segunda-feira, 24 de junho de 2013

O aviso de incêndio soou: A esquerda diante do “gigante verde-amarelo”




A direita e a grande mídia já estão preparadas. Chegou a hora de reafirmar os ideais da esquerda, formular uma pauta de reivindicações unificada, intensificar o trabalho de base e, sobretudo, tomar as ruas!


Clara F. Figueiredo, Lucas Amaral de Oliveira, Rafael de Souza e Rafael Schincariol,
do Viomundo


Atos contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo

A prefeitura e o governo do Estado de São Paulo anunciaram, no dia 22 de maio de 2013, o aumento da tarifa dos ônibus, trens e metrôs na capital paulista – de R$ 3,00 para R$ 3,20.

Em vista disso, o Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL/SP) organizou diversos atos contra o aumento. Nos três primeiros atos, observou-se, de um lado, confusão e violência devido à forte repressão policial, de outro, uma ação de denúncia e deslegitimação do movimento por parte da grande mídia, que, na época, qualificou os manifestantes como “vândalos” e “baderneiros”.

Entretanto, esse panorama geral das manifestações mudou a partir do 4° ato (13.06), quando São Paulo vivenciou cenas de guerra urbana. A polícia atacou indiscriminadamente manifestantes, jornalistas e transeuntes com bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha.

Os abusos iniciaram-se antes mesmo do começo do ato, quando dezenas de pessoas foram detidas “para averiguação” – prática comum do regime civil-militar –, algumas apenas por portarem vinagre – usado para reduzir efeitos do gás. Desse modo, o foco se voltou para a brutalidade da polícia.

Posteriormente, houve apoio maciço às mobilizações por parte da população, e os atos rapidamente começaram a se proliferar em diversas cidades do Brasil e do exterior em apoio aos protestos.


As inflexões dos protestos: um relato

No dia 17 de junho, já durante a manhã, um misto de ansiedade e desconfiança se alastrava, perturbando nossos sentidos em relação aos protestos. Do 4° para o 5° ato, constatou-se uma mudança radical de postura no discurso da grande mídia. De baderneiros, passamos a cidadãos exercendo o direito de manifestação.

Recebemos uma série de ligações e mensagens. Pessoas próximas, pessoas que não víamos e ouvíamos há tempos, todos preocupados demonstrando seu apoio e pedindo informações sobre os protestos que pararam São Paulo. Nas esquinas, bares, salas de aulas, onde quer que fôssemos, o assunto era o mesmo – e o mais curioso foi perceber a adesão dos que, antes, eram contrários a qualquer tipo de manifestação na capital.

A ansiedade era tamanha neste 5° ato que, já às 16h, estávamos nos arredores do Largo da Batata – local marcado para o ato. Ficamos perambulando, registrando e discutindo pautas e futuras ações. Perto das 18h, o ato começou. Seguimos perplexos com a quantidade de gente – cerca de 250 mil pessoas. “O povo unido é gente pra caralho”, bradava a multidão contente “por ter acordado”.

Algo perigoso estava se delineando. Caminhamos, entoamos palavras de ordem, seguimos a massa que ocupava a Avenida Faria Lima e despertava a atenção de todos os transeuntes e moradores dos exuberantes prédios da região. Mas, por algum motivo insólito, naquele momento pouco explicável, estávamos incomodados. Os rostos pintados de verde-amarelo, o hino nacional entoado desvairadamente, as frenéticas bandeiras do Brasil, o moralismo pacifista, as flores, o look fashion, os cartazes com pautas abstratas e dizeres diversos (até mesmo pedidos por intervenção militar, pasmem!), tudo, absolutamente tudo, causava desconforto.

Naquele exato momento mais de um milhão de pessoas ocupavam as ruas em dezenas de cidades. Em Brasília, inclusive, tomaram parte do Congresso Nacional. A reivindicação não era mais pela redução das tarifas do transporte público. Eram múltiplas pautas e insatisfações – dentre elas, os gastos com a Copa e a corrupção.

Cartaz a favor da intervenção militar, no quinto grande ato (17.06) pela redução da tarifa em São Paulo
Foto: Reprodução/Instagram


O slogan de uma propaganda da Johnnie Walker no Brasil, “o gigante acordou”, tornou-se metáfora para as contradições que pairavam. O 5° ato adquiriu proporções históricas. Há muito tempo não se via no Brasil tamanha mobilização social. A grande mídia, que historicamente criminaliza manifestações e movimentos sociais, noticiava euforicamente o espetáculo. Mas a máscara desse gigante, derivado de uma farsa publicitária, não tardou a cair.

A partir do 7° ato (20.06), percebia-se nas ruas e redes sociais a apresentação de uma extensa agenda de insatisfações e a tentativa de expurgar aqueles que deram origem às manifestações: movimentos sociais, coletivos organizados e partidos de esquerda. Os mesmos que gritavam “sem violência” foram protagonistas de um ataque violento aos membros de partidos que integravam a manifestação.

Vimos muita truculência por parte dos auto-intitulados “nacionalistas”. Vimos pessoas com bandeira do Brasil e máscaras do Guy Fawkes (“V de Vingança”) agindo como reacionários. Sentimos na pele um clima de tensão, em que “anti-partidários” se exaltavam raivosamente ao exigir que bandeiras de partidos fossem baixadas e queimadas: “o ato é do povo brasileiro, não dos partidos”, gritavam cegos e indignados. Em síntese, presenciamos a maior passeata de caráter integralista de nossas vidas.

Os militantes de esquerda foram violentamente expulsos e cerceados do direito de livre manifestação pública na Avenida Paulista por um grupo razoavelmente grande e heterogêneo. O próprio MPL/SP, confundido com um partido, foi expulso de seu ato. Nós – que não pertencemos a nenhum partido, mas reconhecemos sua importância –, juntos com militantes de diversas siglas historicamente relevantes na redemocratização do país, fomos reprimidos ao tentar defender o direito de livre associação partidária (estavam presentes parte da velha guarda do PT, sindicalistas, integrantes do PSTU, PSOL, PCB, PCR e PCO, e outras frentes da esquerda brasileira). O direito de se organizar em partidos foi conquistado a custo de muita luta. Que sentido haveria em querer proibi-lo?

Ao mesmo tempo, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas se manifestavam em mais de cem cidades brasileiras. Os gritos de “sem partido”, a louvação “à pátria amada idolatrada” (referência ao hino nacional) e a multiplicidade de pautas foram marcas também desses protestos. As manifestações contra o aumento da tarifa em São Paulo, principalmente após a violenta repressão policial no 4° ato, foram o estopim que “acordou o gigante”. A questão é: quem é esse gigante?


Movimento Passe Livre e as mobilizações de rua no Brasil

Após mobilizações contra o aumento da tarifa do transporte em Salvador (2003) e Florianópolis (2004), foi criado, no Fórum Social Mundial de 2005, o Movimento Passe Livre (MPL), com o objetivo de lutar pela gratuidade – tarifa zero – do transporte coletivo urbano.

O MPL é um movimento horizontal, autônomo e apartidário – mas não anti-partidário – situado à esquerda no espectro político. Em São Paulo, o MPL organizou atos contra o aumento da tarifa em 2006, 2010 e 2011. Os protestos costumavam concentrar cerca de 5 mil manifestantes. Por que somente agora eles ganharam tamanha proporção?

Apesar de um histórico de revoltas e mobilizações importantes – como a resistência contra o regime civil-militar –, e o fato de termos um dos maiores movimentos sociais do mundo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), não há, no Brasil, uma cultura política do “cidadão comum” manifestar-se em espaços públicos. O que teria gerado essa efervescência política e ativista?

Nos últimos atos, as pautas mais recorrentes nas ruas – fora a reivindicação pela redução da tarifa do transporte público – foram: contra os gastos exorbitantes em estádios construídos para a Copa do Mundo (2014); contra a corrupção; contra os políticos; e por mais investimentos em saúde e educação.

Tirando pautas específicas, como os gastos para a Copa do Mundo, esse conjunto difuso e heterogêneo de demandas fundamenta-se em problemas há tempos presentes na vida dos brasileiros. Ou seja, isso já deveria ter sido “barulho” suficiente para acordar o “gigante”. Por que nessa conjuntura política específica essas agendas heterodoxas foram articuladas em protestos pelo Brasil afora?

É inegável que as redes sociais auxiliaram na mobilização, mas por si só não explicam a ida do povo às ruas. Vale apontar sua importância na pulverização das pautas heterogêneas e sem relação entre si. Nesse contexto, dois elementos parecem fundamentais para a compreensão do momento atual: o crescimento social e econômico que vive o país e uma espécie de desencantamento generalizado com a política.


Uma breve análise da conjuntura política brasileira

É fato que a economia brasileira vem crescendo nos últimos anos. Embora apresente sinais de desaquecimento, o Brasil passou quase incólume à crise mundial. A sensação de que o país pode se tornar uma potência mudou a percepção dos brasileiros quanto ao futuro. Isso se intensificou também com o fortalecimento e expansão da dita classe média (segundo pesquisa do Datafolha de 2012, 63% da população pertence a essa classe) e o surgimento de uma “nova classe média” nos governos Lula-Dilma: a chamada “classe C”.

A inclusão pelo consumo teve forte impacto nesse contexto. Tudo isso despertou um orgulho nacional diferenciado, com certo rompimento da lógica da subalternidade que o brasileiro sempre carregou. Brasileiros compraram e viajaram como nunca. A mobilidade social e a imagem do Brasil como nação forte e soberana, somadas aos altos impostos, possibilitaram a conclusão de que serviços essenciais, como a saúde, educação e segurança estariam aquém do ideal.

Outro fator central é o descontentamento generalizado com a estrutura política representativa, o que pode ser compreendido a partir do fato de que o PT está no governo presidencial há dez anos. A criação do PT deu-se no âmbito dos movimentos e das manifestações em torno da redemocratização do país em 1980.

O partido foi fundado por dirigentes sindicais, intelectuais e ativistas ligados a movimentos sociais e setores progressistas da sociedade brasileira, sobretudo de organizações católicas ligadas à Teologia da Libertação. Durante os anos 80 e 90, o PT atuou, juntamente com outras siglas, na defesa de temas sociais, políticos e econômicos associados à renovação da esquerda. Nos anos 90, o PT passou a defender a “ética na política”, dentro de um programa menos radical.

Essa mudança de postura permitiu a ampliação de sua base política. Na frente de oposição, o PT foi crescendo e se burocratizou. Passou a ganhar eleições até chegar à presidência. Para governar, o partido não optou por uma ruptura, mas submeteu-se à lógica fisiológica da política nacional, o que culminou com o escândalo de corrupção conhecido como “Mensalão”. O partido não era mais o radical-socialista dos anos 80, tampouco o da “ética na política” dos anos 90, mas o do nacional-desenvolvimentismo.

Apesar de avanços sociais inegáveis – milhões saíram da pobreza –, há uma insatisfação geral com o governo do PT. O partido passou a ser visto como um governo que, apesar de investir massivamente em políticas sociais, está imerso na lógica da política burocrática brasileira – a qual, antes, prometia combater. Isto gerou um descontentamento na esquerda e uma desilusão generalizada.

Nesse contexto de insatisfação, a direita furtou uma das pautas do PT na década de 90, e agora lidera a “luta contra a corrupção”. Sem dúvida, há cinismo, hipocrisia e oportunismo nessa luta, porque ela é direcionada unicamente à corrupção do PT. Não se debate o fato de que os partidos que contêm o maior número de “fichas-sujas” e cassações são os de direita, e muito menos os grandes esquemas de corrupção do governo Fernando Henrique Cardoso.

Assim, o PT, ao não cumprir suas promessas de realizar profundas mudanças na democracia brasileira, terminou por alimentar a insatisfação e a desilusão com os partidos políticos e com a estrutura democrática formal e representativa.

"Acordou, gigante? Agora tira a remela de 1964! Nem hino nem bandeira”. Quinto grande ato (17.06) pela redução da tarifa em São Paulo - Foto: Reprodução


Aviso de incêndio: o nacionalismo e o patriotismo tomam as ruas

Quem diz entender tudo aquilo que está ocorrendo no Brasil ou está muito mal informado ou, como nós, arrisca análises apressadas sobre os protestos. Tudo está um tanto quanto nebuloso, complexo e perigoso, por conta da eclosão de elementos imprevistos. A situação está ainda em aberto. O movimento que hoje está na rua é, majoritariamente, de caráter espontâneo e heterogêneo, despolitizado e repetitivo, composto por uma parcela significativa da juventude de classe média.

Antes mesmo da vitória do MPL, a pauta inicial e motivadora dos atos – a questão do transporte público – foi descaracterizada. Num momento catártico, impulsionado pelo repentino apoio da grande mídia às manifestações, uma enxurrada de pautas e insatisfações generalizadas dominaram os atos. Nessa onda, também entrou em cena a direita, disputando os sentidos das manifestações.

Grupos de extrema-direita mais ou menos organizados tentam, nesse vácuo, pautar e nortear o movimento, fortalecendo o nacionalismo e o anti-partidarismo.

A conjuntura política dos últimos atos aponta para a formação de uma competência política distorcida, na medida em que privilegia os discursos nacionalistas e patriotas como as primeiras opções ou filtros de pautas e demandas.

É possível identificar um nacionalismo muito forte, decorrente talvez de um ardil da grande mídia que apregoa um tipo de “nacionalismo contra a corrupção da classe política”. Mas o fato que interessa aqui é que esse nacionalismo se tornou denominador comum da política nessas últimas semanas, um modo eficaz e mobilizador de decantar e pasteurizar as demandas do movimento.

Qualquer tipo de discussão completa sobre pautas no Brasil, nesse contexto, está sendo subsumida e filtrada pelo patriotismo. O perigo desse patriotismo é justamente o esquecimento da política, no sentido de que os argumentos em torno de valores e pautas concretas ficam completamente submetidos à necessidade de um protesto com a “cara do brasileiro”.

A discussão encerra aí uma recusa contra a argumentação de ideias, pois não se trata mais de discutir a consistência de demandas, questões e políticas de solução de problemas. O nacionalismo e o patriotismo trouxeram uma desqualificação de antemão que recolocou a questão da política não nos enunciados, mas sim nos enunciadores.

Ora, o nacionalismo não é uma resposta imediata às ideias de esquerda. Ele é um movimento contra portadores e enunciadores das ideias de esquerda. É a afirmação mesma da legitimidade de quem pode e quem deve participar da comunidade política e das arenas de disputa – logo, de quem não pode e quem não deve participar. Assim, ele estabelece que somente os “verdadeiros brasileiros”, portadores de determinados traços comportamentais – e sempre prontos a cessarem as disputas políticas em nome de um sentimento maior de pertencimento –, são os locutores legítimos e os verdadeiros manifestantes.

Nesse cenário político-social bizarro, as verdades das demandas se estabelecem pela autenticidade de quem fala. O nacionalismo traz consigo um complexo de emoções, comoção, raiva, choro e alegria, que transformam as manifestações em espetáculo, festa e farsa. A paz e a tranquilidade desse espetáculo não podem ser perturbadas pela adesão de outras cores – sobretudo vermelhas.

Portanto, o nacionalismo é a linha que divide e reparte o direito à fala. O patriotismo, um crivo de quem pode e quem não pode entrar na política.


Na esquina da história: a esquerda diante do “gigante verde-amarelo”

É fato que nossa geração não está acostumada a ver uma direita mobilizada e ocupando as ruas. Estamos todos, no mínimo, espantados diante desse “gigante verde-amarelo” desenfreado. No entanto, a despeito do estranho despertar desse gigante nacionalista, não podemos nos abater, não podemos nos deixar levar pela onda alarmista que está assombrando a esquerda nos últimos dias. É hora de disputar as ruas, o espaço público, de levantar nossas bandeiras, defender nossos direitos historicamente conquistados e, a pleno pulmões, bradar nossas palavras de ordem.

Ainda não é claro o impacto dessa onda de manifestações e violência para as lutas posteriores. No entanto, já é possível vislumbrar que, no mínimo, elas delineiam a retomada de um método histórico de luta: a mobilização e a ocupação das ruas. Isso fica ainda mais evidente quando observamos a recente explosão de manifestações no cenário internacional (Primavera Árabe, Occupy, Indignados, Estudantes no Chile, protestos da Praça Taksim etc). Recuar agora seria abrir alas à direita. Não devemos nos afastar das massas. Os coletivos organizados das periferias e outros setores de esquerda já começaram a se articular.

Como pontuado, existe um descolamento das organizações políticas e sociais com suas bases, fruto de uma espécie de desilusão com o sistema representativo partidário e de uma crescente burocratização de várias organizações da esquerda – sobretudo do partido governista, o PT.

Portanto, é nosso papel, enquanto esquerda, retomar e intensificar um amplo trabalho de base. Estamos diante de um importante momento histórico, em uma “esquina da história”. E o aviso de incêndio soou. O fato de que a massa que está nas ruas apresenta, ora tendências conservadoras, ora reacionárias e até fascistas, não implica uma vitória da direita. Porque a maior parte das demandas presentes nas manifestações são demandas históricas da esquerda. Então, disputar o espaço público, a opinião pública e o sentido e direcionamento das pautas é fundamental.

A direita e a grande mídia já estão preparadas. Chegou a hora de reafirmar os ideais da esquerda, formular uma pauta de reivindicações unificada, intensificar o trabalho de base e, sobretudo, tomar as ruas!

“PM: não esquecemos do Carandiru e da Candelária", cartaz exposto no sexto grande ato (18.06) pela redução da tarifa em São Paulo - Foto: Reprodução



 Fonte: Brasil de Fato

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