A direita e a grande mídia já estão preparadas.
Chegou a hora de reafirmar os ideais da esquerda, formular uma pauta de
reivindicações unificada, intensificar o trabalho de base e, sobretudo,
tomar as ruas!
Clara F. Figueiredo, Lucas Amaral de Oliveira, Rafael de Souza e Rafael Schincariol,
do Viomundo
Atos contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo
A
prefeitura e o governo do Estado de São Paulo anunciaram, no dia 22 de
maio de 2013, o aumento da tarifa dos ônibus, trens e metrôs na capital
paulista – de R$ 3,00 para R$ 3,20.
Em vista
disso, o Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL/SP) organizou diversos
atos contra o aumento. Nos três primeiros atos, observou-se, de um lado,
confusão e violência devido à forte repressão policial, de outro, uma
ação de denúncia e deslegitimação do movimento por parte da grande
mídia, que, na época, qualificou os manifestantes como “vândalos” e
“baderneiros”.
Entretanto, esse panorama geral
das manifestações mudou a partir do 4° ato (13.06), quando São Paulo
vivenciou cenas de guerra urbana. A polícia atacou indiscriminadamente
manifestantes, jornalistas e transeuntes com bombas de gás lacrimogêneo,
spray de pimenta e balas de borracha.
Os abusos
iniciaram-se antes mesmo do começo do ato, quando dezenas de pessoas
foram detidas “para averiguação” – prática comum do regime civil-militar
–, algumas apenas por portarem vinagre – usado para reduzir efeitos do
gás. Desse modo, o foco se voltou para a brutalidade da polícia.
Posteriormente,
houve apoio maciço às mobilizações por parte da população, e os atos
rapidamente começaram a se proliferar em diversas cidades do Brasil e do
exterior em apoio aos protestos.
As inflexões dos protestos: um relato
No
dia 17 de junho, já durante a manhã, um misto de ansiedade e
desconfiança se alastrava, perturbando nossos sentidos em relação aos
protestos. Do 4° para o 5° ato, constatou-se uma mudança radical de
postura no discurso da grande mídia. De baderneiros, passamos a cidadãos
exercendo o direito de manifestação.
Recebemos
uma série de ligações e mensagens. Pessoas próximas, pessoas que não
víamos e ouvíamos há tempos, todos preocupados demonstrando seu apoio e
pedindo informações sobre os protestos que pararam São Paulo. Nas
esquinas, bares, salas de aulas, onde quer que fôssemos, o assunto era o
mesmo – e o mais curioso foi perceber a adesão dos que, antes, eram
contrários a qualquer tipo de manifestação na capital.
A
ansiedade era tamanha neste 5° ato que, já às 16h, estávamos nos
arredores do Largo da Batata – local marcado para o ato. Ficamos
perambulando, registrando e discutindo pautas e futuras ações. Perto das
18h, o ato começou. Seguimos perplexos com a quantidade de gente –
cerca de 250 mil pessoas. “O povo unido é gente pra caralho”, bradava a
multidão contente “por ter acordado”.
Algo
perigoso estava se delineando. Caminhamos, entoamos palavras de ordem,
seguimos a massa que ocupava a Avenida Faria Lima e despertava a atenção
de todos os transeuntes e moradores dos exuberantes prédios da região.
Mas, por algum motivo insólito, naquele momento pouco explicável,
estávamos incomodados. Os rostos pintados de verde-amarelo, o hino
nacional entoado desvairadamente, as frenéticas bandeiras do Brasil, o
moralismo pacifista, as flores, o look fashion, os cartazes com pautas
abstratas e dizeres diversos (até mesmo pedidos por intervenção militar,
pasmem!), tudo, absolutamente tudo, causava desconforto.
Naquele
exato momento mais de um milhão de pessoas ocupavam as ruas em dezenas
de cidades. Em Brasília, inclusive, tomaram parte do Congresso Nacional.
A reivindicação não era mais pela redução das tarifas do transporte
público. Eram múltiplas pautas e insatisfações – dentre elas, os gastos
com a Copa e a corrupção.
Foto: Reprodução/Instagram |
O slogan de uma propaganda da Johnnie Walker no
Brasil, “o gigante acordou”, tornou-se metáfora para as contradições que
pairavam. O 5° ato adquiriu proporções históricas. Há muito tempo não
se via no Brasil tamanha mobilização social. A grande mídia, que
historicamente criminaliza manifestações e movimentos sociais, noticiava
euforicamente o espetáculo. Mas a máscara desse gigante, derivado de
uma farsa publicitária, não tardou a cair.
A
partir do 7° ato (20.06), percebia-se nas ruas e redes sociais a
apresentação de uma extensa agenda de insatisfações e a tentativa de
expurgar aqueles que deram origem às manifestações: movimentos sociais,
coletivos organizados e partidos de esquerda. Os mesmos que gritavam
“sem violência” foram protagonistas de um ataque violento aos membros de
partidos que integravam a manifestação.
Vimos
muita truculência por parte dos auto-intitulados “nacionalistas”. Vimos
pessoas com bandeira do Brasil e máscaras do Guy Fawkes (“V de
Vingança”) agindo como reacionários. Sentimos na pele um clima de
tensão, em que “anti-partidários” se exaltavam raivosamente ao exigir
que bandeiras de partidos fossem baixadas e queimadas: “o ato é do povo
brasileiro, não dos partidos”, gritavam cegos e indignados. Em síntese,
presenciamos a maior passeata de caráter integralista de nossas vidas.
Os
militantes de esquerda foram violentamente expulsos e cerceados do
direito de livre manifestação pública na Avenida Paulista por um grupo
razoavelmente grande e heterogêneo. O próprio MPL/SP, confundido com um
partido, foi expulso de seu ato. Nós – que não pertencemos a nenhum
partido, mas reconhecemos sua importância –, juntos com militantes de
diversas siglas historicamente relevantes na redemocratização do país,
fomos reprimidos ao tentar defender o direito de livre associação
partidária (estavam presentes parte da velha guarda do PT,
sindicalistas, integrantes do PSTU, PSOL, PCB, PCR e PCO, e outras
frentes da esquerda brasileira). O direito de se organizar em partidos
foi conquistado a custo de muita luta. Que sentido haveria em querer
proibi-lo?
Ao mesmo tempo, aproximadamente 1,5
milhão de pessoas se manifestavam em mais de cem cidades brasileiras. Os
gritos de “sem partido”, a louvação “à pátria amada idolatrada”
(referência ao hino nacional) e a multiplicidade de pautas foram marcas
também desses protestos. As manifestações contra o aumento da tarifa em
São Paulo, principalmente após a violenta repressão policial no 4° ato,
foram o estopim que “acordou o gigante”. A questão é: quem é esse
gigante?
Movimento Passe Livre e as mobilizações de rua no Brasil
Após
mobilizações contra o aumento da tarifa do transporte em Salvador
(2003) e Florianópolis (2004), foi criado, no Fórum Social Mundial de
2005, o Movimento Passe Livre (MPL), com o objetivo de lutar pela
gratuidade – tarifa zero – do transporte coletivo urbano.
O
MPL é um movimento horizontal, autônomo e apartidário – mas não
anti-partidário – situado à esquerda no espectro político. Em São Paulo,
o MPL organizou atos contra o aumento da tarifa em 2006, 2010 e 2011.
Os protestos costumavam concentrar cerca de 5 mil manifestantes. Por que
somente agora eles ganharam tamanha proporção?
Apesar
de um histórico de revoltas e mobilizações importantes – como a
resistência contra o regime civil-militar –, e o fato de termos um dos
maiores movimentos sociais do mundo, o Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra (MST), não há, no Brasil, uma cultura política do “cidadão comum”
manifestar-se em espaços públicos. O que teria gerado essa efervescência
política e ativista?
Nos últimos atos, as pautas
mais recorrentes nas ruas – fora a reivindicação pela redução da tarifa
do transporte público – foram: contra os gastos exorbitantes em
estádios construídos para a Copa do Mundo (2014); contra a corrupção;
contra os políticos; e por mais investimentos em saúde e educação.
Tirando
pautas específicas, como os gastos para a Copa do Mundo, esse conjunto
difuso e heterogêneo de demandas fundamenta-se em problemas há tempos
presentes na vida dos brasileiros. Ou seja, isso já deveria ter sido
“barulho” suficiente para acordar o “gigante”. Por que nessa conjuntura
política específica essas agendas heterodoxas foram articuladas em
protestos pelo Brasil afora?
É inegável que as
redes sociais auxiliaram na mobilização, mas por si só não explicam a
ida do povo às ruas. Vale apontar sua importância na pulverização das
pautas heterogêneas e sem relação entre si. Nesse contexto, dois
elementos parecem fundamentais para a compreensão do momento atual: o
crescimento social e econômico que vive o país e uma espécie de
desencantamento generalizado com a política.
Uma breve análise da conjuntura política brasileira
É
fato que a economia brasileira vem crescendo nos últimos anos. Embora
apresente sinais de desaquecimento, o Brasil passou quase incólume à
crise mundial. A sensação de que o país pode se tornar uma potência
mudou a percepção dos brasileiros quanto ao futuro. Isso se intensificou
também com o fortalecimento e expansão da dita classe média (segundo
pesquisa do Datafolha de 2012, 63% da população pertence a essa classe) e
o surgimento de uma “nova classe média” nos governos Lula-Dilma: a
chamada “classe C”.
A inclusão pelo consumo teve
forte impacto nesse contexto. Tudo isso despertou um orgulho nacional
diferenciado, com certo rompimento da lógica da subalternidade que o
brasileiro sempre carregou. Brasileiros compraram e viajaram como nunca.
A mobilidade social e a imagem do Brasil como nação forte e soberana,
somadas aos altos impostos, possibilitaram a conclusão de que serviços
essenciais, como a saúde, educação e segurança estariam aquém do ideal.
Outro
fator central é o descontentamento generalizado com a estrutura
política representativa, o que pode ser compreendido a partir do fato de
que o PT está no governo presidencial há dez anos. A criação do PT
deu-se no âmbito dos movimentos e das manifestações em torno da
redemocratização do país em 1980.
O partido foi
fundado por dirigentes sindicais, intelectuais e ativistas ligados a
movimentos sociais e setores progressistas da sociedade brasileira,
sobretudo de organizações católicas ligadas à Teologia da Libertação.
Durante os anos 80 e 90, o PT atuou, juntamente com outras siglas, na
defesa de temas sociais, políticos e econômicos associados à renovação
da esquerda. Nos anos 90, o PT passou a defender a “ética na política”,
dentro de um programa menos radical.
Essa mudança
de postura permitiu a ampliação de sua base política. Na frente de
oposição, o PT foi crescendo e se burocratizou. Passou a ganhar eleições
até chegar à presidência. Para governar, o partido não optou por uma
ruptura, mas submeteu-se à lógica fisiológica da política nacional, o
que culminou com o escândalo de corrupção conhecido como “Mensalão”. O
partido não era mais o radical-socialista dos anos 80, tampouco o da
“ética na política” dos anos 90, mas o do nacional-desenvolvimentismo.
Apesar
de avanços sociais inegáveis – milhões saíram da pobreza –, há uma
insatisfação geral com o governo do PT. O partido passou a ser visto
como um governo que, apesar de investir massivamente em políticas
sociais, está imerso na lógica da política burocrática brasileira – a
qual, antes, prometia combater. Isto gerou um descontentamento na
esquerda e uma desilusão generalizada.
Nesse
contexto de insatisfação, a direita furtou uma das pautas do PT na
década de 90, e agora lidera a “luta contra a corrupção”. Sem dúvida, há
cinismo, hipocrisia e oportunismo nessa luta, porque ela é direcionada
unicamente à corrupção do PT. Não se debate o fato de que os partidos
que contêm o maior número de “fichas-sujas” e cassações são os de
direita, e muito menos os grandes esquemas de corrupção do governo
Fernando Henrique Cardoso.
Assim, o PT, ao não
cumprir suas promessas de realizar profundas mudanças na democracia
brasileira, terminou por alimentar a insatisfação e a desilusão com os
partidos políticos e com a estrutura democrática formal e
representativa.
"Acordou, gigante? Agora tira a remela de 1964! Nem hino nem bandeira”. Quinto grande ato (17.06) pela redução da tarifa em São Paulo - Foto: Reprodução |
Aviso de incêndio: o nacionalismo e o patriotismo tomam as ruas
Quem
diz entender tudo aquilo que está ocorrendo no Brasil ou está muito mal
informado ou, como nós, arrisca análises apressadas sobre os protestos.
Tudo está um tanto quanto nebuloso, complexo e perigoso, por conta da
eclosão de elementos imprevistos. A situação está ainda em aberto. O
movimento que hoje está na rua é, majoritariamente, de caráter
espontâneo e heterogêneo, despolitizado e repetitivo, composto por uma
parcela significativa da juventude de classe média.
Antes
mesmo da vitória do MPL, a pauta inicial e motivadora dos atos – a
questão do transporte público – foi descaracterizada. Num momento
catártico, impulsionado pelo repentino apoio da grande mídia às
manifestações, uma enxurrada de pautas e insatisfações generalizadas
dominaram os atos. Nessa onda, também entrou em cena a direita,
disputando os sentidos das manifestações.
Grupos
de extrema-direita mais ou menos organizados tentam, nesse vácuo, pautar
e nortear o movimento, fortalecendo o nacionalismo e o
anti-partidarismo.
A conjuntura política dos
últimos atos aponta para a formação de uma competência política
distorcida, na medida em que privilegia os discursos nacionalistas e
patriotas como as primeiras opções ou filtros de pautas e demandas.
É
possível identificar um nacionalismo muito forte, decorrente talvez de
um ardil da grande mídia que apregoa um tipo de “nacionalismo contra a
corrupção da classe política”. Mas o fato que interessa aqui é que esse
nacionalismo se tornou denominador comum da política nessas últimas
semanas, um modo eficaz e mobilizador de decantar e pasteurizar as
demandas do movimento.
Qualquer tipo de discussão
completa sobre pautas no Brasil, nesse contexto, está sendo subsumida e
filtrada pelo patriotismo. O perigo desse patriotismo é justamente o
esquecimento da política, no sentido de que os argumentos em torno de
valores e pautas concretas ficam completamente submetidos à necessidade
de um protesto com a “cara do brasileiro”.
A
discussão encerra aí uma recusa contra a argumentação de ideias, pois
não se trata mais de discutir a consistência de demandas, questões e
políticas de solução de problemas. O nacionalismo e o patriotismo
trouxeram uma desqualificação de antemão que recolocou a questão da
política não nos enunciados, mas sim nos enunciadores.
Ora,
o nacionalismo não é uma resposta imediata às ideias de esquerda. Ele é
um movimento contra portadores e enunciadores das ideias de esquerda. É
a afirmação mesma da legitimidade de quem pode e quem deve participar
da comunidade política e das arenas de disputa – logo, de quem não pode e
quem não deve participar. Assim, ele estabelece que somente os
“verdadeiros brasileiros”, portadores de determinados traços
comportamentais – e sempre prontos a cessarem as disputas políticas em
nome de um sentimento maior de pertencimento –, são os locutores
legítimos e os verdadeiros manifestantes.
Nesse
cenário político-social bizarro, as verdades das demandas se estabelecem
pela autenticidade de quem fala. O nacionalismo traz consigo um
complexo de emoções, comoção, raiva, choro e alegria, que transformam as
manifestações em espetáculo, festa e farsa. A paz e a tranquilidade
desse espetáculo não podem ser perturbadas pela adesão de outras cores –
sobretudo vermelhas.
Portanto, o nacionalismo é a
linha que divide e reparte o direito à fala. O patriotismo, um crivo de
quem pode e quem não pode entrar na política.
Na esquina da história: a esquerda diante do “gigante verde-amarelo”
É
fato que nossa geração não está acostumada a ver uma direita mobilizada
e ocupando as ruas. Estamos todos, no mínimo, espantados diante desse
“gigante verde-amarelo” desenfreado. No entanto, a despeito do estranho
despertar desse gigante nacionalista, não podemos nos abater, não
podemos nos deixar levar pela onda alarmista que está assombrando a
esquerda nos últimos dias. É hora de disputar as ruas, o espaço público,
de levantar nossas bandeiras, defender nossos direitos historicamente
conquistados e, a pleno pulmões, bradar nossas palavras de ordem.
Ainda
não é claro o impacto dessa onda de manifestações e violência para as
lutas posteriores. No entanto, já é possível vislumbrar que, no mínimo,
elas delineiam a retomada de um método histórico de luta: a mobilização e
a ocupação das ruas. Isso fica ainda mais evidente quando observamos a
recente explosão de manifestações no cenário internacional (Primavera
Árabe, Occupy, Indignados, Estudantes no Chile, protestos da Praça
Taksim etc). Recuar agora seria abrir alas à direita. Não devemos nos
afastar das massas. Os coletivos organizados das periferias e outros
setores de esquerda já começaram a se articular.
Como
pontuado, existe um descolamento das organizações políticas e sociais
com suas bases, fruto de uma espécie de desilusão com o sistema
representativo partidário e de uma crescente burocratização de várias
organizações da esquerda – sobretudo do partido governista, o PT.
Portanto,
é nosso papel, enquanto esquerda, retomar e intensificar um amplo
trabalho de base. Estamos diante de um importante momento histórico, em
uma “esquina da história”. E o aviso de incêndio soou. O fato de que a
massa que está nas ruas apresenta, ora tendências conservadoras, ora
reacionárias e até fascistas, não implica uma vitória da direita. Porque
a maior parte das demandas presentes nas manifestações são demandas
históricas da esquerda. Então, disputar o espaço público, a opinião
pública e o sentido e direcionamento das pautas é fundamental.
A
direita e a grande mídia já estão preparadas. Chegou a hora de
reafirmar os ideais da esquerda, formular uma pauta de reivindicações
unificada, intensificar o trabalho de base e, sobretudo, tomar as ruas!
“PM: não esquecemos do Carandiru e da Candelária", cartaz exposto no sexto grande ato (18.06) pela redução da tarifa em São Paulo - Foto: Reprodução |
Fonte: Brasil de Fato
Nenhum comentário:
Postar um comentário