quinta-feira, 29 de março de 2012

Questões de distribuição da riqueza social: Engels, sobre Dühring



280312_engelsDiário Liberdade - [Thomas Riggins, Countercurrents] 26 de março de 2012. “E o senhor Dühring se auto-homenageia, ele mesmo, ao preocupar-se tão comoventemente, numa mistura de inocência de pomba e astúcia de cobra, com o mais-consumo moderado dos Dührings do futuro.” Engels,Anti-Dühring, III-4, “A Distribuição”, p. 298

No penúltimo capítulo de Anti-Dühring, Engels discute as noções de Dühring, sobre como o produto social será distribuído no “socialitarismo” dühringuiano: Anti-Dühring, Parte III, cap. 4[2].
A primeira coisa a lembrar, da discussão prévia sobre “produção” é que Dühring nada vê de errado no modo capitalista de produzir; e o sistema de comunas pelo qual ele organizaria a sociedade preservava esse modo de produzir. O grande mal a ser superado estava no modo de distribuir, na distribuição.
Engels jamais suspeitaria que futuros “socialistas” de tradição marxista continuariam às voltas com os mesmos conceitos (que Engels chamava de “alquimias sociais”), quase 150 anos, no século 21, quando as “alquimias sociais” atenderiam pelo nome de “socialismo de mercado”.
Dühring trata a distribuição como independente da produção. Uma vez produzido o produto social, o que se faria mediante a observância das necessárias leis operatórias da produção capitalista, o produto poderia ser distribuído por um ato de vontade, de modo que assim se faria “justiça universal”. Seria possível porque, numa comuna, todos devem trabalhar e consumir baseados em que todas as formas de trabalho teriam valor igual. Esse sistema prevaleceria tanto dentro de cada comuna como nas relações entre as comunas. Além disso, o valor de troca estaria ligado ao valor de metais preciosos. Esse sistema seria um passo além das “noções enevoadas” de pensadores como Marx.
Vejamos então no que deu essa “justiça universal”. Acompanhando Engels, tomemos uma comuna modelo de 100 trabalhadores, que trabalham 8h/dia e produzem, cada um, mercadorias no valor de $100 ou um total de $10.000 em produtos. Digamos que trabalhem 250 dias/ano, com produção anual de $2,5 milhões. O modelo de “justiça universal” de Dühring exige que cada trabalhador receba o exato valor de seu trabalho, que seria 250 x $100 = $25 mil/ano. A comuna lhe paga todo o valor que ele cria, portanto, como diz Engels, ao final de um ano ou de um século ou de mil séculos, “a comuna continua tão pobre como no começo”. Não há acumulação possível nesse sistema. Os indivíduos conseguem acumular, porque um trabalhador sempre pode se autoprivar de algo e não gastar todo seu dinheiro num dado período de tempo, mas a sociedade não consegue acumular para qualquer expansão econômica nem para executar qualquer tipo de programa social.
E esse não é o único problema da comuna de Dühring. O fato de os trabalhadores todos receberem salário idêntico implica que um trabalhador solteiro sempre terá mais dinheiro para economizar que um trabalhador que tenha de sustentar família numerosa. Gradualmente, ressurgirão os ricos e os pobres, e, eventualmente, todos os problemas da sociedade capitalista. Não há leis ou regras ou regulações capazes de deter essa tendência, como exige a “justiça universal” de Dühring, dado que os trabalhadores também teriam o direito de fazer o que bem entendessem com o próprio dinheiro.
E, dado que o dinheiro seria a “encarnação social” do trabalho humano, e operaria pelas leis da economia capitalista, tanto na comuna dühringuiana como no mundo circundante, Engels concluiu que todas as regulações e leis que Dühring conceba para controlar o dinheiro “serão sempre tão impotentes contra ele quanto são impotentes contra a tabuada ou a composição química da água”.[3]
O sistema de Dühring não se mantém sobre as próprias pernas, porque ele, não Marx e outros socialistas, vivem sob o fascínio de “noções enevoadas”. Dühring absolutamente não entende as condições básicas de operação do sistema capitalista. Não foi o único, nos dias de Engels, a pretender explicar a economia sem realmente entender o que se passa no mundo – fenômeno tão rampante hoje, no século 21, quanto foi no século 19. Por isso, nesse ponto da polêmica contra Dühring, Engels faz uma pausa, para dar uma aula aos trabalhadores, de Introdução à Economia para o 1º ano do ginásio.
Para Engels, a economia capitalista baseia-se na produção de mercadorias e o único valor que o capitalismo considera é o valor da mercadoria. Dizer que determinada mercadoria tem tal valor é dizer quatro coisas sobre ela: (1) que tem um valor de uso (serve para alguma função socialmente reconhecida); (2) que foi produzida privadamente [num exemplo de modelo simples de capitalismo, não numa economia complexa nem no capitalismo de estado]; (3) que é produto de trabalho individual, mas “inconscientemente e involuntariamente” também é um produto social que contém trabalho humano em geral, avaliado mediante troca; e (4) o valor do trabalho social contido naquela mercadoria é avaliado por outra mercadoria.
Engels dá o exemplo de um relógio que tenha o mesmo valor que alguns metros de pano, digamos “50 shillings”.
Isso significa, apenas, que se mobilizou a mesma quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário para fazer o relógio e para fazer aqueles metros de pano. Dado que não vivemos numa sociedade de trocas, desenvolveu-se uma mercadoria especial, usada para aferir os valores sociais relativos de todas as mercadorias, umas em relação às outras – e a essa mercadoria chamou-se dinheiro.
A expressão “valor relativo” é importante. Não se pode determinar o “valor absoluto” de todas as mercadorias – i.e., calcular o exato valor da força de trabalho usada para criar cada mercadoria. Isso, por causa da complexidade do sistema capitalista e das variações do custo do trabalho e do tempo de trabalho de fábrica para fábrica, de local para local. Com o tempo, todos esses fatores foram-se organizando e as mercadorias passaram refletir seus respectivos valores relativos, a quantidade relativa de tempo de trabalho socialmente necessário para criá-las, que passou a ser expressa em quantidades de dinheiro. Os preços são reflexo do valor relativo, não do valor absoluto, e podem flutuar muitíssimo em torno do valor real das mercadorias –, mas ao longo do tempo, acabam por refletir os valores reais que subjazem nos preços, mas de um modo relativo.
Engels oferece um exemplo, da química de seu tempo. Diz que os pesos atômicos absolutos dos elementos eram desconhecidos; então os cientistas usaram o hidrogênio como “1” e expressaram os pesos atômicos relativos dos outros elementos como se fossem múltiplos do hidrogênio. É como elevar “ouro” [ou o que se use como dinheiro] ao nível de mercadoria absoluta, equivalente geral de todas as demais mercadorias” e usá-lo para medir o valor relativo do trabalho humano (social) contido nas mercadorias.
Também é importante entender a expressão “trabalho social”. Não é o trabalho individual cru que determina o valor de uma mercadoria. O que dá às mercadorias o valor que tenham é a quantidade de trabalho que numa dada sociedade é necessário para produzir cada mercadoria – a quantidade socialmente necessária de tempo de trabalho. Pelo menos, isso é “valor”, como expresso numa sociedade capitalista.
Numa sociedade comunista, o “valor” não será expresso assim. Uma sociedade comunista terá economia planejada e os trabalhadores conhecerão o valor da força de trabalho que devotarão para produzir os produtos de que a sociedade necessita. O “dinheiro” não será necessário para aferir esse valor.
Engels observa que o que restará, numa sociedade comunista, do “conceito político-econômico de valor” será que os trabalhadores/planejadores terão conhecimento “dos efeitos úteis dos diversos objetos de uso entre eles e das quantidades de trabalho necessárias para produzi-los, ao tomar decisões sobre a produção.”
A noção de “valor” é a pedra inaugural de uma economia baseada na mercadoria e, diz Engels, “contém o germe, não só do dinheiro, mas também de todas as formas mais desenvolvidos da produção e da troca de mercadorias”.
O fato de que essa troca acontece mediada pelo dinheiro, e considerando a complexidade da produção (i.e., que em alguns campos pode estar envolvido mais ou menos do trabalho socialmente necessário), "admite a possibilidade de que a troca jamais aconteça; ou de que, pelo menos, não se realize o valor certo.” Isso é especialmente verdade quando a mercadoria é a própria força de trabalho que, como qualquer mercadoria, tem seu valor determinado pela quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, mas também pode ser forçada a trabalhar por períodos mais longos que o tempo socialmente necessário para que se reproduza.
No instante em que o dinheiro é inventado no interior de uma sociedade que produza, sobretudo, mercadorias, vemos logo esse seu “primeiro e mais essencial efeito”: a mercadorização de todos os aspectos da sociedade na qual, rapidamente, todas as relações começam a ser convertidas em relações de dinheiro, baseadas em interesses individuais privados. Engels menciona a dissolução do sistema de preparo do solo entre os camponeses indianos e o mesmo processo entre camponeses russos e suas comunidades. Inspirados em Marx, bem se poderia dizer “Privatizem, privatizem! Como se privatização fosse Deus, o Evangelho, o Papa e a igreja!”
Voltemos a Dühring e sua turma. Não se pode falar com algum sentido sobre “valor do trabalho” e como cuidar para que o trabalhador receba “todo o valor”, como faz Dühring ao expor seu sistema de comunas. Se se mede o valor das mercadorias pelo trabalho nelas contido, não se pode falar, nos mesmos termos, sobre o valor do trabalho. Engels diz que o mesmo acontece com o peso.
Pode-se medir o quanto pesa uma mercadoria, numa balança, pelo peso; mas não se pode falar em peso do peso. O que Dühring e outros tentam fazer é medir o “valor” do trabalho, pelos produtos produzidos (quando, de fato, é preciso medir pelo tempo) e, em seguida, pensam que fazer operar o socialismo é cuidar para que “o pleno resultado do trabalho” seja pago ao trabalhador. Isso significa que todo o valor que a classe trabalhadora cria é devolvido em termos de cada indivíduo receber todo o valor que criou.
Aí, é claro, nada sobra para os capitalistas. Dühring não vê que “a função mais progressista da sociedade” é a acumulação social. Por isso, aliás, os marxistas tanto prezam o Fundo Geral de Consumo [orig. General Consumption Fund (GCF)]. Os trabalhadores não recebem de volta 100% do valor que criaram. O ‘estado’ ou seja qual for o arranjo social que o substitua, toma uma parte do valor criado e o guarda no Fundo Geral de Consumo, o qual o dispersa para toda a sociedade (subsídios para aluguéis e alimento, atendimento à saúde, educação pública, manutenção e reparo de máquinas etc.) A classe trabalhadora recebe, assim, o valor que cria, tanto coletivamente como individualmente. O sistema dühringiano acabaria estagnado e viria abaixo – é nonsense econômico.
Por fim, Engels observa que a lei do valor é a “lei fundamental” da produção de mercadorias e, assim, também do capitalismo – “a mais alta forma” de produzir mercadoria. A lei do valor afirma que mercadorias criadas por trabalho social igual são iguais entre si – quer dizer, são mutuamente intercambiáveis. Em nossos dias, como nos dias de Engels, o único modo de manter válida essa lei, no capitalismo, “é considerá-la cegamente, como lei da natureza, inerente às coisas e às relações, e independente do desejo ou da ação dos produtores.”
E Dühring apela exatamente a essa lei, quando sonha com criar comunas onde trabalho igual seja trocado por trabalho igual baseado em seu “princípio universal de justiça”. Pensa que seja possível preservar relações econômicas capitalistas, e abolir os abusos aos quais essas relações levam. Nesse sentido, parece Proudhon, que também queria “abolir as consequências reais da lei do valor, pelos meios mais fantásticos.”
Engels fecha seu capítulo comparando a busca de Dühring por uma nova sociedade baseada em suas ideias de distribuições justas, à busca do Don Quixote pelo elmo de Mambrino que, bem examinado, nunca passou de uma bacia de barbeiro.

[1] Thomas Riggins é editor associado da revista Political Affairs (http://www.politicalaffairs.net/) e colaborador da revista People's World  (http://www.peoplesworld.org/), ambas online.
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores [NTs].
[2] ENGELS, Friederich, Anti-Dühring [publicado na revista Vorwärts, de 3/1/1877 a 7/7/1878]. Parte do livro é acessível em português (e detalhes da tradução), em http://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/index.htm. O capítulo aqui comentado (Parte III, Socialismo; cap. IV, Distribuição), infelizmente, não aparece traduzido lá. Pode ser lido em espanhol, em http://www.ucm.es/info/bas/es/marx-eng/78ad/78AD304.htm  [NTs].
[3] “O dinheiro impõe a forma de mercadoria e arrasta ao mercado até objetos produzidos para consumo próprio direto. Assim, a forma mercadoria e o dinheiro irrompem até no interior doméstico das comunidades diretamente associadas para produzir, e quebram, um depois do outro, os laços comunitários e fazem explodir a comunidade num monte de produtores privados” (Engels, Anti-Dühring, III-4, p. 308) [Nts].

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