O grande Saturnino Braga desmistifica o poder controlador do nosso tempo referente ao trabalho e organiza a ideia de que se necessita um jornada de trabalho mais humana.
Jornada de seis horas
Por Saturnino Braga
Tenho para mim que uma das conquistas mais importantes da Humanidade no século XXI será a redução da jornada de trabalho para seis horas por dia e trinta horas por semana, cheia de um relevante significado filosófico e humanístico.
Existe, sim, o trabalho prazeroso, o trabalho criativo, do trabalhador para si mesmo, a alegria sentida na obra do seu trabalho, como existe o trabalho que dignifica, aquele que se faz sem prazer mas em benefício da coletividade, com o sentimento de participação na construção do bem-estar comunitário. O trabalho do mercado, todavia, aquele que se vende por salário para o próprio sustento e da família, e é empregado na produção de mercadorias e na geração de lucro para o capital, é o trabalho mais penoso, escravizador e alienante, obrigatório ainda no estágio atual do desenvolvimento da Humanidade, e objeto de luta dos trabalhadores para a melhoria de suas condições de realização.
Este trabalho de mercado, sendo de longe o mais volumoso em nossas sociedades, acaba por condicionar, ditar mesmo as condições, como o tempo da jornada, a estabilidade e especialmente os salários, dos trabalhadores do setor público, que prestam serviço à coletividade e não ao capital. Daí porque ser este tipo de trabalho (de mercado) aquele sobre o qual se concentra a luta de emancipação dos trabalhadores em geral.
Esta luta dos trabalhadores começou há bem mais de 150 anos, quando as condições de exploração impostas pelos primeiros tempos do capitalismo e da chamada revolução industrial eram absolutamente selvagens, no limite mesmo da sobrevivência física do ser humano. O estabelecimento de condições um pouco acima desses limites inumanos, inclusive a fixação, há mais de 120 anos, de uma jornada diária de 12 horas e depois de 10 horas, custou muito esforço, coragem e sangue dos trabalhadores.
A luta teve continuidade no mundo que se industrializava e elevava a produtividade do trabalhador, e há pouco menos de 100 anos chegou-se ao consenso de uma jornada diária de 8 horas. Durante mais uns 50 anos, a produtividade do trabalho continuou crescendo e a luta organizada dos operários prosseguiu, conseguindo transformar parte desta produtividade maior em elevação de salários e outras condições melhores nas áreas de previdência e saúde, sem alterar entretanto a duração da jornada.
Finalmente, nos últimos 30 ou 40 anos, a produtividade do trabalho explodiu num salto gigantesco, jamais antes imaginado, e a luta dos trabalhadores passou por derrotas sucessivas, na medida em que o capital, apropriando-se inteiramente do desenvolvimento tecnológico, logrou transformar a formidável elevação da produtividade em supressão de mão-de-obra e desemprego em massa, colocando as organizações dos trabalhadores numa posição cada vez mais enfraquecida e defensiva, perdendo continuamente conquistas importantes de antes. Ninguém pensou em transformar a redução de mão-de-obra em redução da jornada.
O crescimento dos ganhos do capital foi além de todos os limites conhecidos e imaginados, excluindo trabalhadores e globalizando a produção para empregar a mão de obra mais barata onde estivesse no planeta. Reduziram-se enormemente os gastos com salários, dando espaço para criar a espiral dos lucros meramente financeiros, cada vez maiores, gigantescos, dando voltas pelo mundo, por cima dos lucros também crescentes do setor produtivo. A demasia desse processo acabou por gerar a crise do sistema em que o mundo rico hoje se debate, e abriu portas para uma certa recuperação da expressão política da classe trabalhadora.
Neste ponto da História coloca-se então a pergunta: Se a ciência é um patrimônio da Humanidade, por que os frutos do conhecimento científico não se distribuíram entre todos os seres humanos mas foram completamente apropriados pelos donos do capital através da tecnologia? Foi o que se passou: o capital pagou bem os melhores engenheiros e tecnólogos para, a partir da ciência, desenvolver as tecnologias de automação, de informação, de comunicação, de transporte, todas voltadas para a redução de trabalhadores na produção e a busca desses trabalhadores onde ganhassem salários mais baixos. Este processo desarmou inteiramente as organizações trabalhistas onde tinham avançado mais e conquistado melhores condições, colocando-as numa precária posição defensiva. Aproveitando-se da posição de completa dominação política com o retrocesso imposto aos trabalhadores, o capital retirou os governos das funções de regulamentação que antes exerciam e que davam certa proteção aos trabalhadores por via de alguma representação que tinham nesses governos. Foi o triunfo absoluto do capital: a era do neoliberalismo e da globalização.
Entretanto, Marx tinha muita razão e o terremoto da crise abalou o triunfalismo neoliberal. O capital vai perdendo posições na hegemonia política e a velha luta dos trabalhadores vai ganhando novo impulso: a velha luta pelos salários e pela melhoria das condições de trabalho. Mais além: é uma luta pela reafirmação da democracia, seriamente ameaçada pelo comando tecnocrático do capital em desespero sobre os governos, com o fim de eliminar completamente a presença dos trabalhadores na política. É neste ponto se que abrem alternativas para as reivindicações.
Aumentar os salários dos chineses parece absolutamente necessário, apesar do custo de vida lá ser muito mais baixo por causa das interferências do Estado Socialista. No outro extremo, aumentar os salários dos trabalhadores americanos e europeus tem um outro significado, que é o de seguir automaticamente, irrefletidamente, pela rota do marquetismo, do incentivo ao consumismo capitalista, que está destruindo o nosso planeta e alienando mais e mais o ser trabalhador dos verdadeiros valores humanísticos. No meio estão os nossos trabalhadores, que ainda precisam de alguma melhoria salarial mas também já podem, e devem, juntamente com os dos países mais ricos, buscar a outra alternativa, a de melhorar substancialmente as condições de trabalho, principalmente reduzindo a jornada diária, mantendo-se o nível salarial.
Melhorar essencialmente a qualidade de vida do trabalhador não implica aumentar o consumo material acima de certos limites; não significa ter mais dinheiro para comprar um carro, roupas de grife, televisão de plasma ou o último celular, imitar maquinalmente os ricos no consumo de mercado. Mas pode ser, sim, esta nova qualidade de vida, dispor de mais duas horas por dia para si, para se dedicar ao seu aperfeiçoamento humano e cultural, para ler e estudar um pouco mais, para pensar um pouco mais, para dedicar-se mais à família, aos amigos e aos afetos, e também à política e à atividade comunitária, para cultivar mais o esporte e a saúde, para se dedicar mais à religião no caso dos religiosos, para simplesmente relaxar e melhorar o seu lazer ou contemplar mais detidamente as belezas da vida. Em uma palavra, para humanizar-se mais.
A crítica mais consistente que se faz a essa sociedade capitalista globalizada é que ela está evidentemente produzindo o homem cínico, totalmente absorvido pelo objetivo da competência operacional no mercado, pelo consumo material sofisticado e pelo lazer massificado e alienante ou estimulado pelo abuso do sexo e das drogas. Em outras palavras, o culto das virtudes do passado foi ocupado pela sacralização da competência cínica, produtora de resultados econômicos. Immanuel Kant se comprazia na afirmação das suas duas belezas supremas: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim”. Não existe mais céu estrelado nem lei moral; só as aptidões consagradas em dinheiro pelo mercado.
Havia, sim, no passado, o culto ao progresso e à iniciativa do melhoramento, mas sua definição compreendia dimensões essenciais do amor e da espiritualidade, ressaltados, por exemplo, pelo positivismo inscrito em nossa bandeira. O culto de hoje é ao PIB, abrangendo, no máximo, a questão do emprego e da saúde como filamentos sociais. Todo o noticiário da mídia se esgota no PIB, na inflação e nas bolsas de um lado, e nos crimes, na corrupção e nos esportes de outro. A política, que motivava e era acompanhada com interesse, passou a ser desprezada, apequenada pelo endeusamento do mercado, e estigmatizada pelos escândalos da corrupção, esta filha natural do cinismo de todo o sistema.
São banalidades da observação cotidiana de hoje, mas ainda assim chocantes. O que fazer, todos se perguntam. Restaurar minimamente a dimensão espiritual do ser humano, abrindo-lhe, dentro da loucura competitiva, espaço e tempo para a recuperação desta dimensão essencial. Reduzir o espaço do mercado e aumentar o da política, da filosofia, da religião, do amor. Urgentemente, claro, para combater a degeneração da moral, o cinismo, a corrupção, a droga, a criminalidade e todas as patologias mentais que prosperam assustadoramente neste mundo competitivo do mercado.
Eis o fundamento mais forte do projeto das seis horas de jornada. Projeto que, ao nível do desenvolvimento atual das forças produtivas é algo inteiramente viável sob o ponto-de-vista econômico. Trata-se de uma questão eminentemente política que os sindicatos de trabalhadores, acuados na defensiva, não tiveram até agora condições de postular e defender mas que, no quadro dos próximos dias futuros, poderá ser posta na linha de frente da luta política, a partir da recuperação da presença trabalhadora nesta linha de frente.
A jornada mais curta propicia, ademais, pelo menos outros dois benefícios extremamente importantes para a economia e as sociedades pelo mundo a fora, além desta essencial humanização da vida do trabalhador. De um lado, compensando aumentos de custo, pode quase duplicar a produtividade do capital fixo, aumentando a sua utilização de 8 para 12 horas diárias, com duas turmas de 6 horas com salários iguais, sem pagamento de horas-extra. De outro, com esta utilização maior do capital, o flagelo do desemprego, uma das calamidades da vida social contemporânea, pesadamente custosa para os erários, desaparecerá do mundo durante muito tempo.
Trata-se, de fato, de uma questão eminentemente política, dificultada de um lado, pelo acirramento da competição e da reação do capital diante da crise, mas favorecida de outro pelo revigoramento da luta dos trabalhadores gravemente ameaçados e ligados mundialmente por manifestações gigantescas. Uma questão de âmbito internacional, claro, na medida em que dificilmente qualquer país, isoladamente, poderia tomar a decisão de implantar esta redução de jornada: a perda de competitividade perante as outras nações, em pouco tempo arrasaria sua economia e levaria à derrocada política. A França, por exemplo, ensaiou uma diminuta redução, sem grande significado para a vida dos seus assalariados, e viu-se obrigada a voltar atrás para não cair em desvantagem comparativa. E não se trata disso que fez a França; o que se pretende é uma redução substancial, para seis horas por dia e cinco dias por semana, sem redução salarial. Isso requer uma forte arregimentação política mundial, com um novo Marx à sua frente.
Alguns países, entretanto, podem perfeitamente avançar mais na proposição e na organização do movimento mundial em prol da nova jornada humanística. Países que contem com partidos políticos de cunho socialista bem estruturados e bem situados em relação ao poder, e com organizações sindicais bem desenvolvidas, conscientes e politicamente preparadas. Países que desfrutem de prestígio político e capacidade de liderança no mundo de hoje, e que possuam condições físicas, demográficas e econômicas para a sustentação de propostas internacionais importantes. Todo mundo já viu, aí, o Brasil enquadrado nessas condições exigidas. Acrescida de uma outra condição, também relevante: a da novidade; lideranças novas, emergentes, são mais escutadas e têm mais capacidade de mobilização para mudanças renovadoras.
Esta é uma das promessas mais relevantes e preciosas do século XXI, junto com a paz mundial e a reforma da ONU, e junto com o aperfeiçoamento da democracia com a virada para o paradigma participativo que também está em jogo. A institucionalização da economia mista, num mundo capitalista enviesado para o socialismo, com uma presença forte do Estado nos setores estratégicos, especialmente no sistema financeiro, capaz de garantir melhores condições de estabilidade, será outra realização brilhante do novo século.
O teor de renovação e alargamento da vida humana que a redução da jornada propicia faz dela uma conquista de tal maneira extraordinária que terá de passar por uma longa e profunda discussão de todos os seus aspectos e desdobramentos. Trata-se de uma mudança no núcleo central da filosofia de vida da Humanidade, no sentido, que tanto tem sido apregoado pelos humanistas, de substituição de muitas preferências ligadas ao ter para outras vinculadas ao ser do homem.
Não há sinais claros desta mudança filosófica no horizonte, a não ser as manifestações, muito fortes mas muito vagas, de insatisfação com a injustiça do sistema, e de saturação com a competição neurotizante instigada pelo consumismo fundamental do capitalismo. O sinal mais claro e bem direcionado será dado precisamente pela reivindicação organizada e mundial em favor da redução da jornada de trabalho.
O que move a iniciativa de formular claramente esta questão no momento é a perspectiva de crescimento das organizações dos trabalhadores face ao enfraquecimento do comando político internacional do capital, causado pela crise econômica que se aprofunda e se complica. E o Brasil, como acima referido, tem condições muito especiais para se posicionar na vanguarda desta reivindicação, consciente de que não a implantará sozinho mas no bojo de uma revolução democrática e trabalhista mundial.
É nesta linha de ação política que Roberto Ponciano propõe a formação de um coletivo, ou grupo de trabalho permanente, destinado a formular, discutir, aperfeiçoar a proposição da jornada de seis horas, e ampliar a sua divulgação, a mobilização dos trabalhadores para a sua implementação em escala mundial. As organizações sindicais da América do Sul bem poderiam ser um poderoso núcleo emissor desta conclamação para o resto do mundo.
Saturnino Braga é ex-senador da República, ex-prefeito do Rio de Janeiro e presidente de honra do Instituto Casa Grande (ICG)
Saturnino é um homem íntegro, digno de fazer as afirmações que faz e propor a humanização da humanidade, como dizia Brecht. O otimismo de acreditar que o homem é capaz de mudar o mundo é muito importante nos tempos atuais, buscando alternativas negociadas e civilizadas.
ResponderExcluirBelo e pedagógico texto. Valeu, Saturnino!
Valeu Pablo!