Por Samir Amin*
Ante o que chama de “a farsa democrática”, Samir Amin levanta uma questão essencial: “Assim sendo... Renunciar às eleições? Não. Mas como associar novas formas de democratização, ricas, inventivas, que deem às eleições outro uso, diferente do uso que as forças conservadoras previram para elas?” Para Samir Amin, aí está o desafio que temos de enfrentar.
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O voto universal é conquista recente, das lutas dos trabalhadores no século 19 em alguns países europeus (Inglaterra, França, Países Baixos e Bélgica), que aos poucos estendeu-se por todo o mundo. Hoje, desnecessário dizer, a reivindicação do poder supremo, delegado a uma Assembleia eleita, corretamente, em base pluripartidária – seja assembleia legislativa ou constituinte, segundo as circunstâncias – define a aspiração democrática e (supostamente, digo eu) garante a realização da democracia.
O próprio Marx investiu grandes esperanças nesse voto universal, “via pacífica possível rumo ao socialismo”. Já escrevi que, quanto a esse ponto, a história tem desmentido as esperanças de Marx (cf. Marx et la démocratie).
Creio que não é difícil identificar a razão do fracasso da democracia eleitoral: todas as sociedades, até hoje, são fundadas num duplo sistema de exploração do trabalho (sob diferentes formas) e de concentração do poder do Estado em benefício da classe dirigente. Essa realidade fundamental produziu uma relativa “despolitização/desculturação” de vastos segmentos da sociedade. E essa produção, concebida e posta em prática, em grande parte, para cumprir a função de sistema que se esperava que cumprisse, é, simultaneamente, a condição para que o sistema seja reproduzido, sem outras mudanças “se não as que se podem controlar e absorver, e são condição de estabilidade do próprio sistema.” O que se define como “o país profundo” significa, de fato, o país mais profundamente adormecido. Eleições e voto universal, nessas condições, é vitória garantida de todos os conservadorismos (ainda que reformistas).
Por isso jamais se viu mudança na história produzida por esse modo de governo fundado no “consenso” (conservador, consenso para nada mudar). Todas as mudanças de cunho realmente transformador da sociedade, mesmo as reformas (radicais) sempre foram produto de lutas, levadas avante por grupos que, em termos eleitorais, muitas vezes manifestaram-se como “minorias”. Sem a iniciativa dessas minorias que são o elemento motor da sociedade, não há mudança possível. As lutas em questão, assim empreendidas, sempre terminam – quando as alternativas que proponhas sejam clara e corretamente definidas – por arrastar as “maiorias” (silenciosas, no início), até serem consagradas pelo voto universão, que sempre vem depois – nunca antes – da vitória.
No nosso mundo contemporâneo, o “consenso” (a partir do qual o voto universal definiu as fronteiras) é mais conservador do que jamais antes. Nos centros do sistema mundial, esse consenso é pró-imperialista. Não no sentido de que implique necessariamente ódio ou desprezo a outros povos que são vítimas desse “consenso”, mas no sentido, mais banal, de que se aceita a punção da renda imperialista, porque ela é a condição de reprodução de toda a sociedade, garantia de sua “opulência”, sempre em contraste com a miséria dos outros. Nas periferias, as respostas dos povos ao desafio (à pauperização produzida pelo deslocamento da acumulação capitalista/imperialista) ainda são confusas, no sentido de que sempre veiculam uma dose de ilusões passadistas fatais.
Nessas condições, os poderes dominantes recorrem a “eleições” como o meio por excelência de refrear o movimento, de extinguir o potencial de radicalização das lutas. “Eleições: arapuca para tolos” – diziam alguns em 1968, com bastante razão, confirmada por muitos fatos. Hoje, eleitas em altíssima velocidade, já há assembleias constituintes na Tunísia e no Egito: para estabilizar o país, “pôr fim à desordem”, quer dizer: mudar, para nada mudar.
Assim sendo... Renunciar às eleições? Não. Mas como associar novas formas de democratização, ricas, inventivas, que deem às eleições outro uso, diferente do uso que as forças conservadoras previram para elas. Aí está o desafio que temos de enfrentar.
O décor teatral da farsa democrática
Esse décor teatral foi inventado pelos pais fundadores dos EUA, com a intenção declarada com perfeita lucidez, de evitar que a democracia eleitoral não se transformasse em instrumento que o povo pudesse usar para questionar a ordem social fundada na propriedade privada (e na escravidão!). Nesse espírito, a Constituição está baseada na eleição de um presidente (uma espécie de “rei eleito”) que concentra os poderes essenciais. O “bipartidarismo” ao qual a campanha eleitoral presidencial leva inevitavelmente, tende então cada vez mais a ser o que sempre foi: expressão de um “partido único” – desde o final do século 19, o partido do capital dos monopólios – sempre em busca do voto de “clientelas” que, só elas, supõem-se diferentes umas das outras.
A farsa democrática manifesta-se também mediante uma possível “alternância” (no caso dos EUA, entre Democratas e Republicanos), sem que jamais se chegue a cogitar de real alternância, porque não se veem alternativas radicalmente diferentes. E, sem a possibilidade real de alternativa real, não há democracia. A farsa fundamenta-se na ideologia do “consenso” – que, por definição, nega o conflito real entre interesses diferentes e diferentes visões de futuro. A invenção das “primárias”, que convocam o conjunto do corpo eleitoral (membros ditos de direita ou de esquerda!) a manifestar-se para escolher cada um dos dois falsos adversários, só faz tornar ainda mais evidente a deriva rumo à aniquilação de qualquer potencial de renovação que houvesse nas eleições.
Jean Monnet, autêntico antidemocrata (motivo pelo qual é celebrado em Bruxelas como fundador da “nova democracia europeia”!), perfeitamente consciente do que queria (copiar o modelo dos EUA), empreendeu todos os esforços – tradição escrupulosamente mantida na União Europeia – para retirar todos os poderes das Assembleias eleitas, em benefício de “comitês de tecnocratas”.
Não há dúvidas de que a farsa democrática funciona satisfatoriamente bem nas sociedades opulentas da tríade imperialista (EUA, Europa Ocidental, Japão), porque é mantida pela renda imperialista (vide meu livro La loi de la valeur mondialisée [A lei mundializada do valor]). Mas a farsa democrática também é reforçada, em seu potencial para convencer, pelo consenso que há em torno da ideologia do “indivíduo” e pelo real respeito aos “direitos” (conquistados nas lutas, o que raramente alguém se lembra de assinalar); pela prática da independência do poder Judiciário (outra vez, o modelo dos EUA, fundado na eleição de juízes que, por isso, têm de ‘agradar’ “a opinião pública”, trabalha contra aquela independência); e pela complexa institucionalização da pirâmide, como garantia de direitos.
A história da farsa democrática na Europa continental nada teve de semelhante a esse fluxo de águas tranquilas que se viu nos EUA. No século 19 (e até, mesmo, 1945), os combates pela democracia, tanto os inspirados pela burguesia capitalista e classes médias, quanto os conduzidos pelas classes operárias e populares, tiveram de enfrentar as fortes resistências dos “antigos regimes”, o que explica os seus avanços e recuos caóticos. Para Marx, essa resistência teria sido obstáculo desconhecido nos EUA – com vantagem para os EUA. Estava errado. Não estimou corretamente que, num modo capitalista “puro” (como o dos EUA, se comparado ao europeu), a “sobredeterminação” das instâncias – quer dizer, evoluções próprias da superestrutura ideológica e política, que se ajustam automaticamente a evoluções que interessem aos monopólios capitalistas que governam da sociedade – facilmente produziria o que sociólogos convencionais chamam de “totalitarismo”. E “totalitarismo” é conceito que se aplica ao mundo capitalista, mais que a qualquer outro (vide o que escrevi sobre “subdeterminação” e as aberturas que oferece.)
No século 19 na Europa (mas também nos EUA nessa época, embora em grau menor), os blocos históricos construídos para assegurar o poder do capital eram forçados pelo peso de coisas complexas e mutáveis – a diversidade das classes e dos segmentos de classes. Por isso, os conflitos eleitorais davam então a impressão de que funcionassem realmente democraticamente. Mas progressivamente, com a dominação pelos monopólios substituindo a diversidade dos blocos capitalistas, aquela aparência de funcionamento democrático também se esvaiu. E o vírus liberal [orig. Le virus libéral], título de um de meus trabalhos] fez o resto do serviço: alinhar cada vez mais a Europa, ao modelo dos EUA.
O conflito entre as grandes potências capitalistas contribuiu para cimentar os segmentos dos blocos históricos, levando ao domínio pelo capital, mediante o recurso ao “nacionalismo”. Aconteceu até – especialmente, por exemplo, nos casos de Alemanha e Itália – de o “consenso nacionalista” substituir o programa democrático da revolução burguesa. Essa deriva está hoje quase completada.
Os partidos comunistas da 3ª Internacional tentaram, a seu modo, opor-se àquela deriva, apesar de a ‘alternativa’ proposta (o modelo soviético) ser bem pouco atraente. Tendo fracassado na tentativa de construir blocos alternativos duradouros, os comunistas afinal capitularam e renderam-se, submissos, ao sistema da farsa democrática eleitoral. Ao fazê-lo, a esquerda radical que seus herdeiros constituíram (na Europa, o grupo da esquerda unida ao parlamento de Bruxelas) renunciou a qualquer possibilidade de verdadeira “vitória eleitoral”; e passou a contentar-se com sobreviver nos assentos marginais reservados às “minorias” (5% ou 10%, no máximo, do “corpo eleitoral”). Transformada em eleitos marginais, cuja única preocupação é manter esses assentos miseráveis dentro do sistema – o que se chama “estratégia”, mas não é – a esquerda radical, de fato, renunciou a ser esquerda. Nem chega a surpreender, nessas circunstâncias, que a esquerda já faça o jogo dos demagogos neofascistas.
A submissão à farsa democrática é assumida por um discurso autodefinido como “pós-moderno” o qual, simplesmente, se recusa a reconhecer a importância dos efeitos de destruição. Que importariam as eleições? O essencial está acontecendo noutra parte, dizem, “na sociedade civil” (conceito confuso ao qual voltarei), onde os indivíduos estão convertidos em “sujeito da história”, como o vírus liberal diga que são – mesmo que não sejam! A “filosofia” de Negri, que já critiquei noutros artigos, manifesta essa deserção.
Mas a farsa democrática, que não é rejeitada nas sociedades opulentas da tríade imperialista, não funciona nas periferias do sistema. Aqui, na zona das tempestades, a ordem que há não tem legitimidade suficiente para estabilizar a sociedade. A alternativa desenhar-se-á então em filigrana nos “levantes do sul”, que marcaram o século 20 e seguem seus caminhos pelo século 21?
Teorias e práticas das vanguardas e dos despotismos iluminados
A tempestade é portadora potencial de avanços revolucionários, mas não é sinônimo imediato de revolução.
As respostas dos povos das periferias, inspiradas pelo ideal do socialismo radical – pelo menos na origem (Rússia, China, Vietnã, Cuba) – ou da libertação nacional e do progresso social (à época da Conferência de Bandoung na Ásia e na África [1], na América Latina), não são simples. Elas associam, em diferentes graus, componentes de vocação progressista universalista e outros, de natureza passadista. Destrinçar as interferências conflitantes e/ou complementares entre essas tendência ajudará a formular – adiante, nesse artigo – as formas possíveis de autênticos avanços democráticos.
Os marxismos históricos da 3ª Internacional (o marxismo-leninismo russo e o maoísmo chinês) rejeitaram deliberadamente e integralmente o passadismo. Optaram por uma visada voltada para o futuro, em espírito de emancipação no pleno sentido da palavra. Essa opção foi sem dúvida facilitada na Rússia, pela longa preparação que permitiu aos “ocidentalistas” (burgueses) vencer os “eslavófilos” e os “eurasianos” (aliados do Antigo Regime), na China, pela revolução dos Taipings (escrevi sobre isso em La Commune de Paris et la Révolution des Taipings).
Simultaneamente, esses marxismos históricos optaram, de saída, por uma conceptualização do papel das “vanguardas” na transformação das sociedades. Deram forma institucionalizada a essa opção, simbolizada pelo “partido”. Não se pode dizer que a opção tenha sido ineficaz. Bem ao contrário disso, ela com certeza esteve na base das vitórias daquelas revoluções. A hipótese de que a vanguarda minoritária ganharia o apoio da imensa maioria mostrou que tinha fundamento. Mas a história posterior se encarregaria de mostrar os limites dessa eficácia. Porque o fato de o essencial dos poderes se ter concentrado nas mãos dessas “vanguardas” não é absolutamente estranho às derivas posteriores dos sistemas “socialistas” que se pretendia criar e instituir.
A teoria da prática dos marxismos históricos em questão teriam sido práticas de “despotismos iluminados”? Não se pode saber, se não se fixar precisamente quais foram e o que progressivamente vieram a ser os objetivos desses despotismos iluminados. Em todo caso, foram, até o fim, “antipassadistas” – como o comprova o comportamento deles em relação à religião, declarada puro obscurantismo (já escrevi sobre essa questão em L’internationale de l’obscurantisme).
O conceito de “vanguarda” foi menos adotado nas sociedades revolucionárias consideradas que em outras sociedades. Estava na base do que vieram a ser os partidos comunistas de todo o mundo, dos anos 1920 aos anos 1980, e encontrou lugar nos regimes nacionais populares do Terceiro Mundo contemporâneo.
Por toda a parte, esse conceito de “vanguarda” dava à teoria e à ideologia importância decisiva, a qual, por sua vez, implicava valorizar o papel dos “intelectuais” (revolucionários, é claro), ou seja, da intelligentsia. Intelligentsia não é sinônimo de classes médias educadas, menos ainda de quadros, burocratas, tecnocratas ou universitários (as chamadas “elites”, no jargão anglo-saxão). Intelligentsia é um grupo social que não emerge como tal senão em condições especiais que se observam em algumas sociedades e passam a ser ativo importante, muitas vezes decisivo. Fora da Rússia e da China, encontra-se fenômeno análogo na França, na Itália e em outros países, mas com certeza não há nem na Grã-Bretanha nem nos EUA, nem, em geral, na Europa do Norte.
Na França, durante a maior parte do século 20, a intelligentsia teve lugar importante na história do país, reconhecido pelos melhores historiadores. Pode ter sido efeito indireto da Comuna de Paris, durante a qual o ideal da construção de um estágio mais avançado da civilização, ao sair do capitalismo, manifestou-se mais claramente que em qualquer outro ponto do mundo (cf. meu artigo sobre a Comuna).
Na Itália, o Partido comunista de antes do fascismo cumpriu funções análogas. Como Luciana Castallina observa com lucidez, os comunistas – uma vanguarda fortemente apoiada pela classe operária, mas sempre minoritária em termos eleitorais – realmente construíram, sozinhos, a democracia italiana. Tiveram, “na oposição” – à época – um poder real na sociedade, muito mais considerável do que teriam depois, “no governo”! O verdadeiro suicídio, que só se explica pela mediocridade dos líderes que sucederam Berlinguer, fez sumir, com eles mesmos, o Estado e a democracia na península.
Esse fenômeno da intelligentsia jamais existiu nos EUA e na Europa protestante do Norte. O que aqui se chama “a elite” – a seleção do termo é significativa – é composta exclusivamente de servidores do sistema, ainda que sejam “reformadores”. A filosofia empirista/pragmatista, que aqui ocupa toda a cena do pensamento social, com certeza reforçou os efeitos conservadores da reforma protestante cuja crítica propus noutro estudo (L’Eurocentrisme, modernité, religion, démocratie). O anarquista alemão Rudolf Rocker é dos raros pensadores europeus que expôs reflexão próxima da minha; mas a moda exige – por Weber e contra Marx – que a reforma protestante seja celebrada sem exame, como avanço progressista!
Nas sociedades periféricas em geral, além dos casos flagrantes de Rússia e China, e por idênticas razões, iniciativas das “vanguardas”, quase sempreintelligentsistas, favoreceram a reunião e o apoio de grandes maiorias populares. A forma mais frequente dessas cristalizações políticas cujas intervenções foram decisivas no “despertar do Sul” foi a do (ou dos) “populismo”. Teoria e prática traçadas pelas “elites” (à moda anglo-saxônica, “pró-sistema”), mas defendidas e em certo sentido reabilitadas por Ernesto Laclau com argumentos sólidos, boa parte dos quais assumirei.
É claro que há tantos “populismos” quanto experiências históricas chamadas “populistas”. Os populismos são frequentemente associados a personagens “carismáticos”, cuja “autoridade” do pensamento é aceita sem muita discussão. Os reais avanços (sociais ou nacionais) que lhes são associados em algumas condições levaram-me a classificar esses regimes como “nacionais populares”. Fique desde já claro que esses avanços jamais foram mantidos nem por uma prática democrática convencional, “burguesa”, menos ainda por um conjunto de práticas mais avançadas, como as que apresentarei, pelo menos nas linhas gerais possíveis, adiante, nesse artigo. Foi o caso da Turquia de Ataturk, que provavelmente iniciou o modelo para o Oriente Médio, depois do Egito nasserista, os regimes do partido Baas da primeira fase, da Argélia da FLN. Experiências análogas, em condições diferentes, foram desenvolvidas nos anos 1940 e 1950 na América Latina. A “fórmula”, porque responde a carências e possibilidades reais, está longe de ter perdido seu potencial de renovação.
Classificarei portanto de boa vontade como “nacionais populares” algumas experiências em curso na América Latina, sem deixar de assinalar que, no plano da democratização, essas experiências sem dúvida trouxeram avanços que não se viram nas que as precederam.
Propus algumas análises sobre as razões do sucesso dos avanços obtidos nesse quadro em alguns países do Oriente Médio (Afeganistão, Iêmen do Sul, Sudão, Iraque) que pareciam mais promissores que outros, mas também as razões dos fracassos dramáticos.
Seja como for, é preciso não generalizar nem simplificar, como faze a maioria dos comentaristas ocidentais obcecados pela “questão democrática”, ela mesma já reduzida à fórmula do que descrevi como “farsa democrática”. Nos países da periferia, essa farsa assume muitas vezes traços de extrema caricatura. Sem serem “democratas”, alguns líderes de regimes nacionais populares foram “grandes reformadores” (progressistas), carismáticos ou não. Nasser é um belo exemplo. Mas outros nada foram além de polichinelos inconsistentes, como Gaddafi, ou déspotas vulgares “não iluminados” (e, além disso, sem qualquer carisma), como Ben Ali, Moubarak e vários outros. De fato, esses ditadores não conduziram experiências nacionais populares. Nada fizeram além de organizar a pilhagem de seus países por máfias associadas pessoalmente ao próprio ditador. Nesse sentido, foram, como Suharto e Marcos, agentes executivos das potências imperialistas as quais, além do mais, sustentaram seus poderes até o final.
O passadismo, inimigo da democracia
Os limites de cada uma e de todas as experiências nacionais populares (ou “populistas”) dignas do nome originam-se nas condições objetivas que caracterizam as sociedades da periferia do mundo capitalista/imperialista contemporâneo. São experiências diversas, evidentemente. Mas além da diversidade há convergências importantes que permitem projetar alguma luz sobre as razões de seus sucessos além de seus recuos.
A persistência de aspirações “passadistas” não é produto do “atrasismo” sólido dos povos considerados (o discurso habitual sobre o tema), mas meio para que se possa aferir corretamente o desafio. Todos os povos e nações das periferias não só foram submetidos a uma feroz exploração econômica pelo capital imperialista, mas também foram, por isso mesmo, submetidos a uma também feroz agressão cultural. A dignidade da cultura, da língua, dos costumes, da história foi-lhes negada com muito visível desprezo. Não surpreende que essas vítimas do colonialismo externo ou interno (os povos nativos da América) associem naturalmente a libertação social e política à restauração da dignidade nacional.
Mas, por sua vez, essas aspirações legítimas induzem também a que os povos se voltem para o passado, e exclusivamente para o passado, na esperança de lá encontrarem a resposta às questões de hoje e de amanhã. Há risco real de o movimento de despertar e de libertação de vários povos acabar preso em impasses trágicos, no caso de o “passadismo” ser tomado como eixo central da renovação buscada.
A história do Egito contemporâneo ilustra à perfeição a transformação da complementaridade necessária entre a perspectiva universalista aberta para o futuro e associada à restauração da dignidade do passado, num conflito entre duas opções formuladas em termos absolutos: ou bem “ocidentalizar-se” (no sentido vulgar do termo, renegando o passado), ou bem “voltar ao passado” (sem crítica).
O vice-rei Mohamed Ali (1804-1849) e os quedivas [2] até os anos 1870s optaram por uma modernização aberta à adoção de fórmulas de modelos europeus. Não se pode dizer que essa opção fosse uma “ocidentalização” de pacotilha. Os chefes do estado egípcio davam importância à industrialização modernizante do país, não à adoção, unicamente, do modelo de consumo dos europeus. Interiorizaram a assimilação dos modelos europeus associando-os à renovação da cultura nacional e contribuindo para fazê-la mover-se no sentido do laicismo, e a prova está nos seus esforços para apoiar a renovação da língua. Claro que o modelo europeu em questão era o modelo capitalista e sem dúvida não avaliavam a exata medida do caráter imperialista daquele modelo. Mas não se pode recriminá-los por isso. E quando o quediva Ismail proclamou seu objetivo – “fazer do Egito um país europeu” – ultrapassou Ataturk em 50 anos; e planejava associar aquela “europeização” ao renascimento nacional, não à negação desse renascimento.
As insuficiências do Nahda [“Renascimento Árabe”] cultural da época (sua incapacidade para compreender o que fora o Renascimento europeu), e o caráter “passadista” que dominava os conceitos do Nahda, sobre os quais escrevi, não são segredo para ninguém.
Saldo disso é precisamente a visão predominantemente passadista que se imporá ao movimento de renovação nacional no final do século 19. Ofereci uma explicação para isso: a derrota do projeto “modernista” que ocupara o proscênio entre 1800 e 1870 levou o Egito a regredir. E a ideologia da recusa daquele declínio cristalizou-se naquele momento de regressão, com todas as deformações que isso implicava. Os fundadores no novo Partido Nacional (Al hisb al watani), no final do século 19, Mustafá Kamel e Mohamed Farid, escolheram o passadismo como eixo central de seu combate, como se vê, dentre outras evidências, em suas ilusões “otomanistas” (apoiar-se em Istambul contra os ingleses).
A história provaria o erro dessa escolha. A revolução nacional e popular de 1919-1920 não foi conduzida pelo Partido Nacionalista, mas por seu adversário “modernista”, o Partido Wafd. Taha Hussein retoma então o slogan do quediva Ismail: “europeizar o Egito”; apoiar para essa finalidade a nova Universidade e marginalizar o Azhar [uma das principais mesquitas e entidades islâmicas do Egito].
A tendência passadista, herdada do Partido Nacionalista, logo deslizaria para a insignificância. Seu líder – Ahmad Hussein –, nos anos 1930 já não passa de chefe de um partido minúsculo, que pouco depois seria atraído pelo fascismo. Mas a tendência passadista reapareceria fortemente presente, outra vez, entre os oficiais livres que, em 1952, derrubariam o rei.
As ambiguidades do projeto de Nasser são o resultado desse recuo, no debate sobre a natureza do desafio. Nasser tenta associar alguma modernização, que mais uma vez não era de pacotilha, fundada na industrialização, ao apoio a algumas das ilusões passadistas. Pouco importa que o projeto de Nasser inscreva-se – ou tenha suposto que se inscrevesse – numa perspectiva “socialista”, evidentemente desconhecida no século 19. A atração que o passadismo exercia sobre ele continua lá. As opções relacionadas à “modernização do Azhar”, que já critiquei, são prova disso.
O conflito entre as visões “modernistas, universalistas” de uns e as visões “passadistas integralistas” de outros ainda ocupam o proscênio no Egito. As primeiras são defendidas, principalmente, pela esquerda radical (no Egito, de tradição comunista, forte nos anos imediatamente posteriores à II Guerra Mundial), ouvidas pelas classes médias esclarecidas, sindicatos operários e, ainda mais, pelas novas gerações. O passadismo tende mais à direita, com os Irmãos da Fraternidade Muçulmana, que adotou posições extremas na interpretação mais arcaica do Islã (promovida pela Arábia Saudita), o wahabismo.
Não é difícil chamar a atenção para o contraste que há entre essa evolução, que fechou o Egito num impasse, e a via adotada pela China depois da revolução dos Taipings [3], que o maoísmo retomou e aprofundou: a construção do futuro passa pela crítica radical do passado. “A emergência” no mundo moderno e, portanto, a proposição de respostas eficazes ao desafio, inclusive o engajamento na via da democratização – cujas linhas gerais exporei adiante, nesse artigo – são condicionadas pela recusa a fazer do passadismo o eixo central da renovação.
Não é pois por acaso que a China está hoje na vanguarda dos países “emergentes”. Tampouco é acaso que, na região do Oriente Médio, a Turquia, não o Egito, inclua-se no mesmo pelotão. A Turquia – mesmo a do Partido AKP “islâmico” – beneficia-se da ruptura que, ao seu tempo, foi o kemalismo. Mas a diferença entre a China e a Turquia é diferença decisiva: a escolha “modernista” da China já se inscreve numa perspectiva que se deseja “socialista” (e a China está em conflito com o hegemonismo dos EUA, quer dizer, com o imperialismo coletivo da Tríade), perspectiva que veicula oportunidades de progresso, enquanto a “modernidade” da Turquia contemporânea, que não cogita de sair da lógica da globalização contemporânea, é via sem futuro. Seu sucesso é só aparente e provisório.
A associação entre a tendência modernista e a tendência passadista que se encontra em todos os países do grande Sul (as periferias), evidentemente em fórmulas diversas. A confusão produzida por essa associação aparece numa de suas manifestações mais visíveis na profusão de discursos ineptos sobre “as formas do passado que se pretendiam democráticas”, trazidas a nu, sem crítica. A Índia independente faz o elogio dos panchayat [4]; os muçulmanos, dashura; os africanos, da “árvore que fala”, como se essas formas da vida social do passado tivessem algo a ver com os desafios do mundo moderno. A Índia é a maior democracia (por número de eleitores) do planeta? Ou essa democracia eleitoral ainda é e continuará a ser farsa, enquanto não se fizer a crítica radical do sistema de castas (herdado, também ele, do passado), até aboli-lo? A shura continua a ser veículo para pôr em ação a Xaria, interpretada no sentido mais reacionário, inimigo da democracia.
Os povos da América Latina enfrentam hoje esse mesmo problema. Compreende-se facilmente a legitimidade das reivindicações “dos indígenas”, se se sabe o que foi o colonialismo interno ibérico. Alguns discursos indigenistas pouco criticam os passados locais envolvidos na questão. Mas outros, sim, criticam aqueles passados e fazem avançar os conceitos ao associar, de modo radicalmente progressista, as exigências universalistas e o potencial que se acumula na evolução do que se herda do passado. Nesse sentido, os debates bolivianos são, provavelmente, muito ricos. A análise crítica dos discursos indigenistas em questão, feita por François Houtart (El concepto de Sumai Kwasai) acende nossas lanternas. A ambiguidade aparece muito destacada nesse estudo notável, que passa em revista o que me parece ser a provável totalidade dos discursos sobre o tema.
A contribuição – negativa – do passadismo na construção do mundo moderno é de tal ordem, que pode ser detectada não só nos povos das periferias. Na Europa, além de seu quarto noroeste, as burguesias estavam enfraquecidas demais para engajar-se em revoluções como na Inglaterra ou na França. O objetivo “nacional” – particularmente na Alemanha e na Itália, depois também na direção do leste e do sul do continente – serviu como meio de mobilização e de guarda-chuva para compromissos “meio-burgueses/meio velhos regimes”. O passadismo mobilizado aqui não foi “religioso”, mas “étnico”, fundado numa definição etnocêntrica da nação (na Alemanha) ou numa leitura mitológica da história romana (na Itália). O desastre está aí à vista – o fascismo e o nazismo –, a ilustrar o caráter arquirreacionário, com certeza antidemocrático, do passadismo nessas formas “nacionais”.
A alternativa universalista: a autêntica e plena democratização e a perspectiva socialista
Falarei aqui de democratização, não de democracia. A democracia, reduzida como está nas fórmulas impostas pelos poderes dominantes, já não passa de farsa. A farsa eleitoral produz um parlamento “esgoto” impotente, com o governo como único responsável frente ao FMI e à OMC, quer dizer, frente aos instrumentos dos monopólios da tríade imperialista. A farsa democrática está agora completada pelo “discurso-dos-direitos-do-homemista”, que insiste no respeito ao direito de protestar, sob a estrita condição de que o protesto jamais ponha em questão o poder supremo dos monopólios. E o protesto também já foi criminalizado, associado, como foi, ao “terrorismo”.
A democratização, concebida em contraponto como plena, quer dizer, dizendo respeito a todos os aspectos da vida, inclusive, claro, à gestão da economia, tem de ser processo sem fronteiras e sem limites, produzido pelas lutas e pela imaginação criadora dos povos. A democratização só tem sentido e autenticidade, se mobiliza essas potências inventivas, na perspectiva de construir um estágio mais avançado da civilização humana. Não pode pois vir fechada num formulário (“blue print”) prêt-à-porter. Nem por isso é desnecessário propor algumas linhas diretrizes do movimento, quanto ao rumo geral e para que se definam objetivos estratégicos possíveis, etapa a etapa.
A luta pela democratização é luta. Exige portanto mobilização, organização, escolha de ações, visão estratégica, sentido de tática, politização das lutas. Claro que essas formas não podem ser decretadas antes, a partir de dogmas santificados. Mas é indispensável identificá-las e não há como fugir disso. Porque se trata, bem claramente, de forçar o sistema de poder que aí está a recuar, tendo, como objetivo, substituí-lo por outro sistema de poderes. Sem dúvida, deve-se abandonar a fórmula da “revolução” que substitui de vez o poder do capital pelo poder do povo, santificado. São possíveis avanços revolucionários, fundados sobre os avanços de novos poderes, populares, reais, que fazem recuar os que continuarem a defender os princípios que reproduzem a desigualdade. Além do mais, Marx jamais formulou qualquer teoria “da revolução solene e solução definitiva”. Sempre, ao contrário, insistiu na longa transição caracterizada por esse conflito de poderes: os velhos em declínio e os novos em formação.
Abandonar a questão do poder é jogar fora o bebê com a água do banho. Acreditar que a sociedade possa ser transformada sem destruição, ainda que progressista, do sistema do poder que há, é crença da mais completa ingenuidade. Porque os poderes que há, longe de serem “desconstituídos” pela mudança social, são sempre capazes de capturar o novo, submetê-lo, integrá-lo como reforço – não como enfraquecimento – do poder do capital.
A triste deriva do “ecologismo”, que é hoje campo aberto à expansão do capital, é prova disso. Eludir a questão do poder, é pôr os movimentos numa situação que não lhes permite passar à ofensiva, condená-los a posições defensivas, de resistir às ofensivas dos que têm o poder e privá-los, portanto, da iniciativa. (...)
As lutas sociais e políticas (indissociáveis) poder-se-iam propor-se alguns grandes objetivos estratégicos, que apresentarei (adiante) ao debate teórico e político, confrontado sempre à prática das lutas, aos seus avanços e recuos.
Para começar, reforçar os poderes dos trabalhadores nos seus locais de trabalho, nas suas lutas cotidianas contra o capital. É, digamos, a vocação dos sindicatos. Sim, mas só se os sindicatos forem instrumentos de lutas reais. O que já não são, sobretudo os “grandes sindicatos”, pressupostos “fortes”, porque se assemelham a grandes maiorias entre os trabalhadores envolvidos. Essa força aparente é a verdadeira fraqueza dos sindicatos, porque os sindicatos creem-se obrigados a “ajustar-se” às reivindicações consensuais, sempre muito, muito modestas. Quem se surpreende por as classes operárias na Alemanha e na Grã-Bretanha (países de “sindicatos fortes”, como se ouve dizer) terem aceito ajustes drásticos que o capital lhes impôs ao longo dos últimos 30 anos, enquanto os “sindicatos franceses”, minoritários e considerados fracos, – conseguiram resistir melhor (ou menos mal)? Essa realidade nos lembra, simplesmente, que as organizações de militantes, sempre minoritárias por definição (a classe não pode ser constituída só de militantes!), conseguem, muito mais que os sindicatos “de massa” (e, portanto, de não militantes), arrastar maiorias para as lutas.
Outro terreno de lutas possíveis para estabelecer poderes novos, são os poderes locais. Nesse domínio, contudo, não farei generalizações rápidas, seja pela afirmação de que a descentralização é sempre um avanço democrático, seja, pelo contrário, pela afirmação de que a centralização é necessária para “mudar o poder”. A descentralização pode ser capturada por “sumidades locais”, em geral tão reacionárias quanto os agentes do poder central. Mas a descentralização também pode, conforme as estratégias postas em ação pelas forças progressistas em luta e as condições locais – favoráveis aqui, desfavoráveis ali –, completar e substituir os avanços na criação de novos poderes populares. A Comuna de Paris incluiu, com seu projeto de federalismo comunal. Oscommunards sabiam que retomavam, nessa questão, a tradição montagnarde dos Jacobinos de 1793. Porque esses, diferente do que se diz sem pensar (quantas vezes já se ouviu dizer que os “centralistas” jacobinos completaram a obra da Monarquia?!), foram federalistas (como esquecer a Festa da Federação?). A “centralização” foi obra posterior da reação termidoriana, concluída por Bonaparte.
A “descentralização” continua a ser termo dúbio, oposto como absoluto a outro termo absoluto, “centralização”. Associar um ao outro é desafio que está posto, nos combates pela democratização.
A questão dos poderes múltiplos – locais e centrais – é crucialmente importante nos países “heterogêneos”, ou por alguma razão histórica, ou qualquer outra. Nos países andinos e, mais geralmente, na América dita latina – e que deveria ser chamada de indo-afro-latina – a construção de poderes específicos (e dizer específicos é dizer que gozam de alguma margem de autonomia real) é condição para o renascimento das nações indígenas, renascimento sem o qual a emancipação social não tem sentido algum.
O feminismo e o ecologismo são outros terrenos de conflitos entre as forças sociais engajadas na perspectiva da emancipação global da sociedade e os poderes conservadores ou reformistas dedicados a perpetuar as condições da reprodução capitalista. Não cabe, evidentemente, considerá-los lutas “específicas”, porque as reivindicações aparentemente específicas que essas lutas promovem e a transformação global da sociedade são indissociáveis. Mas nem todos os movimentos feministas e ecologistas entendem assim.
A articulação das lutas nos diversos terrenos aqui evocados – e em outros – convida a construir formas institucionalizadas da interdependência entre todos os campos. Trata-se, uma vez mais, de mostrar imaginação criadora. Não é necessário esperar que a legislação vigente o permita, para criar sistemas institucionalizados (“informais”, se não sempre “ilegais”) por exemplo de negociação social permanente e “obrigatória” de fato, empregados/patronato; por exemplo de controle, que imponha a paridade homem/mulher; por exemplo, que toda decisão importante de investimento (privado ou estatal) seja submetido a avaliação séria, do ponto de vista ecológico.
Avanços reais nas direções propostas aqui criam uma dualidade de poderes – como a que Marx imaginou para a longa transição do socialismo ao comunismo, etapa mais avançada da civilização humana. Esses avanços levariam as “eleições” por sufrágio universal a tomar rumo completamente diferente do previsto na democracia-farsa. Mas aqui, outra vez, só fazem sentido eleições que se realizem depois das vitórias, nunca antes.
As propostas aqui sugeridas – e muitas outras possíveis – não se inscrevem no discurso dominante sobre “a sociedade civil”. De fato, andam no sentido oposto. O discurso sobre “a sociedade civil”, parente próximo dos delírios do “pós-modernismo” à Negri, é herdeiro direto da tradição da ideologia do consenso à moda dos EUA que sempre o promoveu em todo o planeta, retomado sem crítica por dezenas de milhares de ONGs e por seus representantes que se impõem em grandes números nos Fóruns Sociais. Essa ideologia aceita o regime (vale dizer: o capitalismo dos monopólios), no que tem de essencial – e serve de modo muito útil ao poder do capital. Como que lhe azeita as engrenagens. Assim o próprio capital gera uma falsa “oposição” sem qualquer capacidade para mudar o mundo. Por mais que aquela falsa “oposição” se apresente como agente de mudança, nada jamais muda.
Três conclusões
1. O vírus liberal tem efeitos devastadores. Produziu um “ajuste ideológico” que serve muito bem à expansão capitalista a qual sempre gera mais barbárie. Mas convenceu grandes maiorias – inclusive nas gerações mais novas – de que é hora de “viver no presente”, colher o que o imediato oferece, esquecer o passado, não pensar no futuro, sob o pretexto de que a imaginação utópica engendraria monstros. Convenceu vastas maiorias de que o sistema que há seria compatível com “o desenvolvimento do indivíduo” (o que absolutamente ele não é). Formulações acadêmicas pretensamente “novas” – os “pós”, pós-modernismo, pós-colonialismo, estudos culturais, elucubrações à Negri – garantem alvarás de legitimidade à capitulação do espírito crítico e da imaginação inventiva.
O desarranjo que essa prática de submissão interiorizada implica está, sem dúvida, na origem, dentre outros, da “renovação religiosa” (ressurgimento de interpretações religiosas e pararreligiosas conservadoras e reacionárias, “comunitaristas”, ritualistas. O “monoteísmo” dá o braço, sem problema algum, ao “moneyteísmo” – assunto sobre o qual já escrevi. Excluo evidentemente as interpretações religiosas que mobilizam o sentido que dão à espiritualidade, para legitimar a tomada de posição ao lado das forças sociais que lutam por emancipação. Mas as forças religiosas reacionárias são majoritárias, as forças religiosas progressistas são minoritárias, quando não marginalizadas. Outras formulações ideológicas não menos reacionárias também preenchem o vazio criado pelo vírus liberal: por exemplo, dentre outros, todos os “nacionalismos” e os comunitarismos étnicos e paraétnicos.
2. A diversidade é, muito felizmente, bela realidade do mundo. Mas elogiar a diversidade ‘em si’ leva a confusões perigosas.
De minha parte, proponho que se considerem à parte as “diversidades herdadas” (do passado), que, afinal, é o que são, e que só depois de demorado exame crítico poderão ser (ou não) reconhecidas eficazes para o projeto de emancipação. Proponho que não se misturem essas diversidades e outras – que visam a inventar o futuro e lutar pela emancipação. Porque também há diversidades cá do nosso lado, de análises e substratos culturais e ideológicos e propostas de estratégias de luta.
Na 1a. Internacional, lá estavam Marx, Proudhon, Bakunin. A 5a. Internacional deve fazer da diversidade um trunfo. Imagino que não pode “eliminar”, mas deve reunir e integrar: marxistas de diferentes escolas (inclusive alguns passavelmente “dogmáticos”); reformadores radicais autênticos que, mesmo assim, preferem reforçar objetivos viáveis mais próximos que perspectivas distantes; teólogos da libertação; pensadores e militantes que queiram inscrever as renovações nacionais que promovem, na perspectiva da emancipação universal; feministas e ecologistas que também se inscrevam nessa perspectiva. A condição fundamental que permitirá que esse reagrupamento de combatentes realmente trabalhe pela mesma causa é a tomada de consciência do caráter imperialista do sistema que há. A 5a. Internacional tem de ser muito claramente anti-imperialista. Não se pode satisfazer com “intervenções humanitárias” com as quais os poderes dominantes tentam substituir a solidariedade e o apoio às lutas de libertação dos povos, das nações e dos estados das periferias. Além desse reagrupamento, devem-se buscar alianças amplas com todas as forças e movimentos em luta contra as derivas da democracia-farsa.
3. Se insisto na dimensão anti-imperialista dos combates a fazer, é porque essa é a condição da possibilidade de construir uma convergência entre as lutas do Norte e do Sul do planeta. Já disse que a fraqueza – pelo mínimo que se diga – da consciência anti-imperialista no Norte é a principal causa da limitação dos avanços que os povos das periferias conseguiram até agora, e mais ainda de seus recuos.
Construir a perspectiva de convergência das lutas é empreitada difícil. É preciso não subestimar os perigos mortais que há nessas dificuldades.
No Norte, uma dessas dificuldades é a adesão ainda grande à ideologia do consenso que legitima a farsa democrática, aceitavam graças aos efeitos corruptores do rentismo imperialista. Mesmo assim, a própria ofensiva do capital dos monopólios contra os próprios trabalhadores do Norte, que está em curso, poderia ajudar na direção de os trabalhadores tomarem consciência de que os monopólios imperialistas são inimigos comuns, de todos. Os movimentos que se estão criando e reconstruindo em tempos politizados e organizados conseguirão fazer ver que os monopólios capitalistas têm de ser expropriados e nacionalizados na direção de serem socializados? Se não nos aproximarmos desse ponto de ruptura, o poder de última instância dos monopólios do capitalismo/imperialismo continuará intacto. As derrotas que o Sul poderia infligir àqueles monopólios, fazendo recuar a sangria operada pelo rentismo imperialista só reforçariam as chances de os povos do Sul livrarem-se também de suas cadeias.
Mas no Sul persiste o conflito de expressões da visão do futuro: universalistas ou passadistas? Enquanto esse conflito não se decidir a favor dos primeiros, os povos do Sul só conseguirão obter, em suas lutas de libertação, vitórias frágeis, limitadas e vulneráveis.
O bloco histórico progressista universalista só ganhará corpo, se se fizerem avanços sérios no Norte e no Sul, nos rumos aqui sugeridos.
*Samir Amin é diretor do Fórum do Terceiro Mundo, associação internacional de intelectuais da África, Ásia e América Latina, com sede em Dakar, Senegal, que visa a fortalecer os esforços intelectuais e os laços entre os países do Terceiro Mundo.
Referências
Para referências que podem ajudar o leitor a refazer o percurso da formação dos conceitos utilizados nesse texto (em francês e inglês), verhttp://www.pambazuka.org/fr/category/features/74822/print.
[1] Na Conferência de Bandung (18-24/4/1955), reuniram-se na Indonésia, os líderes de 29 estados asiáticos (Afeganistão, Arábia Saudita, Birmânia, Camboja, Laos, Líbano, Ceilão, República Popular da China, Filipinas, Japão, Índia, Paquistão, Turquia, Síria, Israel, República Democrática do Vietnã, Irã, Iraque, Vietnã do Sul, Nepal, Iêmen do Norte) e africanos (Etiópia, Líbia, Libéria e Egito), países que, juntos, tinham então população total de 1,35 bilhões de habitantes (mais em http://www.britannica.com/EBchecked/topic/51624/Bandung-Conference [NTs]).
[2] Quediva (do persa “soberano”; خديوي em árabe) era o título de vice-rei conferido pelo Império Otomano ao paxá do Egito (mais emhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Quediva [NTs]).
[3] Guerra civil, no sul da China, que durou de 1850 a 1864, liderada por um cristão convertido, Hong Xiuquan, que se apresentava como irmão mais jovem de Jesus Cristo, contra a dinastia Qing, dos Manchu. Houve cerca de 20 milhões de mortos, sobretudo civis, num dos conflitos militares mais mortais de toda a história. Mao Tse Tung, em Política e Tática, fala dessa revolta de Taiping, como um dos primeiros levantes revolucionários heróicos contra um regime feudal corrupto [NTs, com informações de http://en.wikipedia.org/wiki/Taiping_Rebellion].
[4] Panchayat, lit. “assembleia” (ayat) de “cinco” (panch) anciãos sábios e respeitados, escolhidos e aceitos por comunidades locais. Governos contemporâneos da Índia descentralizaram várias funções administrativas para o nível local, dando poder político a gram panchayats eleitos [NTs, com informações de http://en.wikipedia.org/wiki/Panchayati_raj].
Tradução do coletivo Vila Vudu
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