Por Antônio Engelke
Vender um filho recém-nascido, um rim, ou leiloar a própria virgindade, seriam atos corretos, moralmente aceitáveis? A última edição da revista Veja procura refletir sobre tais questões, mostrando as duas posições intelectuais mais influentes este debate. De um lado, a perspectiva economicista de Gary Becker e Richard Posner, segundo a qual o mercado livre é o melhor árbitro das decisões: se adultos conscientes resolvem por livre e espontânea vontade vender o seu corpo para outros adultos igualmente conscientes e livres, sem que isto prejudique uma terceira parte, então não há problema algum. De outro, a perspectiva cívica de filósofos como Michael Sandel, que chama a atenção para os malefícios advindos da migração da lógica fria do mercado para domínios outros que não o da economia. Seguindo Kant, Sandel argumenta que o ser humano é dotado de uma dignidade intrínseca, e que a mercantilização das relações sociais (o “tudo tem um preço”) corroeria algumas das virtudes que nos seriam mais caras.
Como é de seu feitio, Veja logo decreta quem está com a razão. Diz a revista: “Ele [Sandel] tem toda a razão. É evidentemente doentia uma sociedade em que seja natural vender o filho recém-nascido, anunciar o próprio rim nos classificados dos jornais, leiloar a virgindade ou comprar votos com a cumplicidade de partidos políticos e parlamentares”. Muito poderia ser dito acerca da retórica utilizada pela revista, ou sobre a sugestão implícita de que o “mensalão” do PT representaria a prostituição da política brasileira. Mas não é este meu objetivo aqui, até porque sou simpático às ideias de Sandel. Prefiro observar o que Veja não diz, e apontar incoerências no modo como a revista se posiciona em relação a assuntos diversos.
A base filosófica do economicismo de Becker e Posner, que Veja acertadamente critica, é a doutrina do utilitarismo. A revista está ciente disto: “Vender a virgindade e comprar o apoio de partidos políticos são duas atitudes que revelam em seus autores a mesma concepção utilitarista e rasa da vida. Uma deprecia a intimidade. A outra ultraja a democracia”. Resumindo bastante: para um utilitarista, não importa o ato em si, somente seus efeitos. Se um ato aumentar o bem-estar para o maior número possível de pessoas, então será válido, mesmo que use de expedientes errados. Tortura é um bom exemplo. Se as informações obtidas ajudarem a salvar vidas, então, para um utilitarista, ela é justificada. O mesmo se aplicaria à prostituição ou à compra de votos.
Para recusar o utilitarismo, Veja recorre a Sandel. A máxima utilitarista “não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos” estaria duplamente equivocada: primeiro porque ovos, ao contrário de homens, não possuem uma dignidade intrínseca que deve ser respeitada, e depois porque se a motivação para a “quebra” dos ovos não for ela própria virtuosa, então o omelete resultante será moralmente injustificável. Para Sandel, o que importa não são os efeitos das ações, mas sim suas motivações, o “em nome de que” elas são feitas, e o modo através do qual são realizadas.
Agora repare como as coisas são curiosas. Veja endossa o anti-utilitarismo cívico de Sandel a fim de criticar a invasão da lógica econômica tanto no domínio privado da intimidade (a venda do corpo) quanto no domínio público da política (o “mensalão”) – argumento com o qual concordo, aliás. A revista só se esquece de dizer que o principal responsável por esta invasão foi precisamente o neoliberalismo, que ela não se cansa de elogiar. O mantra neoliberal do “Estado mínimo” é a expressão mais clara de uma ideologia que só autoriza políticas que cumprem a função de atender primeiramente aos interesses do mercado. Se fosse coerente com os princípios que alega defender, Veja criticaria o financiamento privado de campanhas, pois é aí que começa a influência da lógica do mercado sobre a política. Se bancos e empreiteiras podem “doar” centenas de milhões para partidos, é de se esperar que queiram receber algo em troca. O “rabo preso” dos candidatos levados ao poder pelo grande capital privado é uma das nascentes da corrupção do sistema político como um todo. No entanto, você jamais verá Veja defendendo o financiamento público de campanhas. Por que? Porque a ideologia que visa a reduzir a atuação do Estado ao mínimo, que a revista elogia com fervor religioso, só pode se manter influente se o grande capital privado continuar ditando as regras do jogo político.
Um peso e duas medidas, portanto. E há mais exemplos. Como num passe de mágica, a antipatia de Veja pelo utilitarismo desaparece quando o assunto muda de sexualidade para segurança pública. O título da matéria de Veja sobre filme “Tropa de Elite 2” dizia que capitão Nascimento era “um herói do lado certo” (edição 2190). Mas o personagem vivido por Wagner Moura é a encarnação do pior tipo de utilitarismo, que desrespeita a dignidade intrínseca do ser humano e também as leis do país. Embora lute contra o crime, Nascimento não é um herói, mas um criminoso. Recordemos: em “Tropa de Elite 1”, ele tortura um menino (artigo 1o da Lei n. 9.455/97) e executa um policial corrupto (homicídio qualificado: artigo 121, parágrafo 2o do Código Penal); no segundo filme, faz uma escuta telefônica sem autorização judicial (artigo 10 da Lei n. 9.296/96) e espanca um político (lesão corporal, artigo 129 do Código Penal). Onde foi parar a preocupação com a moralidade e a justeza da ação em si?
Nas páginas de Veja, a recusa do utilitarismo em favor de um civismo humanista, assim como a defesa de uma política que não seja contaminada pela economia, são bastante parciais. Valem para alguns assuntos, não para outros. O que nos leva a duas conclusões: 1) se Veja mobiliza pontualmente a filosofia de Michael Sandel não é em função da adesão verdadeira aos seus princípios, mas sim porque serve como instrumento conveniente para o projeto moralmente conservador da revista (desnecessário lembrar sua oposição ao aborto, aos direitos homossexuais etc.); e 2) o próprio fato desta mobilização de princípios filosóficos ser seletiva revela o quão utilitarista é o espírito que anima a publicação. A explicação é simples. Há algum tempo a revista abandonou o desejo sincero de informar, ocupando-se apenas de sua obsessão em derrotar o projeto da esquerda no Brasil. Veja enxerga a si própria como um exército em guerra, cuja vitória final viria redimir o vale-tudo retórico por vezes mentiroso e frequentemente incoerente que usa como armas.
Fonte: Revista Pittacos
Ley de Medios já!
ResponderExcluirExcelente texto!
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