Por Bruno Cava, republicação do Quadrado dos loucos
Ligo o rádio e ouço que o trânsito está um caos. Desconfio
imediatamente. O trânsito me parece muito organizado. Vejo fluxos
turbulentos de ônibus, carros, motos, trens, indo e vindo do subúrbio ao
centro e então do centro ao subúrbio. Todos os dias, ininterruptamente.
São milhões de veículos abarrotados de uma gente resignada, olhares
perdidos, no tempo morto do transporte diário. Vamos sentadinhos ou de
pé, em qualquer caso comprimidos na massa de semelhantes de cara
fechada. Acordamos cedo para enfrentar essa via-crúcis e no final do dia
só queremos que acabe logo para chegar em casa, tomar banho e no dia
seguinte subir a pedra de novo. São milhões e milhões de horas humanas
gastas, jamais remuneradas. Pelo contrário, taxadas a preços que não
param de aumentar.
Todos os dias nos acotovelamos, nos estranhamos, nos empurramos,
passamos à frente, ou somos sobrepujados pelos mais espertos ou fortes.
Brigamos por lugares apertadíssimos, repelindo a carne alheia. De carro,
buzinamos, fechamos, brigamos com o motorista vizinho, xingamos o
motociclista. A culpa é sempre do outro mal educado. Ou então é nossa,
por ainda não podermos comprar o conforto do carro particular, por não
morarmos ou trabalharmos no lugar correto. No mais das vezes, nos
refugiamos nas mentes, lamentando a condição miserável de passageiro.
Que passe logo.
Enquanto isso, uma dinheirama à noite estará depositada nos caixas
dos ônibus, ficará nas bilheterias do metrô, do trem, das barcas, ou
então estará trocada nos postos de gasolina, por ainda mais crédito
medido em quilômetros para rodar no purgatório de asfalto. Esse dinheiro
irrigará empresários, dirigentes, burocratas, campanhas eleitorais.
Será reaplicado para tirar ainda mais valor dos fluxos. Não. Sejamos
realistas. O trânsito está bem organizado. Nós somos a maior prova
disso. Como poderíamos aguentar ainda outro dia, amanhã mesmo, se não
tivesse sido pensado de cabo a rabo para funcionar assim? Só pode ser
por que é para funcionar assim.
A grande imprensa faz crer que bastaria ajustar a eficiência do
sistema, melhorar a gestão, reduzir a corrupção etc. Detalhes de
minúscula importância. Vejo a TV chamando o trânsito de caótico, mas
nenhuma palavra sobre o completo alijamento das pessoas na decisão sobre
as linhas, as empresas, as obras e os equipamentos. A ausência de
caráter democrático nas macro ou micro decisões no plano dos transportes
é absoluta. Tampouco alguma reportagem, notícia ou artigo a respeito da
confusão de prefeitura e empresa de ônibus, unha e carne num projeto
político que vai das eleições à governabilidade. Nenhum jornalista dá
nome aos bois. Aí quando um ônibus cai do viaduto, a culpa foi de um
passageiro agressivo. Quando a mulher é estuprada numa vã ou num ônibus,
a culpa é de alguns marginais. Escondem o fato que, por trás dessas
exceções, subsiste uma regra menos confessável. Atrás do que o
sensacionalismo diverte, há razões estruturais. O capitalismo é um
sistema de dominação indireta.
Como se a tensão entre passageiros e motoristas/cobradores não fosse
causada pelo ódio que todos têm dos ônibus. O que, por sua vez, exprime
vicariamente o ódio que se tem pelo sistema de transportes como um todo.
Isto é, pela simbiose entre prefeitura e empresa, numa gestão que
parece operar mediante algum inacessível plano divino. Como se não
fôssemos desgastados e estressados diariamente, até a exaustão mental
(não fossem os tarjas pretas!). Como se as mulheres não tivessem de
encarar, até a neurose, um abuso sexual sistemático, quase naturalizado
pela indiferença com que esse abuso é observado pelos outros ao redor.
Porque muitos homens se esfregam nelas nos veículos lotados, passam-lhes
o pau, e alguns fazem isso como um ritual diário. Várias são estupradas
nos pontos mais isolados, de dia ou de noite.
Antigamente, os escravos eram gastos no engenho e tinham de ser
trocados a cada 7 ou 8 anos. Revoltavam-se demasiado. Fugiam. Culpavam o
senhor. Hoje, a carne é moída pelo menos duas vezes ao dia, de manhã
cedo e à tardinha. Mas os músculos e nervos a gente dá sobrevida com os
modernos tratamentos da medicina do trabalho. Principalmente a
televisão, a nossa maior terapeuta. A culpa geralmente é atribuída a nós
mesmos, muitas vezes autoatribuída: se estamos sofrendo é porque
fracassamos. Por não nos esforçarmos o suficiente para sair dessa vida
de merda, como fulana ou beltrano…
Em vez de admitir como seria muito mais fácil, muito mais prático,
lutar coletivamente por um transporte para todos, achamos que o problema
é individual, que no fundo teríamos uma parcela da culpa, e nos
resignamos. Imagine contudo o efeito político, se as energias que
despendemos para, num esforço individual inglório, sair dessa condição e
“subir na vida” fossem aplicadas coletivamente na luta dos transportes?
Como teríamos um transporte muito melhor e para todos, do que tentar
subir sozinho somente mais um degrau na escala de degradação
generalizada da vida na metrópole?
Os movimentos e lutas do passe livre são a melhor saída. Talvez a
única. Arregaçam à força um rombo no beco sem saída, aonde nos coloca a
falsa oposição entre “público” e “privado”. Rejeitam em bloco as
narrativas da grande imprensa, seus opinólogos e especialistas, de que
faltaria gestão ou eficiência (e que o povo é mal educado). O problema
do transporte afinal não é ele ser público nem privado, como estas
também não são suas soluções. Nem ser mal gerido. O problema é e sempre
foi falta de democracia.
E democracia, inexoravelmente, significa tumulto. O tumulto é o
pulmão das democracias. É nele que atua o poder constituinte, o que faz a
constituição e a lei não serem apenas folhas de papel para a exegese
das faculdades de direito. Não devemos confiar a constituição a
capas-pretas, cortes supremas ou ao francamente conservador discurso do
“ativismo judicial”. O tumulto é o momento em que nós a fazemos nossa, e
de onde dimanam todos os direitos e todas as instâncias democráticas. O
tumulto é um ato de dignidade, o que só acontece ao irresignar-se
diante do intolerável. A dignidade não é humana: é o oposto da
humilhação. Uma das maiores e mais disseminadas violências hoje está no
sistema de transportes.
Fonte: Uninômade
Nenhum comentário:
Postar um comentário