sábado, 25 de agosto de 2012

Nossa Avenida vai além do Carnaval

foto:divulgação


Um dos candidatos à Prefeitura do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, divulgou, recentemente, suas propostas para mudanças no Carnaval carioca. Leia abaixo, na íntegra, o texto sobre suas ideias para tornar a maior festa do mundo, ainda melhor.
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A partir dos anos de 1960, quando as escolas de samba assumiram o protagonismo do carnaval do Rio de Janeiro e instauraram uma espécie de nova ordem momesca, o desfile das grandes agremiações ganhou o status de “Maior Espetáculo da Terra”. Foi uma metamorfose natural e processual, reflexo de uma cidade que também jamais parou de se transformar. Acabaram sendo “descobertos” redutos e bambas no balanço do trem ou na carona do então recém-inaugurado túnel Rebouças, aproximando classes e bairros. De lá pra cá, o Rio de Janeiro assistiu à construção do Sambódromo (1984) e à criação da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba), em 1985, que conferiram avanços significativos rumo à dita “profissionalização”, entregando ao espetáculo o público multidiverso e as vultosas cifras atualmente movimentadas. Entretanto, a partir do afastamento quase completo do poder público da organização dos desfiles (movimento iniciado há cerca de 20 anos), os valores culturais do que se leva à Avenida – fundamentalmente, as bases e a razão para a existência do “show” atual –, foram deixados de lado.


Muito além da característica comercial e turística, a folia carioca apresenta formação e função essencialmente culturais. Se existe o atual panorama de destaque econômico e midiático – o que engloba até mesmo a transmissão televisiva para outros países –, foi porque foram encontrados referenciais sólidos de crescimento: os rituais, símbolos, ícones, personagens, marcas identitárias e, até mesmo, culinária própria. O samba e suas escolas não têm apenas função recreativa, mas reforçam também nossa memória coletiva e, principalmente, afetiva. As feijoadas, os encontros nas quadras, nas ruas e a grande reunião anual na Avenida dos Desfiles, Marquês de Sapucaí, são espaços para a celebração e transmissão de saberes populares, algo de que a engrenagem comercial contemporânea – por mais que muitos não percebam –, também necessita para sobreviver.


Em qualquer cidade, a competência para a gestão do carnaval acontece na esfera municipal. No Rio de Janeiro, a história ganha novos personagens e as fontes de recursos financeiros ultrapassam os limites domésticos, alcançando dotações estaduais e federais. Esta característica é absolutamente compreensível, tendo em vista que a folia ultrapassou, inclusive, as fronteiras nacionais. Contudo, exige do poder um controle maior dos investimentos e recursos que, na esteira da festa, circulam por aqui. Além disso, há um controverso “anexo” à administração do “negócio” público: o comando é “compartilhado” com uma instituição privada, a Liesa. Alçada à condição de representante das escolas, a entidade foi ainda mais longe e também passou a dar todas as cartas do desfile, responsabilizando-se – entre outras funções –, até mesmo pela comercialização de ingressos (que podem ser adquiridos apenas em dinheiro vivo a partir de reservas feitas por telefone ou fax) e escolha dos julgadores. Ora, são estes vazios de influência pública que, aos poucos, têm minado aspectos importantes inerentes à folia. Vale ressaltar que desde 1935 o Estado cuida e incentiva financeiramente as escolas.


Assim como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos possuem órgãos próprios de planejamento, o carnaval carioca, por suas dimensões, necessita, também, de um tratamento nos mesmos moldes. Com algum exagero, para fins de exemplificação didática, é como se fizéssemos um Mundial de Futebol a cada mês de fevereiro ou março. Se, de maneira absoluta, o volume de recursos aplicado cresce a cada ano, por que a prestação de contas da subvenção ainda não é realizada de maneira satisfatória? Além disso, se o dinheiro público e a verba ligada aos direitos de transmissão (exclusiva) de televisão atingiram um patamar de cerca de R$ 5 milhões para cada escola (suficientes para a preparação de um carnaval competitivo), como explicar a corrida desenfreada por enredos patrocinados? Que legado deixaremos para a manutenção de uma festa cuja resistência está calçada em pilares que vêm sendo derrubados?


Para 2013, grande parte das agremiações do Grupo Especial já anunciou seus temas, quase todos patrocinados. O festival Rock In Rio, a Coréia do Sul, os criadores da raça de cavalos Mangalarga Marchador e os proprietários da Revista Caras são alguns dos novíssimos mecenas que irão expor suas marcas na Avenida, condicionando propostas temáticas única e exclusivamente à filigrana comercial. Eis o reflexo de um poder público que se limita a administrar os recursos como balcão de negócios, já que a prefeitura não garante o papel de influência sócio-cultural representado por uma de nossas maiores riquezas simbólicas. Ora, faz-se necessária a atuação de um órgão municipal (Subsecretaria) dedicado a pensar a folia carioca durante todo o ano, espelhando a importância alcançada por este evento com nuances tão particulares, e que influencia o conjunto da formação social carioca. Quando uma empresa ou pessoa física apresenta uma proposta para obter apoio financeiro – seja diretamente através de dinheiro governamental, ou obtendo autorização para captar em troca de isenção fiscal –, este projeto é analisado pelo ente público, e sua relevância é considerada para que os recursos ou isenção sejam concedidos. Basicamente, busca-se aqui processo semelhante para o carnaval.


Para receber a subvenção, é fundamental que os enredos (inclusive os patrocinados) apresentem grande valor cultural. Caso, portanto, opte pela exaltação direta ou indireta a marcas comerciais, a escola não deverá receber verba pública. Esta proposta não se trata, de forma alguma, de uma tentativa de dirigismo temático, e, sim, de uma busca pela gestão criteriosa de recursos para que as agremiações não se tornem meros veículos de propaganda para empresas privadas. Além do que já ocorre com o turismo, a prestação de contas, negociação de cotas de patrocínio e os aspectos não comerciais (culturais) devem ser "cuidados" por quem foi escolhido nas urnas para comandar a cidade. Desde a sua criação, a Liesa teve fundamental participação no crescimento dos desfiles, mas sua autonomia – quase 30 anos depois –, merece questionamento.


Se a prefeitura, por exemplo, construiu 14 barracões na Cidade do Samba, por que a instituição fixou em 12 o número de participantes do Grupo Especial? Como justificar os gastos municipais com dois galpões não ocupados por alegorias e adereços? O novo órgão municipal irá cuidar de todas as relações que envolvem as escolas de samba, internas e externas. Por exemplo, como representantes de comunidades, as agremiações não devem ter “donos”. Filho do povo e, portanto, da democracia, o samba prescinde de qualquer tipo de monopólio, inclusive do televisivo, este que tem prejudicado a qualidade das recentes transmissões. Nos dia a dia dos barracões, já que a formação de mão de obra especializada para o carnaval é usada para justificar verbas – muitas vezes públicas ou de estatais –, em projetos sociais, é fundamental a fiscalização das relações de trabalho. Afinal, é sabido que em muitos deles os direitos básicos do trabalhador não são respeitados.


Mas o carnaval carioca é muito além da Rua Marquês Sapucaí e seus grandiosos grêmios recreativos. Está nas marchinhas das ruas e salões, nos becos e vielas, no alto e no entorno dos coretos das praças, no mar, na Estrada Intendente Magalhães. É imperativo que o poder público olhe com bastante cuidado para os desfiles do grupo de acesso, garantindo, entre outras ações, a preservação de bandeiras históricas que perderam a força com o passar dos anos. Os grupos C, D e E desfilam sem os holofotes das grandes, mas significam a garantia de força para o festejo que não para de se transformar. Hoje, ainda faltam recursos e condições para a realização do espetáculo das escolas menores. Além disso, o Estado precisa entender de uma vez por todas que escolas de samba e blocos de rua possuem naturezas e propostas distintas. Um projeto da atual gestão da prefeitura em parceria com a Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (AESCRJ), ano após ano, tem condenado à revelia seis escolas do Grupo E a virarem blocos, o que impossibilita a criação de novas agremiações. Nada mais equivocado do que uma transformação estrutural orquestrada de cima para baixo, já que as entidades nasceram a partir de processos comunitários próprios.


Os blocos, aliás – marcas históricas de uma cidade com vocação para festejar –, merecem grande atenção, sobretudo no atual momento de resgate dos antigos carnavais de rua e salão. Eles não apresentam tanta visibilidade midiática (não têm desfiles apresentados em rádio e tevê), mas possuem abrangência gigantesca. Em lugar de serem observados por milhares, são mais inclusivos em termos de participação, parte da mistura própria de um Rio que já foi dos clubes de frevo, dos ranchos, dos corsos, cordões, dos blocos afros, dentre outros, e que pode sim congraçar todas as manifestações espontâneas. A ocupação do espaço público precisa acontecer a partir do equilíbrio entre as regiões – sem privilegiar determinados bairros –, e calçada na estrutura e segurança para todos os brincantes. É preciso deixar explícito que as Ligas e Associações podem e devem seguir com a função de representação das entidades foliãs, mas urge que a prefeitura reassuma seu papel de responsabilidade no fomento e gestão do bem histórico intangível que é o nosso carnaval.


E já que a festa é, fundamentalmente, política cultural e social, que tal reaproximarmos as escolas de samba do público que as entregou liderança e devoção há mais de 50 anos? Na carona da reforma do Sambódromo – que, finalmente, tirou do papel a ideia completa do arquiteto Oscar Niemeyer (arquibancadas espelhadas) –, seria justiça histórica se o projeto original da Avenida fosse todo retomado. Ou seja, as frisas (ou, pelo menos, um lado delas) transformadas em uma autêntica “geral”, com preços populares, para que todos pudessem embarcar na fantasia encerrada em Cinzas e na lágrima do pierrô.


Eis aqui a nossa proposta e Avenida. Uma Avenida que, cá pra nós, vai muito além do carnaval.
Propostas:


Criação da Subsecretaria de Cultura Especial do Carnaval – A Subsecretaria vai assumir a organização do Desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, considerado o grande espetáculo do planeta. Serão privilegiados os valores culturais, o julgamento coerente e a correta gestão dos recursos públicos destinados às agremiações.


Subvenção condicionada à relevância cultural dos enredos – Caso uma agremiação opte por retratar uma marca, não deverá receber verba pública. Esta proposta não se trata, de forma alguma, de uma tentativa de dirigismo temático. É apenas a busca pela gestão criteriosa de recursos para que as escolas não se tornem canais de propaganda.


Apoio às agremiações dos grupos de acesso – Mais recursos e estrutura para a realização dos desfiles dos grupos de acesso, que acontecem na Estrada Intendente Magalhães, no bairro do Campinho.


Apoio a todas as instituições carnavalescas – Política que vise ao fomento e à distribuição geográfica de blocos, cordões e quaisquer instituições carnavalescas por toda a cidade, possibilitando a ocupação democrática do espaço público. Importante salientar: escolas de samba não podem ser rebaixadas à condição de blocos, e estes não podem se tornar escolas de samba, por ação de órgãos controladores. Suas naturezas são distintas e possíveis mudanças estruturais devem ser frutos de decisões internas ou comunitárias.


Preservação das entidades foliãs e seus espaços comunitários – O poder público precisa garantir a preservação de grandes agremiações, responsáveis por históricos desfiles e sambas, mas que perderam a força com o passar dos anos. Também é necessário pesquisar, identificar e preservar os perímetros culturais no entorno dos berços das escolas, a fim de que seja a face material, geográfica e sentimental do samba como Patrimônio Imaterial do Rio do Janeiro.


Retorno do projeto original do sambódromo – O fim das frisas (ou, pelo menos, de um lado delas), transformando-as, como no projeto original, em uma grande “geral”, com preços populares. A ideia é combater a frieza dos desfiles e reaproximar o carioca do espetáculo.


Concorrência da transmissão televisiva – O fim da exclusividade na transmissão televisiva condicionaria diferentes formas de narração, aumentando as possibilidades de apresentação do espetáculo para o público de casa. Como resultado, o aumento do conteúdo jornalístico disponível aos espectadores e uma saudável disputa pelo melhor “olhar” sobre a festa.


TV Educativa e carnaval – Em caso de quebra do monopólio televisivo, em um novo contrato discutido pelo poder público, que haja uma cláusula que permita às Tevês Educativas a transmissão sem a necessidade de pagar pelos direitos.

Assinam este manifesto:


Adílson Bispo, Alberto Mussa, Alexandre Medeiros, Anderson Baltar, André Albuquerque, Carlos Linhares, Dudu Botelho, Edgar Filho, Eduardo Gonçalves, Eduardo Silva, Emiliano Tolivia, Evandro Vargas, Fábio Fabato, Fábio Pavão, Fábio Silva, Felipe Damico, Fernando Pamplona, Fernando Peixoto, Freddy Ferreira, Gustavo Melo, João Máximo, Lilian Rabello, Luis Carlos Magalhães, Luise Campos, Luiz Antonio Simas, Luiz Carlos Máximo, Luiz Fernando Reis, Marcelo Moutinho, Marco BTU, Mariana Cesário, Marianna Tavares, Maurício Castro, Paulo Renato Vaz, Pedro Simões, Rachel Valença, Rafael Marçal, Renato Raposo, Ricardo Delezcluze, Ricardo Dias, Roberto Vilaronga, Rogério Rodrigues, Thiago Carvalho, Thiago Gomes, Thiago Lepletier, Tiago Prata, Tiãozinho da Mocidade, Vagner Fernandes, Vera de Sá Braz, Vicente Almeida, Vicente Magno, Vinicius Ferreira, Wanderlei Monteiro, Toninho Nascimento.


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