Por Valério Arcary
"A liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente". (Rosa Luxemburgo)
"Liberdade é o direito de estar errado, e não de fazer errado". (John Diefenbaker)
"Duas
coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que
respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta". (Albert
Einstein)
De
repente, tudo mudou. Nas manifestações de segunda, 17 de junho,
aconteceu algo excepcional, algo de inusitado e heroico, que remete ao
extraordinário, ao imprevisto, ao grandioso. Bonita, magnífica,
majestosa, em São Paulo, no Rio de Janeiro e pelo Brasil afora, a
juventude saiu às ruas e fez tremer a Avenida Paulista e a Rio Branco,
fez tremer os banqueiros, fazendeiros, empreiteiros, fez tremer os
comandos das Polícias Militares, os governadores, prefeitos, deputados e
até o último dos vereadores. Nesse dia, toda a ordem econômica, social e
política que preserva o Brasil como um dos países mais injustos do
mundo tremeu. Eles não podiam ir dormir. Tinham que procurar uma
explicação. Porque eles precisavam entender porque são desprezados.
Foi
surpreendente, mas sabíamos que teria que acontecer, que estava no
horizonte, pelo que esperamos por vinte anos; esperamos, alguns, uma
vida inteira. O que tinha sido, até então, em quatro passeatas corajosas
em São Paulo, um protesto contra o aumento das passagens, se agigantou
em manifestação política nacional e, de repente, tudo mudou. O
capitalismo brasileiro, que estava comemorando as suas grandes obras, os
seus estádios, suas hidrelétricas, foi para a cama de olhos
arregalados, assustados.
Mudou porque esta
geração da juventude, a mais escolarizada da história do Brasil, os
desaprova, os condena, os odeia. Pior e mais importante que tudo, temem
que a juventude esteja somente abrindo a porta para a entrada em cena da
classe trabalhadora. Se os milhões de assalariados, que fazem o Brasil
ser um dos países periféricos com um dos maiores proletariados do mundo,
entrarem na briga, o que vai estar em disputa não será somente a
anulação do aumento das passagens. Esta aliança da classe trabalhadora
com a juventude é a maior força social que existe. Foi assim nas
Diretas. Foi assim no Fora Collor.
Por que mudou?
Mudou porque éramos muitos, éramos centenas de milhares, e isso faz
toda a diferença. Mudou porque eram milhões que nos apoiavam. Mudou
porque aqueles que não saíram nas ruas nessa semana virão nas próximas.
Mudou porque nossos inimigos se calaram, silenciaram, roendo as unhas.
Mudou porque aquilo que é justo merece vencer. A alegria tomou conta das
ruas e o medo tomou conta dos palácios. Eles gemeram, e nós cantamos.
Andamos,
gritamos e cantamos, como deve ser. Aliás, como andamos em São Paulo!
Muitos cartazes maravilhosos: "Se o povo acordar, eles não dormem!",
"Não adianta atirar, as ideias são à prova de balas!", "Não é por
centavos, é por direitos!", "Põe a tarifa na conta da Fifa!", "Verás que
um filho teu não foge à luta!", "Se seu filho adoecer, leve-o ao
estádio!", "Ô fardado, você também é explorado!".
Mas,
se apareceu o que existe de mais generoso, valente e solidário no
coração da juventude, apareceu, também, o que existe de ingênuo, confuso
e até reacionário. Não foi tudo progressivo. Apareceram jovens
embriagados de nacionalismo, embrulhados na bandeira nacional, e
cantando "sou brasileiro com muito orgulho e muito amor". O nacionalismo
é uma ideologia política perigosa. Só é positivo quando defende o
Brasil do imperialismo. Acontece que não parecia que os que cantavam o
hino estavam de acordo em exigir a anulação dos leilões de privatização,
portanto, de desnacionalização do petróleo do Pré-Sal.
Alguns
destes jovens fizeram ainda pior. Avançaram sobre militantes de
esquerda e suas bandeiras. Atacaram as bandeiras do PSOL, do PCB e do
PSTU. Por sorte, não aconteceu uma tragédia: porque a militância da
esquerda tinha o direito e a disposição de defender suas bandeiras, a
qualquer custo, e poderia ter se precipitado uma pancadaria séria, com
feridos.
Gritar "sem violência" não é o mesmo que
gritar "sem partidos". Quando gritamos juntos "sem violência" estamos
denunciando a presença de provocadores infiltrados da polícia que querem
oferecer um pretexto para a repressão. Não estamos condenando o direito
legítimo à autodefesa, um direito inalienável, que qualquer um aprendeu
no jardim de infância.
Estamos tentando impedir
que nossas manifestações sejam destruídas pela repressão, e que esta
repressão consiga ganhar apoio do povo contra a juventude. As televisões
usaram e abusaram de imagens de uma estação de metrô depredada. O povo
que trabalha é contra a destruição do metrô. Foi isso que Alckmin tentou
fazer, por quatro vezes, manipular a população acusando a juventude de
vandalismo, e foi derrotado.
Gritar "sem
partidos", contra a esquerda, é muito diferente. Que uma parcela de
juventude ingênua tenha profunda repugnância pela política, que associe
toda a esquerda ao PT, o PT à corrupção, e o Haddad ao aumento, embora
seja superficial, portanto, meia verdade e meia mentira, é
compreensível. Que grupos reacionários, nacionalistas, que estão contra o
governo Dilma pela ultradireita, que odeiam a esquerda porque ela
representa o projeto coletivista e igualitarista da classe operária,
aproveitem da confusão de uma manifestação com muitos milhares para
expressar seu ódio de classe, insuflados por Jabor da Rede Globo, é
previsível. Que alguns pequenos núcleos de inspiração anarquistas - não
todos, vale ressalvar! - ainda insistam na divisão do movimento,
querendo impor pela força dos gritos sua ideologia, é antidemocrático,
divisionista, portanto, lamentável.
Mas o que
aconteceu em São Paulo, no Rio de Janeiro e Salvador foi diferente e,
muito, muito mais grave. Foi parecido com o Cairo, onde a Irmandade
Muçulmana tentou impedir a esquerda de se apresentar publicamente.
O
que aconteceu foi que jovens de rosto coberto, mascarados, alimentando a
ilusão de que a intimidação física é o bastante para vencer na luta
política, foram a linha de frente de um ataque covarde, quando estavam,
acidentalmente, em maioria, e tentaram derrubar as bandeiras vermelhas.
Não conseguiram fazê-lo, nem no Rio, nem em São Paulo, mas conseguiram
em Salvador.
As lutas são apartidárias, mas não
são monolíticas, são plurais. À exceção dos reacionários, marchamos
todos juntos, não importa a ideologia, pelas reivindicações comuns que
nos unem. Cada um abraça sua ideologia, seu programa e, se quiser, um
partido. Sim, porque na vida, é preciso, mais cedo ou mais tarde, tomar
partido. Mas, dentro do movimento ninguém pode impedir os outros de
apresentarem sua identidade, ou de expressar sua posição.
O
antipartidarismo, mais grave quando se dirige contra a esquerda
socialista, é uma ideologia reacionária e tem nome: chama-se
anticomunismo. Foi ela que envenenou o Brasil para justificar o golpe de
1964 e vinte anos de ditadura.
O PSTU vai
empunhar suas bandeiras. O PCB e o PSOL certamente farão o mesmo. E os
honestos anarquistas, aqueles que sabem que nenhuma aliança com a
direita anticomunista é correta, com certeza terão a coragem de
desfraldar suas bandeiras libertárias. Não deixem abaixar as bandeiras
vermelhas. Foram os melhores filhos do povo que derramaram seu sangue
pela defesa delas.
Valerio
Arcary é militante do PSTU e professor do IF/SP (Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia) e doutor em história pela USP
(Universidade de São Paulo).
Publicado originalmente no Correio da Cidadania.
Fonte: Brasil de Fato
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