Protestos em Fort Meade, onde Bradley Manning permanece detido |
Se condenarem soldado que denunciou horrores da guerra, EUA
atingirão liberdade de imprensa e confirmarão declínio de sua democracia.
Glenn Greenwald, entrevistado por Amy Goodman, do Democracy Now | Tradução: Cauê Seignemartin Ameni
Começou semana passada (3/6) no Fort
Meade, sede da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, um dos
mais importantes julgamentos na recente história daquele país. Após
1.100 dias detido em cativeiro militar, acusado de entregar mais de 700
mil documentos para o site Wikileaks, o soldado Bradley Manning, hoje
com 25 anos, responderá em corte marcial 22 acusações, entre as quais
“cooperação com o inimigo (Al-Qaeda)”, o que pode levá-lo a prisão
perpetua. Em audiências preliminares, em março deste ano, Manning
reconheceu ser responsável por um dos maiores vazamentos militares dos
últimos tempos. Frisou, porém, que seu intuito era de mostrar ao publico
norte-americano “o preço da guerra”, esperando que pudesse com isso
“desencadear um debate público sobre a política externa” dos EUA.
Manning declarou-se culpado por dez acusações, que poderiam resultar
numa pena máxima de vinte anos de prisão. Entretanto, em vez de ponderar
os fundamentos da defesa, os promotores militares parecem dispostos a
condenar o ex-soldado a uma modalidade especialmente fúnebre de prisão
perpétua — na qual proíbem-se inclusive futuras ações de revisão da
pena.
No último sábado (1º/6), cerca de 2 mil pessoas reuniram-se perto do forte, para protestar
contra o processo, que deverá estender-se pelos próximos três meses.
Muitas adotaram o slogan “Eu sou Bradley Manning”. David E. Coombs,
advogado do réu, agradeceu ao apoio, principalmente dos poucos
jornalistas que vêm cobrindo os passos do processo. Parte deles já se deu conta do que está em jogo. Ed Pilkington, do The Guardian, destacou que
a eventual condenação de Manning colocará em risco a atuação
profissional dos jornalistas. Estaria criado “um precedente sinistro,
que vai enfraquecer a liberdade de expressão e transformar a internet em
uma zona de perigo.” Laurence Tribe, professor de Harvard, considerado
pelo jornal a mais importante autoridade de direito constitucional nos
EUA, e ex-professor do presidente Barack Obama, disse ao Guardian: ”Acusar
qualquer indivíduo do gravíssimo crime de “ajudar o inimigo”, com base
em nada além do fato de que postou informações na web e assim
‘deliberadamente deu informações de inteligência” para quem pode ter
acesso a elas, de fato parece abrir novos caminhos perigosos.”
A mesma ameaça à liberdade de expressão
foi debatida, de forma ainda mai profunda, por Gleen Greenwald,
advogado constitucionalista e jornalista do The Guardian que vem cobrindo há muito tempo o caso de Manning. A seguir, a entrevista que ele concedeu a Amy Goodman, no canal de WebTV norte-americano Democracy Now. (Cauê Seignemartin Ameni)
Eu queria analisar algumas das frases de Bradley Manning
durante as audiências preliminares. Ao testemunhar diante de um tribunal
militar, o soldado descreveu sua motivação para vazar os documentos:
“Eu acreditava que se o público em geral, especialmente os
norte-americanos, tivessem acesso a informação, poderia desencadear um
debate sobre o papel dos militares e da política externa”. E
acrescentou: “acredito que esses vazamentos não atingiriam os Estados
Unidos, seriam apenas embaraçosos”. Ele disse ter levado as informações
ao Wikileaks só depois de elas terem sido rejeitada pelo Washinton Post e o New York Times. É muito interessante.
Glenn Greenwald: Bem, como Manning está ameaçado por
pena de prisão perpétua, há quem ponha em dúvida sua sinceridade. Mas o
que me chama atenção é que nas gravações telefônicas, feitas pela
Justiça e publicadas há um ano, o soldado falava a alguém de sua total
confiança e dizia a mesma coisa: desiludiu-se com a guerra do Iraque
quando descobriu que o exército dos EUA não detinha terroristas, mas
simples oponentes do governo de Maliki; e foi ignorado quando informou
este fato a seu superior. Ele deparou-se com documentos que revelavam
engano, conduta criminosa e violência, e não poderia mais, em são
consciência, participar deles ou escondê-los. O que praticou foram atos
de extrema consciência e heroísmo, sabendo que estaria sacrificando sua
própria liberdade. E o que me parece muito convincente é o fato de seu
depoimento tão claro e firme, diante dos juízes, corresponder ao que ele
pensava ser uma conversa privada, na que explicou suas atitudes.
Qual o significado da pena que
os promotores militares estão pedindo para Bradley Manning — prisão
perpétua sem possibilidade de apelar [life without parole]– e o que ele disse no tribunal, durante as audiências preliminares?
Glenn Greenwald: Há
diversas questões relevantes. A primeira, e mais óbvia, é que se trata
de retaliação dos promotores. O governo nunca identificou qualquer dano
substancial causado pelo vazamento de informações de que Mannig admitiu
ser responsável. Certamente, ninguém morreu com a aparição dos
documentos, embora o governo alardeasse, inicialmente, que o Wikileaks e
o delator estavam com as mãos sujas de sangue. Muitas
investigações desconstruíram essas alegações. Assim, a ideia de passar
décadas na prisão, sem direito sequer a apelar da pena, é algo
estarrecedor.
Mas, para ser ainda mais específico, a teoria que o governo
desenvolveu, é ameaçadora. Reconhece-se que Manning nunca se comunicou
com, “o inimigo”, a Al-Qaeda; e que não há evidência alguma de que ele
quisesse beneficiar esta rede (se quisesse, poderia ter vendido as
informações que tinha por muito dinheiro). Todas as evidências indicam
que Manning agiu exatamente pela razões que confessou: a intenção de
desencadear uma reforma e chamar a atenção pública para estes abusos. O
governo está desenvolvendo a teoria segundo a qual basta o vazamento ter
caído nas mãos da Al-Qaeda, e o fato de a organização ter interesse
nele, para caracterizar colaboração com o inimigo. O que converte, em
essencial, toda denúncia de irregularidade em uma forma de traição. Há
evidências de que Osama Bin-Laden estava muito interessado, por exemplo,
nos livros do Bob Woodward — que têm mais informações sigilosas que os
vazamentos do Manning. Isso significa que não apenas os vazamentos
de Woodward, sobre a alta cúpula do governo, mas o próprio Woodward
poderiam ser acusados de colaborar com o inimigo. É uma teoria
ameaçadora para o jornalismo investigativo.
A juíza do caso, Denise Lind, fez uma interessante pergunta
aos promotores. “Vocês teriam ido atrás de Manning se ele tivesse
entregado essas mesmas informações ao New York Times?
Certo, e ele disseram que “certamente!”
Eles disseram “Sim, senhora”.
Exato. E há também indicações de que essa teoria poderia ser usada
contra jornalistas. Claro que eles não estão submetidos às leis da
justiça militar. Porém, mesmo assim, há rumores de que o governo Obama
teria seguido indicações de seu antecessor George Bush e decidido que,
se houver jornalistas envolvidos no vazamentos de informações sigilosas,
ou mesmo encorajando estes vazamentos, eles também poderão ser processo
pela Lei de Espionagem, por colocar supostamente em perigo a segurança
dos Estados Unidos. Por isso, não se trata de uma ameaça a
Bradley Manning, mas a toda a ação do jornalismo investigativo. Se você
falar com os jornalistas investigativos — mesmo os do establishment, como Jim Risen, do New York Times,
vencedor do Prêmio Pulitzer e o repórter investigativo mais premiado
dos EUA — verificará que há um efeito de esfriamento que atinge todo o
processo de coleta de informação sigilosa.
Você poderia falar sobre a cobertura da mídia para este processo?
O fascinante é que muitas pessoas competentes vêm cobrindo passo a
passo este julgamento, e quase nenhuma delas trabalha para um meio de
comunicação importante. Há jornalistas independentes, como Kevin
Gosztola, que escreve para o blog Firedoglake. Também há Alexa O’Brien,
uma jornalista independente que escreve na internet e cobre suas
próprias despesas operando de forma autônoma e é a melhor fonte na
cobertura do processo.
The Guardian, o jornal para o qual escrevo, tem feito um bom
trabalho, enviando repórteres a maior parte do tempo para cobrir o
processo. Por um bom tempo, o New York Times ignorou o julgamento. O jornal que enfrentou o ex-presidente Nixon no escândalo dos Pentagon Papers, e que se beneficiou dos vazamentos de Daniel Ellsberg
e também dos de Bradley Manning, simplesmente ignorou o caso.
Sentiram-se envergonhados, quando finalmente enviaram alguém para
somar-se aos jornalistas independentes que questionavam “Por que o New York Times não esta aqui?”. Em certo momento, o próprio editor público do NYT assumiu estar envergonhado pelo fato de o jornal não ter feito nada para cobrir o julgamento.
Eu costumo obter minhas informações de jornalistas independentes que também colaboram com o The Guardian,
como Kevin Gosztola e Alexa O’Brien. Mas em geral,
no noticiário do estabilishment quase não se fala nada. Acho que o
nome Bradley Manning foi mencionado na MSNBC uma vez nos últimos dois
anos, e talvez apareça eventualmente em um programa matinal de fim de
semana.
E sobre as transcrições de decisões que está acontecendo no tribunal?
A ironia desta iniciativa, do que levou Bradley Manning a fazer o que
fez, é que praticamente todos os atos do governo norte-americanos estão
imersos em segredo. Tudo o que tem relevância! Por isso, as denúncias e
vazamentos acabam sendo a única forma de descobrir o que nosso governo
esta fazendo. O próprio caso de Manning, aliás, revela como é verdadeira
essa analise. Há mais segredos nesse processo do que houve mesmo sobre
a base militar de Guantánamo, no governo Bush. Os autos são
constantemente mantidos em segredo. Alexa O’Brien teve que transcrever o
depoimento de Manning utilizando instrumentos rudimentares. Estamos
diante de uma afronta à Justiça, que no fundo expõe os motivos que
levaram Manning a agir.
Você acha que as decisões da Suprema Corte sobre a vigilância estão relacionada a isso?
Certamente. Em 2008, o Congresso, na época sob maioria do Partido
Democrata, aprovou uma lei aumentando enormemente o poder de vigilância e
permitindo que o governo norte-americano vigie e escute as conversas
dos cidadãos, sem a necessidade de mandado judicial. Imediatamente, a
União pelas Liberdades Civis nos EUA (American Civil Liberties Union ACLU),
entrou com ação judicial pela inconstitucionalidade da lei. A
mera existência deste poder de escutar é completamente prejudicial,
alegam jornalistas e ativistas dos direitos humanos. Cinco anos depois, a
Suprema Corte disse que, como o programa de espionagem continua sobre
sigilo, ninguém pode provar que está sendo vigiado e, portanto, ninguém
tem legitimidade para abrir processo. A Suprema Corte afirma, no fundo,
que não permitirá o questionamento à lei, ainda que esta viole a
Constituição.
Isso tem acontecido com frequência. O governo conseguiu, até o
momento, blindar a lei e sua própria conduta, isolando-as do que se
supõe serem as garantias de responsabilidade e transparência – no
processo judicial e na cobertura da mídia, assegurada pela Lei de
Liberdade de Informação [Freedom of Information Act, FOIA]. Por isso
levantou-se uma verdadeira muralha impermeável de sigilo, que usa a
instituição destinada a evitar esse tipo de problema. É isso que torna
denúncias como as de Manning ainda mais necessárias.E é por isso que o
governo esta tão empenhado em travar essa guerra, porque os vazamentos
são a única luz que ilumina o que está fazendo. Os interessados em
estigmatizar os denunciantes como ilegais teriam muito mais argumentos
se houvesse instituições legítimas agindo para assegurar a
transparência que as leis supostamente garantem. Porém todas elas foram
bloqueadas falharam, o que torna as denúncias mais indispensáveis e a
guerra contra os vazamentos mais odiosa.
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*Glenn Greenwald, advogado constitucional, é também colunista e blogueiro do The Guardian. Autor de With Liberty and Justice for Some: How the Law Is Used to Destroy Equality and Protect the Powerful
Fonte: Outras Palavras
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