quarta-feira, 12 de junho de 2013

Turquia: o ciclo crescente de descontentamento

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Foto: Reflections on a Revolution


Por Muftah (editorial), em 1/6/2013 | Tradução: Coletivo VilaVudu

Os protestos na Turquia entram hoje no 5º dia, com manifestantes tomando as ruas de várias cidades pelo país. Os protestos, que inicialmente visavam a impedir a destruição do Parque Gezi em Istanbul, transformaram-se, por causa da agressão policial, e incluem já manifestações mais amplas, de oposição ao governo da Turquia.

Mashallah News oferece bom balanço do desenvolvimento dos protestos, até agora:

“Em Istanbul, apenas 1,5% da área urbana é ocupada por espaços verdes; na Parque Geziestão nove acres desse total. Na 2ª-feira, chegaram equipes da empresa construtora, e começaram a derrubar árvores, para construir um shopping center. Na 2ª-feira havia ali cerca de 50 pessoas; na 5ª-feira à noite já eram 10 mil, apesar de a Polícia ter usado sprays de pimenta e gás lacrimogêneo para dispersar os manifestantes. Na 6ª-feira, a agressão policial aumentou: a Polícia usou canhões de água e força excessiva, na tentativa de evacuar a praça e impedir que prosseguissem os discursos, cantos, palavras-de-ordem e a montagem de acampamentos.”

Em discurso muito aguardado, hoje, 1/6, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan respondeu ao crescente movimento de protesto. Reproduzindo as mesmas estratégias várias vezes tentadas e sempre fracassadas, de outros ditadores regionais (muitos dos quais já despachados do poder), o primeiro-ministro minimizou o significado das manifestações, rejeitou as demandas dos manifestantes e atribuiu a “agitação” a “outras forças”. EA World View assim resumiu o discurso de Erdogan:

“O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan (…) falando hoje sobre a agressão policial a manifestantes, usou tom desafiador – e disse, dos que se manifestam contra o redesenvolvimento da Praça Gezi, que “há jogadas, aqui (…) Ninguém tem o direito de protestar contra a lei e a democracia.”

Erdogan disse que a Polícia cometeu erros no uso de sprays de pimenta e gás lacrimogêneo contra os manifestantes, e que o Ministério do Interior investigará tudo isso. Mas que a Praça Taksim – onde os manifestantes permaneceram acampados por quatro dias, antes de serem atacados pela Polícia, na 6ª-feira –  não pode ser usada como ‘paraíso seguro’ para manifestações. E insistiu que “organizações ilegais” estariam provocando “cidadãos ingênuos”.

O primeiro-ministro, invocando história e ideologia, disse que manterá os planos para converter o espaço verde do Parque Gezi em um supermercado, que será construído como réplica das tendas militares da era otomana.

Erdogan disse que os que se opõe a “projetos de transformação urbana” querem que “nosso povo viva em favelas”.

Falando em termos mais amplos, Erdogan insistiu que seu governo reflete a vontade do povo e a oposição deve manifestar-se pelas urnas, nas eleições, não nas ruas. Mas mostrou-se cheio de confiança de que vencerá qualquer desafio: “Não tentem competir conosco. Se reunirem 200 mil pessoas, posso pôr um milhão, nas ruas.”

Como era de esperar, o discurso de Erdogan não fez esfriar os protestos, que prosseguem, com grande número de manifestantes nas ruas.

Embora essas manifestações talvez pareçam irrupções isoladas de descontentamento, outros recentes atos de públicos de protestos sugerem outra coisa.

Em dezembro de 2012, houve manifestações contra a demolição de Ince Pastanesi, uma confeitaria histórica em Istanbul. Depois de quase 70 anos de atividade, a loja, como o Parque Gezi, foi programada para ser demolida, também para ser substituída por um shopping center. Apesar das repetidas manifestações públicas no local, que pediam que a prefeitura poupasse a loja, nada conseguiu impedir que o prédio fosse demolido.

Dia 7 de abril de 2013, manifestantes reuniram-se para protestar contra a demolição do histórico Teatro Emek, em Istambul, também demolido para dar lugar a um shopping center. Na ocasião, como agora, a Polícia respondeu com violência:

“A Polícia usou canhões d’água e gás lacrimogêneo, dia 7 de abril, para dispersar milhares de manifestantes, entre os quis o diretor grego-francês de cinema, Costa-Gavras, e vários atores, que haviam viajado a Istambul para defender o icônico Cinema Emek e protestar contra a demolição daquele prédio histórico.

A Polícia já havia bloqueado o acesso à rua lateral onde se localiza o cinema, obrigando os manifestantes a permanecer na avenida İstiklal, no coração do bairro onde se concentram vários cinemas e teatros em Istanbul. Depois de um alerta, de que a manifestação não tinha autorização para se realizar, a Polícia passou a bombardear a multidão com jatos d’água e, segundo testemunhas, com granadas de gás lacrimogêneo.

O crítico de cinema Berke Göl e três outros manifestantes foram detidos, como noticiou o jornal Radikal. Um dos mais conhecidos e respeitados diretores do cinema turco, Erden Kıral, teria desmaiado durante o ataque da Polícia.

Um grupo de 200 manifestantes permanece acampado à frente do prédio da Polícia de Beyoğlu, exigindo a imediata soltura dos que permanecem detidos, segundo o jornal Radikal.

A Fundação Istanbul para Artes e Cultura (İKSV) lançou declaração em que condena o uso de “força excessiva” pela Polícia. “Condenamos a agressão a amantes do cinema que nada fizeram além de tentar protejer a memória cultural de Istanbul”, dizia a declaração.”

Embora essas ações pareçam rejeitar alguma “modernização” ou expor alguma vontade de reviver “velhos tempos”, parece haver aí um conjunto de motivações mais profundas. Como escreveu um blogueiro turco:

“Como se lê nos relatos de Elif Ince, do jornal Radikal, que escreve sobre os eventos no Parque, o movimento #OccupyGezi é um levante urbano contra a elite conservadora turca e suas políticas neoliberais.

Um dos manifestantes explica a Ince que a demolição da confeitaria Inci Pastanesi nunca foi assunto de bolos e docinhos; que os manifestantes que protestaram contra o fechamento do cinema Emek Theater não estavam preocupados apenas com preservar prédios históricos. E que a solidariedade no Parque Gezi Parki não é questão apenas de defender árvores.

Os manifestantes estão acampados no parque porque a cidade é do povo e deve ser governada pelo povo, não pelas decisões e caprichos de um líder político e seus discípulos no governo.’”

Mais uma vez, esse desejo de ser ouvido sobre o próprio ambiente em que se vive é também apenas parte da história. Esforços para modificar hábitos e práticas sociais e culturais também estão despertando resposta desafiadora de muitos turcos. Poucos dias antes do início das manifestações no Parque Gezi, dia 25 de maio, casais turcos manifestaram-se contra os esforços para proibir manifestações públicas de afeto nos trem do metrô. O jornal Huffington Post comentou:

“Dúzias de casais participaram de um ‘beijaço’ numa estação do metrô em Ancara, capital da Turquia, para protestar depois que autoridades do metrô advertiram um casal que se beijava em público.”
A mídia turca noticiou que, no início da semana, autoridades do metrô da cidade divulgaram documento em que pedem que os passageiros “ajam de acordo com regras morais”, depois que câmeras de vigilância interna filmaram um casal que se beijava.”

A questão levou um deputado da oposição a questionar o partido governante, que é partido islamista, e que, como temem os secularistas, trabalha para expandir a influência do Islã na vida dos turcos, única explicação para que autoridades do metrô tenham sido liberadas para difundir regras sobre “comportamentos morais” (…).

E há também a questão da recente proibição, na Turquia, de bebidas alcoólicas. Dia 24 de maio, o Parlamento turco aprovou lei que cria várias restrições à venda, divulgação e consumo de bebidas alcoólicas. Um jornalista turco descreveu as novas proibições como forma de pressão contra os cidadãos, as quais, essencialmente, restringem a liberdade de as pessoas agirem livremente em espaços públicos:

“Na Turquia, enfrentamos um processo de engenharia social ideologicamente motivado, extremamente conservador e socialmente opressivo, que é parte da agenda islamista para o governo do AKP. Esse projeto não tem qualquer legitimidade democrática, porque é violação clara de direitos e das liberdades dos turcos.

Outra prova de que o movimento geral é esse é o que disse o primeiro-ministro Erdogan na convenção de seu partido no Parlamento, dia 28 de maio, ao reagir contra os que diziam que as proibições de bebidas alcoólicas estão relacionadas à agenda dos islamistas. Erdogan disse que “não faz diferença de que religião se trate: a religião estipula não o que é errado, mas o que é certo. Se se trata de estipulação certa, os senhores se oporão a uma lei certa, por ter sido inspirada por pensamento religioso? Será que, para os senhores, uma lei escrita por meia dúzia de bêbados poderia ser válida? Como se admitirá que nossas convicções sejam apresentadas como algo a ser rejeitado?”

Erdogan portanto, declarou abertamente que a proibição de bebidas alcoólicas é, sim, exigência religiosa, e que deseja reformatar a vida em espaços públicos, nos termos do que a religião determina. E avançou: declarou “anti-religião” qualquer um que se oponha à proibição de bebidas alcoólicas alegando direitos e liberdades individuais.

O alívio que alguns sentiram ao ouvir Erdogan dizer, no mesmo discurso, que “os arranjos que se fazem agora não implicam qualquer interferência no modo de vida de pessoa alguma” durou pouco. Na sequência, Erdogan acrescentou que “se você quer beber, leve sua bebida alcoólica e beba-a em casa. Beba o que quiser beber. Nada temos contra isso.”

Com essas palavras, o primeiro-ministro turco disse a segmento considerável da população: não continuem a fazer o que sempre fizeram nos espaços públicos. Basta isso, como grave exemplo de pressão, que ultrapasa em muito o conteúdo e o contexto das leis já aprovadas sobre bebidas alcoólicas.”

Não se trata, pois, só de “destruição de árvores”, de os turcos perderem “bolos e docinhos” ou de desejarem preservar prédios históricos, mas da sensção, que se vai generalizando, de que a vida pública na Turquia está sendo limitada e modelada para atender às exigências de um tipo de perspectiva ideológica. Isso, afinal, parece estar motivando os protestos no Parque Gezi e outras manifestações públicas de desafio ao governo de Erdogan, que já surgem por todo o país. Essas mostras públicas de descontentamento, que se veem no vídeo (em http://vimeo.com/67441445), da noite de ontem, 31 de maio, não dão sinais de estar arrefecendo.

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Fonte: Uninômade

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