba fomos recebidos pelos mais altos funcionários, os quais, de imediato, nos ofereceram tudo o que queríamos e necessitávamos. Essa foi nossa primeira experiência com o internacionalismo de Cuba."

16. No dia 5 de agosto de 1962, depois de 17 meses de vida clandestina, Mandela foi levado à prisão em Johanesburgo, graças à colaboração dos serviços secretos dos Estados Unidos com o governo de Pretoria. A CIA deu às forças repressivas do apartheid a informação necessária para a captura do líder da resistência sul-africana.

17. Acusado de ser o organizador da greve geral de 1961 e de sair ilegalmente do território nacional, foi condenado a cinco anos de prisão.

18. Em julho de 1963, o governo prendeu 11 dirigentes do ANC em Rivonia, perto de Johanesburgo, sede da direção do MK. Todos foram acusados de traição, sabotagem, conspiração com o Partido Comunista e complô destinado a derrubar o governo. Já na prisão, Mandela foi acusado das mesmas coisas.

19. No dia 9 de outubro de 1963, começou o famoso julgamento de Rivonia na Corte Suprema de Pretoria. No dia 20 de abril de 1964, frente ao juiz africâner Quartus de Wet, Mandela desenvolveu sua alegação brilhante e destacou que, frente ao fracasso da desobediência civil como método de combate para conseguir a liberdade, a igualdade ou a justiça, frente aos massacres de Sharperville e à proibição de sua organização, o ANC não teve outro remédio senão recorrer à luta armada para resistir à opressão.

20. No dia 12 de junho de 1964, Mandela e seus companheiros foram declarados culpados de motim e condenados à prisão perpétua.

21. O Conselho de Segurança das Nações Unidas denunciou o julgamento de Rivonia. Em agosto de 1963, condenou o governo do apartheid e pediu às nações do mundo que suspendessem o fornecimento de armas à África do Sul.

22. As grandes nações ocidentais, como Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, longe de respeitarem a resolução do Conselho de Segurança, apoiaram o governo racista sul-africano e multiplicaram o fornecimento de armas.

23. De Charles de Gaulle, presidente da França de 1959 a 1969, até o governo de Valéry Giscard d'Estaing, presidente da França de 1974 a 1981, a França foi um fiel aliado do poder racista de Pretoria e negou-se sistematicamente a dar apoio ao ANC em sua luta pela igualdade e pela justiça.

24. Paris nunca deixou de fornecer material militar a Pretoria, provendo até mesmo a primeira central nuclear da África do Sul, em 1976. Sob os governos de De Gaulle e de Georges Pompidou, presidente entre 1969 e 1974, a África do Sul foi o terceiro maior cliente da França em matéria de armamento.

25. Em 1975, o Centro Francês de Comércio Exterior (CFCE) disse que "a França é considerada o único verdadeiro apoio da África do Sul entre os grandes países ocidentais. Não apenas fornece ao país o essencial em matéria de armamentos necessários para sua defesa, mas também se tem mostrado benevolente, ou, mais ainda, um aliado nos debates e nas votações dos organismo internacionais."

26. Preso em Robben Island, com o número 466/64, Mandela viveu 18 anos de sua existência em condições extremamente duras. Não podia receber mais de duas cartas e duas visitas por ano e esteve separado de sua esposa Winnie — que não tinha permissão para visitá-lo — durante 15 anos. Foi condenado a realizar trabalhos forçados, o que afetou seriamente a sua saúde, sem conseguir jamais quebrar sua força moral. Dava cursos de política, literatura e poesia aos seus camaradas de destino e clamava pela resistência. Mandela gostava de recitar o poema Invictus de William Ernest Henley:

It matters not how strait the gate
How charged with punishments the scroll.
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul. Não importa quão estreito é o portão

E quantas são as punições listadas
Sou o mestre do meu destino
Sou o capitão da minha alma.


27. No dia 6 de dezembro de 1971, a Assembleia Geral das Nações Unidas qualificou o apartheid como crime contra a humanidade e exigiu a libertação de Nelson Mandela.

28. Em 1976, o governo sul-africano propôs a Mandela sua libertação em troca da sua renúncia à luta. Madiba negou firmemente a proposta do governo segregacionista.

29. Em novembro de 1976, depois das revoltas de Soweto e da sangrenta repressão que o governo do apartheid desencadeou, o Conselho de Segurança das Nações Unidos impôs um embargo sobre as armas destinadas à África do Sul.

30. Em 1982, Mandela foi transferido para a prisão de Pollsmoor, perto de Cape Town.

31. Em 1985, Pieter Willen Botha, presidente de fato da nação, propôs libertar Mandela se ele se comprometesse, em troca, a renunciar à luta armada. O líder da luta antiapartheid recusou a proposta e exigiu a democracia para todos: "um homem, um voto."

32. Frente ao recrudescimento das operações de guerrilha do MK, o governo segregacionista criou esquadrões da morte com a finalidade de eliminar os militantes do ANC na África do Sul e no exterior. O caso mais famoso é o de Dulci September, assassinada em Paris no dia 29 de março de 1988.

33. A mobilização internacional a favor de Nelson Mandela culminou em um show em Wembley, em junho de 1988, em homenagem aos 70 anos do resistente sul-africano, que foi assistido por 500 milhões de pessoas pela televisão.

34. O elemento decisivo que pôs fim ao apartheid foi a estrepitosa derrota militar que tropas cubanas infligiram ao exército sul-africano em Cuito Cuanavale , no sudeste de Angola, em janeiro de 1988. Fidel Castro enviou seus melhores soldados a Angola depois da invasão do país pelo governo de Pretoria, apoiada pelos Estados Unidos. A vitória de Cuito Cuanavale também permitiu à Namíbia, até então ocupada pela África do Sul, conseguir sua independência.

35. Em um artigo intitulado "Cuito Cuanavale: a batalha que acabou com o apartheid", o historiador Piero Gleijeses, professor da Universidade John Hopkins, de Washington, especialista na política africana de Cuba, aponta que "a proeza dos cubanos nos campos de batalha e seu virtuosismo na mesa de negociações foram decisivos para obrigar a África do Sul a aceitar a independência da Namíbia. Sua exitosa defesa de Cuito foi o prelúdio de uma campanha que obrigou o exército sul-africano a sair de Angola. Essa vitória repercutiu para além de Namíbia."

36. Nelson Mandela, durante sua visita histórica a Cuba, em julho de 1991, lembrou-se daquele episódio: "A presença de vocês e o reforço enviado para a batalha de Cuito Cuanavale têm uma importância verdadeiramente histórica. A derrota esmagadora do exército racista em Cuito Cuanavale constituiu uma vitória para toda a África! Essa contundente derrota do exército racista em Cuito Canavale deu a Angola a possibilidade de desfrutar da paz e de consolidar sua própria soberania. A derrota do exército racista permitiu que o povo combatente da Namíbia alcançasse finalmente a sua independência! A decisiva derrota das forças agressoras do apartheid destruiu o mito da invencibilidade do opressor branco! A derrota do apartheid serviu de inspiração para o povo combatente da África do Sul! Sem a derrota infligida em Cuito Cuanavale nossas organizações não teriam sido legalizadas! A derrota do exército racista em Cuito Cuanavale possibilitou que hoje eu possa estar aqui com vocês! Cuito Cuanavale é um marco na história da luta pela libertação da África austral! Cuito Cuanavale marca a virada da luta para libertar o continente e nosso país do flagelo do apartheid! A decisiva derrota infligida em Cuito Cuanavale alterou a correlação de forças da região e reduziu consideravelmente a capacidade do governo de Pretoria para desestabilizar seus vizinhos. Este feito, em conjunto com a luta do nosso povo dentro do país, foi crucial para fazer Pretoria entender que tinha de se sentar à mesa de negociações."

37. No dia 2 de fevereiro de 1990, o governo segregacionista, moribundo depois da derrota de Cuito Cuanavale, viu-se obrigado a legalizar o ANC e aceitar as negociações.

38. No dia 11 de fevereiro de 1990, Nelson Mandela foi finalmente libertado, depois de 27 anos de prisão.

39. Em junho de 1990 foram abolidas as últimas leis segregacionistas depois da pressão feita por Nelson Mandela, pelo ANC e pelo povo.

40. Eleito presidente do ANC em junho de 1991, Mandela recordou os objetivos: "No ANC sempre estaremos ao lado dos pobres e dos que não têm direitos. Não apenas estaremos junto deles. Vamos garantir antes cedo que tarde que os pobres e sem direitos rejam a terra onde nasceram e que — como expressa a Carta da Liberdade — seja o povo que governe".

41. Fortemente criticado por sua aliança com o Partido Comunista Sul-Africano por causa das potências ocidentais que continuavam a apoiar o governo do apartheid durante o processo de paz, Mandela replicou de modo contundente. "Não temos a menor intenção de fazer caso aos que nos sugerem e aconselham que rompamos essa aliança [com o Partido Comunista]. Quem são os que oferecem esses conselhos não solicitados? Provêm, em sua maioria, dos que nunca nos deram ajuda alguma. Nenhum desses conselheiros fez jamais os sacrifícios que fizeram os comunistas pela nossa luta. Essa aliança nos fortaleceu e a tornaremos ainda mais estreita."

42. Em 1991, Mandela condenou o persistente apoio dos Estados Unidos ao governo do apartheid: "Estamos profundamente preocupados com a atitude que a administração Bush adotou sobre esse assunto. Este foi um dos poucos governos que esteve em contato habitual conosco para examinar a questão das sanções e lhe fizemos ver claramente que eliminar as sanções seria prematuro. No entanto, essa administração, sem nos consultar, simplesmente nos informou que as sanções estadunidenses seriam anuladas. Consideramos isso totalmente inaceitável."

43. Em 1993, Mandela recebeu o Prêmio Nobel da Paz por sua obra a favor da reconciliação nacional.

44. Durante a primeira votação democrática da história da África do Sul, no dia 27 de abril de 1994, Nelson Mandela, de 77 anos, foi eleito presidente da República com mais de 60% dos votos. Governou até 1999.

45. No dia 1 de dezembro de 2009, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, em votação unânime de seus 192 membros, uma resolução que decreta o dia 18 de julho como Dia Internacional Nelson Mandela, em homenagem à luta do herói sul-africano contra todas as injustiças.

46. Se hoje Mandela é cumprimentado por todos, por décadas as potências ocidentais o consideraram um homem perigoso e o combateram apoiando o governo do apartheid.

47. Estados Unidos, França e Grã-Bretanha foram os principais aliados do governo do apartheid, o qual apoiaram até o último momento.

48. Se os Estados Unidos veneram hoje em dia Nelson Mandela, de Clinton a Bush passando por Obama, é conveniente lembrar que ele foi mantido na lista de membros de organizações terroristas até o dia 1 de janeiro de 2008.

49. Nelson Mandela lembrou varias vezes dos laços inquebrantáveis que ligavam a África do Sul a Cuba. "Desde seus primeiros dias, a Revolução Cubana tem sido uma fonte de inspiração para todos os povos amantes da liberdade. O povo cubano ocupa um lugar especial no coração dos povos da África. Os internacionalistas cubanos deram uma contribuição para a independência, para a liberdade e a justiça na África que não tem paralelo pelos princípios e pelo desinteresse que a caracterizam. É muito o que podemos aprender da sua experiência. De modo particular, nos comove a afirmação do vínculo histórico com o continente africano e seus povos. Seu invariável compromisso com a erradicação sistemática do racismo não tem paralelo. Somos conscientes da grande dívida que existe hoje com o povo de Cuba. Que outro país pode mostrar uma história mais desinteressada que a que teve Cuba em suas relações com a África?

50. Thenjiwe Mtintso, embaixadora da África do Sul em Cuba, lembrou-se da verdade histórica a propósito do compromisso de Cuba na África. "Hoje a África do Sul tem muitos amigos novos. Ontem, estes amigos se referiam aos nossos líderes e aos nossos combatentes como terroristas e nos acusavam enquanto apoiavam a África do Sul do apartheid. Esses mesmos amigos hoje querem que nós denunciemos e isolemos Cuba. Nossa resposta é muito simples, é o sangue dos mártires cubanos e não destes amigos que corre profundamente na terra africana e nutre a árvore da liberdade em nossa pátria."


Salim Lamrani é doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista.


Fonte: Diário Liberdade