Por Carla Luciana Silva
Normalmente quando se resenha um filme
recém-estreado tem-se o cuidado de não contar tudo sobre ele, não
explicitar demais o roteiro, não contar “o final” para que outros possam
assistir-lhe. Não é o caso em Dama de Ferro (Phyllida Lloyd,
1h44). Quanto mais se falar dele numa resenha mais diminui a chance de
que outros queiram assisti-lo, ainda bem. O filme não vale a ida ao
cinema e o pagamento do alto preço; além disso, há o incômodo de ver
sempre algum vizinho de poltrona admirado com o personagem criado na
grande tela [ecran], sensação desagradável. Afinal, o filme foi laureado
por duas estatuetas no Oscar. Meryl Streep, por sua atuação, ao
construir uma personagem de forma absoluta e inquestionável. E, ao mesmo
tempo, maquiagem. Perfeito, afinal, o filme propicia um tal maquiamento
da história e construção de uma memória estetizada que realmente faz
pensar que mereceu o prêmio.
O filme tenta fazer piadas, fazer rir
através da criação de um personagem – o marido, um boboca [palerma] que
nada mais é do que a vingança de todos os homens sobre uma mulher
poderosa, numa alegoria fraca, sem graça e falsa que o filme cria.
Gera-se uma espécie de Ghost: do outro lado da vida. O homem, marido da grande dama de ferro,
que aparece não só como sem personalidade mas como alguém que vive do
ar que ela respira, e não um grande empresário do ramo petrolífero, é um
fantasma que a assombra em suas alucinações doentias. Se ao longo da
vida ela quis agir como homem (“forte”), no fim da vida, apenas depois
do fim da vida do seu “fraco” marido, ele tem o poder de infernizá-la
com coisas banais, como contar o final do livro que ela está lendo ou
colocando em xeque seu poder absoluto.
A trama do filme é a história de uma
senhora que não consegue desapegar-se do passado, o seu passado pessoal e
seu papel histórico. Mas o passado pessoal será facilmente descartado,
doado para a Oxfan, através das roupas do marido morto que farão com que
ela complete seu luto. No final do filme ela consegue se desfazer das
roupas e do fantasma, quando finalmente vemos uma emoção, uma lágrima
lhe escapa do olho. Ela perdeu seu apego pessoal. Mas, e o legado
histórico? Bem, a reconstrução de uma memória absolutamente conservadora
é o que filme propõe sucessivamente. Um passado reificado, um “objeto
de consumo, estetizado, naturalizado e rentabilizado, pronto para ser
utilizado”.[1] Não existe memória sem consequências, sem implicações, e é esse embate que queremos perceber no filme.
As remissões à Margareth jovem são
bizarras. Primeiro, mostrando um ideal presente nas falas de seu pai, de
um conservadorismo a toda prova, de um individualismo segundo o qual
pode o personagem se colocar como portador da verdade, ela possui a
verdade e não importa o que aconteça, fará com que ela impere, à luz da
construção do seu poder. O personagem Thatcher surgirá como guia, alguém
que deverá levar o partido a um caminho. Interessante que esse caminho
aparece apenas como idealizado por essa mulher jovem, idealista. Em
nenhum momento se refere ao seu embasamento teórico neoliberal, que
fundamenta com precisão as políticas que colocaria em prática, suas
relações com Hayek, nada disso aparece no filme; afinal, é uma “memória
pessoal”.
A figura da “mulher” também passa por
contradições. A mulher velha sofre na memória suas escolhas históricas
com relação aos filhos. Busca se reconciliar com o filho, a quem ela
chama em vários momentos de senilidade, por quem clama e que
sarcasticamente no final se nega a aparecer, “foge” para a África do
Sul, não tem tempo para a mãe. A culpa da mãe que trabalha e que
“abandonou” o filho, ao dedicar-se a qualquer coisa na vida, no caso, a
política, fica mais uma vez interiorizada.
Já li em vários lugares comentários
alegando um certo “feminismo” no filme. Ideia mais absurda! O tempo todo
o personagem deixa claro que “prefere a companhia dos homens”, porque
eles teriam obviamente uma lógica própria, um modus de ser
distinto, que não seria fútil como o das mulheres. Com eles estava o
poder. Interessante que o filme mostra justamente uma mulher não apenas
bonita, como atraente, focando em várias cenas seu corpo acinturado,
focando seu traseiro marcado pelas saias de um azul claro celestial. A
cena que precede sua entrada no Parlamento como primeira-ministra tem
uma virada de corpo que faz dela uma Marilyn Monroe da política, mas aos
avessos, porque quando ela dá a virada com a saia os homens como que
desaparecem, abrindo caminho para sua entrada triunfal.
Assim, de feminismo o filme não tem nada.
Tanto é que em uma das últimas cenas Margareth aparece lavando a xícara
do próprio chá que acabara de beber. Ou seja, encerrada na cozinha.
Aliás, é na cozinha que se passam várias de suas alucinações, como se
aquele espaço representasse a prisão da qual fugiu mas que agora a
prendia, e o marido (ghost) retornava para torturá-la
psicologicamente. Aliás, a única cena em que sua mãe aparece no filme
ocorre quando ela foi chamada para a Universidade, comemorou com seu pai
e, quando foi ao encontro da mãe, essa se “esconde” lavando louças na
cozinha. No âmbito da “prisão” de sua cozinha, numa cena mostra sua
vingança, acendendo todos os eletrodomésticos para fazer barulho e
impedir de ouvir as críticas do fantasma do seu marido sobre seu papel
histórico.
Há ainda outra cena de uma sensualidade
descabida. Diante de um debate forte sobre a resistência do
aprofundamento das políticas neoliberais, ela, impassível, tem seu
vestido ajustado por uma serviçal, que aparece apenas de costas e que
foca todo seu trabalho em ajustar os peitos da dama de ferro. Numa cena
em que os homens do partido falam que não poderão mais aguentar o arroxo
[cortes de salários], a câmera foca nos peitos pendularmente. No final,
ela aparece triunfal, dizendo que esse remédio amargo iria aplicar no
seu povo/doente que precisava de remédio, segundo ela própria.
A figura autoritária é tão forte que mais
tarde, quando consulta o médico, ela dá uma lição de moral dizendo-lhe
que ele deveria perguntar o que ela pensa, não o que ela sente. Ou seja,
quando está de um lado, aplica o remédio e pronto; quando está do
outro, ensina ao médico a não aplicar o remédio. O filme com isso
naturaliza o remédio, como se Thatcher não tivesse historicamente sido a
responsável pelo desemprego massivo que criou com suas medidas.
Quando foi primeiro Ministra da Educação,
além de ter fechado várias escolas, uma de suas medidas mais
controversas foi acabar com o leite da merenda escolar. O filme, que em
nenhum momento fala disso, começa com Thatcher fugindo do controle de
seus empregados e indo ao mercadinho comprar leite, e reclamando do
preço do leite, que havia subido de novo. Ela compra o leite em meio a
desconhecidos, como se tivesse finalmente se misturado, passando, ironia
da história, a ser uma igual.
Também o discurso antiterrorista
acompanha todo o filme, assim como atentados do IRA, que vão seguindo ao
longo da trama. Não aparece, no entanto, a intransigência da
personagem, essa memória que se constrói possui apenas um lado.
Interessante observar como o discurso de realocação do papel histórico
de figuras deploráveis para a classe trabalhadora, como Thatcher, segue
uma linha parecida com aquela usada nas biografias de grandes fascistas,
como no caso do ditador português Salazar, que é mostrado como um homem
solitário, e que seria o preço a pagar pela dedicação de uma vida
inteira à “causa pública”. Nessas biografias desaparecem seus apoiadores
e todos aqueles que lucravam com suas decisões. No caso de Thatcher,
vemos raramente relações pessoais além da família. Uma cena de seu
triunfo pós-guerra das Malvinas a mostra bailando com ninguém menos que
Ronald Reagan, como se fosse um conto de fadas.
Desde o início do filme suas lembranças
vêm acompanhadas da moral de que o Estado não deve intervir, não “sabe” o
que fazer, e que cabe às pessoas cuidarem de si. Isso remete ao
mercadinho no qual trabalhava para ajudar seu pai, denotando um estigma
contra o trabalho que segue demarcando todo o filme: “a filha do
merceeiro”. Uma menina ousada, auto-suficiente, cheia de iniciativas. O
ideal neoliberal vai aparecendo nas suas falas, embora não tenha
identidade, não apareça como um projeto de hegemonia. Aparece com ela
dizendo que as pessoas têm que aprender a “controlar-se”, a gastar
menos; ou dizendo que sempre há os que vêm “comer de graça” (alusão à
criação da Comunidade Européia). Seu discurso antiorganização sindical,
antitrabalhadores está presente o tempo todo, num crescente que ao invés
de dizer realmente o que ela estava fazendo, mandando reprimir, bater,
destruir, quebrar a espinha dorsal do movimento operário, constrói, ao
contrário, uma imagem de uma mulher forte que sabe tomar decisões em
momentos difíceis. As imagens difusas de trabalhadores sendo pisoteados
por cavalos são totalmente desfocadas em função do close na
coragem e nos peitos de Thatcher. Uma mulher que não quer saber de
conversa, não há entendimento possível. Como se essa posição, uma vez
mais, fosse apenas fruto de uma grande personalidade. O desprezo para
com os trabalhadores aparece em frases como “muitos já estão quase a
morrer de fome” – terão que voltar ao trabalho. O ideal que ela diz que
sabe que está preservando, sua verdade que porta é: liberdade e
oportunidade. O filme coloca em suas falas o “desejo de dizer o
indizível”, ou seja, de tomar essas medidas; alguém ambicioso e com
princípios, embora não diga quais são do ponto de vista histórico.
A mudança em seu perfil pessoal também
aparece no filme, tomando aulas de postura de voz, mudando o penteado
para deixar de parecer uma dona de casa, e o marido sempre como
figurante nessas cenas, o que não faz qualquer sentido. A lógica da
estetização da política paira no ar. E aos poucos o filme mostra a
virada em sua vida, em que os homens começam não apenas a respeitá-la
mas a admirá-la.
Em 1979, quando assume como
primeira-ministra suas palavras são claras: o país “que amamos” tinha um
preço a pagar para livrar-se do “socialismo”, ou seja, da organização
dos trabalhadores. E, para ficar completo, não podia deixar de rezar uma
oração de São Francisco: onde houver dúvida, que eu leve a fé. Ou seja,
minha verdade vos libertará!!!
Mas o filme se torna ainda mais
insuportável quando mostra a invasão das Malvinas. A arrogância de uma
guerra aparece uma vez mais como fruto da vontade de uma mulher que
percebe que seu país estava com a honra ameaçada, e justamente essa é a
tônica final, que a mostra com um mundo a seus pés depois da guerra. Se
antes já sentimos falta de alguns amigos queridos seus, aqui nos
perguntamos porque o filme não mostra Pinochet lhe cedendo bases
militares dentro do território chileno para atacar as
Malvinas-argentinas?
Sempre há riscos em qualquer filme
histórico, que busque a reconstituição da história. Esses filmes têm
toda liberdade de interpretar, mas sua visão corre o sério risco de
aparecer como um todo fechado, uma verdade absoluta. Por isso é mais
grave, aparece como verdade porque “mostra”. Evidentemente que tudo o
que é narrado não ocorreu sem oposição, sem resistência, embora a ênfase
fosse sempre ocultada. O que prevalece são mulheres chorando quando
Thatcher deixa o poder, como se fossem as mulheres que tivessem sido lá
representadas.
A memória vai sendo reconstruída, a
história passa a ser recontada a partir dela. E, por isso, a força do
personagem e a “individualização” das decisões e da linha política. Por
isso o personagem mostrado não titubeia, não tem dúvidas, faz parecer
que a história se move para atender sua vontade.
O jornal francês Libération fez
uma vasta matéria sobre o filme. O mais interessante foi que deu voz a
pessoas que eram mineiros na época de Thatcher e a manchete é: “Quando
ela morrer, nós faremos a festa!”.[2] Segundo o jornal, abaixo de um frio imenso os velhos mineiros se reuniram para ver o filme e urravam: “Maggie, Maggie, out, out, out”
[Margarida, Margarida, fora, fora, fora], como na época das greves em
1983-84. O filme tem servido para reavivar a raiva desses homens e
mulheres, mostrando o lugar onde milhares de pessoas perderam seus
empregos por causa das decisões da primeira-ministra. Também as suas
mulheres estão indignadas contra o retrato de Thacher “ícone feminista”,
que o filme tenta passar: “Ela jamais defendeu as mulheres, não se
bateu por seus direitos, não colocou mais mulheres no seu governo”,
inclusive “queria mesmo estar sozinha no mundo de homens”. E recorda a
cena chocante em que Thatcher passava impassível de carro enquanto as
manifestações dos mineiros quase derrubavam seu carro: “mas o filme não
mostra uma só vez por quais razões os mineiros estavam encolerizados,
eles tiveram suas vidas destruídas, eram pessoas desesperadas”. E segue
uma mulher de um ex-mineiro: “as verdadeiras damas de ferro são as
mulheres dos mineiros, que enquanto tinham seus maridos pagos
miseravelmente, ou que quando faziam greve não podiam pagar as dívidas,
mesmo assim continuaram a chegar ao fim do mês como conseguiam.” Narra
pessoas que perderam sua casa, seus maridos ficaram a ver navios.
Um homem diz: “ela é apresentada no filme
como uma heroína. Mas ela não era nada disso, era uma bruta, tirana,
que jamais teve qualquer compaixão pelas pessoas que batalhavam pelos
seus empregos, não por férias ou melhores salários”, como o filme leva a
crer. A conclusão é sintética: Thatcher foi “sobretudo uma
personalidade que dividia, ela foi a principal responsável pela
destruição de toda a indústria manufatureira do país. Ela começou pela
indústria de estaleiros navais, depois o aço, o carvão e, finalmente,
aliada a Rupert Murdoch (magnata da imprensa), ela destruiu a indústria
gráfica”. Esta é sua herança. “Ela é odiada por aqui e, quando morrer,
nós faremos a festa nas ruas, eu posso lhes assegurar”. Seria sem dúvida
uma tentativa de vingança histórica contra uma memória forçada, forjada
e falsa de uma “heroína”. Totalmente compreensível essa visão dos
trabalhadores, mas o passo adiante é perceber que, diferentemente do que
propõe o filme, as medidas por ela adotadas e impostas não foram apenas
fruto de seu desejo de poder, e sim uma prática sistemática e
articulada do capitalismo como reação à crise dos anos 1970.
A conclusão de outro comentador do jornal
é interessante: tudo isso não faz deste filme um filme ridículo ou mal
feito, mas um filme resolutamente de direita, e que por ser bem feito é
que vai passar a construir relatos históricos. Com um fervor sincero ele
exalta as virtudes de uma “Grã-Bretanha grande outra vez”.[3]Ou
seja, como filme de qualidade técnica (ganhador de prêmios), será
certamente mais assistido do que as aulas de história que se podem
produzir para criticá-lo.
Também no francês Le Monde lemos uma pergunta instigante: “porque ela fez isso? Com que apoios?”[4] Não saberemos assistindo o filme. Já na revista brasileira Veja,
que sempre exaltou a figura de Thatcher, identificamos uma “leoa do
inverno”: “a primeira-ministra que era exatamente aquilo que os
britânicos precisavam”.[5] A crônica na revista reproduz a fala
da própria diretora [realizadora], que justifica seu filme dizendo que
apenas quis mostrar a visão da própria história, sem “fazer julgamento
histórico”, como se isso fosse possível, e como se o resultado não fosse
um julgamento histórico apriorístico e hegemônico do início ao fim.
Afinal, reafirma que a sua queda se deu porque “tinha razão” em
vaticinar contra a entrada na zona do euro, e por isso foi punida,
segundo a resenha de Veja, que ainda cobra mais do filme. Parece
descontente com tanto foco na demência da personagem, cobrando que se
diga, didaticamente, que havia coerência no seu pensamento e que ela
apenas “dizia o que os ingleses realmente precisavam ouvir”. Por isso,
nas três páginas da revista, repleta de imagens, há espaço de destaque
para suas “benfeitorias”: resistência aos sindicatos; privatização;
limites à Comunidade Europeia; enxugamento do estado de bem-estar
social; intransigência com as ameaças externas; intransigência com o
terrorismo; articulação entre EUA e URSS. Cada item vem explicado, como
uma homenagem e uma lembrança, reafirmando os princípios em comum.
Notas
[*] Docente do Curso de História e do PPGH da UNIOESTE. carlalusi@gmail.com
[1] TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa, Unipop, 2012, p. 11.
[2] Libération, mercredi. 15 février, 2012, À l’affiche. Cinéma. III. Sonia Delesalle Stolper.
[3] Libération. En fer et dame nation. Bruno Icher. 15/2/2012, p. II.
[4] Le Monde, 15/2/2012, p. 26. Une biographie cosmétique et vaine pour un colosse politique. Thomas Sotinel.
[5] Veja. 22/2/2012, p. 95. Isabela Boscov.
[N.E.] (c) Copyleft: É livre a reprodução para
fins não comerciais, desde que o autor e o site passapalavra.info sejam
citados e esta nota seja incluída http://passapalavra.info/?p=53801
Fonte: Revista Pittacos
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