quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O Templo de Salomão e o capitalismo em crise


Breve exame da história do cristianismo revela: construção suntuosa de Macedo indica, muito mais que megalomania, possível deriva fundamentalista do sistema

Por Hugo Albuquerque, no Descurvo | Imagem: Viktor Vasnetsov, Os quatro cavaleiros do apocalipse

O Novo Brasil é uma terra curiosa. Libertação e servidão espreitam, ambas em potência máxima. Fato emblemático dos novos tempos foi a inauguração do “Templo de Salomão” em São Paulo, gigantesco templo maior da Igreja Universal do Reino de Deus: a obra, feita ao custo de centenas de milhões de reais, reuniu em sua inauguração a presidente da república, o governador do estado e o prefeito municipal, além de outras autoridades. Na terra dos estádios padrão-FIFA, tem-se agora o equivalente na forma de templo “cristão”. Isso não expressa apenas um fenômeno cultural, em um sentido raso, ou um evento político e comercial, mas algo mais profundo.

Nada disso é à toa: no momento em que uma expressão do cristianismo faz um novo e espetacular movimento no Brasil — com repercussão pelo mundo todo –, isso envolveu justamente a edificação de sua nova sede. A morada, o habitat, é central ao cristianismo desde sempre. Porque a diferença entre o cristianismo primitivo e o institucional é a liberação que o primeiro tinha em relação ao confinamento e, em sentido inverso, a dependência do segundo em relação às edificações suntuosas. Isso é parte de uma história importantíssima.

Como sabemos, o cristianismo foi o bom encontro entre as tradições heleno-romanas e judaicas, produzindo uma resultante nova, libertadora, anti-imperial. Cristo e seus apóstolos pregavam nas ruas. E faziam uso do léxico político: Igreja e assembleia são equivalentes na etimologia, pois ambas vêm da palavra grega ekklesia, isto é, os encontros públicos nos quais os cidadãos apresentam demandas à pólis. Em Roma, o mesmo se chamava comicius. O cristianismo, em sua luta anti-imperial, não tornou a política religiosa, ao contrário, ela ativou a religião colocando-a em sintonia com a realidade política existente.

As coisas mudam quando o Império Romano absorve o movimento que lhe contestava mais agudamente. O cristianismo se torna parte da estrutura imperial, em tempos que o velho culto público greco-romano não dava mais conta de legitimar um Império em frangalhos. A partir daí, as assembleias não encontram mais seu lugar na praça, nem nas reuniões livres na clandestinidade, ao contrário: é em edifícios suntuosos que os cristão passam a se reunir. Afinal, as próprias assembleias no Império são representações feitas em basílicas: edifícios que substituíram as velhas ágoras colunatas, sedes por excelência das velhas assembleias de cidadãos livres.

Na falta de basílicas, o cristianismo se reunia em paróquias, palavra que em grego significa “casa vicarial”, isto é, “casa que substitui [uma basílica]“. Isso não é só simbólico: significa a passagem do cristianismo da política para a economia. A organização cristã passa a se dar, em toda parte, em termos econômico-administrativos (como bem observa Agamben em o Reino e a Glória): “bispo” é a palavra portuguesa que vem de “episkopo”, administrador. A racionalidade da casa, das regras absolutamente factuais e verticais que caracterizavam a casa do mundo antigo passam, não à toa, a ordenar o cristianismo.

A passagem da praça pública para o ambiente doméstico cria, obviamente, um cristianismo domesticado. Não é apenas uma nova forma de físico-geográfica de culto, mas um realinhamento que implica em uma nova prática. Se o mundo antigo é feito da dualidade entre a casa e a cidade, a oikia e a pólis, ambas com ordens próprias, complementares e, ao mesmo tempo, antagônicas, o mundo medieval é outro: não há mais cidade, apenas os feudos que são, na prática, “casas grandes” e a religião confinada — a ordem econômica, enfim, triunfou, com a política e o direito reaparecendo apenas nas fissuras desse sistema.

Talvez por isso, o fato mais relevante em matéria de cristianismo foi, vejamos só, as reformas cristãs católicas do século 19 e 20 e o fortalecimento de um modelo pastoral que, mais tarde, desembocou na teologia da libertação. Pela primeira vez desde o Concílio da Niceia se discutiu o embate entre a “hierarquia” — a instituição — e os fiéis — em obra social, espalhados em comunidades eclesiais e pastorais. Tal como como o cristianismo primitivo, e fiéis ao evangelho, misticismo e política passaram novamente a andar de mãos dadas. Daí a reação, violentíssima, da própria hierarquia católica e do protestantismo, contra isso. Do novo catolicismo conservador à teologia da prosperidade, dos tele-evangelistas americanos e da Igreja Universal, se fez de tudo contra isso.

Mas isso não é uma história de infidelidade a uma suposta tradição cristã pura: como bem observou Deleuze ao comentar D.H.Lawrence, nem só dos evangelhos se fez o cristianismo, ele também se fez do apocalipse, o fecho curioso e antitético da trama. E se os evangelhos são uma narrativa sobre fatos históricos, ou pretensamente, o apocalipse é profecia pura, isto é: projeção. E a projeção, mais do que a subjetivação ou a objetificação, é a parte realmente “ideológica” de uma narrativa. Ela visa tão somente a influenciar, ela é pura prescrição. É no apocalipse que Cristo retorna como uma espécie de rei-juiz; de messias que chama os outros de “irmãos”, ele se torna um soberano vingativo que irá decidir sobre a vida e a morte absolutas. O horizontal se torna vertical, mantendo uma contradição em termos tão absurda quanto aquela havida entre Paulo e Pedro.

O apocalipse é central no pensamento ocidental. É lá que nasce uma filosofia do juízo [final], uma filosofia baseada no julgamento — logo, incapaz de aceitar uma diferença intensa para supô-la apenas na extensão e, aliás, pela ação de uma força externa, transcendente e implacável. Só a autoridade suprema, que combina também o império e o poder, pode diferenciar o joio do trigo, isto é, pode criar, cindindo e hierarquizando, negando a singularidade.

Voltando ao Brasil, não é à toa que a teologia da prosperidade 2.0 recorra ao Templo de Salomão, uma imagem tão central no texto do apocalipse. É ali que se julga de maneira final, separando os bons que habitarão o céu (a cobertura dos prédios) e o inferno (as prisões), de uma maneira absolutamente utilitarista, fluida, na qual quem está em cima estará sempre em risco de queda e, por outro lado, os caídos poderão ascender — desde que paguem continuamente o seu naco para a intermediadora divina, a Igreja e seu mandatário maior, o bispo Edir Macedo.

Obviamente, o modelo da IURD, gigantesco, é uma absurdidade para o Sistema tal como ele existe. Mas o fato de, mesmo assim, ela prosperar e crescer, sendo um sucesso financeiro e um fenômeno político capaz de amarrar as principais lideranças políticas, significa uma coisa: trata-se de um arcaísmo reservado pelo mesmo sistema para, caso for preciso, vir à tona. No momento em que a democracia liberal se torna um discurso cada vez mais frágil, sendo cada vez menos capaz de administrar a dívida e organizar o trabalho, a possibilidade do discurso “fundamentalista cristão”, na forma da teologia da prosperidade, se tornar o rótulo da vez do Sistema é cada vez mais real. Além de sua viabilidade econômica em si, ele se torna um gigantesco ativo que poderá, tão logo, ser bem mais que um agregador de votos imediato.

O cristianismo, em sua exacerbação, se descristianiza e desevangeliza, a subsunção ao juízo final elimina o Cristo e deixa apenas a dor da Cruz.


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