Antonio Engelke
Sabemos pouco, mas o pouco
que sabemos impressiona. O jovem Edward Snowden veio a público revelar
que a Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA, na sigla em inglês),
na qual trabalhava, vem monitorando as atividades privadas de cidadãos
do mundo inteiro através da espionagem de seus e-mails, conversas por
Skype e interações via Facebook. O programa, chamado Prism, não é
exatamente novidade. Parte da má fama do governo Bush deve-se a
iniciativas que obedeciam ao mesmo princípio: em nome da segurança
nacional, da prevenção contra ataques terroristas, sacrificam-se
liberdades individuais, violam-se direitos de privacidade. A
administração Obama não fez mais do que lhes dar continuidade, o que
surpreende apenas os que preferiam minimizar ou ignorar questões como a
manutenção da prisão de Guantánamo e a ampliação do uso de drones no Afeganistão.
Fatos desta magnitude e importância geram
debates cujos termos são em larga medida estabelecidos pela cobertura
jornalística que recebem. Colunistas ocupam aí uma posição privilegiada,
pois cumprem a função de avaliar criticamente os eventos,
interpretando-os ou conferindo-lhes um sentido que a descrição
supostamente neutra de seus colegas de redação é incapaz de prover.
Quando a denúncia de Edward Snowden veio à tona, imediatamente ansiei
pela opinião do Pedro Doria. Atual editor executivo de plataformas
digitais do jornal O Globo, Doria foi um dos pioneiros da internet no
Brasil. Autor de 4 livros, co-fundador do extinto site no.com.br e
primeiro a fazer um blog jornalístico no Brasil (o saudoso Weblog), Doria especializou-se no cruzamento entre jornalismo, tecnologia e política: foi Knight Latin American Fellow da Universidade de Stanford, pesquisando a relação entre internet e democracia.
Não precisei esperar muito. Sua coluna desta terça-feira, 11 de junho, “Seremos todos espionados”,
vai ao assunto. Afirma, em tom realista, que a espionagem digital de
cidadãos não é nem exclusividade do governo norte-americano, nem prática
passageira, e que tende a generalizar-se nos próximos anos. Expõe a
origem de sua infraestrutura técnica: a criação, em meio à “cultura
libertária” de empreendedores do Vale do Silício, de algoritmos que
permitem identificar e avaliar com precisão a preferência de indivíduos online,
permitindo assim a venda de publicidade direcionada. O objetivo
primordial dos algoritmos não era espionar ninguém, mas como se
mostraram capazes de conhecer em detalhes os desejos e os percursos das
pessoas, acabaram servindo “como uma luva” aos propósitos menos nobres
do estado. Encerra decretando: “Se é digital, é inseguro por natureza.
Nossas vidas serão, cada vez mais, um livro aberto. Para governos. E
para outros”.
Há uma verdade aí. Está correto o
diagnóstico da inevitabilidade do seqüestro das tecnologias de
informação para fins de vigilância por parte do estado. Mas uma coisa é
fazer do diagnóstico uma espécie de sentença definitiva e irreversível,
que portanto dispensaria de antemão qualquer esforço no sentido de lhe
pensar a resistência. Outra, totalmente diferente, é transformá-lo no
combustível desta resistência. A julgar pela certeza futura enunciada já
no título do artigo – Seremos todos espionados –, Doria fica com
a primeira opção. Neste sentido, é sintomático que palavras como
“direito” e “democracia”, ou expressões como “liberdades civis”, estejam
ausentes de seu texto e, mais ainda, que ele reserve dois parágrafos
para descrever o parque tecnológico que a NSA está prestes a inaugurar.
Qualificando-o de “invejável”, faz questão de detalhar sua capacidade de
processamento: “Um yottabyte equivale a um milhão de exabites. A
proporção é esta”. Obviamente, não quer isto dizer que Doria endosse a
espionagem levada a cabo pelo Prism; tendo acompanhado diariamente seu
trabalho no Weblog durante anos, sei que nem de longe é o caso. Contudo,
é impossível não notar o fascínio que transborda da grandiloqüência
através da qual ele descreve aquilo que deveria criticar. Tal fascínio,
expresso no elogio à capacidade técnica por trás da operação de
espionagem, torna-se ainda mais revelador quando levamos em conta todas
as urgentes questões às quais o artigo não faz referência. Isto sugere que, neste particular, a imaginação do colunista está em larga medida com o poder, sendo-lhe condescendente, e não contra ele.
É questão de perspectiva. A escolha de
olhar este episódio pelo prisma da resistência não condena o pensamento a
gravitar em torno de clichês como o big brother orwelliano,
tampouco nos limita a um espasmo de indignação moralizante calcado na
reivindicação abstrata por liberdade. Podemos, por exemplo, situar seu
significado dentro de uma linhagem de eventos históricos que tem em
Dreyfuss e Watergate seus casos paradigmáticos. Podemos abrir a reflexão
para o paradoxo que a situação de Snowden evidencia: a justiça (o rapaz
fez “a coisa certa”) contradizendo o Direito (o rapaz cometeu um
crime), assim revelando-lhe o limite. Podemos ainda inscrever o debate
que inevitavelmente se seguirá dentro da luta política que vem sendo
empreendida por todos aqueles que querem uma internet aberta e livre,
como os ativistas ligados às iniciativas A2K (“Acesso ao Conhecimento”) e
Creative Commons. Privacidade para a vida privada, transparência para a vida pública. Deveria ser óbvio. Não é.
Doria, contudo, prefere naturalizar a internet como espaço da insegurança, ao invés de vê-la como um terreno de disputa e em
disputa, em que a insegurança, como em qualquer outra esfera da vida, é
produzida. Reparem no fechamento (de questionamentos, de
possibilidades) que o argumento opera: se a internet é “insegura por
natureza”, então não há muito o que fazer a respeito. Diante de um tal
ambiente, dominado por forças espetaculares que manejam seus yottabytes
fora de qualquer controle e verificação, restaria ou a condescendência
comodista e desinteressada, ou o exílio online auto-imposto.
Coerente, Doria declara a inevitabilidade do fim da privacidade na era
da informação digital – mas apenas para sugerir que não há opção senão
nos conformarmos em ter a vida devassada pelo desvio de uma tecnologia
feita por uma turma que só estava querendo descolar uma graninha
vendendo publicidade. Trata-se, em suma, de um convite velado à
resignação: menos um relato sobriamente realista da realidade do que um
veículo de sua normalização.
Fonte: Revista Pittacos
Nenhum comentário:
Postar um comentário