sábado, 9 de fevereiro de 2013

A Morte e a Morte de Hugo Chávez



Por Mayra Goulart

Comemoram um ano e meio os augúrios sobre a iminente morte de Hugo Chávez. Em junho de 2012, começaram a soar as cornetas de seu apocalipse pessoal. Nesse meio tempo, entre a morte certa e o indefectível sepultamento do chavismo, o presidente logrou nas urnas a renovação de seu mandato e uma acachapante derrota da oposição nas eleições para os governados estaduais. O chavismo sobrevive, porém, diante do recrudescimento do câncer do comandante e de sua impossibilidade de consagrar seu novo mandato com uma cerimônia de posse, mais pungentes e abundantes se tornaram as especulações a respeito do futuro do país. Sendo a democracia um conceito fundamental tanto para a revolução bolivariana, como para seus opositores é ela que dá o tom ao canto dos oráculos. A controvérsia se instaura, todavia, quando os dois lados advogam a partir de argumentos pertinentes – o que por si só já exclui a maioria daqueles formulados pelos articulistas de plantão – o fiel respeito ao ideal democrático.
Ao meu ver, além das inelutável disputa por poder, há aí um ruído na comunicação possibilitada pela amplitude semântica do termo. Reduzindo a uma controvérsia linguística uma situação que remete a séculos de exploração das camadas populares por uma pequena burguesia, que se identifica mais com a cultura norte-americana do que com a andina, é possível observar que governo e oposição mobilizam o ideal democrático em sentidos diferentes. O primeiro enfatizando o ideal clássico de soberania popular ressignificado, a partir de uma interpretação cesarista e plebiscitária, como vínculo de identidade entre o povo e o líder. O segundo, por sua vez, define a democracia pelo contraste com a tirania e o autoritarismo, como um regime no qual aos cidadãos é concedida a capacidade de se autogovernar, seguindo leis que contam com sua aprovação.
Estes dois sentidos têm, contudo, pretensões e origens históricas distintas. O que salta aos olhos quando observamos o caráter moderno da segunda acepção, que remete ao surgimento da noção de Estado de Direito (Rechtsstaat,), nascida na Alemanha no século XIX, a partir da preocupação de reduzir a capacidade de arbítrio dos governantes por meio da restrição da esfera de ação dos mandatários àquilo que está previsto na lei – mas, também, através de uma clara delimitação das fronteiras entre as esferas legislativa, executiva e judiciária, impedindo que seus ocupantes acumulem poder. Tal perspectiva está atrelada à formação de um sistema de controle recíproco (checks and balances) estabelecido entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Essa preocupação em limitar a esfera de atuação do Estado resulta no desenho de uma linha imaginária entre as duas faces da existência do homem moderno, marcado pela esquizofrênica bipolaridade entre suas duas personalidades. Uma como indivíduo voltado à persecução de interesses egoisticamente restritos ao seu bem estar e de sua família e, outra, como cidadão sinceramente devoto a sua comunidade e interessado em participar ativamente de questões públicas. Tal esquizofrenia é deslindada na obra de autores seminais do liberalismo político – como, por exemplo, Hobbes – preocupados em salvaguardar a ordem em caso de surtos, em sua maioria, ocasionados quando os homens adentram com sua persona privada no mundo público, quer agindo de modo egoísta, quer ambicionando gozar do mesmo tipo de liberdade restrita à esfera privada. Essa confusão, por conseguinte, resulta da presença da noção de liberdade em suas duas facetas, instaurando um ponto de conexão passível de gerar um curto-circuito. Nesta medida, para aqueles preocupados apenas em evitar o caos, bastaria, então, restringi-la à dimensão privada de sua existência.
Isso, contudo, não é possível quando as noções de ordem e de liberdade individual sofrem uma contaminação semântica a partir da ideia de democracia, este é o caso de autores como Rousseau, que, embora não seja um democrata, aparece como símbolo de um momento no qual as lutas pela liberdade passaram a se conciliar às bandeiras da soberania popular e das liberdades individuais. Por este motivo, voltando à querela venezuelana, se é possível compreender os motivos da polissemia, não há necessidade de justificá-la. Pois, a despeito de não haver uma articulação interna e necessária entre essas duas camadas de significado, há uma consolidada conexão, sedimentada ao longo de séculos de batalhas políticas e filosóficas.
Tudo isso dito, é preciso reconhecer na indignação da oposição perante a decisão do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela (TSJ) de decretar, em 09 de janeiro de 2013, a continuidade administrativa entre o governo anterior, inquestionavelmente sufragado pelo povo soberano em 2006, e o atual, ratificado em outubro de 2012, um legítimo apego às formas, porém desprovido de qualquer conteúdo substantivo. Para a população que acabou de renovar o mandato de Chávez essa continuidade é inequívoca, além de explicitamente demandada. Não é possível questionar a identificação da maioria dos cidadãos venezuelanos com o chavismo, explicitada também nas eleições estaduais, que em 16 de dezembro do ano passado, concederam-lhe a vitória em 20 dos 23 departamentos do país.
Dessa forma, resta à oposição lembrar que, desde a modernidade, democracia e Estado de direito são conceitos entrelaçados e que o apego às regras e à separação entre os Poderes deve fazer parte dos sistemas que requerem essa herança conceitual. Ao governo, por sua vez, são cabíveis duas estratégias: desvincular-se do componente liberal, assumindo uma interpretação anacrônica da ideia de democracia, ou reivindicar a pertinência jurídica do veredito do tribunal. Desconsiderando por razões de espaço a primeira opção, pois há indícios contraditórios nos discursos do comandante que demandariam uma análise cuidadosa, é interessante observar o imbróglio sob a perspectiva constitucional.
Quatro artigos da Carta magna venezuelana se referem à esparrela acima mencionada:
(i) Artigo 231: “O candidato eleito ou candidata eleita tomará posse do cargo de presidente ou presidenta da República no dia 10 de janeiro do primeiro ano de seu período constitucional, mediante juramento perante a Assembleia Nacional. Se, por qualquer motivo sucedido, o presidente ou presidenta da República não puder tomar posse perante à Assembleia Nacional, o fará diante do Tribunal Supremo de Justiça”.
(ii) Artigo 233: “Serão faltas absolutas do presidente ou presidenta da República: sua morte, sua renúncia ou sua destituição decretada por sentença do Tribunal Supremo de Justiça; sua incapacidade física ou mental permanente, certificada por uma junta médica designada pelo Tribunal Supremo de Justiça e com a aprovação da Assembleia Nacional, assim como a revogação popular de seu mandato.
Quando se produzir uma falta absoluta do presidente eleito ou presidenta eleitaantes de tomar posse, se procederá uma nova eleição universal, direta e secreta dentro dos trinta dias consecutivos seguintes. Enquanto se elege e toma posse o novo presidente ou presidenta, se encarregará da Presidência da República opresidente da Assembleia Nacional.
Se a falta absoluta do presidente se produzir durante os primeiros quatro anos do período constitucional se procederá uma nova eleição universal, direta e secreta dentro dos trinta dias consecutivos seguintes. Enquanto se elege e toma posse o novo presidente ou presidenta, se encarregará da Presidência da República o vice-presidente executivo ou vice-presidenta executiva”.
(iii) Artigo 234: “As faltas temporárias do presidente ou presidenta da República serão supridas pelo vice-presidente ou vice-presidenta executiva por até noventa dias, prorrogáveis por decisão da Assembleia Nacional por até mais noventa dias.
Se uma falta temporária se prolongar por mais de noventa dias consecutivos, a Assembleia Nacional decidirá por maioria de seus integrantes se deve considerar que há falta absoluta”.
(iv) Artigo 235: “A ausência do território nacional por parte do presidente da República requer autorização da Assembleia Nacional ou da Comissão Delegada, quando se prolongue por um lapso superior a cinco dias consecutivos”.
A sentença da Sala Constitucional do TSJ de que “a juramentação do presidente eleito pode ser efetuada em oportunidade posterior a 10 de janeiro de 2013” resulta, consequentemente, de uma interpretação do artigo 231 à luz do 235. Isto porque antes de se ausentar do país, em 08 de dezembro, para internar-se em um hospital em Cuba, Chávez obteve a autorização da Assembleia. O problema é que os dois artigos tratam de objetos distintos: o primeiro de um presidente eleito e, o segundo, de um presidente em exercício. A diferença entre os dois está na própria juramentação. A declaração dos ministros do TSJ, no entanto, reconhece esta diferença. Observa, porém, que a Carta de 1999, diferentemente da anterior, de 1961, não considera o término do mandato como falta absoluta. E, diante disso, indicam que “não é necessária uma nova posse em relação ao presidente Hugo Chávez Frias, em sua condição de presidente reeleito, em virtude de não existir interrupção no exercício do cargo”.
Não obstante, em face deste veredito, porta-vozes da Mesa de Unidade Democrática (MUD), coalizão que agrupa os principais partidos de oposição da Venezuela, anunciaram, em 12 de janeiro, que pretendem apresentar uma demanda perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na tentativa de impugná-lo sob a justificativa de violação das normas presentes na Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ignorando o fato de a Venezuela, em setembro de 2012, ter pedido seu desligamento da CIDH, é importante atentar para os argumentos levantados pela MUD, centrados nas alegações de desrespeito ao Estado de direito e à separação de Poderes, mediante a alegação de que o chavismo controla o Legislativo e o Judiciário.
Quanto à primeira, a acusação tem pouca pertinência, uma vez que a Constituição, em seu artigo 335, concede à Sala Constitucional a última palavra em sua interpretação, além de não sentenciar a obrigatoriedade da conformação de uma junta médica para se pronunciar sobre a incapacidade do presidente – que, se considerada permanente, determinaria sua falta absoluta e, por conseguinte, a abertura de novas eleições – mas, somente a possibilidade de sua convocação pelo TSJ.
No tocante à última acusação, um breve epílogo útil para pôr em perspectiva o apego da MUD à divisão dos Poderes. A denúncia de que o Executivo teria assumido o controle do Supremo Tribunal de Justiça remonta a um episódio quando os então ministros declararam não ter havido golpe de Estado em 2002, embora o chefe de Estado tenha sido mantido preso durante 47 horas por militares ligados à oposição, que chegou a designar um presidente interino (rapidamente reconhecido por Estados Unidos e Espanha). Após esta ocasião, o governo logrou uma ampliação no número de ministros, que passaram de 20 para 32, compensando a maioria oposicionista na casa, herdada da IV República (Sistema jurídico-político configurado pela Constituição de 1961, que vigorou na Venezuela até 1999, quando promulgada a nova Carta.).
Sendo assim, resta-nos reconhecer que, mesmo inegável, a conexão histórica entre democracia e liberalismo ainda não se consolidou na Venezuela. E isso não pode ser atribuído apenas a Hugo Chávez.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Por que as ideias de Marx são mais relevantes do que nunca no século XXI



O marxismo está em evidência com a crise econômica global. Mas, como Marx diz, o importante não é apenas interpretar o mundo, mas o transformar. Para isso, ele precisa ser mais do que uma ferramenta intelectual para comentaristas confusos com a conjuntura. Ele necessita ser uma ferramenta política.





O ‘capital’ costumava nos vender visões do amanhã. Na Feira Mundial de 1939, em Nova York, empresas exibiram novas tecnologias: nylon, ar condicionado, lâmpadas fluorescentes, e o impressionante ''View-Master''. No entanto, mais do que apenas produtos, um ideal, de “classe média”, de tempo livre e de abundância, era oferecido àqueles cansados da depressão econômica e da expectativa de guerra na Europa.

O passeio futurístico levou os participantes até mesmo por versões em miniatura de paisagens transformadas, representando novas autoestradas e projetos de desenvolvimento: o mundo do futuro. Esta era uma tentativa determinada a renovar a fé no capitalismo.

No despertar da segunda guerra mundial, um pouco desta visão se tornou realidade. O capitalismo prosperou e, mesmo que desigualmente, os trabalhadores norte-americanos progrediram. Pressionado por baixo, o estado foi conduzido por reformadores, e o comprometimento de classe, para além da luta de classes, fomentou o crescimento econômico e compartilhou uma prosperidade antes inimaginável.

A exploração e opressão não acabaram, mas o sistema pareceu ser não somente poderoso e dinâmico, mas conciliável com os ideais democráticos. O progresso, no entanto, estava esmorecendo. A democracia social se deparou com uma crise estrutural nos anos 1970, que Michal Kalecki, autor de ''Os Aspectos Políticos do Pleno Emprego'', previu décadas antes. Altas taxas de emprego e as garantias do estado de bem-estar social não ''compraram'' os trabalhadores, mas encorajaram fortes demandas salariais. Os capitalistas mantiveram estas políticas enquanto os tempos eram bons, mas com a estagflação - que consiste na intersecção entre baixo crescimento e alta inflação - e o embargo da Opep, uma crise de rentabilidade seguiu-se.

O neoliberalismo emergente refreou a inflação e restaurou os lucros, mas tudo isso só foi possível por meio de uma ofensiva cruel contra a classe trabalhadora. Havia batalhas campais travadas em defesa do estado de bem-estar social, mas, de maneira geral, nossa era foi de desradicalização e conformismo político.

Desde então, os salários reais se estagnaram, a dívida disparou, e as perspectivas para uma nova geração, ainda apegada à velha visão social-democrata, se tornaram sombrias.

O ''boom'' tecnológico dos anos 1990 trouxe rumores de uma ''nova economia'', leve e adaptável, algo que substituiria o velho ambiente de trabalho Fordista. Mas tais rumores foram apenas um eco distante do futuro prometido na Feira Mundial de 1939.

De qualquer forma, a recessão de 2008 despedaçou estes sonhos. O capital, livre de ameaças provindas de baixo, cresceu ganancioso, selvagem, e especulativo.

Para muitos de minha geração, a ideologia subjacente ao capitalismo foi minada. O maior percentual de norte-americanos nas idades entre 18 e 30 anos que possuem uma opinião mais favorável ao socialismo do que ao capitalismo pelo menos sinaliza que a era da Guerra Fria, onde havia uma confluência entre socialismo e stalinismo, não mais impera.

Para os intelectuais, o mesmo é verdade. O marxismo tem estado em evidência: a política externa recorreu a Leo Panitch, e não a Larry Summers, para explicar a recente crise econômica; e pensadores como David Harvey têm desfrutado de um renascimento tardio em suas carreiras. Um maior reconhecimento do pensamento da “esquerda do liberalismo” – como a revista Jacobin, que editei – não é apenas o resultado de uma perda de confiança nas alternativas dominantes, mas sim a capacidade que os radicais possuem de formular questões estruturais mais profundas e apresentar novas alternativas de desenvolvimento situadas em um contexto histórico. 

Agora, mesmo um liberal célebre como Paul Krugman tem invocado ideias que foram largamente relegadas às margens da vida norte-americana. Quando pensa sobre automação e o futuro do trabalho, Krugman preocupa-se que “mesmo possuindo ecos de um marxismo fora de moda, tais temas não deveriam ser ignorados, mas frequentemente são”. Mas a esquerda que ressurge possui mais do que preocupações, ela tem ideias: sobre a redução do tempo de trabalho, a desmercantilização do trabalho, e os meios pelos quais os avanços da produção podem constituir uma vida melhor, e não mais miserável.

É neste ponto que está se desenvolvendo, mesmo que desajeitadamente, um intelectualismo socialista do século 21 que mostra suas forças: na vontade de apresentar uma visão para o futuro, algo mais profundo do que mera crítica. Mas mudanças intelectuais não significam muito por si mesmas.

Um exame do panorama político nos EUA, a despeito do surgimento do movimento Occupy em 2011, é desanimador. O movimento trabalhista demonstrou alguns sinais de vida, especialmente entre os trabalhadores do setor público ao combaterem a austeridade; no entanto, tais ações são apenas de retaguarda, um esforço defensivo. Os índices de sindicalização continuam em baixa, e é a apatia, e não um fervor revolucionário, o que reina.

O marxismo nos EUA precisa ser mais do que uma ferramenta intelectual para comentaristas tradicionais confusos com nosso mundo em mudança. Ele necessita ser uma ferramenta política para transformar o mundo. Comunicado, não apenas escrito, para um consumo de massa, vendendo uma visão de tempo livre, abundância e democracia ainda mais real do que os profetas do capitalismo ofereceram em 1939. Uma Disneyland socialista: inspiração para depois do “fim da História”.

Tradução: Roberto Brilhante


Fonte: Carta Maior

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Política externa brasileira: uma resposta a Demétrio Magnolli

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Fátima Mello, da Rede pela Integração dos Povos, sustenta: país e América do Sul tornaram-se protagonistas globais, em uma década; só elites não veem, cegas de preconceito e rancor 

Por Fátima Mello


Demétrio Magnoli,


Li com atenção e espanto seu artigo publicado no Globo de 31/1/2013 “Lula e a falência da ` Doutrina Garcia’”. Sou membro de uma organização da sociedade civil brasileira – FASE – e de uma rede – Rede Brasileira Pela Integração dos Povos/REBRIP – cuja atuação nacional, regional e global se orienta pela defesa dos direitos humanos, da sustentabilidade, da redução das desigualdades dentro e entre países. É com este olhar que atuamos sobre a política externa brasileira. E é por isso que tanto me surpreende sua avaliação.
 
Em primeiro lugar sua referência a um suposto “fracasso estrondoso da política externa – e da crise regional que se avizinha” não coincide com os fatos. Antes da era Lula o Brasil entrava pela porta dos fundos do sistema internacional; hoje entra como protagonista nos principais fóruns de negociação global. Antes de 2003, a região encontrava-se imersa em uma profunda crise, resultante do receituário do Consenso de Washington — que acirrava o que era e continua sendo a pior enfermidade entre nós, as desigualdades. As urnas de diversos países da região deram um basta e inauguraram um novo ciclo político, que com contradições e fortes condicionamentos externos, tenta se aproximar das demandas populares por inclusão social. A região estava prestes a se tornar oficialmente um protetorado dos EUA, se as negociações da ALCA não tivessem sido esvaziadas pela política externa brasileira em concertação com países vizinhos.

O que o Sr. chama de uma suposta Doutrina Garcia prefiro definir como diretrizes de política externa definidas e compartilhadas por todo o governo. Em 2003 o Itamaraty formulou duas propostas cruciais para o enfrentamento das assimetrias de poder entre países: propôs a criação do G20, na reunião ministerial da OMC em Cancun, e apresentou a proposta de negociação em três trilhos da ALCA, o que efetivamente esvaziou a desmedida ambição dos EUA. Ambas propostas tiveram o mérito de sintonizar a comunidade internacional com a necessidade de inclusão de novos atores no processo decisório, sinalizando que o mundo de fato estava entrando numa era multipolar. O que o Sr. chama de “fracasso estrondoso da política externa” colocou o Brasil como membro dos BRICS, do G20 financeiro, do IBAS, dos BASIC nas negociações de mudanças climáticas; na região, a inclusão da Venezuela no Mercosul resulta em um peso econômico infinitamente maior ao bloco. Além disso, apesar do ódio que a elite tem contra Chavez, o fato é que hoje a Venezuela é o país menos desigual na região.

A necessidade de uma doutrina a que se refere o ex-presidente Lula me parece referida à urgência de construirmos uma identidade e projeto regionais que auxiliem a transição de uma posição até então submissa e periférica para outra, constituída pela articulação de interesses econômicos e políticos comuns e por aproximações culturais e simbólicas que nos unem como povos que têm uma história compartilhada.

A suposta “crise regional que se avizinha” ou ainda a “desintegração da América Latina” supostamente evidenciada na Aliança do Pacífico também não sobrevive aos fatos. Como assinalou José Luís Fiori, “este ‘cisma do Pacífico’ tem mais importância ideológica do que econômica dentro da América do Sul, e seria quase insignificante politicamente se não fosse pelo fato de se tratar de uma pequena fatia do projeto Obama de criação da “Trans-Pacific Economic Partnership” (TPP), peça central da sua política de reafirmação do poder econômico e militar norte-americano, na região do Pacífico.”

Apesar de apoiar as diretrizes gerais da política externa brasileira dos últimos dez anos, como integrante de movimentos sociais que lutam por justiça e sustentabilidade, temos muitas críticas e propostas, pois não há dúvida que muitos são os problemas e contradições envolvendo, por exemplo, as iniciativas de cooperação e investimentos internacionais do Brasil, bem como a insustentabilidade ambiental na qual se ancora a ação externa do país. O problema é que o viés claramente marcado pelo ódio de classe e ideologicamente preconceituoso de críticas como a sua nos impedem de realizar um debate de qualidade.


Atenciosamente,


Fátima Mello


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Os verdadeiros rostos do terrorismo na África



Quem libertará os africanos dos terroristas?


Komla Kpogli

Dizem-nos agora que o terrorismo ameaça a África e que em nome da luta contra o mesmo trava-se atualmente uma "guerra humanitária" no Mali. Examinemos o que é realmente o terrorismo sob os trópicos. 

Após quatro séculos de razias negreiras transatlânticas e árabe-muçulmanas e mais de um século de colonização, as populações africanas entraram em luta pela sua libertação. Mas estas lutas foram curto-circuitadas e os seus condutores logo assassinados e substituídos por fantoches sanguinários cuja única missão é confirmar a manutenção do continente na órbita daqueles que investiram para privá-lo de todos os seus recursos – a começar pelos recursos humanos que, depois de terem servido nos campos de algodão, nas minas, nos estaleiros de obras longe da África, devem continuar a trabalhar para o seu bem-estar agora no próprio continente. Sob o controle de vigilantes vestidos com terno e gravata, tal como o mestre. 

Infelizes os povos governados por escravos selecionados e libertos para as necessidades da causa pelos mestres que os vestem à sua imagem, criando nestes "vigilantes" à ilusão de que se tornaram seus iguais. O poder do terror que o mestre atribuiu a estes contramestres revela-se tão destruidor que certos africanos não vacilam em lamentar abertamente a substituição do colono de olhos azuis por aqueles que, pela cor da pele, pareciam serem seus irmãos. Juventude remetida ao exílio pelo Mediterrâneo onde, se não for abatida pelos tiros dos guarda-fronteiras do Frontex , é devorada por tubarões, predadores, avidez, desprezo para com as populações, violência incessante, destruição metódica de toda ideia voltada para o endógeno... eis alguns dos métodos de governo dos sátrapas.
 
Aqui está um breve resumo do terrorismo de alguns dentre eles. O leitor nos desculpará não termos mencionado todos. É por falta de espaço e nenhuma outra razão. Assim, o leitor é convidado a completar a lista, mesmo a enumerar os crimes que não puderam ser mencionados aqui.
 
1. Gnassingbé 1º + Gnassingbé 2º: 50 anos no poder no Togo, pelo menos 50 mil mortos diretos por violências militares-policiais. Assassinato de Sylvanuys Olympio e a seguir o retorno do Togo ao regaço da França, pelo menos 100 mil togoleses mortos de diversas maneiras (crimes econômicos, manutenção do Franco CFS, cooperação suicida, ausência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental coletiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.
 
2. Bongo 1º + Bongo 2º: 46 anos no poder no Gabão, pelo menos 20 mil mortos diretos, pelo menos um milhão de africanos no Gabão mortos de diversos modos (financiamento de partidos políticos na França, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, ausência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental coletiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.
 
3. Paul Mvondo Biya : no poder nos Camarões há 31 anos, no mínimo 40 mil mortos diretos, pelo menos um milhão de africanos do território dos Camarões mortos de diversas maneiras (crimes econômicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental coletiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.
 
4. Blaise Compaoré: Assassino de Thomas Sankara , de Norbert Zongo e seus companheiros, no poder há 26 anos, pelo menos 15 mil mortos diretos, no mínimo um milhão de africanos do Burkina Faso mortos de diversas maneiras (crimes econômicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental coletiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.
 
5. Denis Sassou Nguesso (República do Congo): criminoso reincidente que totaliza 29 anos no poder, pelo menos 100 mil mortos diretos por violências militares e policiais, saqueadores profissionais de fundos públicos com a sua família e clientes, pelo menos um milhão de africanos mortos de diversas maneiras (crimes econômicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental coletiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.
 
6. Omar Guelleh: no poder no Djibuti há 14 anos, mesmos crimes que os terroristas antecedentes.
 
7. Idriss Deby: no poder no Tchad há 23 anos, mesmos crimes que os antecedentes.
 
8. Alassane Dramane Ouattara (Costa do Marfim): no poder há um ano, criminoso com o FMI onde dirigiu diretamente os Planos de Ajustamento Estruturais. Chegou à presidência transportado nos carros de combate e bombardeio franceses, acompanhados de terroristas dirigidos por Guillaume Soro há 10 anos, pelo menos 30 mil mortos diretos, no mínimo 50 milhões de africanos mortos via FMI e Banco Mundial a quem Ouattara serviu + crimes econômicos, manutenção do Franco CFS, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental coletiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.
 
Etc, etc. Todos estes terroristas se beneficiam do apoio logístico, intelectual e midiático da França, bem como de outros "Amigos da África" que não hesitam em combater diretamente nas suas costas contra os africanos que atualmente "salvam" no Mali do terrorismo que corta mãos e pés. Quem libertará os africanos dos terroristas?


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A inteligência da elite social brasileira


Por Henrique Abel


Um dos preconceitos mais firmemente bem estabelecidos no Brasil é aquele que afirma que a culpa de todos os problemas do país decorre da “ignorância do povo”. A elite social da população brasileira, formada pelas classes A e B, em linhas gerais, está profundamente convencida de que o seu status de elite social lhe concede – como um bônus – também o título de “elite intelectual” do país.

Dentro desse raciocínio, a elite brasileira “chegou lá” não apenas economicamente, mas também no que diz respeito às esferas intelectuais e morais – talvez até espirituais. O país só não vai pra frente, portanto, por causa dessa massa de ignóbeis das classes inferiores. Embora essa ideia preconcebida seja confortável para o ego dos que a sustentam, os fatos insistem em negar a tese do “povo ignorante versus elite inteligente”.

O motivo é simples de entender: em nenhum lugar do mundo, a figura genericamente considerada do “povo” se destaca como iluminada ou genial. Por definição, uma autêntica elite intelectual de um país se destaca, precisamente, por seu contraste com a mediocridade (aí entendida como “relativa ao que é mediano”). Ou seja, não é “o povo” que tem obrigações intelectuais para com a elite social, e sim, justamente o contrário: é preferencialmente entre a elite social e econômica que se espera que surja, como consequência das melhores condições de vida desfrutadas, uma elite intelectual digna do nome.

Analfabetos funcionais

Uma elite social que, intelectualmente, faça jus ao espaço que ocupa na sociedade, não apenas cumpre com o seu papel social de dar algum retorno ao meio que lhe deu as condições para uma vida melhor como, ainda, cumpre o seu papel de servir como exemplo – um exemplo do tipo “estude você também”, e não um exemplo do tipo “lute para poder comprar um automóvel tão caro quanto o meu”.

Tendo isso em mente, torna-se fácil perceber que o problema do Brasil não é que o nosso povo seja “mais ignorante”, pela média, do que a população dos Estados Unidos ou das maiores economias europeias. O problema, isso sim, é que o nosso país ostenta aquela que é talvez a elite social mais ignorante, presunçosa e intelectualmente preguiçosa do mundo, que repele qualquer espécie de intelectualidade autêntica precisamente porque acredita que seu status social lhe confere, automaticamente, o decorrente status de membro da elite intelectual pátria, como se isso fosse uma espécie de título aristocrático.

Nenhum país do mundo tem um povo cujo cidadão médio é extremamente culto e devorador de livros. O problema se dá quando um país tem uma elite social que é extremamente inculta e lê/escreve num nível digno de analfabetismo funcional. Pesquisas recentemente divulgadas dão por conta que apenas 25% dos brasileiros são plenamente alfabetizados, e que o número de analfabetos funcionais entre estudantes universitários é de 38%. A elite social brasileira possivelmente acredita que a totalidade desses 75% de deficientes intelectuais encontra-se abrangida pelas classes C, D e E.

Sem diferença

Será mesmo? Outra pesquisa recentemente divulgada noticiava que o brasileiro lê uma média de cerca de quatro livros por ano. Enquanto os integrantes da Classe C afirmavam ter lido 1,79 livro no último ano, os integrantes da Classe A disseram ter lido 3,6. O número é maior, como naturalmente seria de se esperar, mas a diferença é muita pequena dado o abismo de condições econômicas entre uma classe e outra. Qual é o dado grave que se constata aí? Será que o problema real da formação intelectual do nosso país está no fato de que o cidadão médio lê apenas dois livros por ano? Ou está no fato de que a autodenominada elite intelectual do país lê apenas quatro livros por ano? Vou encerrar o argumento ficando apenas no dado quantitativo, sem adentrar a provocação qualitativa de questionar se, entre esses quatro livros anuais, consta alguma coisa que não sejam os últimos e rasos best-sellers de vitrine, a literatura infanto-juvenil e os livros de dieta e autoajuda.

O que importa é ter a consciência de que o descalabro intelectual brasileiro não reside no fato de que o típico cidadão médio demonstra desinteresse pela vida intelectual e gosta mais de assistir televisão do que de ler livros. Ora, este é o retrato do cidadão médio de qualquer país do mundo, inclusive das economias mais desenvolvidas.

O que é digno de causar espanto é, por exemplo, ver Merval Pereira sendo eleito um imortal da Academia Brasileira de Letras em virtude do “incrível” mérito literário de ter reunido, na forma de livro, uma série de artigos jornalísticos de opinião, escritos por ele ao longo dos anos. Ou seja: dependendo dos círculos sociais que você frequenta, hoje é possível ingressar na Academia Brasileira de Letras meramente escrevendo colunas de opinião em jornais. Podemos sobreviver ao cidadão médio que lê dois livros por ano, mas não estou convencido de que podemos sobreviver a uma suposta elite intelectual que não vê diferença literária entre Moacyr Scliar e Merval Pereira.

“Vão ter que me engolir”

Apenas para referir mais um exemplo (entre tantos) das invejáveis capacidades intelectuais da elite social brasileira: na semana passada, o jornal Folha de S.Paulo noticiou que uma celebridade global havia perdido a compostura no Twitter após sofrer algumas críticas em virtude de um comentário que havia feito na rede social. A vedete, longe de ser uma estrelinha de quinta categoria, é casada com um dos diretores da toda-poderosa Rede Globo.

Bem, imagina-se que uma pessoa tão gloriosamente assentada no topo da cadeia alimentar brasileira certamente daria um excelente exemplo de boa formação intelectual ao se manifestar em público por escrito, não é mesmo? Pois bem, vamos dar uma lida nas sua singelas postagens, conforme referidas na reportagem mencionada:

“Almas penadas, consumidas pela a inveja, o ódio e a maledicência, que se escondem atrás de pseudônimos para destilarem seus venenos. Morram!”
“Só mais uma coisinha! Vão ter que me engolir, também f...-se, vocês são minurias [sic] e minuria [sic] não conta.”

Em quem se espelhar?

Não vou nem entrar no mérito da completa falta de educação dessa pessoa, que parece menos uma rica atriz global do que um valentão de boteco. Vou me ater apenas a dois detalhes. Primeiro: a intelectual do horário nobre da Globo escreve “minoria” com “u”, atestando para além de qualquer dúvida razoável que se encontra fora do grupo dos 25% dos brasileiros plenamente alfabetizados (ela comete o erro duas vezes, descartando qualquer possibilidade de desculpa do tipo “foi erro de digitação”).


Segundo: ela acha que “minorias não contam”, demonstrando, portanto, que ignora completamente as noções mais elementares do que vem a ser um Estado democrático de Direito, ou mesmo o simples conceito de “democracia” na sua acepção contemporânea. Do ponto de vista da consciência de direitos políticos, sociais e de cidadania é, portanto, analfabeta dos pés à cabeça.

Com os ricos e famosos que temos no Brasil, em quem o mítico e achincalhado “homem-médio” poderia mesmo se espelhar?

Referências:





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[Henrique Abel é advogado e mestre em Direito Público]


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O dia em que o presidente da Islândia zombou de Davos



Entrevistado no Fórum Econômico Mundial, ele diz ao mundo dos banqueiros, oligarcas financeiros e mega-empresários: saímos da crise porque ignoramos receitas que ouvimos de vocês
Por Martin Zeis, no Resistir
O Presidente da Islândia, Olafur Ragnar Grimmson, foi entrevistado neste fim de semana (26-27/01/2013) no World Economic Forum, em Davos. Perguntaram-lhe porque a Islândia desfrutou uma recuperação tão forte após o seu completo colapso financeiro em 2008, ao passo que o resto do mundo ocidental luta com uma recuperação que não tem pernas para andar.
Grimsson deu uma resposta famosa ao repórter financeiro da MSM, declarando que a recuperação da Islândia se devia à seguinte razão primária:
“… Fomos suficientemente sábios para não seguir as tradicionais ortodoxias prevalecentes do mundo financeiro ocidental nos últimos 30 anos. Introduzimos controles de divisas, deixámos os bancos falirem, proporcionámos apoio aos pobres e não introduzimos medidas de austeridade como você está a ver aqui na Europa. …”
Ao ser perguntado se a política da Islândia de deixar os bancos falirem teria funcionado no resto da Europa, Grimsson respondeu:
“… Por que é que os bancos são considerados as igrejas sagradas da economia moderna? Por que é que bancos privados não são como companhias aéreas e de telecomunicação às quais é permitido irem à bancarrota se tiverem sido dirigidas de um modo irresponsável? A teoria de que você tem de salvar bancos é uma teoria em que você permite aos banqueiros desfrutaram em seu próprio proveito o seu êxito e deixa as pessoas comuns arcarem com os seus fracassos através de impostos e austeridade. O povo em democracias esclarecidas não vai aceitar isso no longo prazo. …”


Para saiber mais: