sábado, 29 de março de 2014

Copa do Mundo institui o novo estado de guerra

copa-estadodeguerra

Por Hamilton Octavio de Souza

O governo brasileiro pratica uma escalada de barbaridades para assegurar o lucro privado da FIFA e de seus patrocinadores. Advinha quem vai pagar a conta...



No futuro, quando uma Comissão da Verdade e da Justiça apurar todos os crimes praticados pelo governo brasileiro para impor ao país a realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014, nos moldes exigidos pela FIFA, as autoridades atuais terão de explicar por que ordenaram o despejo de tantas famílias de suas casas, desviaram dinheiro público para evento privado, espezinharam o direito de livre manifestação e colocaram as Forças Armadas em funções policiais – para intimidar os moradores de bairros, comunidades e favelas do Rio de Janeiro e de outras cidades do Brasil.

Os presidentes da República, os ministros da Justiça, Defesa e de Esportes, entre outros, e os comandantes militares serão chamados a esclarecer por que feriram os artigos 142 e 144 da Constituição, que tratam, respectivamente, das atribuições das Forças Armadas e da Segurança Pública, sendo que aquelas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem", enquanto que a segurança pública "é exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio", através da polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis e polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Desde quando os moradores das comunidades cariocas ou de outras cidades representaram uma ameaça à Pátria, aos poderes constitucionais, à lei e à ordem? Desde quando esses cidadãos e cidadãs foram considerados subversivos ou outra categoria de inimigos internos para serem patrulhados diretamente pelas Forças Armadas? Desde quando governos constituídos sob a denominação do Estado Democrático de Direito se valem de medidas previstas na antiga Lei de Segurança Nacional aprovada pela Ditadura Militar originada no golpe de 1964?

Os dirigentes da República precisam justificar por que criaram no país um verdadeiro Estado de Guerra contra todos os tipos de manifestações democráticas e contra as populações dos bairros mais carentes e desprovidos de serviços públicos. Afinal, por que utilizaram o aparato policial e militar, das três forças – Exército, Marinha e Aeronáutica –, para, de um lado, intimidar o povo, e, de outro, assegurar que uma elite econômica e um contingente de turistas possam desfrutar do campeonato de futebol sem o menor vestígio das mazelas que atormentam cotidianamente a maioria da população?

Muito provavelmente eles serão inquiridos pela futura Comissão da Verdade e da Justiça a dizer se os protestos populares relativos à Copa do Mundo teriam acontecido se o megaevento do capital tivesse ficado restrito ao âmbito exclusivo da iniciativa privada, se não tivesse carreado recursos públicos escassos para atividades prioritárias do Estado, como saúde, educação, moradia, transportes etc.

Certamente precisarão expor, em detalhes, por que vislumbraram utilizar a Copa de 2014 como trunfo político com fins eleitorais, explorando o sentimento popular para fazer uma exaltação ufanista de um sistema econômico que causa a desigualdade e a exclusão. Tal procedimento não reproduz a mesma lógica do governo Médici em relação à Copa de 1970, quando se procurou fundir a euforia esportiva com o regime ditatorial? Isso já não foi amplamente condenado pelo povo brasileiro junto com outras barbaridades e violências praticadas pela Ditadura?

Vale lembrar que as esquerdas brasileiras sempre se posicionaram de longa data contra a utilização do futebol, assim como de qualquer outro esporte, como instrumento de manipulação das pessoas para fins mercantis, eleitorais ou simplesmente como forma de alienação política e da cidadania. As esquerdas brasileiras criticaram duramente a Ditadura Argentina, em 1978, quando os militares usaram a Copa do Mundo para encobrir o genocídio de milhares de militantes da oposição ao regime. Há inúmeros registros sobre isso nos jornais alternativos da época e na produção acadêmica das principais universidades do país.

As autoridades não poderão escapar da responsabilidade por tudo aquilo que estão causando à nação hoje em função de um espetáculo patrocinado pelo capital. Os danos são evidentes, não apenas aos mais pobres, que foram preteridos nos recursos públicos e tratados como classes perigosas. Não apenas aos perseguidos de sempre, os jovens, negros e moradores das periferias, que levam porradas de todos os lados e são vigiados de perto, inclusive nos mais inocentes rolezinhos.

Mas o estrago se dá também na incipiente democracia brasileira, nos passos dados no processo civilizatório, nas mais diferentes relações da sociedade. Ao trazer as Forças Armadas para o centro do palco, o governo reativou na direita saudosa a retomada da velha lenga lenga de um governo dos militares com "ordem, progresso e muita segurança". Espalharam a desavença e a discórdia aos quatro cantos, pelas iniquidades escancaradas por todos os lados, nos rombos orçamentários dos estádios, nas isenções especiais de impostos para empresas vinculadas ao megaevento – tudo isso resultando em inquéritos policiais, processos jurídicos, protestos públicos e todos os tipos de desagrados e reparações.

A Copa da FIFA vai acontecer, mas será para o país também a Copa da Cizânia, do acirramento de todas as diferenças, o campeonato mor da desagregação. Alguém, algum dia, vai ter que pagar por isso. Vai ter que se desculpar publicamente porque chamou as Forças Armadas para atuarem contra o povo. Esporte sim, viva o futebol! Fazer os brasileiros engolirem a Copa da FIFA de qualquer maneira, não! Autoritarismo nunca mais.

Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.



Fonte: Diário Liberdade

quarta-feira, 26 de março de 2014

Paulo Lins: A democracia no Brasil só é boa para a classe média branca


Autor de Cidade de Deus e Desde que o Samba é Samba assume, sem medo, que a saída da ditadura não mudou a situação do negro, fala da inserção dos  afro-brasileiros na sociedade pela cultura e critica a polícia brasileira. “90% é corrupta, tudo bandido”
por Igor Carvalho da Revista Fórum
Paulo Lins correu o mundo com seu filho mais ilustre, o livro Cidade de Deus, de 1997. Por conta do filme homônimo, se tornou famoso internacionalmente, fazendo cumprir a profecia de João Moreira Salles, que via em sua obra um paradigma da cultura brasileira.
Com o passar do tempo, Lins reforçou sua preocupação com a sua ancestralidade africana. Recentemente, lançou Desde que o Samba é Samba, que congraça o encontro do samba e da umbanda na formação da identidade cultural do brasileiro. O escritor, que se tornou referência no debate sobre questões raciais e sociais no Brasil, tem um riso fácil e sempre disposto, que só encontra adversário à altura quando o assunto é violência policial e o genocídio da população negra e pobre no Brasil.
“A democracia não foi boa para o negro, vivemos em um Estado policial, é guerra o tempo todo. Você falar que continuamos em uma ditadura é politicamente incorreto, mas é verdade, a democracia no Brasil só é boa para a classe média branca”, afirma o escritor, que acaba de lançar Era uma vez…Eu.
Fórum – Em Desde que o samba é samba, você fala da inserção do negro na sociedade por meio da arte e da religião. Estes ainda são os meios de o negro ascender socialmente, junto com o futebol?

Paulo Lins – O futebol é problema seu [risos]. O futebol é esporte, não é a cultura de um povo. A cultura de um povo é você ter as histórias e as crenças que seu bisavô tinha. A arte é a mãe da sociedade, de qualquer sociedade, e quem fala isso é o Octávio Paz, não sou eu. As duas coisas insubstituíveis na vida são a arte e os deuses. Se a gente resolver jogar uma bomba naquela igreja católica ali, vamos arrumar uma confusão dos diabos. Mas, por outro lado, o negro ainda é atacado por sua religião, no Brasil. E a religião é algo que nos fortalece, por essa ligação com os nossos antepassados.
Vamos voltar lá atrás, em uma época que os negros eram arrancados de casa e trazidos para o Brasil, na condição de escravos. Estávamos em guerra, a escravidão foi uma guerra. Nesse cenário, se o cara consegue minar sua cultura, ele domina você. Os franceses conseguiram isso no Caribe. Em Guadalupe, os negros ficaram sem seus deuses, não tem Oxalá, não tem batuque, não tem a cultura africana e estão dominados, são discriminados e considerados cidadãos de segunda classe. O Paz fala que tudo é substituível, menos a arte, a casa substituiu a oca, o carro substituiu a carroça, a metralhadora substituiu o tacape, mas a Ilíadanão substituiu a Odisseia, o Grande Sertão Veredas não substituiu Macunaíma, assim como Deus não substituiu Oxalá e nem Ogum a São Jorge. A cultura como sentimento de um povo, é disso que eu quero falar, um povo que tem a cumplicidade de acreditar no mesmo Deus.
Fórum – O samba é, então, o elemento que colabora para a afirmação da identidade do negro?
Lins – O samba, o maracatu, a capoeira e outros elementos que conseguimos inserir aqui, que queriam nos tirar, mas resistimos. As escolas de samba são a maior festa e o que traz mais turistas, a umbanda está no mundo todo. Olha o samba, que é a festa de uma nação, de um povo, não tem samba na Argentina, tem tangos lindos, mas samba é daqui, isso é o nosso sentimento. O samba de toda uma cultura de uma raça… Ah, hoje não se fala mais raça, ficou fora de uso, vai entender.
Olha o poder do samba. A política sempre negociou com os líderes, ela tem que negociar com os líderes. Quando o negro começa a votar, os políticos descobrem que precisam negociar com os líderes negros, que são sambistas e mães-de-santo. A força política do voto negro se dá por meio do samba e da religião. Tem uma lei de um deputado chamado Nicanor Nascimento, em 1935, acho, permitindo que o Candomblé funcione por conta da força política das mães-de-santo.
Fórum – Por que tanta gente se incomodou quando você falou da homossexualidade do Ismael Silva, no livro
Lins – Porque são homofóbicos.
Fórum – Você falou da perseguição ao samba. É possível encontrar similaridade com o que é feito, hoje, com o funk e o rap?
 Lins – A discriminação é a mesma. O Brasil é um país racista e a aglomeração de negros nunca é bem vinda por aqui. Veja bem, a favela é o resultado do encontro desses negros, favelados, tem os bandidos, ali estão as pessoas mais sacrificadas da sociedade e o resultado não poderia ser diferente do que uma música que agride.
Fórum – Você, Mano Brown, Sérgio Vaz, Ferréz, serão sempre procurados para opinar sobre assuntos que vão para além da arte que produzem, como violência, racismo, polícia… Isso o incomoda?
 Lins – Não me incomoda. Tenho que falar disso, quero falar disso, se nós não falarmos, quem vai falar? O Ferréz tem problema com isso, não gosta de falar somente desse assunto. Aliás, pode me perguntar, está demorando, eu quero responder [risos].
Fórum – Pergunto, então. Onde está a luta dos movimentos negros, hoje?
Lins – Vivemos um tempo em que há uma inserção social do negro no teatro e no cinema, sem falar necessariamente de violência. Nossas causas estão nos livros, na internet, nos jornais, então isso mostra que os negros seguem lutando. Vivemos, após a democracia, um compasso de espera, porque a democracia seria uma panaceia, um remédio para todos os males. Quando o [José] Sarney entrou [em 1985, assumiu a presidência da República], a esquerda e os movimentos tiveram que parar e se pensar. Essa democracia teria que nos trazer uma vida social e política equilibrada, mas não deu certo, não mudou nada. Mudou a liberdade de expressão, isso sim. Mas isso é bom pra classe média, porque pra gente continua a mesma coisa, os negros e pobres passando fome e morrendo na mão da polícia, percebe que é a mesma coisa? Mudou o que a democracia? ‘Ah, vivemos em um Estado livre’. Que nada, só quem pode qualquer coisa nesse país é rico, é branco. A democracia não foi boa para o negro, vivemos em um Estado policial, é guerra o tempo todo. Você falar que continuamos em uma ditadura é politicamente incorreto, mas é verdade, a democracia no Brasil só é boa para a classe média branca.
Fórum  Você está falando do óbvio descaso com a população pobre e negra no Brasil. Qual sua opinião sobre programas sociais como o Bolsa Família ou o Mais Médicos? 
Lins  Existe uma questão de erradicar a fome. O Lula falou isso. Houve avanços significativos na gestão dele, é inegável, muita gente subiu de classe social e é isso que a esquerda quer. Acho que seria importante termos algo mais unificado democrata, um socialismo, não esse capitalismo que está aí. Vivemos o tempo dessa economia virtual, com fortunas concentradas em bancos. Ninguém está feliz, você pode ter momentos de felicidade, mas a sociedade está triste, está com medo, está pressionada. É manifestação, porrada, a imprensa brigando, grupos querendo ganhar mais, políticos corruptos, vivemos um modelo que não deu certo.
Fórum – E a polícia…
Lins  Aí é guerra. Vivemos em guerra o tempo todo, cara. Nos anos 70, ainda na ditadura, teve a Guerra das Malvinas, o número de mortos nem se compara com os nossos. Morre mais gente nas mãos da polícia do que em guerras pelo mundo. É um genocídio, ninguém mata mais, no Brasil, do que a polícia. O Estado é nosso maior assassino.
Fórum  Estava lendo uma declaração sua, de 2009…
Lins  Isso é uma merda, né? [risos] Tu fala uma coisa, lá em 2009, nem lembra, em outro contexto e é cobrado por ela. Vai dar tudo certo, se eu falei, é isso…
Fórum  Bom, você disse que a violência policial existe, mas que não acredita em um poder paralelo, porque ele está dentro do poder. É isso?
Paulo Lins  Isso mesmo. Eu tinha razão [risos]. Nunca existirá poder paralelo sem corrupção. 90% da polícia é corrupta, tudo bandido. Aí vão me dizer que tem policial honesto… Tem nada, se não são, pecam por serem corporativistas. É muita propina, para tudo, cara. Ninguém fala em tráfico de armas nesse país, como uma arma produzida na Europa entra aqui? Como nossas armas saem para a América do Sul? Então, o crime se alimenta da polícia.
Fórum  Manifestações. O que você pensa sobre os protestos no Brasil?
Lins  Tenho que citar o Mano Brown, tem uma música dele, que não lembro qual agora, em que ele fala que ninguém está feliz. O povo está na rua porque não está feliz. A felicidade é muito complexa, né? Vivemos numa sociedade desequilibrada que está tentando pedir as coisas mais necessárias, como comer bem, ter saúde, educação, é básico. Mas tinha gente pedindo pena de morte e redução da maioridade penal, cara. Não concordo, mas acho que faz parte desse desequilíbrio, não posso questionar uma pessoa que perdeu um parente, um amigo num assalto a mão armada. É muito doído, cara. Eu vivi a dor do [Marcelo] Yuka,  sei o que a família dele passou, e isso é fruto dessa sociedade infeliz. Você não está na Alemanha, onde tem problemas, mas a seguridade social existe.
Fórum  O que é a “neo-favela” de que você fala?
Lins - São, de certa forma, os conjuntos habitacionais que começaram a ser construídos pelos militares. A Cidade de Deus, no Rio, em São Paulo, a Cohab e o Cingapura. É um outro tipo de isolamento, que não funciona, aqueles apartamentos mínimos. Sou a favor de que se urbanize, que se leve asfalto, mas tem que ter estrutura, não qualquer coisa, de qualquer jeito. São esses isolamentos que chamo de “neo-favela.”
Fórum  E a UPP?
Lins  UPP é coisa de playboyzinho, né cara? [risos]. É de uma idiotice sem limites. A UPP, se vermos a ideia original, era interessante, mas como foi aplicada é uma imbecilidade. Já vi o [José Maria] Beltrame [secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro] falando umas baboseiras, que a polícia não pode só ocupar, que tem que levar outros benefícios, mas não tem nada disso. Falta saneamento básico, escola de qualidade, bibliotecas, serviço médico competente, creches. Falta, também, treinamento decente, que humanize o policial, não existe isso. Tô fora do Rio de Janeiro e agradeço, não pelo governo de São Paulo, o governador aqui é um imbecil também. O governador aqui é um imbecil também, pois no dia em que um garoto negro da favela matou outro garoto branco de classe média aqui em Perdizes ele foi na televisão no mesmo dia e disse que isso era por causa da impunidade, que tinha que aumentar a idade penal. Todo mundo fica triste quando ocorre um crime desse, a sociedade toda sofre, pois todo mundo tem família e amigos e, falando isso, ele tira toda responsabilidade de sua gestão e todas que foram do PSDB aqui em São Paulo. O garoto que atirou nasceu no governo deles, é fruto dessas administrações capengas de seu partido no estado. A cidade está toda comovida e ele me vem com essa, é claro que no calor da tristeza as pessoas pensam em até fazer justiça com as próprias mãos. Aumentar a idade penal não vai suprir as deficiências do PSDB com as causas sociais.Sei lá o que acontece. Poxa, se eu me candidato a um cargo público, vou lá para ajudar, esses caras não estão preocupados em resolver nada, ajudar ninguém, só querem poder e dinheiro.
Fórum – Você não vê exceções?
Lins - Nada. Quem governa hoje é marqueteiro, ele quem diz como você vai se comportar, como ganhar mais pontos na pesquisa. Não temos mais estadistas, acabou a era dos estadistas no Brasil, são todos submissos às táticas do marketing.
Fórum  Como vê as gestões de Lula e FHC?
Lins  Era, no momento que ganharam, o melhor que tínhamos. Já pensou, ao invés de Fernando Henrique Cardos, o Antônio Carlos Magalhães? E se ao invés do Lula fosse o Alckmin? Nossa. E olha, no fim, PT e PSDB se parecem muito. Ficam com esse poder fracassado, de fazer acordos absurdos para compor maioria, que está condenado.
Fórum  Vamos falar de Cidade de Deus?
Lins  Vamos. Agora.
Fórum – Quando terminou e leu o livro, você em algum momento achou que poderia ter a dimensão que teve?
Lins – Entreguei o livro na casa de uma editora, que tem uma agência literária, em Ipanema, no Rio. Estava de frente para a praia e saí, mas não sabia para onde ia. Fui parar na casa de uma amiga e parecia que tinha tido um filho, uma moleza absurda, cara. Acreditava, naquela época, que era um livro de consulta, voltado para a academia, que poderia ser usado em História, Antropologia e Sociologia.
Um tempinho depois, o João Moreira Salles foi em casa para gravar minha participação no documentário Notícias de uma guerra particular, e ele olhou para mim e disse: “Cara, você vai ser conhecido no mundo inteiro por causa desse livro”. Eu dei risada. “Esse cara usou droga pesada”, eu pensava [risos]. Roberto Schwarz [crítico literário]  já tinha me falado, mas eu pensei só no mundo acadêmico. Bom, um dia minha editora me liga e disse que o livro ia sair com 6 mil exemplares, mas eram 3, antes. Daí, pulou para 10 mil, 50 mil e perdi o controle.
No carnaval de 1997, Caetano Veloso, Cacá Diegues, Zezé Motta e Hermano Vianna vieram falar comigo no sambódromo, durante as filmagens de “Orfeu da Conceição”, filme de Cacá, que eu ajudei no roteiro, aí eu tremi, fiquei assustado. Comecei a achar que ficaria muito exposto, minha família também não queria isso. Pouco tempo depois, toca meu telefone, era o Eduardo Coutinho. “Paulo, quero ser seu amigo”. Aí eu entendi o que estava acontecendo.
Fórum  Quanto tempo você demorou para escrever?
Lins  Foram dez anos envolvido com o livro. Parei muitas vezes. Todo fim de relacionamento eu parava, arrumava um novo amor e continuava, nasce filho eu paro, enfim, fiquei dez anos.
Fórum  A migração para o cinema se deu em que momento?
Lins  Não foi o Fernando Meirelles quem me procurou, foi o Heitor Dália. Lembro que ele foi em casa no dia em que o Tim Maia morreu, e eu num puta baixa astral, indo para um churrasco na casa de um amigo. Bom, aí vendi, mas não estava muito empolgado com esse negócio de cinema nacional, já estávamos na retomada, mas não me empolgava.
Fórum  Você estava em Cannes, quando o filme passou lá?
Lins  Não, fui para o Oscar, me arrumaram um convite.
Fórum  E aí?
Paulo Lins  Ah, aquelas atrizes lindas, bebida de graça, estava bom, né? Mas eu não peguei ninguém, hein! [risos]

terça-feira, 25 de março de 2014

Sociedade do Espetáculo ou o verão dos justiceiros

Foto retirada de bancariosal.org.br

Por Luciane Soares da Silva
Um dos principais livros da sociologia do século XX, foi escrito por um canadense, que esteve no Brasil e trabalhou boa parte da vida nos Estados Unidos. O livro tem pouco mais de cem páginas e seu autor, Erving Goffman, desenvolveu uma teoria sofisticada para a situação mais simples da vida social: o encontro cara-a-cara. Ou como podemos ler em ‘O Estigma’, o encontro “face-to-face”. Estou em um daqueles espaços de ninguém, em um aeroporto de São Paulo, durante o carnaval. Tentando usar o tempo para eleger o fato que sintetiza este verão. Acabo de chegar a uma conclusão: este foi o “verão dos justiceiros”.
Pelos idos de 1760, em pequenas cidades europeias, era parte do convívio social a exposição do parricida em praça pública, a forca, o esfolamento e outras formas de punições corporais. Após seu julgamento, dentro de um ritual que deveria alertar os povos sobre as consequências da vida criminosa ou mesmo do ato isolado, passional, a exposição era parte do grand finale. Um espetáculo substituído ao longo dos séculos pela pena de prisão.
A cada dia que acordo, tento escrever o texto sobre a ação dos justiceiros. E a cada semana vejo multiplicarem-se ações semelhantes em lugares diferentes do país. E modalidades diferentes do mesmo princípio de justiça com as próprias mãos. Tenho me perguntando, as razões pelas quais não consegui nestas semanas todas, escrever uma única linha sobre um jovem negro amarrado a um poste na zonal sul carioca.
Lembro da chegada dos policiais à cidade no filme Mississipi em Chamas de Alan Parker. Nenhum negro ousava contar o que acontecia por ali. Os assassinatos, a violência cotidiana. Por outro lado, todos os moradores e mesmo as autoridades acreditavam na separação entre brancos e negros.
Mas não vivemos esta separação no Brasil. Vivemos os cruzamentos, apadrinhamentos e depois de Lombroso, e passado o século XIX, vivemos sob mitos fundadores de uma raça mestiça. Não criamos igrejas separadas, duplicamos os santos. Nossos santos são bifrontes. Não vivemos (nâo?) a chaga do ódio racial se compararmos nossas relações sociais com as vividas nos Estados Unidos da América e o regime do Apartheid na África do Sul. Como explicaremos então, o verão de 2014, e outros verões feitos de chacinas? Não dialogo aqui com os defensores de penas mais duras ou que aqueles que acreditam que a lei não funciona no Brasil. Estes precisam antes, observar os números do sistema prisional e sua escalada no Brasil e nos Estados Unidos.
Dialogo com aqueles que andando pelos aeroportos, rodoviárias, Universidades, shoppings, percebem o significado do olhar. Era disto, sobretudo que Goffman se ocupava em suas observações. Como os “normais” em sua forma de uso do espaço público exercem as formas de olhar. Se qualquer pessoa exercitasse o olhar, veria que neste momento, em Viracopos, dezenas de atendentes, faxineiros, serventes de banheiro, trabalham. Eles não nos olham.
Existe um constante desvio de olhar, uma fuga social intensificada pelo medo. Mas engana-se quem pensa que é o medo do crime, da violência ou da morte. É o medo do estabelecimento de relações menos desiguais, o medo da percepção do sofrimento alheio, uma espécie de escapismo coletivo.
Volto ao ritual público no bairro do Flamengo. As explicações dadas dão conta de parte do fenômeno. Mas nem o descaso nem o aumento de roubos é a grande novidade dos verões do Rio de Janeiro. O problema nas explicações que racionalizam a ação dos justiceiros é que deixam escapar o que está no inconsciente coletivo: a forma de justiça aplicada pelo grupo. Entre todas as formas de violência possíveis, por que amarrar um jovem sem roupa foi a forma empregada?
Revejo agora que era necessário esperar, antes de escrever. Após a leitura de textos publicados nos principais jornais e nos veículos de mídia independente, é surpreendente a aprovação da ação dos “justiceiros do Flamengo”. A publicação de uma reportagem com um dos integrantes do grupo, no dia 10 de fevereiro deste ano, no portal G1, não deixou dúvidas. Todos os 53 comentários foram favoráveis a ação. O termo mais utilizado foi “pivete”, o problema seria a falência da segurança pública e o governo do PT. Um ainda cita ter “saudades do Mão Branca” e outros pedem a ronda dos milicianos justiceiros em Niterói e Copacabana.
Não é apenas uma “imagem que relembra os tempos escravidão”, tampouco a ação isolada de jovens de classe média do bairro do Flamengo. É o fundamental encontro entre aqueles que classificados como “normais” na linguagem de Goffman, e os “pivetes”. Encontro fundamental desde os Miseráveis de Vitor Hugo e muito antes. Os pivetes do Flamengo sintetizam este sentimento bem representado nas rondas: o desejo de limpar o bairro.
O que há de novo então? Talvez a escala do espetáculo proposto. Intuitivamente ou não, eles poderiam imaginar os efeitos da imagem que proporcionaram às redes sociais. Não haveria manchete sem elas. A imagem ali exposta é o triunfo final da Sociedade do Espetáculo. Todos os articulistas descreveram a mesma cena, na mesma ordem.
A nudez, o material utilizado, a cor do jovem acorrentado. Até que o signo ficasse vazio e se transformasse em algo diferente: o corpo estava refém da sociedade que o estava expondo, martirizado então pela segunda vez. E os milicianos sabiam disto. Aí reside a potência de sua ação: mobilizar (como é possível perceber no apoio e solicitação da ação), uma parcela considerável da sociedade civil em torno do discurso do ódio. Que travestido de ódio a desordem, é ódio de classe, ódio racial. E o olhar sobre a cidade é central para pensar estas interações.
Caso alguém nunca tenha experimentado uma situação de discriminação pública, oferto alguns exemplos bastante comuns, todos com o mesmo objetivo de evitar relações sociais horizontais: o primeiro, sofrido quando se está em um ambiente no qual há hegemonia de raça, gênero ou classe, é o olhar da estranheza. A senhora da boa sociedade que incomodada com nordestinos em sua adega, demonstra toda sua agressividade servindo as mesas rapidamente, enquanto demora-se em outras com sorrisos e perguntas sobre o bem-estar dos clientes.
O olhar de famílias em uma loja de brinquedos quando uma criança negra busca o mesmo brinquedo que seu filho está utilizando. Estes são casos comuns, cotidianos e qualquer verbalização sobre eles é vista como uma forma de “síndrome de perseguição dos subalternos”, ou seja, o problema estaria em quem sofre a ação e não no olhar de quem demonstra desconforto.
A segunda forma, tão comum e ainda mais invasiva é o olhar da suspeita. Longe de ser monopólio dos policiais, é empregada por porteiros, empregadores, vendedores de loja e seguranças privados. São olhares que acompanham seu alvo de forma fixa, prestes a entrar em ação ao mínimo ato que comprove as razões da desconfiança.
O terceiro tipo de olhar é menos comum: é o olhar de espanto diante da diferença, da revelação de um status não esperado: o médico mestiço em um hospital caro de São Paulo, a professora que entra em aula exibindo cabelos crespos e pele negra na faculdade de Medicina em Minas Gerais, a dentista nordestina que chega em um carro importado em um prédio no Moinhos de Vento. Este olhar é semelhante ao ato de “desnudar” o outro. Se por alguns segundos pode parecer menos agressivo, ele revela a mesma sensação de desconforto dos anteriores.
Existe ainda um tipo avesso, mas talvez o complemento perfeito dos exemplos anteriores. Um dos momentos mais tensos do filme “Linha de Passe” de Walter Salles, é o momento em que o moto boy comete um roubo de carro. Enquanto o proprietário passa todos os seus pertences, ele berra enfurecido e ao mesmo tempo, desesperado “Você tá me vendo playboy? Olha para mim, você tá me vendo?”
E em uma ficção urbana, um menino, um pivete, encara a multidão e grita:
Você está me vendo? Já nem importa mais a verdade, a liberdade não está nem perto dos homens, é uma das mais temíveis batalhas, existem muitas formas de escravidão, mas não há liberdade relativa, a liberdade é intransitiva, uma vez que rompemos grilhões, não se volta mais ao ponto anterior, uma vez presumida como experiência, não se pode voltar a ser escravo. Nem das próprias paixões, nem de outros homens.

segunda-feira, 24 de março de 2014

CRIOLO, CONAR E O COMERCIAL DE CERVEJA

arte: revista o Viés


Desigualdade faz tristeza
Na montanha dos sete abutres
Alguém enfeita sua mesa
Um governo que quer acabar com o crack
Mas não tem moral para vetar
Comercial de cerveja
“Duas de Cinco” | Criolo
No novo single de Criolo, três versos alfinetam um tema que expõe as vísceras da relação entre mercado publicitário e Estado no país: a regulação da publicidade de cerveja. Por trás dos trinta segundos do comercial no horário nobre, em meio aos outdoors das louras geladas que estampam as avenidas em época de carnaval, há uma problemática que agência nenhuma deseja anunciar.
Somos um país que bebe aos borbotões. O Brasil assume o posto de quarto maior consumidor de cerveja no mundo. Além disso, o consumo per capita da bebida cresceu entre os anos 1985 e 2006, estabilizando nos últimos anos. O que aumenta, hoje em dia, é o número de bebedores nocivos, isto é, aqueles que não conseguem beber socialmente. A questão se acirra quando o foco é o jovem: apesar de ser proibida a venda de bebidas alcoólicas por menores de 18 anos, o I Levantamento nacional sobre consumo de álcool da população brasileira mostra que 35% dos adolescentes menores de idade consomem algum tipo de bebida ao menos uma vez ao ano. E não se trata apenas de beber, mas de abusar da dose: 40% dos jovens de 18 a 24 anos beberam em binge (termo técnico para exagero no consumo de álcool) ao menos uma vez no último ano. A cerveja ou chopp são a escolha dos jovens em 52% dos casos.
A publicidade e o consumo
Aos olhos do mercado publicitário, somos bons consumidores. Contudo, é de conhecimento comum que o consumo excessivo e precoce de bebidas alcoólicas é questão de saúde pública no país. Os números já não espantam: 1/5 dos acidentes de trânsito e metade das agressões registradas via SUS são motivadas pela ingestão de algum tipo de bebida.
Então a publicidade teria incidência sobre o consumo de bebidas no país? O tema é controverso. Alguns psiquiatras afirmam que sim, enquanto os publicitários afastam de si essa responsabilidade. Não é a publicidade que enche o copo dos brasileiros, é certo. Adotar essa concepção seria retroceder em anos no conhecimento que se tem sobre a relação entre publicidade e sociedade. Contudo, descambar para o extremo oposto e eximir os anúncios de quaisquer responsabilidades, seria dar entrada franca ao discurso “já que a publicidade é inofensiva, não há necessidade alguma de regulá-la”, quando há.
A publicidade possui um papel social do qual não pode se furtar: é ela a responsável pelo enquadramento cultural e simbólico que torna público o significado atribuído ao mundo da produção em um processo de socialização para o consumo. Ou seja, os anúncios conectam produtos a nossas experiências sociais compartilhadas, dando sentido a aquilo que consumimos. Sem a publicidade, a cerveja seria apenas um líquido espumoso de coloração amarelada, dotado de teor alcoólico. Nos anúncios, esse produto ganha dimensão simbólica: se transforma em um meio de socialização, em um potencializador do desempenho sexual, em uma forma de afirmação social. A legislação é imprescindível para conter os excessos que possam vir a ocorrer com essas associações.
A usual associação da cerveja com o corpo feminino.
A mulher torna-se um objeto sexual para consumo do homem
(que não pode ser forte, nem fraca, mas no ponto.)
A única lei a normatizar a publicidade de bebidas em solo brasileiro é a 9.294, datada de 15 de julho de 1996. E em seus termos, a cerveja não é uma bebida alcoólica. Isso mesmo. Para nossa lei, cerveja é considerada água. Inofensiva, pode ter sua publicidade veiculada em quaisquer horários, do desenho infantil ao jornal da noite. Pode patrocinar eventos esportivos e carnavais, eleger artistas e atletas para estampar seus comerciais. Segundo a regulamentação, alcoólicas são apenas as bebidas com concentração acima de 13º Gay-Lussac, como uísque e vodca. Para esses produtos, a lei é taxativa: comerciais, só se veiculados entre 21h e 06h. E nada de associar o produto a eventos esportivos, à condução de veículos ou ao desempenho sexual.
Para dar cabo a essa situação, em 2011 foi proposto oProjeto de Lei 703/2011, que realiza uma simples alteração na lei anterior: colocar a cerveja, finalmente, no rol das bebidas com álcool em sua composição. Apesar da obviedade da alteração, o projeto tem sido alvo de pesado lobby das empresas de cerveja e do mercado publicitário, a ponto de não ter conseguido, passados três anos, sair do papel. Isso se torna mais compreensível ao observar os números: duas das principais cervejarias do país estão entre as 20 maiores anunciantes do último ano: AMBEV, detentora de 17 marcas, quarta maior anunciante, e Petrópolis, com seis marcas, na 17ª posição. As cervejarias sustentam o mercado publicitário, que é contrário a qualquer mudança na legislação.
Confie em quem entende, confie no CONAR?
Como alternativa, o mercado apresenta o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Criado na década de 70, o órgão nasceu “contra a censura na publicidade” (segundo consta em seu site), no momento em que o governo estudava formas públicas de regulação dos anúncios no país. O CONAR atende a denúncias de consumidores, anunciantes, autoridades, associados ou de membros da diretoria e declara ter autonomia para fiscalizar, julgar e deliberar casos com base em seu Código. Se a denúncia for aceita, o órgão pode recomendar a suspensão da exibição do anúncio, sugerir alterações ou advertir anunciantes e agências.
Dessa forma, o CONAR assume o papel de regular a publicidade de cerveja sem intervenção governamental. Contra essa possibilidade, retoma o malfadado discurso da “liberdade de expressão comercial”, como se a regulação de anúncios pelo Estado remontasse aos porões da ditadura.
A autorregulamentação da publicidade defendida pelo órgão é, contudo, contestável. Afinal, a liberdade de expressão da publicidade é limitada na medida em que atende a interesses comerciais. Quando duas das maiores cervejarias figuram entre os 20 principais anunciantes do país e os comerciais são regulados por aqueles que fazem da publicidade seu ganha-pão, é necessário cautela.
Exemplo da ineficiência do CONAR é a demora de meses, em 2011, para retirar do ar o anúncio sexista e racista da marca Devassa (imagem acima). Da mesma marca, é o comercial considerado inofensivo pelo órgão em 2013, que relacionava o consumo de cerveja à perda da virgindade. Sem mencionar os diversos anúncios com conotação sexual, ou aqueles que retratam jovens abaixo de 25 anos veiculados diariamente nos meios de comunicação, infringindo os princípios do Código defendido pelo próprio órgão.
A sociedade não faz vistas grossas à inoperância do CONAR. Em 2012, setores do movimento feminista realizaram a Marcha Nacional Contra a Mídia Machista, especialmente direcionada à publicidade de cerveja.  No último ano, 46% da população abordada por pesquisa da Fundação Perseu Abramo declarou-se favorável ao controle social da publicidade de TV, enquanto 30% disse acreditar na regulamentação vigente.
Apesar de todos os apelos, o comercial de cerveja segue intocável à pressão social. Ou pior, só ao alcance do CONAR que, convenhamos, pouco faz para alterar a situação. Enquanto isso, a Globo anuncia a AMBEV como patrocinadora da Copa do Mundo de 2014. E o CONAR satiriza as reclamações dos consumidores, emcampanha institucional lançada recentemente. A chamada “Confie em quem entende, confie no CONAR”, é um apelo para que a sociedade dê crédito à atuação do órgão. Moral que, diria Criolo, é impossível de dar. 
CRIOLO, CONAR E O COMERCIAL DE CERVEJA, pelo viés da colaboradora Laura Wottrich*
*Laura é publicitária e doutoranda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)


Fonte: Revista O Viés