Crise
dos anos 1990 forjou identidade rebelde das quebradas. Mas ao
retratá-la, em 2002, Mano Brown antecipava, angustiado, outro momento
Por Antonio Eleilson Leite, editor da coluna Literaturas da Periferia
(Segunda parte de ensaio sobre o rap Da Ponte pra cá, dos Racionais MCs e as transformações vividas pelas periferias brasileiras, seus habitantes e artistas. Leia aqui o primeiro e o terceiro segmento)
II. Lavando o ódio embaixo do sereno
“Da ponte pra cá”
é uma composição, cujo tema teve pelo menos dois anúncios prévios
publicados por Mano Brown. O primeiro foi no ano 2000 no livro Capão Pecado, do escritor Ferréz, no qual, Brown escreve um texto intitulado “A número 1 sem troféu”1. O segundo foi no ano seguinte, na sua participação no CD solo do K L Jay, DJ dos Racionais. Este CD, de título KL Jay na Batida, vol. 3 Equilíbrio, lançado em 20012,
traz a participação tanto de Mano Brown como do Edi Rock, os dois
compositores do Racionais. No álbum duplo, Edi Rock abre o CD 1 e Mano
Brow encerra o CD 2. Ambas as faixas tem o mesmo nome: “Privilégio”. Edi Rock canta a “Privilégio 1” que tem subtítulo Século 20 -21
que é um rap do qual participam os sócios de KL Jay na produtora 4 P,
Rappin Hood e Xis. Um breve rap de 2,51 minutos. Já na faixa “Privilégio 2 – O tempo é rei”,
com Mano Brown temos um depoimento do cantor que tem duração de 18m32s.
Nessas duas colaborações em obras alheias, Brown antecipa vários
elementos que estruturam o rap “Da ponte pra cá”e
indica o tom melancólico da composição encoberto por uma melodia
dançante e harmonia vibrante que conduzem o ouvinte a um clima diferente
do que o conteúdo da letra sugere.
A número 1 sem troféu:
No livro de Ferréz, o texto “A número 1 sem troféu”, o elemento central do rap “Da ponte pra cá” já é dado no seguinte trecho:
Sem
pretensão, a gente aqui do Capão nunca ia conseguir chamar a atenção do
resto do mundo, porque da ponte João Dias pra cá é outro mundo, tá
ligado?
Fica
claro aqui a que ponte se refere a composição. Trata-se da Ponte João
Dias que dá acesso aos distritos do Jardim São Luiz, Capão Redondo e
Campo Limpo, entre outros bairros a partir de Santo Amaro, último bairro
do lado lá.
Via elevada sobre o Rio Pinheiros, continua em avenida homônima que
depois passa a se chamar Estrada de Itapecerica da Serra, outra via
citada em momento fundamental do rap. Esses três distritos somam mais de
1 milhão de habitantes e possuem características semelhantes compondo
uma área urbana muito representativa do processo de periferização da
região Sul de São Paulo: alta densidade populacional, serviços públicos
escassos, assentamentos precários, falta de saneamento e transporte,
entre outros direitos e altos índices de violência. Tais predicados eram
ainda mais acentuados nos anos 1990 e início da primeira década do
século XXI, época em que foi composto o rap “Da ponte pra cá”. O próprio autor, baseado na sua percepção cotidiana da realidade afirma no texto:
São
Paulo massacra os + pobres e aqui no extremo sul eu senti na pele o que
é ser preto, pobre, filho de mãe solteira negra, que veio da Bahia com
12 anos de idade. Aprendi a não gostar de polícia (…) No Capão Redondo é
onde a foto não tem inspiração para cartão postal (…) Capão Redondo é a
pobreza, injustiça, ruas de terra, esgoto à céu aberto, crianças
descalças (…) tensão e cheiro de maconha o tempo todo.
Porém,
há no texto uma construção simbólica que define o Capão Redondo e as
adjacências como um “mundo diferente”. Um mundo diferente, mas não um
mundo à parte. O rapper situa esse distinto lugar dentro da cidade de
São Paulo. Logo na segunda faixa do CD 1 (Vivão e Vivendo), a narrativa também se situa o contexto na Capital paulista: Você está nas ruas de São Paulo / Onde o vagabundo guarda o sentimento na sola do pé. Essa distinção não se restringe às carências relacionadas à
precariedade urbana do lugar. Brown parece anunciar uma subjetividade
coletiva traduzida no orgulho de ser deste local, apesar de todas as
dificuldades que lhe são próprias. Veja:
São
Paulo não é a cidade maravilhosa, e o Capão Redondo no lado sul do
mapa, muito menos. Aqui as histórias de crime não têm romantismo nem
heróis. Mas aí! Eu amo essa porra! No mundão eu não sou ninguém, mas no
Capão Redondo eu tenho meu lugar garantido, morô, mano? (…) Capão
Redondo, uma escola.
Nestes trechos citados no texto “A número 1 sem troféu”, temos já três elementos fundamentais presentes na letra do rap “Da ponte pra cá”:
a) a definição geográfica e social (da Ponte João Dias pra cá / Lado
sul do mapa / Pobreza, injustiça / Cheiro de maconha o tempo todo); b) a
dimensão simbólica (Outro mundo / No mundão não sou ninguém, mas no
Capão tenho meu lugar) e c) a dimensão subjetiva (Capão Redondo, uma
escola / Amo essa porra!).
Na letra do rap, composto mais tarde, o primeiro elemento se define principalmente no verso do refrão: O mundo é diferente da ponte pra cá. Os aspectos sociais relacionados à pobreza não são trabalhados no rap de forma direta, como em “Negro Drama” e nas duas versões de “Vida Loka”, por exemplo. Há uma abordagem indireta e irônica na seguinte passagem: Hey truta, eu tô louco, eu tô vendo miragem / Um Bradesco bem em frente à favela é miragem.
Esses versos apontam a improbabilidade de uma instituição bancária se
instalar junto a um lugar de concentração de pessoas de baixa renda.
Passados dez anos, isso não só deixou de ser “miragem”, como até virou
estratégia dessas empresas na busca pelas classes C e D.
Ainda sobre primeiro elemento, destacamos os versos: Nunca mudou, nem nunca mudará / O cheiro de fogueira vai perfumando o ar / Mesmo céu, mesmo cep no lado Sul do mapa.
O “cheiro de fogueira” pode ser uma referência cifrada a cheiro de
maconha citado no texto. Não creio que seja um atenuante de censura dado
pelo autor. Talvez seja uma opção em função da rima interna:
cheiro/fogueira. Se fosse maconha, a sílaba tônica não ficaria bem
encaixada no verso. Não obstante, a fogueira em seu sentido literal é
algo muito próprio da periferia, ou pelo menos era até a época em que o
rap foi composto. Além do mais, é uma madrugada fria de inverno, período
em que se torna ainda mais comum o hábito de se acender uns gravetos no
centro de uma roda de conversa entre rapazes, prática cultural já
citada em outras composições do Racionais3.
Já o termo lado sul do mapa
é idêntico ao do texto como se vê. O dado novo, me parece, é o CEP –
código de endereçamento postal. A habilidade poética no uso deste termo
que faz uma composição rítmica com céu (mesmo céu, mesmo CEP) resultou
numa expressão que repercutiu junto a outros artistas e movimentos
culturais de periferia, como identificou Heloisa Buarque de Hollanda4 e reforça o aspecto geográfico com uma sutileza muito interessante.
Sobre o segundo elemento, aparecem no rap, entre outras, as seguintes passagens: Nas
ruas da Sul eles me chamam Brown / Maldito vagabundo, mente criminal / O
que toma uma taça de champagne também curte / Desbaratinado, tubaína
tutti-frutti. (…) Jardim Rosana, Três Estrelas e Imbé / Santa Tereza,
Valo Velho e Dom José / Parque (Santo Antônio), Chácara (Santana), (Jardim) Lídia, Vaz (de Lima) / Fundão / Muita treta pra Vinícius de Moraes! Nos primeiros versos Brown retoma o tema fundamental da trilogia: “Negro Drama”, “Jesus Chorou” e “Vida Loka I” e II. Enfatizando
que o acesso a bens como champagne, supostamente adquirido em função da
elevação de renda decorrente do sucesso comercial de sua música, não
tira dele o apreço pelo refrigerante popular muito consumido nas
periferias, símbolo de um segmento social do qual ele não se desvincula
simbolicamente. Como é dito no rap “Negro Drama”: O dinheiro tira o homem da miséria / mas não pode arrancar dele a favela (primeira parte – Edi Rock) e Você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você
(segunda parte – Mano Brow). O apego ao bairro e toda a “rapa” é algo
indissociável para o autor, razão de ser da sua visão de mundo e de seu
lugar no mundo.
Faz
muito sentido aqui a noção de frátria, definida por Maria Rita Kehl
como “um campo de identificações horizontais” que justifica o tratamento
de “mano”, indicando uma “ intensão de igualdade”5.
O sentimento de igualdade derivado da condição fraterna entre os manos
estende-se para os bairros de onde procedem essas pessoas. A forma como é
citado cada um desses lugares dá a impressão de que “os manos” da
periferia formam uma legião com alto grau de identificação e coesão.
Indica a existência de um amplo movimento social, predominantemente
juvenil, majoritariamente negro e pobre, pronto para o confronto. Daí,
talvez a menção enigmática a Vinícius de Moraes. Este consagrado poeta é
citado na letra do rap na sequência de uma série de bairros da
periferia da Zona Sul de São Paulo, numa composição onde o aspecto
geográfico é fundamental.
Não
faz sentido, aparentemente, que seja uma alusão à pessoa de Vinícius de
Moraes (e sua condição de poeta, músico e intelectual ligado às classes
médias) e sim um lugar de base territorial que leva seu nome. Como há
um elemento de tensão explícito (muita treta), a citação sugere um lugar
de oposição aos bairros citados. Essa oposição não seria, ao meu ver,
de conflito interno (embora haja passagens na letra que revelam
conflitos internos à frátria) e sim um fator exógeno.
Minha
hipótese é que o autor esteja se referindo à Praça Vinícius de Moraes
no bairro do Morumbi, conhecido reduto da burguesia e classe média alta
paulistana. Trata-se de uma praça muito ampla, ao lado do Palácio dos
Bandeirantes, sede do Governo do Estado, onde os moradores locais
costumam se exercitar e passear com seus cachorros. Faço este destaque
para debater com a dedução, ao meu ver equivocada, de Leandro Pasini, em
texto citado anteriormente, no qual afirma:
“(…) após enumerar alguns bairros da periferia da Zona Sul de São Paulo, Brown arremata: Muita treta pra Vinícius de Moraes!
Ou seja, o rapper conclui que a violência de lá está muito acima das
possibilidades expressivo-paisagística desse outro poeta-cantor que é
Vinícius de Moraes”6
O elemento subjetivo, expresso no texto “A número 1 sem troféu”
através da referência a “escola” e ao amor que o autor expressa pelo
lugar, aparece mais explicitamente nos seguintes versos do refrão: Não adianta querer, tem que ser, tem que pá / Não adianta querer, tem que ter pra trocar. Logo depois do primeiro refrão: Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola / Minha meta é dez, nove e meio nem rola e nos versos finais do rap: Senhor,
guarda meus irmãos nesse horizonte cinzento / Nesse Capão Redondo,
frio, sem sentimento/Os mano é sofrido e fuma um sem dá guela / É o
estilo favela e o respeito por ela/Os moleque tem instinto e ninguém
amarela / Os coxinha cresce o zóio na função e gela.
Temos
aqui a expressão do eu-lírico em três passagens fundamentais desta
composição. No refrão a sentença de que a frátria está formada. Tem
gente (mais de 50 mil manos anunciados no CD anterior) e território (da
ponte pra cá). A adesão (à banca ou à frátria), entretanto, não é algo
que se possa conseguir de forma voluntária, mas por merecimento,
proceder e procedência. Zé povinho, playboy, malandrão vândalo, vermes e
traíras e mulheres de certo tipo – quase nenhuma é digna, no universo
misógino dos Racionais –, não entram.
No rap “Da ponte pra cá”, dividido em três partes, em cada uma delas um tipo social é rejeitado. Na primeira parte, os playboy: Playboy bom é chinês, australiano / Fala feio, mora longe não me chama de mano / Três vezes seu sofredor, odeio todos vocês. Na segunda parte, são os manos de quebrada que desandaram em busca de fama E tá tirando dez de havaiana (cumprindo pena na prisão). E por fim os bandidos “vândalos”, criminosos sem ética, Batendo no peito feio e fazendo escândalo.
Identificados os elementos destoantes da irmandade, o rapper apela a
Deus para guardar os “manos sofrido”, “ estilo favela” que botam medo
nos policiais, referidos aqui pelo designação de “coxinha”, atribuída
aos PMs devido ao costume de pararem em botecos e padarias para fazerem
lanche.
Mano
Brown, ainda que se mantenha inserido no mesmo contexto social de sua
origem, encontra-se nele numa condição dúbia de pertencimento. Um lugar
de dentro e ao mesmo tempo de fora, que lhe permite a tudo observar (“eu
vejo tudo e ninguém me vê”) e formular juízo moral (não moralista)
sobre o que se passa na quebrada que ele tanto ama, sua escola de vida.
Seria ele o poeta épico freudiano (aquele que assume para si a autoria
coletiva da morte do pai tirano)?7
Talvez se coloque como o guardião de uma irmandade na qual vive o
conflito tenso e indissolúvel de pertencer, podendo dela se desprender
pois seus laços não são mais materiais , mas apenas simbólicos.
O Tempo é rei:
Esse conflito fica ainda mais evidente no teor do depoimento do autor no CD de KL Jay, “Privilégio 2 – O tempo é rei”. Na sua fala, aborda um outro aspecto que aparece depois na letra do rap “Da ponte pra cá”. É
a crise de ordem existencial que o autor reconhece em si, mas
principalmente na irmandade e me parece se revelar no seguinte trecho da
letra de “Da ponte pra cá”: Outra
vez nós aqui vai vendo / Lavando o ódio embaixo do sereno / Cada um no
seu castelo, cada um na sua função / Tudo junto cada qual na sua solidão
/ (…) Óh, filosofia de fumaça, analise / E cada favelado é um universo
em crise.
Mano
Brown chega ao estúdio da gravadora Trama onde Kl Jay produz seu CD e
anuncia o tempo e o espaço em que se encontra. Uma quarta-feira do
outono de 2001, por volta das 23h30. Os momentos que antecedem sua
chegada serão a partir daí o enredo de seu depoimento. Saindo do Capão
na companhia de alguns manos, passa pelo Jardim Miriam (outro bairro da
Zona Sul, porém bem distante do Capão Redondo), onde observa a
precariedade das residências de tijolo exposto, escadas quebradas, ruas
de terra e bares lotados as 19h. Põe-se a refletir sobre o apelo que o
bar exerce nos trabalhadores que se dirigem a este tipo de comércio
antes mesmo de chegar em casa. “Entre o bar e o Jornal Nacional, não sei
o que é pior”, resigna-se o rapper. “Sou um cara observador” define-se
para anunciar em tom desesperançoso: “O mundo todo está em crise. Você
não vê felicidade em ninguém, nem no pobre, nem no rico. Tá todo mundo
desorientado. Eu também”, admite, embora reconheça que sabe o que quer,
qualificando sua desorientação como um espasmo, um momento isolado de
desconexão.
Recupera
na memória o momento de saída do Capão Redondo naquele dia. Expressa
seu desânimo: “Lugar pra ter gente frustrada igual à Zona Sul, tô pra
ver”. Relata ter visto os manos, cerca de trinta cara fumando maconha,
rindo, porém, percebia no fundo do olho de cada um uma profunda
tristeza. Mais um rolê, observa os barracos de uma favela no Capão, o
som estridente da sirene de uma viatura da Polícia e imagina o
sofrimento de alguém quando souber da notícia. Chama a atenção para a
quantidade de ladrões: “na periferia, de dez, oito está roubando”. Tem
mãe, diz ele, que fica aliviada ao saber que o filho está preso, pois
assim se sente mais segura.
Brown
continua sua reflexão. Diz que jamais entraria no crime. Primeiro
porque tem que sustentar o filho que está com seis anos. Depois, sua mãe
não aguentaria saber de uma notícia dessas. Nesse momento, enaltece,
como sempre faz, o amor que tem por sua mãe. Em tom confidencial, conta
que seu respeito por dona Ana é tão grande que ele não é capaz de fumar
na frente dela, admitindo ter queimado os dedos várias vezes ao apagar o
cigarro às escondidas. Termina o depoimento agradecendo ao rap e a
família Racionais. Reproduz frase que acabara de ver num outdoor que lhe
fascinou e que diz: “a vida é desenhar sem borracha”
Mano
Brown dá, em seu depoimento a devida dimensão do que realmente pensa
sobre a quebrada, a irmandade, despido das rimas e da batida do rap “Da ponte pra cá”.
Toda a fragilidade está exposta num ambiente de crise social profunda
como foi a que marcou a virada de século no Brasil e na Cidade de São
Paulo em particular. Este rap expressa, na sua poesia e na fala de seu
autor, que a frátria está dilacerada e que o esforço civilizatório do
rap na periferia de São Paulo, como sinaliza Maria Rita Keh8 é uma tarefa tão grandiosa quando improvável.
Talvez por isso, “Da ponte pra cá”
termine com uma espécie de epitáfio, um apelo a Deus para proteger os
irmãos sofridos num “Capão frio, sem sentimento, nesse horizonte
cinzento”. Um quadro desolador também reconhecido por Ferréz no livro Capão Pecado, “lugar abandonado por Deus, batizado pelo Diabo”.9
Todo carga conflituosa e sombria deste rap destoa da melodia e da
harmonia, bem como da interpretação no CD. A forma estética da música
seduz o ouvinte, conduzindo-o a um estado de agitação e expectativa que
destoa daquilo que sugere o conteúdo da composição. Citando os cursos de
estética de Hegel, Walter Garcia nos explica o seguinte:
“Da
parte do ouvinte, sem muito risco de errar, pode-se dizer que a atenção
dos sentidos é despertada antes da atenção do raciocínio, isto é, antes
da compreensão efetiva do tema que se canta. Nisso o rap não é
diferente de nenhuma outra forma de canção: seduz e arrebata antes de
tudo pela sonoridade, ainda que justamente a letra indique o “que é mais
preciso no conteúdo”.10
“Da ponte pra cá”,
é um rap que exige a uma audição atenciosa. À primeira vista pode
parecer uma composição de exaltação sustentada em apologia à periferia,
despertando um rancor com o outro lado da ponte, embalada por uma
melodia dançante e harmonia vibrante. Não é bem isso que revela a letra.
Este rap é auto-crítico com a quebrada, vai fundo na miséria da
existência humana, nas tensões e conflitos endógenos e busca luz numa
instância divina para proteção de um povo que, embora forte (que “não
amarela”), está à deriva, sem esperança. É “estilo favela”, mas em cada
favelado há “um universo em crise”. Daí os versos , ao meu ver,
centrais: Outra vez nóis aqui, vai vendo / Lavando o ódio embaixo do sereno.
Talvez esse estado de crise e desesperança seja a razão deste rap
aparecer como um apêndice do CD como dito no início deste texto. Não é
nem “chora agora”, nem ”ri depois”. O sentimento aqui não é polarizado, é
melancólico com variação de intensidade conforme o foco do narrador que
vê “vermes e leões no mesmo ecossistema”.
III. É o estilo favela
No CD Nada como um dia após o outro dia, há uma faixa intitulada “12 de Outubro” (faixa do 8 CD 1 – Chora agora).
Não é um rap. É um depoimento de Mano Brown tendo como fundo um solo de
violão. Nela, o rapper, novamente num rolê pela quebrada, sai da região
do Capão Redondo, mais especificamente do Parque Santo Antonio,
atravessa a ponte no sentido da Vila Santa Catarina no final da então
avenida Águas Espraiadas (atual Roberto Marinho) e passa por um grupo de
crianças numa favela. Cumprimenta os meninos e fica sensibilizado pela
história de um deles que ganhou da mãe, no dia das crianças, um tapa na
cara. A agressão materna foi uma reação contra o garoto que protestou
por não ter ganho presente. Indignado, Brown faz um discurso em tom de
protesto atribuindo aos governantes, de forma generalizada, uma
violência entre família e vê naquele garoto, inexoravelmente, um futuro
adulto amargurado, revoltado. Identifica a origem de um círculo vicioso
no qual só os pobres se dão mal.
Temos
aí uma crônica expressa de forma oral. Talvez pudesse virar um rap.
Quem sabe, Brown tenha tentado. Na impossibilidade de compor a canção,
não quis deixar de fora o tema, gravando-o como depoimento. Tenho a
impressão de algo semelhante ter acontecido com o rap “Da ponte pra cá” . Observando a narrativa de O tempo é rei,
fico com a impressão que ali está boa parte do conteúdo da letra desta
canção que acabou por ser composta em forma de rap, gravada em CD e DVD.
Entre uma e outra gravação, há um espaço de quatro anos.
Em outra obra, o DVD Mil trutas, mil tretas, entre as quinze músicas do show realizado no SESC Itaquera, estão quase todas as faixas do CD Nada como um dia após o outro dia e três clássicos do CD Sobrevivendo no Inferno (“Fórmula Mágica da Paz”; Tô ouvindo alguém me chamar e “Diário de Um Detento” – todos de Mano Brown11). O rap “Da ponte pra cá”
é a faixa nº 6 do DVD, meio do espetáculo, portanto. Bem diferente do
lugar em que se encontra no CD. Neste momento do show ficaram agrupados
os raps mais sombrios. “Da ponte pra cá” está exatamente entre duas músicas do Edi Rock: faixa 5, “O crime vai, o crime vem” e faixa 7, “Expresso da Meia noite”. Parece-me um dado relevante.
Este
último rap é tragédia do início ao fim: tios embriagados, favelas,
chacina, assassinato, pai espancando filha, menina que faz aborto com 15
anos, criança que nasce de estupro. Não há refrão, mas estes dois
versos são particularmente marcantes: A vida no Fundão é desiquilibrada / Hebrom, Piqueri, Jova Rural, Serra Pelada. Percebo nesta passagem uma associação pertinente que reforça o tom melancólico e trágico que identifiquei no rap “Da ponte pra cá”.
A letra faz referência a um conjunto de bairros do extremo norte da
Cidade de São Paulo, divisa com Guarulhos, muito próximos da Rodovia
Fernão Dias, todos bairros surgidos nas décadas de 1980 e 1990, dois
deles à base de ocupações feitas por movimentos de moradia e que se
tornaram assentamentos muito precários12. Cenário de carência e violência muito semelhante ao Capão Redondo, palco do rap “Da ponte pra cá”.
Edi Rock, porém, não aponta nenhuma saída, nem o apelo a Deus como há
na composição de Mano Brown. O tom de desesperança e resignação toma
conta.
Por outro lado, a interpretação de Mano Brown e Ice Blue do rap “Da ponte pra cá”
no DVD é sisuda o tempo todo. Olhar raivoso e triste. Vários rapazes
(manos) na parte de trás do palco, junto ao cenário, formam uma
coletividade aguerrida e dançarinos de break fazem performances com
máscaras toscas de monstros, dando forma final ao cenário desolador da
periferia retratado neste rap e nos outros dois que o ladeiam no set
list do show. Brown termina o rap com uma frase expressa de cabeça
baixa: “Minha parte eu fiz”. Seria o ato de renúncia do poeta épico?
“Borrou a letra triste do poeta” (“Jesus Chorou”).
Prevaleceram a melancolia, tristeza e desolação no coração do rapper
durão. Um homem sensível e frágil por trás de um rap aparentemente de
exaltação conduzido por uma sonoridade dançante e vibrante.
* Antonio Eleilson Leite edita Estéticas das Periferias. Para ler edições anteriores da coluna, clique aqui.
> Leia também as 35 edições de Cultura Periférica, a seção que Antonio Eleilson Leite publicou, entre outubro de 2007 e dezembro de 2008, no Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique.
1Na
primeira edição deste livro, publicada no ano 2000 pela Editora
Labortexto, o texto de Mano Brown aparece na abertura da primeira, das
cinco partes da obra. Outros rappers escrevem também sobre o Capão
Redondo na abertura das demais partes do livro. Na edição de 2005 e suas
sucessivas reimpressões, o texto de Mano Brow passou para a orelha do
livro. Porém, diferente da primeira edição, nesta, não é anunciada a
participação de Brown na capa da publicação.
2Obra lançada pela 4P, produtora de KLJ (em sociedade com os rappers Xis e Rappin Hood) e a gravadora Trama, São Paulo, 2001.
3No rap a A fórmula mágica da paz
do CD Sobrevivendo no Inferno , por exemplo, há o verso: Na roda da
função, mó zoeira / Tomando vinho seco , em volta da fogueira
4BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa: Escolhas, uma autobiografia intelectual, Rio de Janeiro, Lingua Geral, Carpe Diem, 2009 (pag. 153)
5KEHL, Maria Rita, A frátira órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São Paulo. In: ____ (org.) Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, pag. 212.
10GARCIA,
Walter, Sobre uma cena de Fim de Semana no Parque, do Racionais MC’s.
In: Revista Estudos Avançados, volume 25, 71, janeiro/abril 2011– Dossiê
São Paulo Hoje, IEA, USP (pag. 226)
12Falo
aqui por conhecimento. Fui morador dessa região, tendo participado em
1984 do movimento de ocupação de terra que deu origem ao Jardim Filhos
da Terra, citado no rap pelo apelido de Serra Pelada, em função do
aspecto desordenado das moradias no declive de um vasto morro. O Jova
Rural já foi uma concessão do Estado e e foi estruturado como conjunto
habitacional do qual meu irmão, Antonio Silvestre Leite, foi o primeiro
presidente da associação local. O jardim Hebron foi outra ocupação e o
Piqueri, este sim, um bairro mais estruturado de expansão mais
organizado, exatamente onde eu morava. Mas é tudo quebrada.
Fonte: Outras Palavras
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