sexta-feira, 4 de abril de 2014

Mídia e repressão: história de uma aliança

Octavio Frias de Oliveira cumprimenta Castello Branco, diante de Ademar de Barros
O general Castello Branco, líder e primeiro presidente da ditadura, cumprimenta
Octavio Frias de Oliveira, proprietário da “Folha de S.Paulo”


Centenas de jornalistas foram demitidos, presos e mortos na ditadura. Mas jornais comerciais participaram do golpe e de sua sustentação por 21 anos
Por Beatriz Kushnir, na CartaCapital
Desde fins da da década de 1990, parte da historiografia brasileira sublinha que o (equivocado) processo de Anistia cunhou a (errônea) visão de que vivemos envoltos em uma tradição de valores democráticos. A partir das lutas pela Anistia, como sublinha Daniel Aarão Reis, “libera-se” a sociedade brasileira de “repudiar a ditadura, reincorporando sua margem esquerda e reconfortando-se na ideia de que suas opções pela democracia tinham fundas e autênticas raízes históricas”. Nesse momento, plasmou-se a imagem de que a sociedade brasileira viveu a ditadura como um hiato, um instante a ser expurgado. Confrontando-nos à tal memória inventada, há no período republicano longos momentos de exceção – como nos referimos aos regimes ditatoriais.
Se tais premissas correspondessem aos fatos, restaria explicar: por que houve apenas restritos episódios de resistência vinculados igualmente a pequenos grupos? Por que se permitiu aprovar uma Anistia recíproca, que mesmo nestes 50 anos após o golpe civil-militar, ainda é tema espinhoso de revisão?
A luta contra o arbítrio, de forma armada ou não, definitivamente não caiu nas graças do povo deste berço esplêndido. E, certamente, os meios de comunicação de massa – a grande imprensa e posteriormente, a TV – têm um papel preponderante nasescolhas sociais implantadas.
São clássicos os editoriais do Correio da Manhã nas vésperas do 1º de Abril de 1964, clamando por “Basta” e “Fora” a Jango. Igualmente, é emblemática a noção de que este jornal, ao realizar um “mea-culpa” e se colocar em oposição ao novo regime, foi punido com perseguições que levaram a sua falência. Esquecem-se, contudo, os amplos problemas de gerenciamento vividos por Niomar Moniz Sodré.
Ícones de resistência são lembrados, afirmados, expostos e sublinhados maciçamente para ratificar a tradição democrática brasileira, como: a meteorologia para o 14/12/1968, no Jornal do Brasil; as receitas de bolo do Jornal da Tarde; os poemas de Camões no Estadão; os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos; etc., que definiriam a grande imprensa brasileira como resistente ao golpe e, posteriormente, ao arbítrio. Mesmo com todo este esforço, o processo ditatorial perdurou por mais de duas décadas.
Meio século depois e com inúmeros textos publicados sobre a mais recente ditadura brasileira, poder-se-ia ressaltar que nunca a grande imprensa brasileira estampou na primeira página dos periódicos um aviso claro afirmando: “Este jornal está sob censura”. As estratégias acima apontadas e outras, que frequentemente voltam à tona para reforçar a ação resistente, contavam com a capacidade do público leitor em decifrar pistas.
O jornalista Oliveiros Ferreira, que por décadas trabalhou no Estadão, narrou as ligações recebidas pela redação indagando que a receita de bolo na primeira página do Jornal da Tarde estava errada. O bolo solava. Ou, como definiu Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, censor desde 1961 e que atuou no Estadão, os poemas de Camões foram ali uma concessão. Certamente a censura federal apostava que o leitor não entenderia o seu porquê, ou se tranquilizaria na (efêmera) ilusão que mesmo no arbítrio lhe eram permitidos lampejos de resistência, os quais, efetivamente nada alteravam. Algo semelhante, contudo, não foi autorizado à (antiga) Veja, que, durante a “distensão” do governo Geisel, substitui as matérias censuradas por imagens de diabinhos, já que não se podiam publicar espaços em branco. Advertida, teve que parar, pois certamente o leitor de Veja à época entenderia o recado. Certamente como compreendeu a mensagem da revista quando da morte de Vlado, numa nota pequena de desculpas por não poder nada mais expressar.
Os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos sofreram estas horríveis barbáries enquanto atuavam como militantes das esquerdas, em ações armadas ou como simpatizantes, como demonstram os processos que arrolam os seus nomes. Da mesma forma, existiram imposições governamentais de expurgos nas redações. Tais limpezas ocorreram logo depois do golpe e perduraram até e inclusive no governo Geisel, que impunha a bandeira do fim da censura. Muitos jornalistas/militantes poderiam ser citados como vítimas destas ações, já que, como pontuava lúcida e ferinamente Cláudio Abramo, “nas redações não há lugar para lideranças. Os donos dos jornais não sabem lidar com jornalistas influentes que, muitas vezes, se chocam com as diretrizes do comando. O jornalista tem ali uma função, mas ‘ficou forte, eles eliminam’.”
Os meios de comunicação são empresas que buscam o lucro, vendendo a visão particular sobre um fato e, como Abramo por vezes demarcou, um “equívoco que a esquerda geralmente comete é o de que, no Brasil, o Estado desempenha papel de controlador maior das informações. Mas não é só o Estado, é uma conjunção de fatores. O Estado não é capaz de exercer o controle, e sim a classe dominante, os donos. O Estado influi pouco, porque é fraco. Até no caso da censura, ela é dos donos e não do Estado. Não é o governo que manda censurar um artigo, e sim o próprio dono do jornal. Como havia censura prévia durante o regime militar, para muitos jornalistas ingênuos ficou a impressão de que eles e o patrão tinham o mesmo interesse em combater a censura”.
Existiram pouco mais de 220 censores federais, muitos deles com o diploma de jornalista – sendo que o primeiro concurso público para o cargo ocorreu em 1974, quando Geisel prometia o fim da censura. Estas duas centenas de pessoas atuavam reprimindo: cinema, TV, rádio, teatro, jornais, revistas, etc., entre 1964 e 1988, em todo o território nacional. Para que as expectativas governamentais dessem certo, os donos das empresas de comunicação tinham de colaborar – e não resistir.
Inúmeros arquétipos podem corroborar tal ideia, até porque a autocensura não é desconhecida das redações, e não se iniciou no pós-1964 no Brasil. No Jornal do Brasil, por exemplo, editou-se, em 29/12/1969, como me cedeu o seu exemplar o secretário de Redação, José Silveira, uma circular interna de cinco páginas, elaborada pelo diretor do jornal, José Sette Câmara, para o editor chefe, Alberto Dines, denominada “Instruções para o controle de qualidade e problemas políticos”, criada com o objetivo de “instituir na equipe um (…) Controle de Qualidade (…) sob o ponto de vista político”.
Estabelecida dias antes do Decreto-Lei 1.077, de 26/01/1970, que legalizou a censura prévia, e um ano após o AI-5, a diretriz de Sette Câmara pontuava que “não se trata de autocensura, de vez que não há normas governamentais que limitem o exercício da liberdade de expressão, ou que tornem proibitiva a publicação de determinados assuntos. Em teoria há plena liberdade de expressão. Mas na prática o exercício dessa liberdade tem que ser pautado pelo bom senso e pela prudência”, já que “a posição do JB ao proferir que este não é a favor nem contra, (…) não é jornal de situação, nem de oposição. O JB luta pela restauração da plenitude do regime democrático no Brasil, pelo retorno do estado de direito. (…) Enquanto estiver em vigor o regime de exceção, temos que usar todos os nossos recursos de inteligência para defender a linha democrática sem correr os riscos inúteis do desafio quixotesco ao Governo. (…) O JB teve uma parte importante na Revolução de 1964 e continua fiel ao ideário que então pregou. Se alguém mudou foram os líderes da Revolução. [Nesse sentido, o JB deverá] sempre optar pela suspensão de qualquer notícia que possa representar um risco para o jornal. Para bem cumprirmos o nosso maior dever, que é retratar a verdade, é preciso, antes de mais nada, sobreviver”. Sette Câmara termina decretando que, “na dúvida, a decisão deve ser pelo lápis vermelho”.
Em meados da década de 1970, foi a vez da Rede Globo – uma concessão pública – formalmente instituir o “Padrão Globo de Qualidade”, ao contratar José Leite Ottati – ex-funcionário do Departamento de Polícia Federal – para realizar a censura interna e evitar prejuízos advindos da proibição de telenovelas. Segundo Walter Clark, a primeira interdição da censura na Globo ocorreu em 1976, na novela Despedida de casado. Para blindar a emissora, o “Padrão Globo de Qualidade” receberia o auxílio de pesquisas de opinião feitas por Homero Icaza Sanchez – o “Bruxo” –, encarregado de identificar as motivações da audiência.
Definindo toda essa tática, Clark explicou que, “(…) enquanto a Censura agia para subjugar e controlar a arte e a cultura do país, perseguindo a inteligência, nós continuávamos trabalhando na Globo para fazer uma televisão com a melhor qualidade possível.” Organizada a autocensura, o “Padrão Globo de Qualidade” teve acrescidos outros ingredientes para o seu sucesso. Em sintonia com a imagem, divulgada pelo governo autoritário, de um “Brasil Grande”, formulou-se também uma “assessoria militar” ou uma “assessoria especial” composta por Edgardo Manoel Ericsen e pelo coronel Paiva Chaves. Segundo Clark, “ambos foram contratados com a função de fazer a ponte entre a emissora e o regime. Tinham boas relações e podiam quebrar os galhos, quando surgissem problemas na área de segurança”.
Esquema semelhante a este foi adotado pela Editora Abril, exposto em uma correspondência de Waldemar de Souza – funcionário da Abril e conhecido como “professor” –, a Edgardo de Silvio Faria – advogado do grupo e genro do sócio minoritário Gordino Rossi –, na qual comunicava o contato tanto com o chefe do Serviço de Censura em São Paulo – o censor de carreira e jornalista José Vieira Madeira –, como com o diretor do Departamento de Censura de Diversões Públicas – Rogério Nunes – para facilitar a aprovação das revistas e a chegada às bancas sem cortes.
Estes vínculos do “professor” com membros do governo são anteriores a esse período e justificam seu potencial de negociação. Desde novembro de 1971 o relações-públicas do DPF, João Madeira – irmão de José Vieira Madeira –, expediu uma carta ao diretor-geral da Editora Abril na qual ratificava o convite do general Nilo Caneppa, na época diretor do DPF, a Waldemar de Souza para que fosse a Brasília ministrar um curso especial aos censores. Em maio de 1972, o próprio general Caneppa enviou a Vitor Civita, diretor-geral da Abril, uma correspondência de agradecimento pelas palestras sobre censura de filmes, que Waldemar de Souza proferiu na Academia Nacional de Polícia. Para continuar colaborando, no ano seguinte, Souza formulou uma brochura intitulada “Segurança Nacional: o que os cineastas franceses esquerdistas já realizaram em países da América do Sul e pretendem repetir aqui no Brasil”. E, em 1974, com o general Antonio Bandeira no comando do DPF, Waldemar de Souza, em caráter confidencial, expôs o porquê de censurar Kung Fu e sua mensagem que “infiltra a revolta na juventude”.
Por fim, mas não menos importante, há a atuação do Grupo Folha da Manhã, proprietário da Folha de S. Paulo e da Folha da Tarde, entre outros, no período. Em dezessete anos, entre 19/10/1967 e 7/5/1984, o país foi dos “anos de chumbo” ao processo das Diretas Já, e a Folha da Tarde vivenciou uma redação tanto de esquerda engajada – até o assassinato de Marighella –, como, a partir daí, de partidários e colaboradores do autoritarismo.
Durante uma década e meia sob o comando de policiais, o jornal adquiriu um apelido: o de “maior tiragem”, já que muitos dos jornalistas que ali trabalharam eram igualmente “tiras” e exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. A partir deste perfil de funcionários, a Folha da Tarde carrega a acusação de “legalizar” mortes decorrentes de tortura, se tornando conhecido como o Diário Oficial da Oban.
Isto explica o porquê de os carros do Grupo Folha da Manhã serem incendiados por militantes de esquerda, nos dias 21/9/1971 e 25/10/1971. A ação era uma represália, já que o grupo era acusado de ceder automóveis ao Doi-Codi que, com esse disfarce, montava emboscadas, prendendo ativistas.
Nesse momento de ponderações sobre os 50 anos do golpe, recordo-me que, quando dos 30 anos do AI-5, o jornalista Jânio de Freitas publicou na Folha de S. Paulo uma advertência não cumprida por seus pares, inclusive agora, nas reflexões dos periódicos aos 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Corroborando com tudo o que foi exposto aqui, Freitas lembrava em 1998 que “a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura. Naqueles tempos, e desde 64, o Jornal do Brasil [...] foi o grande propagandista das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime.  (…) Os arquivos guardam coisas hoje inacreditáveis, pelo teor e pela autoria, já que se tornar herói antiditadura tem dependido só de se passar por tal”.
O jornalista ao finalizar, adverte, e peço-lhe licença para me utilizar aqui, de suas conclusões. Trocarei 30 por 50 anos, AI-5 por golpe civil-militar de 1964, e o que estiver entre colchetes é de minha autoria. Assim: precisamos aproveitar os 50 anos do golpe civil-militar de 1964 para mostrar mais como foi o regime que [se instaurou a partir dali], eis uma boa iniciativa. Mas não precisava [como fizeram muitas narrativas recentes] reproduzir também os hábitos de deformação costumeiros naqueles tempos.
* Beatriz Kushnir é historiadora, doutora em História pela Unicamp, autora, entre outros de, Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo, 2012)


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Esquerda e Progressismo: a grande divergência


Por Eduardo Gudynas

Uma das maiores mudanças políticas vividas na América Latina nos últimos 20 anos foi o surgimento e consolidação dos governos da nova esquerda. Independente da diversidade dessas administrações e das bases que os apoiam, todas compartilham atributos que justificam nomeá-los como “progressistas”. São expressões vitais, próprias da América Latina, de certa forma bem-sucedidas, mas ancoradas na ideia de progresso. Sua força, e até mesmo o seu sucesso, tem gerado uma divergência entre esse progressismo e muitas das ideias e sonhos da esquerda latino-americana clássica.
Para analisar essas circunstâncias é necessário ter em mente a magnitude da mudança política na América Latina, iniciada em 1999 com a primeira presidência de Hugo Chávez e que se consolidou nos anos seguintes em vários países vizinhos. Já vão longe os anos das reformas de mercado, e o Estado voltou a desempenhar papéis diferentes. Foram adotadas medidas de emergência para combater a pobreza extrema, com inegável sucesso na maioria dos países. Vastos setores, de movimentos indígenas a grupos populares urbanos, durante muito tempo excluídos, finalmente conseguiram alcançar o protagonismo político.
Também é verdade que a esquerda latino-americana é muito variada, com diferenças significativas entre Evo Morales na Bolívia e Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, ou entre Rafael Correa no Equador e a Frente Ampla do Uruguai. Essas diferentes expressões foram rotuladas como esquerda social-democrática ou revolucionária, vegetariana ou carnívora, nacional popular ou socialista do século XXI, e assim por diante. Mas esses governos e suas bases de apoio não só compartilham os atributos acima exemplificados, mas também a ideia de progresso como elemento central para organizar o desenvolvimento, a economia e a apropriação da Natureza.
A identidade própria do progressismo não se dá apenas em função dessas posições compartilhadas, mas também pelas diferenças cada vez maiores em relação aos caminhos traçados pela esquerda clássica da América Latina do final do século XX. É como se presenciássemos regimes políticos que nasceram no cerne da esquerda latino-americana, mas, à medida que adquiriram uma identidade distinta, passaram a construir caminhos cada vez mais diferentes. Pode-se apontar, a título de exemplo, alguns destaques no plano econômico, político, social e cultural.
A esquerda latino-americana das décadas de 1960 e 1970 era uma das mais profundas críticas do desenvolvimento convencional. Questionava suas ideias fundamentais, inclusive com um acento anticapitalista, e rejeitava expressões concretas, em particular o papel de meros fornecedores de matérias-primas, considerando-o uma situação de atraso. Também discordava de instrumentos e indicadores convencionais, tais como o PIB, e insistia em que crescimento e desenvolvimento não eram sinônimos.
O progressismo atual, no entanto, não discute a essência conceitual do desenvolvimento. Pelo contrário, celebra o crescimento econômico e defende as exportações de matérias-primas como se fossem avanços no desenvolvimento. É verdade que, em alguns casos, há uma retórica de denúncia ao capitalismo, mas na verdade prevalecem economias inseridas nele, muitas vezes classificando a “seriedade macroeconômica” ou a queda do “risco-país” como realizações. A esquerda clássica entendia as imposições do imperialismo, mas o progressismo atual não usa essas ferramentas de análise diante das presentes desigualdades geopolíticas, como por exemplo o papel da China, nas nossas economias. A discussão progressista indica como instrumentalizar o desenvolvimento e, especialmente, qual o papel do Estado, mas não aceita rever as ideias que sustentam o mito do progresso. Ao mesmo tempo, o progressismo reteve, daquela esquerda clássica, uma atitude refratária às questões ambientais, interpretando-as como obstáculos ao crescimento econômico.
A esquerda latino-americana dos anos 1970 e 1980 incorporou a defesa dos direitos humanos, especialmente em relação à luta contra as ditaduras nos países do Cone Sul. Esse programa político amadureceu, entendendo que qualquer ideal de igualdade deve andar de mãos dadas com a garantia dos direitos das pessoas. Esse alento se estendeu e mostra a contribuição decisiva das esquerdas na ampliação e aprofundamento do quadro de direitos em vários países. Do seu lado, porém, o progressismo não expressa a mesma atitude, já que quando ocorrem denúncias sobre violações de direitos em seus países, reage defensivamente, questionando os atores sociais querelantes, as instâncias jurídicas que as aplicam, incluindo, em alguns casos, o sistema interamericano de direitos humanos e até a própria ideia em relação a alguns direitos.
Essa mesma esquerda também se apropriou da ideia de democracia, dando prioridade ao que chamou de aprofundamento ou radicalização da mesma. Seu objetivo era ir além das simples eleições nacionais, realizando consultas cidadãs diretas, mais simples e em vários níveis, com mecanismos de participação constantes. Surgiram inovações, como os orçamentos participativos ou os plebiscitos nacionais. No entanto, em muitos lugares o progressismo está se afastando desse espírito, enfocando os mecanismos eleitorais clássicos. Entende que eleições presidenciais são suficientes para garantir a democracia e celebra a continuidade do hiper-presidencialismo ao invés de horizontalizar poder, e argumenta que os vencedores desfrutam o privilégio de levar a cabo os planos que quiserem, sem o contrapeso dos cidadãos. Enquanto isso, restringem a participação ao exigir que os que tenham interesses divergentes se organizem em partidos políticos e esperem as próximas eleições para avaliar o seu poder eleitoral.
A esquerda clássica do final do século XX foi um das mais duras  combatentes contra a corrupção. Esse era um dos flancos mais frágeis dos governos neoliberais, e a esquerda seguidamente se aproveitou disso (“Podemos estar errados, mas não roubamos”, foi um dos slogans daquela época). No entanto, o progressismo atual não consegue repetir esse mesmo ímpeto, e há vários exemplos onde não lidaram adequadamente com os casos de corrupção de políticos-chave dentro de seus governos, mostrando uma atitude de certa resignação e tolerância.
Outra divergência iminente é que a esquerda latino-americana lutou muito para assegurar o protagonismo político de grupos subordinados e marginalizados. O progressismo inicial seguiu nessa mesma linha, conquistando governos graças aos indígenas, aos camponeses, a movimentos populares urbanos e a muitos outros atores. Forneceram-lhes não apenas votos, mas os líderes e profissionais que lhes permitiram renovar os quadros das empresas estatais. Mas nos últimos anos, o progressismo parece afastar-se de muitos destes movimentos populares, deixando de entender suas demandas, em alguns casos com uma postura defensiva, enquanto em outros tratando de dividir e intimidar. O progressismo gasta muito mais energia classificando, a partir do seu lugar no palácio do governo, quem seria e quem não seria revolucionário, distanciando-se das organizações indígenas, ambientalistas, feministas, dos direitos humanos etc. Alimenta-se assim a frustração de muitos dentro dos movimentos sociais, que, sob os governos conservadores, eram denunciados como pertencendo à esquerda radical, e agora, sob o progressismo, são criticados como estando a serviço do neoliberalismo.
A esquerda clássica concebia a justiça social como um amplo leque temático que vai da educação à alimentação, da habitação aos direitos trabalhistas e assim por diante. O progressismo está se afastando dessa posição, enfatizando que a justiça é uma questão de redistribuição econômica, especialmente através de uma compensação monetária para os setores mais pobres e do acesso ao consumo para os demais. Isto não implica desconsiderar o papel da ajuda mensal em dinheiro para tirar milhões de famílias da pobreza extrema. Mas a justiça é mais do que isso, e não pode ser reduzida a um economicismo compensatório.
Finalmente, numa dimensão que poderíamos qualificar como cultural, o progressismo elabora diferentes discursos de justificação política, cada vez mais distantes das práticas do governo. Proclama-se o Bem-Estar, mas este é desmontado na vida cotidiana; procura-se industrializar o país, mas liberaliza-se o extrativismo primário exportador; critica-se o consumismo, mas a inauguração de novos shoppings centers é celebrada; conclamam-se os movimentos sociais, mas ONGs têm suas portas cerradas; os indígenas são bem acolhidos, mas invadem suas terras, e assim por diante.
Estes e outros casos mostram que o progressismo atual está se afastando cada vez mais da esquerda clássica. Esse novo caminho tem sido bem sucedido em muitos aspectos, graças aos altos preços das commodities e ao consumo interno. Mas em relação às contradições e impactos negativos gerados por esses estilos de desenvolvimento, esses mesmos governos não aceitam mudar suas posições e, em vez disso, reafirmam o mito do progresso perpétuo. Por sua vez, contribuem para mercantilizar a política e a sociedade, com a sua obsessão pela compensação financeira e seu escasso radicalismo democrático.
O progressismo como expressão política distintiva torna-se ainda mais evidente em época de eleições. Nestas circunstâncias, parece que vários governos abandonam as tentativas de explorar alternativas para além do progresso, prevalecendo a obsessão por ganhar as próximas eleições. Isso os leva a aceitar alianças com os conservadores, a criticar ainda mais os movimentos sociais independentes e a assegurar o papel do capital na produção e no comércio.
O progressismo é, a seu modo, uma nova expressão da esquerda, com traços típicos da conjuntura cultural latino-americana, e que se tornou possível no âmbito de um contexto econômico global muito particular. Ele não pode ser qualificado como uma postura conservadora, menos ainda como um neoliberalismo disfarçado. Mas não segue exatamente o mesmo caminho que a esquerda construía no final do século XX. Na verdade, ela está se afastando cada vez mais desse caminho, à medida que sua própria identidade se consolida.
Este grande divergência está acontecendo diante de nós. Em alguns casos, é possível que o progressismo corrija o seu curso, retomando alguns dos valores da esquerda clássica para buscar outras sínteses alternativas que incorporem de uma maneira mais adequada temas como o Bem-Estar ou a justiça num sentido mais amplo, ou em todo caso passa pelo afastamento em relação ao mito do progresso. É deixar de ser progressismo para tornar a construir a esquerda. Em outros casos, talvez decida reafirmar-se, aprofundando ainda mais sua crença no progresso, caindo em regimes hiper-presidenciais, extrativistas e cada vez mais distantes dos movimentos sociais. Este é um caminho que o afasta definitivamente da esquerda.
[N.E.] Original disponível em: Agencia Latinoamericana de Información, publicado em 24/12/2013. Tradução: Ricardo Cabral, publicada emhttp://dazibaonomeio.wordpress.com/2014/01/03/esquerda-e-progressismo-a-grande-divergencia-eduardo-gudynas/

terça-feira, 1 de abril de 2014

As leis da ditadura que ainda vigoram no Brasil


29 anos após a democratização, conheça as leis da ditadura militar que ainda seguem em vigor no Brasil

Quase três décadas após o fim da ditadura (1964-1985), o Brasil continua regido por uma série de leis, práticas e códigos criados pelos militares.

São daquela época, por exemplo, as atuais estruturas tributária, administrativa e financeira do país. E mesmo após a Constituição de 1988 definir como pilares do Estado brasileiro a democracia e o respeito aos direitos humanos, seguem em vigor normas e práticas que, segundo especialistas, contrariam esses valores.

É o caso, dizem eles, do Estatuto do Estrangeiro, que nega direitos políticos a estrangeiros que residam no país. Ou de um mecanismo que permite a tribunais anular decisões judiciais favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras se as cortes avaliarem que as medidas põem em risco a economia nacional.

Gilberto Bercovici, professor de direito econômico e economia política da Universidade de São Paulo (USP), diz que, em busca de refundar o país e valendo-se de medidas autoritárias, os militares redefiniram as regras de várias das principais áreas da administração pública.


As ações, segundo ele, anularam os esforços da Presidência de João Goulart (1961-1964) para ampliar a participação popular na gestão do país.


"Até hoje isso (maior participação popular) não foi recuperado. Parece que temos na nossa democracia certos limites que não podem ser ultrapassados", diz.

Bercovici cita a reforma agrária, que, mesmo prevista na Constituição de 1988, gera grande resistência e jamais foi plenamente realizada.

O professor atribui a manutenção de regras da ditadura em parte à instabilidade e à crise econômica que o país vivia durante a redemocratização. "Havia um entendimento de que havia coisas mais urgentes a se pensar".
Segundo Bercovici, outro estímulo à permanência das normas é a dificuldade na democracia para se chegar a consensos sobre mudanças.


Para o secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, a manutenção da Lei de Anistia (1979) – que perdoou crimes políticos cometidos por militantes e agentes de Estado durante a ditadura – é um "escudo para que não se coloque o dedo na ferida em todas as demais pendências institucionais de fundamento autoritário" dos tempos da ditadura (leia texto ao lado).


Confira algumas das heranças institucionais do regime de exceção que permanecem em vigor.



Política migratória


O atual Estatuto do Estrangeiro, que orienta a regularização de estrangeiros no Brasil, data de 1980 e foi inspirado pela lógica de segurança nacional.

Os estrangeiros residentes no Brasil são proibidos, por exemplo, de exercer qualquer atividade política (inclusive votar) ou de "se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos" do país. O documento veda também a regularização de imigrantes não documentados.


Paulo Abrão, secretário Nacional de Justiça, diz que a legislação é incompatível com o discurso oficial da política externa brasileira. Ele afirma que a proposta de um novo estatuto será entregue ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na semana que vem e encaminhada ao Congresso em seguida.




Impostos, administração pública e finanças


Aprovado em 1966, o Código Tributário Nacional jamais foi alterado em sua essência. É ele quem define os impostos que municípios, Estados e União podem cobrar e os critérios gerais para a distribuição das receitas entre os entes federativos.

O atual Sistema Financeiro Nacional (SFN) também foi criado pelos militares na década de 1960. Uma das principais novidades do SFN foi a fundação do Banco Central, que tomou do Banco do Brasil as funções de organizar o sistema monetário. A lei que disciplina bolsas de valores no país também é daquela época.

Os militares criaram ainda o atual sistema de administração pública, que aprofundou a divisão entre a administração direta (exercida por órgãos subordinados a ministérios) e a indireta (autarquias, fundações e empresas públicas).



Práticas policiais


Ainda que a Polícia Militar (PM) tenha sido criada antes do Golpe de 1964, organizações que militam pelos direitos humanos dizem que, durante a ditadura, foram incentivadas práticas que violam esses valores e que seguem em vigor.

O advogado Eduardo Baker, da ONG Justiça Global, cita entre esses mecanismos o crime de desacato, "usado pela polícia como forma de intimidação em sua atividade cotidiana". "A existência dele permite que um policial leve qualquer um para a delegacia, colocando o policial acima do cidadão."

Outra prática criticada é o registro de mortes provocadas pela polícia como "autos de resistência". Segundo a Justiça Global, o mecanismo visa proteger policiais infratores e impedir a investigação de execuções sumárias.

A Secretaria Nacional de Segurança Pública não se pronunciou sobre as críticas. Tramita no Congresso um projeto de lei que prevê a investigação de mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o trabalho, mas não há prazo para a sua votação.



Exportação de armas


Desde os anos finais da ditadura, as vendas de armas brasileiras ao exterior são regidas por um documento secreto e jamais divulgado, a Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar (Pnemem).

Segundo Daniel Mack, analista sênior do Instituto Sou da Paz, não há clareza sobre os critérios do Brasil para decidir sobre a exportação de armamentos. Mack diz esperar que, tão logo o Congresso ratifique o Tratado de Comércio de Armas, assinado pelo Brasil no ano passado, as operações se tornem mais transparentes.

O Ministério da Defesa disse à BBC Brasil que geralmente os contratos para a venda de armas têm, a pedido dos países compradores, cláusulas de sigilo, o que impede a divulgação das informações. O Itamaraty não respondeu os questionamentos sobre o tema.



Código Penal Militar


Aprovado em 1970, o Código Penal Militar dá margem para que civis sejam investigados por cortes militares. Organizações dizem que essa possibilidade, inexistente em vários países democráticos, contraria a Constituição de 1988. Elas defendem a extinção do código.

Críticas à manutenção da legislação ganharam força em 2008, quando o economista Roberto de Oliveira Monte se tornou réu na Justiça Militar acusado de "incitar à desobediência, à indisciplina ou à prática de crime militar" e "ofender a dignidade ou abalar o crédito das Forças Armadas".

A acusação se embasou em palestra feita por Monte em 2005, quando ele criticou as humilhações sofridas por militares por seus superiores e defendeu que os praças pudessem se sindicalizar. Já a Procuradoria de Justiça Militar diz que Monte fez "apologia à insubordinação" e empregou termos ofensivos ao Exército.



Políticas para a Amazônia


Críticos às políticas do governo na Amazônia dizem que, mesmo após a redemocratização, continua em vigor o modelo de desenvolvimento para a região preconizado pelos militares. "Ainda que a legislação atual preveja discussões e o licenciamento das obras, o objetivo maior do governo continua a ser exportar os recursos da Amazônia por meio de grandes projetos de mineração e energia, desprezando posições contrárias da sociedade", diz o jornalista e sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto, autor de 12 livros sobre a região.

Ele afirma que, ao empregar a Força Nacional de Segurança em canteiros de grandes obras na Amazônia, o governo federal visa impor sua vontade pela força, assim como faziam os militares. Para o advogado Raul do Valle, do Instituto Socioambiental (ISA), outro mecanismo da ditadura que, segundo ele, continua a legitimar políticas autoritárias na Amazônia é a Suspensão de Segurança.

Criada em 1964, ela permite a tribunais anular decisões judiciais favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras se as cortes avaliarem que essas decisões põem em risco a ordem, a saúde, a segurança ou a economia públicas. O mecanismo tem sido usado para derrubar decisões que ordenaram a paralisação das obras da hidrelétrica de Belo Monte e de uma estrada de ferro que escoará minérios na região dos Carajás, ambas no Pará.

O Ministério de Minas e Energia e o Ministério da Justiça (responsável pela Força Nacional de Segurança) não se pronunciaram sobre as críticas.




segunda-feira, 31 de março de 2014

Viajar para fora e voltar falando mal do Brasil

 Viajar para fora e voltar falando mal do Brasil

Por Pedro Schmaus

O brasileiro médio admira sobrenomes. Não estou falando dos tipos comuns como Oliveira, Carvalho, Santos ou qualquer um da Península Ibérica. Refiro-me a sobrenomes de pronúncia complicada, provenientes da Itália, Alemanha ou Japão, coisas como Brauer, Morin, Petrucelli, Leiko, Massini ou Kimura.
Não sei onde surgiu esse entusiasmo, mas de fato o pessoal acha lindo. Ter um desses parece coisa de gente fina e educada. Há orgulho e um senso de diferenciação, como se os donos desses sobrenomes fossem portadores de uma nobreza que os meros Silva jamais possuirão. É como se tivesse uma “ascendência de primeiro mundo”, algo que os torna distintos do resto da massa miscigenada.
Eu tenho um colega assim, o Thomas Eichelberger. Ele é brasileiro, mas descende de alemães. Sempre que pode reclama do Brasil. Acha o país subdesenvolvido e maldiz o dia em que sua família deixou a Europa. É doido por um passaporte alemão. Não sabe porque ainda mora aqui, só fala em se mudar.
Certo dia estava caçoando de um senhor que falara “pobrema” em uma entrevista na TV. O sobrenome do homem era Silva e Thomas logo fez piada, dizendo que só podia ser “um Silva mesmo”. Nisso seu avô escutou a conversa e soltou o seguinte:
Thomas meu filho, entenda uma coisa. Nossa família deixou a Europa porque era paupérrima. Chegamos aqui no Brasil para ganhar a vida na roça, mal éramos alfabetizados. Para cá não veio gente bem-sucedida ou da realeza. Você já viu algum rei cruzar um oceano para vir criar galinhas ou plantar alface? Não seja bobo. Eichelberger pode parecer um sobrenome especial aqui, mas na Alemanha somos Silva como esse homem na TV.
Milhões sofrem do mesmo mal de Thomas e não importa se os seus sobrenomes são considerados diferentes ou não. São pessoas que sempre colocam o Brasil em uma posição de inferioridade se comparado com o resto do mundo, mesmo que isso não seja verdade. Gente tomada por um problema que Nelson Rodrigues chamou de complexo de vira-lata.
No microcosmo sobre o qual escrevo – o segmento das viagens – podemos notar esse mesmo complexo em sua melhor forma. Quem conversa com viajantes internacionais nota que há uma epidemia entre eles. Eu a chamo de “viajar para fora e voltar falando mal do Brasil”. É quase uma mania.
Não estou dizendo que o Brasil está acima das críticas, acho o patriotismo exacerbado uma idiotice enorme. Críticas são saudáveis e necessárias, mas quando estão imersas nesse complexo de vira-lata tornam-se parciais e sem reflexão. É então que ouvimos absurdos inimagináveis, coisas que testemunhei enquanto estive na estrada.
Como alguém que reclamou um monte do atraso da bagagem na esteira de Guarulhos, mas deu de ombros para o fato das rodinhas de sua mala terem sido quebradas em Dubai. Ou um cara em frente ao estádio Camp Nou elogiando o Barcelona, afirmando que o futebol espanhol é bom porque lá não tem corrupção, enquanto segurava um jornal com os detalhes da maracutaia que o mesmo Barcelona fez na transferência do Neymar.
Já tive que ouvir gente que viajou para a Índia e voltou afirmando que lá o transporte público é melhor do que no Brasil, ignorando o fato de que todo dia 12 pessoas morrem em média só no metrô de Mumbai. Ou que todos os asiáticos são mais disciplinados que nós, apesar do caos que é o trânsito da maioria das cidades de lá. Enfim, em qualquer que seja a comparação, o Brasil sempre está por baixo, não importa se está certo ou não.
Encontrar aspectos positivos sobre o Brasil não resolve nossos problemas, mas ajuda a entender em que grau de desenvolvimento estamos e o que devemos fazer para melhorar. Nada é mais efetivo para alcançar essa percepção do que viajar. No entanto, quem sai de casa já tendo certeza de que seu próprio país não presta, jamais conseguirá criar referências legítimas.  Estará preso a estereótipos, sem entender que os lados positivos e negativos de um país são também os aspectos positivos e negativos dele mesmo como indivíduo.
Em visita ao Vietnã pude entender exatamente como se dá essa relação. É um país pobre, mas de gente muito orgulhosa por manter sua soberania frente a franceses e norte-americanos em duas guerras terríveis. Uma vez em Hanói conversei com um veterano da II Guerra do Vietnã. Eu quis saber o que ele esperava do futuro de sua nação, se existia um caminho a ser trilhado rumo ao desenvolvimento. Ele me disse o seguinte:
Seu país é como seu filho. O que ele faz de certo é mérito seu, assim como o que ele faz de errado é também falha sua. Ao elogiá-lo, seja lúcido e evite o exagero. Elogiar demais pode torná-lo indolente. Por outro lado, ao criticá-lo, seja duro, porém não o ridicularize. Faça sua parte para ajudar a melhorá-lo, não com deboche ou desprezo, mas sim bons exemplos e dedicação.
Abraço!

domingo, 30 de março de 2014

Os cabelos da Coreia do Norte e a falência do jornalismo global


Receita prática e rápida de jornalismo barato: pegue uma notícia esdrúxula numa agência de notícias qualquer, adicione uma dose generosa de pimenta sensacionalista, bata tudo no liquidificador e sirva, sem filtrar, para que os desavisados saiam por aí papagaiando para ajudar a mídia a vender mais notícia barata. A última foi o que a mídia nacional noticiou, ou, ecoou: “homens são obrigados a usar o mesmo corte de cabelo na Coréia do Norte”. Quando vi tal notícia no telejornal mais visto do Brasil, eu, escaldado pela gloriosa velha mídia, comentei com quem assistia comigo: quer apostar que essa notícia é falsa? Fui à internet e não deu outra: não há confirmação alguma sobre a veracidade da notícia, que partiu da BBC.

O curioso é que a senha para o desmonte do factoide está na própria notícia disponível no site da BBC, na base da malandragem da “uma fonte ouvida”; ou: “há relatos conflitantes”. Bom, essa coisa de “fonte”, a vaca sagrada do jornalismo (para o bem ou para o mal), é tão confiável como aquela fofoca que você ouviu a respeito do seu chefe a partir do relato do seu colega, que ouviu do vizinho, que ouviu do amigo de um primo que é muito amigo do irmão do chefe. Tudo fonte fidedigna, claro, não importa que você não tenha entendido bulhufas sobre a engenharia da rede de informação do colega.

Voltemos aos cabelos da Coréia do Norte. Pesquisando um pouco mais, você descobre que alguns poucos — porém criteriosos —  informativos desconfiam da tal notícia. O jornal israelense Haaretz, por exemplo, lembra que as extravagâncias do líder norte-coreano Kim Jong-un e mais as dificuldades de se verificar a veracidade da notícia num regime fechado como a Coréia do Norte, dá margem a toda sorte de “criatividade jornalística”. O que existiria de fato — segundo relatos, frise-se — seria uma campanha na Coréia do Norte para que os homens não usem cabelos compridos. E só. Tal informação teria surgido em 2008 quando o jornal japonês (epa!) Mainichi Shimbun, sem citar fontes críveis, teria noticiado que Kim Jong-il (pai de Kim Jong-un), que adorava basquete, teria torcido o nariz ao ver jogadores de um time norte-coreano de cabelos compridos. “Isso é time de homens ou de mulheres?” — teria comentado o ex-líder norte-coreano, falecido em 2011. Logo após aquele jogo de basquete, o governo teria espalhado avisos (ninguém sabe informar se é proibição ou orientação) em locais de trabalho para que homens evitassem usar cabelos compridos. Em seguida, um viral na internet passou a espalhar a “notícia” que a Coréia do Norte havia liberado apenas 28 tipos de cortes de cabelos — 14 para homens e 14 para mulheres; a “Radio Free Ásia”, que é bancada pelos EUA (epa! epa!), fala em 10 cortes para homens e 18 para mulheres. Uma pequena divergência ante um contexto tão idôneo, criterioso e relevante com que o jornalismo ocidental presenteia a humanidade, não?!

Moral da história: com dez minutos de pesquisa na internet, foi fácil para um usuário de computador verificar o contraditório que afronta o factoide. Se a velha mídia — com toda sua estrutura (financeira, humana, estrutural e técnica) — é incapaz, ou melhor, não faz questão alguma de verificar isto, é sinal que, para a indústria da informação, a verdade factual se tornou, há um bom tempo, subproduto descartável ante a facilidade de se inventar, manipular e vender uma notícia turbinada para ficar atraente. E se o jornalismo irresponsável tem tal facilidade é porque sabe que, na outra ponta, a maioria das pessoas acatará como verdade — esmagando a minoria com senso crítico que ainda teima em prezar o bom jornalismo e gritar por ele.



Fontes:
Matéria na BBC:

Matéria ecoada pelo Jornal Nacional, da Globo:


Rede Globo - Jornalismo Fake from Zcarlos on Vimeo.


Haaretz questiona a notícia: