“A gente não foca na polícia, a polícia é um tentáculo do sistema, o mais mal pago. Mas é armado e chega com autoridade, é um tentáculo perigoso” |
Confira a primeira parte da entrevista com o rapper Mano Brown, capa da edição 120 da revista Fórum
Por Glauco Faria, Igor Carvalho e Renato Rovai. Fotos de Guilherme Perez
“Eu sou o Brown mais velho, macaco velho. Estou menos óbvio, menos
personagem e mais natural. Comecei a tomar cuidado. Nunca fui
oportunista, vivo de música, não sou um político que faz música.” Essa é
uma das formas pelas quais o líder e vocalista do Racionais MC’s se
define hoje, 25 anos depois de o grupo de rap conseguir levar sua
mensagem não apenas às periferias de todo o Brasil, mas também a muitos
lugares e pessoas que não tinham intimidade com o ritmo.
A mensagem de Brown sempre foi forte e contundente, mas hoje o músico
prepara o lançamento de um álbum solo, no qual o soul e o romantismo
predominam. Isso não significa, nem de longe, que o seu pensamento tenha
se modificado, até porque muito do contexto que propiciou o nascimento
do Racionais ainda está presente na realidade brasileira. “Eu não estava
falando de chacina, de nada disso, estava preparando um disco de música
romântica, aí começou a morrer gente aqui e tive de fazer alguma
coisa.”
O músico se refere à chacina que matou sete pessoas na região do
Campo Limpo, zona sul paulistana, em 5 de janeiro. Entre as vítimas, DJ
Lah, em um primeiro momento tido como autor de um vídeo que denunciava a
execução de um comerciante no mesmo local, feita por policiais. A
informação foi desmentida depois, mas o espectro de que se tratava de
uma vingança paira sobre a população do lugar. E Brown fala sobre as
possíveis consequências para quem viu e sentiu a tragédia de perto.
“Essa ferida não vai cicatrizar, quem mora naquele lugar onde morreu o
Lah não vai esquecer, os moleques vão crescer, mano. Quem viveu aquilo
não vai esquecer.”
Na entrevista a seguir, Mano Brown fala sobre a falta de
oportunidades na periferia, do racismo, de um sistema que oprime, mas
também ressalta o que ele considera ser o nascimento de um novo Brasil,
destacando o papel da nova geração. Assim, ele mesmo tenta se
“reinventar” para seguir na luta que sempre foi dele e de muitas outras
pessoas. “Para dar continuidade ao trabalho, temos de caminhar pra
frente, a juventude precisa de rapidez na informação, não dá pra ficar
debatendo a mesma ideia sempre. É fácil para o Brown ficar nessas
ideias, fácil, é até covarde ficar jogando mais lenha, então fui buscar
as outras ideias, que passam pela raça também, com certeza.”
Fórum – Você esteve em uma reunião do pessoal do rap com o
então candidato a prefeito de São Paulo Fernando Haddad, e ali disse que
não iria falar sobre cultura, mas sim denunciar que os jovens estavam
morrendo na periferia. Recentemente, houve o assassinato do DJ Lah, e
mortes violentas de músicos da periferia têm sido muito comuns em São
Paulo, na Baixada Santista, por exemplo. Como definir essa situação?
Mano Brown – Esses moleques cantam o que eles vivem.
Geralmente, quando você chega nas quebradas, têm poucos lugares que são
espaços de lazer, e o lugar onde teve a chacina era um ponto de lazer,
querendo ou não. Um ponto meio marginal, mas tudo que é nosso é
marginal. Era um bar, tinha a sinuca, tinham os amigos, o bate-papo com a
família, tem o fluxo, é o centro da quebrada. O barzinho vende de tudo,
vende pinga, vende leite, vende tudo, e o Lah gostava de ficar por ali,
vários caras gostavam, era o quintal das pessoas.
O que aconteceu ali foi execução, crime de guerra. Tem a guerra e tem
os crimes de guerra. As pessoas não estavam esperando por aquilo ali,
não estavam preparadas pr’aquilo. É o que tem acontecido neste começo de
ano, e aconteceu no final do ano passado, as mortes todas têm o mesmo
perfil: moleque pobre em proximidade de favela. Os caras encontram
várias fragilidades ali, várias formas de chegar, matar e sair rápido, e
o governo simplesmente ignora o que aconteceu. existem as facilidades. O
cara vai lá e mata sabendo que não vai ser cobrado.
Fórum – Mas você acha que, por conta dessas ocorrências, há uma coisa dirigida contra o rap?
Brown – Acho que não, se dissesse isso seria até
leviano, porque muitas pessoas que morreram não tinham nada a ver com o
rap. Gente comum, motoboy, entregador de pizza, moleque que saiu da
Febem e estava na rua, com uma passagenzinha primária e morreu… E o rap
tá na vida da molecada mesmo, tá nos becos, nas esquinas, no bar, na
viela, geralmente o moleque que curte rap tá nesses lugares. É uma coisa
dirigida, mas é dirigida à raça. Dirigida a uma classe.
Se você for fazer a conta de quantas pessoas morreram no final do
ano, mortes sem explicação, crimes a serem investigados, e somar o tanto
de gente que morreu em Santa Maria… Morreu muito mais aqui. Lá foi
comoção total pela forma que ocorreu, lógico, todo mundo é ser humano,
mas veja a repercussão de um caso e a repercussão de outro caso, quanto
tempo demorou pra mídia acordar pra chacina? Quanto tempo demorou pras
pessoas perceberem a cor dos mortos? Coisa meio que normal, oito pretos
mortos, quatro aqui, três ali… É uma coisa meio cultural, preto, pobre,
preso morto já é uma coisa normal. Ninguém faz contas.
Fórum – E quem está matando nas periferias?
Brown – A polícia. O braço armado, conexões armadas, de direita.
Fórum – Você tem um histórico de estranhamentos com a polícia…
Brown – Houve a época em que soava o gongo, a gente
saía dando porrada pra todo lado, não olhava nem em quem. Outra época, a
gente procurava a polícia pra sair batendo. Hoje em dia, espera pra ver
quem vai vir. Não é só a polícia, são vários poderes. A gente não foca
na polícia, a polícia é um tentáculo do sistema, o mais mal pago. Mas é
armado e chega com autoridade, é um tentáculo perigoso. E tem várias
formas de matar, de matar o preto.
Fórum – Da última vez que você deu entrevista à Fórum, há
mais de 11 anos, boa parte da conversa foi sobre isso. Você é um ator
importante dentro desse cenário, como está atuando para mudar a
situação, está fazendo intervenções no governo, conversando com pessoas,
ou só se manifestando pela sua arte mesmo?
Brown – Se eu disser que não uso meus contatos,
estou mentindo. O que tem acontecido traumatizou todo mundo, então
ficamos todos aqui com muita raiva, lógico que alguma coisa a gente fez.
Mas não posso dizer o quê. Tenho minhas armas, mas não posso expor,
parado a gente não ficou.
A partir do momento em que a gente nota realmente que nossa quebrada
tem fragilidades, vê as famílias das pessoas com muitas mulheres e
poucos homens, homens com pouca liberdade, pouca liberdade de movimento,
vida pregressa com problema, pouca mobilidade na sociedade, caras
condenados a viver no submundo, você começa a criar um exército na
comunidade, de gente que vê aquele entra e sai da cadeia, de homens com
vida pregressa que não conseguem mais arranjar emprego. As casas perdem
esses caras, que deixam de ser úteis dentro de casa. Você vê a morte do
homem da casa, cinco mulheres chorando; as famílias estão num processo
que vai demorar, de restauração pra uma vida mais rotineira, mais calma,
é uma corrente que tem de quebrar.
“Antigamente, quando só o rico tinha, ninguém reclamava. Pobre com celular, com moto, não pode, o sistema cobra” |
Fórum – Um cenário de guerra, mesmo.
Brown – É, não passou a ser guerra agora, depois da
chacina, já vivia em guerra. As mães também lamentam os filhos que vão
pra vida do crime, perder pra droga… A molecada negra tá muito exposta
ao perigo, o salário é baixo, o risco é alto. A sociedade cobra muito,
você tem de ter as coisas, tem de estar, tem de ser, tem de aparentar
ser… Aparentar ser já custa caro, “ser” é outro estágio. O pessoal acha
que é vaidade boba a pessoa gostar de marca, de perfume bom, mas são
coisas que ajudam a pessoa a circular, a arrumar um emprego, a arrumar
uma gata, tudo melhora. No momento em que no Brasil começa a sobrar um
dinheirinho pra categoria, pra raça, o outro lado já começa a cobrar com
a vida também. O excesso de gente usufruindo deste novo Brasil… Não
pode, é excesso, tem de limpar. Tudo que é moleque de moto… Os excessos
que o pessoal começa a reclamar, todo mundo com celular no busão.
Antigamente, quando só o rico tinha, ninguém reclamava. Pobre com
celular, com moto, não pode, o sistema cobra.
Fórum – Você entende isso como uma reação da elite?
Brown – Uma reação. Três governos de esquerda
eleitos pelo povo, o Brasil pagou a dívida, a classe C tomando espaço e a
Globo expondo isso na novela, todo mundo analisando, os autores são
mais jovens e começaram a mudar a mente, as ideias começaram a ir pra
tela e os movimentos ganhando força a partir das ideias, muita coisa
junto… Os caras reagiram. O que aconteceu em São Paulo aconteceu no
resto do Brasil. Em Alagoas, o índice de negros mortos é muito alto, em
Belém do Pará, Goiás…
Fórum – E você pediu o impeachment do governador Geraldo Alckmin em um evento na Assembleia…
Brown – Pedi o impeachment do Alckmin e ele tem de
tomar providências. Naquela altura, estava em um estágio em que dava a
impressão de que o Alckmin não estava nem aí. As declarações que ele deu
foram piorando, chegou num ponto de eu achar que ele não sabia o que
estava acontecendo. Era suicídio, como ele vai se eleger a qualquer
coisa com esses números de morte?
Muitas vezes, acho a mídia com tanto medo e, de repente, vai um canal
de direita, que é a Record, que começou a investigação. A gente
conversava e sentia que tinha o medo no ar, eram jornalistas com medo,
quando eu vi o [André] Caramante isolando e as pessoas pedindo pra ele
não voltar, pensei: “Os caras tão com medo, o governo tá junto”. E as
declarações que ele [Alckmin] estava dando mostravam isso, que não ia
voltar atrás e era um movimento aprovado pelo povo, o povo estava com
ele. Redução da violência, crime organizado, a guerra do PCC, o povo leu
isso como uma coisa benéfica pra sociedade, mas estavam morrendo os
filhos deles mesmos.
Fórum – Será que o povo leu isso desse jeito?
Brown – Pelo número de PMs que foi eleito, percebo
que o povo está se dirigindo a votar dessa forma, tem medo. Primeira
coisa que se pensa: segurança. Segurança é polícia, entre um cantor de
rap, um padre e um policial, ele vai eleger um policial. O voto explica.
“O PCC hoje tem tanto poder que eles nem precisariam da contravenção pra existir” |
Fórum – Qual a sua opinião sobre o PCC?
Brown – O PCC hoje tem tanto poder que eles nem
precisariam da contravenção pra existir. Aí seria realmente um poder
incontestável, e pelo número de mortes que foi reduzido em São Paulo, a
gente sabe que muito tem a ver com eles. Já existe o PCC, não precisa
fazer nada mais contra a lei. Se é que houve alguma coisa contra a lei…
Não seria mais necessário usar contravenção, já existe a autoridade,
existe a autoridade instalada, o povo aceitou.
Fórum – Como você vê a ascensão dos movimentos sociais hoje em São Paulo?
Brown – Sou privilegiado de ver acontecer isso,
minha geração. Acho digno e muito importante mesmo todos os saraus, as
reuniões, os diálogos, todo o movimento de jovens dedicado a isso, a
conhecer as causas do Brasil, não só reclamar. É uma geração que não só
reclama, que faz, que desce o beco da favela, vai trabalhar, vai bater
nas portas. É um novo Brasil, novos médicos, novos advogados, novos
pedreiros, novos motoboys, novos motoristas. O que todo mundo bebe, vai
ser; o que todo mundo come, vai ser; o que todo mundo respira, vai ser.
Daqui a 20 anos, você vai ver o país que está sendo implantado pelo
Lula, pela Dilma, pelos Racionais, pelo Bill, pelo Facção Central. Daqui
a 20 anos, vai ter um povo que vai ter essa cara.
Fórum – Fale um pouco mais de sua concepção desse novo Brasil.
Brown – Tenho 42 anos, sou fruto daquela geração dos
anos 1980, aquela “geração lixo”. “Geração lixo”. Eu sou aquilo, com
todos os defeitos e qualidades. Já os nossos filhos, nós que já
aprendemos e sofremos um pouquinho mais, vão ser melhorados, mais
ligeiros, mais práticos que eu, e não vão rodar tanto em volta do
objetivo, vão direto ao foco.
Agora, os meus filhos, a molecada em geral… Ainda temos de lavar a
roupa suja. Eu e eles. Não gosto de puxar a orelha dos moleques por
revista e nem por entrevista, mas temos roupa suja pra lavar nas
favelas, nas vielas, nas ruas, nos palcos, tem muita coisa pra melhorar
ainda.
Fórum – Mas existe um orgulho hoje de quem vive na periferia, ele não se esconde mais. Há marcas que nascem na periferia.
Brown – É o que o judeu fez, o italiano fez, o
japonês fez e o preto foi proibido de fazer. Nos dias de hoje, faz,
monta time de futebol, loja, grupo de rap. Forma a família, que é onde
está o foco nosso, a família, dialogar, organizar… Historicamente foi
proibido pra nós, a gente vive correndo, se escondendo, um comportamento
de foragido que talvez essa geração não vá ter mais.
Fórum – Será que esse não é o susto das elites, perceber que daqui a 20 anos o Brasil não vai ser mais esse?
Brown – O Brasil atrasado, os brancos também não
querem isso, os brancos ligeiros não querem mais isso. Foi um ganho o
branco acordar e o preto acordar também.
Fórum – “Fim de semana no parque” fez vinte anos agora. Você
acha que essa foi a principal mudança nesse período, além do ganho
econômico, também a elevação da autoestima?
Brown – Começa pela raça, pelo orgulho do que você
é, de você ter na sua família a sua raiz. Se você não tem vergonha da
sua mãe você vai ouvir mais ela, se você acha sua mãe bonita, seu pai
bonito… Eu sou de uma geração em que muitos não tiveram pai, não tive
pai, vários amigos não tiveram. Tive de aprender a ser meu pai, o homem
da casa sempre fui eu. Isso também fez eu ser quem eu sou, mas acho que
seria melhor se tivesse tido um pai. Em várias casas faltam um pai. Acho
que a periferia vive este momento de fluxo de cadeia, da molecada se
envolvendo na criminalidade, perdendo o direito de ir e vir, de
oportunidade de emprego por conta de passagem [na polícia], então vai
limitando e as famílias vão ficando empobrecidas. Mesmo que o governo
faça, vai estar sempre correndo atrás, essa corrente tem de cortar. Dar
oportunidade pra molecada – principalmente para os homens –, que não tem
como demonstrar nada numa sociedade em que você tem de parecer que é,
pelo menos. A molecada não tem oportunidade.
Fórum – Falando em oportunidade, o que você acha das cotas?
Brown – Como tudo que envolve o negro, é polêmico.
Agora, se você negar que o Brasil prejudicou a raça negra… [As cotas]
não vão resolver o problema, mas dizer que o negro não é merecedor disso
é racismo. Historicamente teria de ter, mas, dentro da raça negra, o
lance de cotas é tão dividido ou mais que entre os brancos. Se você
chegar na inteligência negra, perguntar ali o que acha da cota… Mano, é
treta! Você vai ter cara crânio que é contra, vai falar pra ele que tem
de ser a favor… É dividido, acho bom ser polêmico. O problema tem de ser
debatido, depois faz o acordo, mas de cara tem de conversar.
“Primeira coisa que se pensa: segurança. Segurança é polícia, entre um cantor de rap, um padre e um policial, ele vai eleger um policial. O voto explica” |
Fórum – Qual a sua avaliação do movimento negro no Brasil?
Brown – O movimento negro evoluiu muito, tenho muito
orgulho de ver como o movimento atua hoje, algumas reuniões em que eu
fui, moleques muito inteligentes… Dá vontade de parar de falar e deixar
só os moleques falarem. No dia do evento mesmo, antes tinha falado um
garoto do movimento negro, ele já tinha falado tudo. Eu nem quis falar
muito porque ele já tinha falado tudo. Antigamente, ia nos movimentos e
era um debate muito primário, ranço de 300 anos debatido nos anos 1980,
nós estamos em 2013 e a molecada já está debatendo outras coisas, outros
poderes, não só os visíveis. Já não querem só a roupa de marca, os
caras querem poder, os moleques vêm pesado na reivindicação, no direito,
na história. São terríveis e estão vindo aí. Tenho orgulho, já foi um
movimento confuso, hoje não é mais. É um movimento prático.
Fórum – Existe uma crítica de que somente o empoderamento
econômico não traria consciência social para as pessoas, mas o seu
depoimento não diz isso.
Brown – Traz. Traz porque o tempo é dinheiro pra
todos, inclusive pra classe C. O micro-ondas, o carro que anda melhor
vai fazer você chegar com mais conforto em casa, no seu trabalho, você
vai ter tempo pra melhorar. Por que é conforto pro rico e pro pobre não?
O pobre vai ficar bobo alegre, por quê? É preconceito. O que faz a vida
do cara ter conforto, permitir organizar o tempo, poder estudar,
trabalhar e cuidar do filho… Daqui a 20 anos, tá ele formado, o filho
estudando, se ele não tivesse o carro, com certeza não trabalhava, não
estudava, tinha cuidado só do filho. Ele não tinha estudado e era só o
filho, não eram duas rendas, era uma. Bem material “aliena o pobre”,
porque pobre é alienado, esse é o discurso… O pobre não tem
inteligência… Sabedoria do povo é sabedoria do povo, tem de escutar, tem
de entender a mensagem.
Amanhã a segunda parte da entrevista...
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