segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

As Escolas de Samba no Rio de Janeiro e o atual debate sobre cultura popular

Da fama individual, do prestígio do sambista, monta-se o quadro de valoração da comunidade, agora era Mangueira, Oswaldo Cruz, Estácio entre outras. Um elemento novo surge, conforme já citamos, e queremos aqui chamar a atenção para este fato, o surgimento das Escolas de Samba vai representar, entre outras coisas, a oportunidade das comunidades a elas ligadas de mediarem seus interesses frente a uma estrutura política que até então pouco as incorpora.



Por Guilherme Vargues

O olhar folclórico para com o povo e suas manifestações culturais pode desembocar naquilo que Roger Chartier chama de uma visão elitista ou exótica, marginal, insuficiente da cultura popular. O autor chama a atenção para a problemática dos dois tipos de apreensão mais comuns em voga acerca do tema:
"O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e carências em relação à cultura dos dominantes. Temos, então, de um lado, uma cultura popular que constitui um mundo à parte, encerrado em si mesmo, independente, e, de outro, uma cultura popular inteiramente definida pela sua distância da legitimidade cultural da qual ela é privada." (Chartier: 1995)
Esta é exatamente a dualidade que acompanha a temática. E pode ser vista funcionando ao mesmo tempo em um mesmo autor, enfatizando ora, uma autonomia simbólica da cultura popular, ora a sua dependência frente a cultura dominante. É exatamente este referencial que nos traz a discutir as Escolas de Samba no Rio de Janeiro, a luz de um perspectiva teórica que problematize o que consideramos visões ora elitistas, ora românticas acerca da cultura popular.
O popular deve aqui ser caracterizado por sua essência, e não somente por sua posição em relação às classes hegemônicas. Fica clara a necessidade de fugir de um maniqueísmo que reduza a relação entre hegemonia e subalternidade a um mero conflito bipolar. Percebemos em nossos estudos, que somente alguns registros parciais podem diagnosticar uma espécie de autonomia e resistência das classes populares pura, isto é, dar continuidade a suas tradições (como que em um combate) em oposição a cultura e as ideologias dominantes. Percebemos no mais, a oposição dos defensores da cultura pura, a percepção de um moderno hibridismo cultural e as diversas estratégias de defesa, legitimidade e mesmo superação impostas pelos setores populares.
Nos parece bastante apropriada a visão de Cahrtier aqui, ao argumentar sobre a possibilidade da existência de uma cultura livre, viva e profusa que teria sido recriada a luz da vontade dos setores hegemônicos, conforme o autor recriando o imaginário cultural da modernidade européia: "Ao impor disciplinas inéditas e novas submissões, ao inculcar novos modelos de comportamento, os Estados e as Igrejas teriam destruído em suas raízes e seus antigos equilíbrios um modo tradicional de ver e de viver o mundo?" (Chartier:1995) O autor está a rebater a visões que compreendem o popular e sua reorganização cultural como um processo meramente orquestrado pelas elites. A par da modernização conservadora que toma foco no reboliço político e social brasileiro nos arredores do movimento político de 1930, negligenciar o papel dos populares a mera submissão e adequação a ordem, ou mesmo de resistência pura de suas tradições, é negligenciar o papel do povo na formatação do novo regime que estava por ser formar. O estudo das Escolas de Samba no Rio de Janeiro a luz da problemática dos estudos sobre cultura popular é elemento fundamental para entender não só as particularidade da nossa modernidade, mas também do comportamento do povo frente ao cenário político e social que as elites tentam invocar ao país, mesmo quando estas optaram por mudar as atitudes e valores do resto da população ou por suprimir, ou ao menos purificar, vários elementos da cultura popular tradicional.
O que acontece a cultura dita popular é o que acontece com todo fenômeno cultual, tradição e renovação se afirmam dialeticamente, incorporando em seu patrimônio elementos que aos olhos "folcloristas" podem parecer estranhos a sua formação.
Para ilustrar o debate vou me remeter ao início do século passado na cidade do Rio de Janeiro. Estamos na época da reforma urbanística de Pereira Passos. O que acontecia é que o governo destruía os cortiços, ou na expressão de Aluísio de Azevedo, "as pequenas repúblicas" (um público autônomo) sem integrá-las numa república maior que englobasse todos os cidadão da cidade. Nesse sentido, enquanto ia aumentando a segmentação social e o distanciamento espacial (em vias do deslocamento das habitações para subúrbios e morros cariocas) as "repúblicas" da cidade iam aos poucos forjando novas realidades sociais e culturais bastante ricas e por vezes mais intensas que os verso parnasianos e simbolistas que compunham as referências européias das elites. Cada vez eram mais fortes eventos como a Festa da Penha e as rodas de samba de terreiro ao redor da Praça Onze, onde se firmou parcela da população desalojada pelo "bota abaixo" do prefeito. Tal como acontecia também ao futebol, esporte das elites cada vez mais apropriado a sua forma pelos marginalizados. Dessa forma, "o mundo subterrâneo da cultura popular engoliu aos poucos o mundo subterrâneo da cultura das elites". Do liberalismo excludente foram surgindo os elementos que formariam uma primeira identidade coletiva da cidade, "materializadas nas grandes celebrações do carnaval e do futebol" (Carvalho, J.M, 1987: 39-41) Celebrações que comporiam em suas atividades novos e antigos elementos culturais, oriundos ou não da mediação entre povo e elite.
Se é verdade que o samba passa a ocupar um espaço especial na sociedade carioca do início do século passado este se dá com transformações em suas práticas que se dão em sentido de mediação com agentes externos a sua formação. Ao mesmo tempo em que percebíamos o fortalecimento de uma contínua criação/recriação da identidade afro-brasileira, integração social por parte das comunidades e solidariedade, onde esta última aparece como fruto histórico das relações estabelecidas para a sobrevivência entre as camadas pobres da população. Percebemos também que as culturas estão em relação, havendo trocas entre elas, não existindo cultura pura, "e que o outro não é nunca absolutamente o outro e que há sempre algo de nós nos outros" (Cuche, 1999:243).
Este processo fica cada vez mais evidente com o "sucesso" dos desfiles carnavalescos. Sua legitmidade, aceitação e transformação. Julgo aqui necessária mais um citação de Chartier, acerca da relação cultura popular x cultura hegemônica:
"Nem a cultura de massa do nosso tempo, nem a cultura imposta pelos antigos poderes foram capazes de reduzir as identidades singulares ou as práticas enraizadas que lhes resistiam. O que mudou, evidentemente, foi a maneira pela qual essas identidades puderam se enunciar e se afirmar, fazendo uso inclusive dos próprios meios destinados a aniquilá-las". (Chartier:1995)
Podemos então perceber, que as relações de poder que estão em jogo nas incursões acerca da cultura popular não podem mais ser compreendidas somente como, nas palavras de Nestor Canclini, "em uma ação dominadora exercida verticalmente sobre os dominados, ela passou a ser considerada como uma prática descentrada e multi-determinada nas relações políticas, cujos conflitos e assimetrias são moderados pelos compromissos entre os atores colocados em posições desiguais". (Canclini, 201: 2003). Isto é, não nos parece possível uma manipulação onipotente das relações sócio culturais.
A escola de samba não foge ao tema e toma relevo quando pode ser compreendida dentro desta perspectiva analítica, não foi assaltada nem tão pouco "dirigida" para o processo que culminou nos desfiles monumentais de nosso tempo. Simplesmente a Escola de Samba como processo cultural complexo ampliou seu patrimônio social, transformando-se e transformando suas comunidades, o fazer política dos cidadinos, enfim, a própria cultura política e social da cidade. Ao incorporar-se como porta voz do povo pobre da cidade, a Escola de Samba desloca a legitimidade exclusiva de alguns compositores para a legitimidade da comunidade. Ao ampliar sua capacidade de negociação modifica a realidade comunitária, tal como modifica-se complexizando-se cada vez mais.
Porém, retornando ao debate acerca da cultura popular, podemos continuar afirmando, que a cultura popular não é pura, por vezes a tentativa de assim faze-la está mais próxima de uma invenção com fins políticos. E ademais, como salienta Gilberto Velho: "o fenômeno da diferenciação é identificado tanto dentro das camadas populares como das elites" (Velho,1993:59). Isto é, a hibridização cultural é para alem do popular, manifesta-se em qualquer aparição cultural. Vamos afirmar então, que não só, não existe cultura pura, como concordamos com Canclini quando este afirma que "o popular não é monopólio dos setores populares [...] a preservação pura das tradições não é sempre o melhor recurso popular para se reproduzir e reelaborar sua situação" (Canclini,1992:205). As tradições podem ser modificadas, como nas palavras de Hermano Vainna: "a 'promiscuidade' entre 'elite brasileira' e 'povo brasileiro' - que foi fundamental para a valorização das 'coisas brasileiras' - não foi um acontecimento sui generis do Brasil do início do século, mas algo que ocorreu com todas as sociedades, em todas as épocas" (Vianna, 1995: 171) Assim não interessa aqui recolocar qual é o popular mais autêntico, ou ainda "isolar" o popular do hegemônico e vice-versa.
O processo cultural é um processo do tipo toma lá, toma de cá. Seria porém ingênuo de nossa parte menosprezar o poderio cultural e político da cultura hegemônica. E acho que em Vianna - ao não separar os dois terrenos - podemos chegar a esta confusão. "Não interessa aqui definir o que é popular, ou ainda diferenciar o popular do hegemônico". Os interesses das elites, o poder da moderna indústria cultural, a opressão para com o povo, o restrito acesso a informação e educação, tal como os próprios valores e tradição do grupo, ao meu entender forma ainda uma pauta bastante desigual na capacidade de cada grupo interferir e se manifestar.
Podemos, a par das relações entre popular e erudito. Entender as particularidades da cultura popular como local de produção cultural. Não me parece bom o caminho de que já que os limites da interferência de uma em outra são bastante intensos cair na idéia de que é impossível visualiza-las. Uma visão que pode nos ajudar aqui é a de Marilena Chaui, onde a cultura popular não deve ser vista como uma totalidade em oposição antagônica à totalidade dominante, (tal como destacamos) mas reconhecida num "conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência que possuem lógica própria" (1996: 25), onde estão presentes o conformismo, inconformismo e a resistência à cultura dominante, que é o que distingue cultura popular da cultura dominante.
Ou na visão de Ginzburg no seu Queijos e Vermes: "Os populares não aceitam tal discriminação (por parte das elites), investindo toda a sua energia em manifestações culturais, garantindo a expressão de suas necessidades, anseios e aspirações, nisto que a cultura configura-se como o principal veículo de coesão e de construção de uma identidade própria, especialmente num contexto que lhes exclui do reconhecimento de direitos. Inclusive, desde muito cedo, desenvolveram-se as trocas culturais, interpenetrando-se suas manifestações com aquelas dos segmentos mais elevados" (1997).
A par desta polêmica tendo a aproximar-me destas últimas visões que independente do sistema de trocas que se estabelece entre as diversas manifestações culturais (ou mesmo entre as diferentes culturas) estas tomam elementos particulares em suas estratégias de difusão, preservação, afirmação que estão intimantes ligados a realidades social do agente. Por mais que está relação de troca esteja ativa, a cultura das elites é muito menos permeável ao elemento popular que o contrário.
E.P. Thompson tenta nos chamar a atenção para com generalizações. A cultura é uma arena de elementos conflitivos que sob pressões imperiosas assumem a arena de um sistema. Falar em consenso pode distrair a nossa atenção para com as contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto. (1998: 17)
Porém, a afirmação de Ginzburg é bastante pertinente em um cenário que já destacamos, isto é, de isolamento da população marginalizada na cidade o que levou o reforçamento dos laços de identidade cultural e sociabilidade destes grupos, construindo forte identidade e solidariedade, tal como "desenvolveram-se as trocas culturais, interpenetrando-se suas manifestações com aquelas dos segmentos mais elevados".
Porém este é um processo que não é fruto de iniciativa só do elemento popular. Desde o interesse de intelectuais ensaboados pela lente modernista, até de políticos que percebem estes novos estratos como fundamentais para construir alguma esfera de poder político(o tradicional político da bica de favela). Inevitavelmente, depois do crescimento das comunidades e de suas representações culturais o "consenso polítco" deveria se ampliar passando por lá também. Principalmente quando este percebe sua força.
Percebemos então que são trocas mediadas. E entendemos por mediação cultural a ação dos indivíduos e grupos, ou o local de realização, que efetiva uma relação de troca entre indivíduos, grupos, espaços, de culturas diferentes. A força da cultura popular leva diversos intelectuais a se aproximarem do mundo do samba1. Atenuando pela flexibilidade cultural dos bantos o Rio de Janeiro, por volta de 1920, era a própria imagem da autonomia popular associada à crescente atração que seus intelectuais exerciam sobre diferentes estratos sociais - primeiro, acolhendo-os em seus redutos sagrados (do que o terreiro da Tia Ciata é um dos exemplos mais festejados) -, e, ao longo do tempo, redefinindo, efetivamente, a produção intelectual de literatos, jornalistas, músicos e publicistas, cuja imaginação não mais desconheceria o ambiente dos subúrbios e cortiços, os tipo populares, os plots alternativos à representação ficcional do ethos burguês (Carvalho, 2005:41).
Mais do que partir ao conflito o popular abriu seu mundo aos interessados de fora. Acusado de selvagem, desordeiro e violento deu tônica mais ordeira ao seu mundo. As Escolas de Samba já são uma representação de um tempo onde a ordem sobrepõe a desordem. Uma espécie de vitrine das transformações do mundo do samba que quer legitimidade, que quer inserção social. Neste sentido aponto as Escolas de Samba como elemento fundamental na transformação das relações entre comunidades carentes e poder público. Tal como também na disseminação da cultura afro-brasileira.
No final dos anos de 1920 o samba do morro mostra a sua cara, e ele e suas comunidades começam aos poucos a ganhar notoriedade. Conforme o escritor Nei Lopes: "esse samba só começou a adquirir os contornos da forma atual ao chegar aos bairros do Estácio e de Osvaldo Cruz, aos morros, para onde foi empurrada a população de baixa renda quando, na década de 1910, o centro do Rio sofreu sua primeira grande intervenção urbanística. Nesses núcleos, para institucionalizar seu produto, então, foi que, organizando-o, legitimando-o e tornando-o uma expressão de poder, as comunidades negras cariocas criaram as escolas de samba". (Lopes,2005)

Da fama individual, do prestígio do sambista, monta-se o quadro de valoração da comunidade, agora era Mangueira, Oswaldo Cruz, Estácio entre outras. Um elemento novo surge, conforme já citamos, e queremos aqui chamar a atenção para este fato, o surgimento das Escolas de Samba vai representar, entre outras coisas, a oportunidade das comunidades a elas ligadas de mediarem seus interesses frente a uma estrutura política que até então pouco as incorpora.
Tal como nas palavras de Sérgio Cabral ao relatar o surgimento da "primeira escola de samba", "o Deixa Falar além de reunir os jovens e revolucionários compositores do bairro, pretendia também melhorar as relações dos sambistas com a polícia". (Cabral,1996:41) Evidente que a incorporação do samba pela sociedade carioca tinha reduzido bastante a perseguição ao sambista, porém não podemos dizer esta caminhou em paralelo a exclusão social e a discriminação violenta da população negra carente.2 O processo de formação da Deixa Falar, seguido logo por Estação Primeira de Mangueira (junção de diversos blocos situados no morro de Mangueira) e Oswaldo Cruz (a "futura" Portela) mostram a tendência a organização em busca da legitimidade3 de suas agremiações, e é nesse momento que a ordem começa a sobrepor a desordem. O relato da impressa, de pesquisadores do assunto, de cronistas de época demonstra uma preocupação grande destes sambistas em mostrar-se ordeiros, "civilizados", para uma sociedade que os olha politicamente com bastante receio e preconceito. Por outro lado, formaliza-se - nos anos que envolvem 1930 - também por parte do poder público e pelas elites culturais um processo que já tinha se desencadeado alguns anos antes de valorização, mesmo que de forma mediada e por vezes "folclorizada" de raízes e manifestações "puras" e autênticas da cultura popular brasileira.
Dessa forma concordamos com Fenerick ao afirmar que: "o samba moderno não poderia ser feito apenas pelo (ou no) morro, ou apenas pela (ou na) cidade, ele precisava dos dois universos culturais agindo mutuamente para a sua criação e difusão." (2002) Exatamente assim se dá a integração, o patrimônio se amplia, as tradições se recriam e se constrói uma manifestação cultural que tem a marca da mediação entre comunidades carentes, Estado, outras instituições, industria cultural e ainda de uma diversidade de 'mediadores culturais' oriundos de diversas outras classes sociais.
Este processo se radicaliza no pós 1930. Podemos dizer que ai se firma um novo pacto entre populares e Estado. O novo governo volta-se para o povo4 fortalecendo a idéia de integração e valorização do sentido nacional, busca das tradições mais puras, onde o povo coloca-se como base de uma nação a se construir. Valorizam-se as culturas populares anunciando um rompimento com a política de isolamento da República Velha.
As Escolas de Samba são um elemento bastante forte da expressão popular. O que vai acontecer com mais força a partir de agora é, por um lado, a afirmação dessa expressão, os populares se afirmam nas 'escolas', pois encontram nelas formas alternativas de organização, sociabilidade, solidariedade, legitimação de sua identidade, maior acesso a um público mais integrado, por outro lado, o Estado busca nesta a ampliação da sua legitmidade, beneficiando-as aproxima-se do povo que pouco o conhece. O relacionamento aquece entre estes segmentos.
Estado, imprensa vão passar a organizar, financiar e promover desfiles. Estes meio que 'montam' o regulamento (adaptando ora ali, ora aqui como era antes) e negociam a tônica do processo. Eles, os sambistas, tem a legalidade e o reconhecimento cada vez maior do seu espetáculo, logo, da sua comunidade, da sua cidadania, do seu respeito e auto-estima individual e etc.
Inicia-se um processo de concessões mútuas, de aproveitar todas as brechas criativamente. "Desfazendo-se de imagens anteriores de um comportamento rixoso e insubmisso, pode-se interpretar esta colocação de Paulo da Portela: devemos impor a cultura e a arte de nossa raça, respeitando e fazendo respeitar as normas e leis. O sambista deve ser responsável e correto, cultivando a união e evitando a violência. Paulo da Portela seria exemplo de diplomacia, atuando como uma espécie de relações pública da escola [...]. Nesse movimento para conquista de espaços podem ser entendidas as homenagens prestadas aos líderes políticos, como o prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, em cujo governo se deu o reconhecimento oficial as escolas de samba". (Soihet, 2003: 317)
Os desfiles agora (1936) já eram oficiais e patrocinados pela prefeitura e imprensa. Esse não foi um ultimato do poder público, mas me parece mais uma estratégia dos sambistas em busca da sua ascensão. No entanto o patrimônio cultural das escolas de samba e sua produção artística vai se transformando, mediando desejos e interesses que estão para além da motivação original, a tradição se recria e se estabelece como original novamente. Tradição inventada que envolve poder político e social. As Escolas de Samba (porque o samba vira Escola de Samba lá pelos anos 50/60) vão tornando-se o símbolo da nacionalidade.
Monique Augras traça uma importante análise do papel dos concursos de escolas de samba, para a autora, "do ponto de vista do controle social, os concursos são sem dúvida eficazes. Premiar o desempenho de determinado grupo permite reforçar padrões de representação e dissuadir outros grupos de seguir rotas desviantes. Sob a aparência de valorizar a produção desses grupos, o concurso institui uma hierarquia de valores, estéticos alguns, ideológicos quase todos, que, ao legitimar certas atuações e desqualificar outras, acaba assegurando a manutenção de um modelo estável e de fácil fiscalização. E o primeiro passo para tanto é a regulamentação do desfile" (Augras, 1998:31).
Mas temos que deixar claro que esta é uma ação para além do poder público. Antes mesmo do Estado obrigar as escolas a desfilarem com temas nacionais estas já o faziam, seja por boa conduta, seja por envolvimento no rebuliço político e cultural que invade o país. E poderíamos argumentar, que causa estranhamento, os ideólogos do Estado Novo teriam escolhido logo este gênero marginal como grande expressão cultural brasileira, contra argumentamos dizendo que esse êxito, do mundo do samba, se deveu muito mais a ação dos populares, para os quais o carnaval se constituiu naquele momento via prioritária de afirmação de sua identidade no que Soihet caracteriza como um processo conflituoso, caracterizado por lutas e negociações contínuas, com avanços e recuos que se redimensionaram e se reorganizaram mútua e dialeticamente.
E ademais, o interesse nascido de dentro para fora isto é, dentro de suas comunidades para a sociedade fortalece aquilo que Roberto Da Matta chama de garantia de sua autenticidade e permanência.
Olha, vocês vão preservar as cores da nossa escola. Vocês vão amar a Mangueira e nunca deixá-la, porque esse verde que tem nela simboliza o futuro, a esperança e vai brilhar muito, como uma estrela brilhando, e esse rosa é o amor.
Vocês tem que primeiro amar a vocês mesmas para depois passar a amar essa bandeira, para nunca deixem ninguém colocar lama nela.5
Neste sentido as Escolas de Samba tornaram-se poderosos mediadores de seu patrimônio cultural de sua identidade e de suas comunidades. Funcionaram diversas vezes como grandes associações de moradores negociando os interesses que rondavam seus locais de origem, ora cedendo, ora crescendo, mas produzindo um processo cultural híbrido que só pode ser compreendido através das essências culturais, das interações entre a diversidade dos interesses e agentes colocados em questão. Estas construíram uma dimensão privilegiada e até então inexistente na cidade, a da cidadania cultural.

Notas
1- Para Hermano Vianna, o samba teria sido elevado ao status de símbolo nacional favorecido por um contexto cultural em que se ganhava força o interesse por "coisas brasileiras". Dentro deste cenário, o samba teria chegado à sua condição destacada, o que teria sido possibilitado, também, pela ação de "mediadores culturais", que levariam elementos da "cultura popular" a uma "cultura de elite" que a desconhecia em boa parte. Em nosso estudo percebemos que um processo por si só conduzido por este tipo de mediação levaria a uma "folclorização" do samba, o que evidentemente não aconteceu.. Vale aqui lembrar a letra de um samba de época: Samba de partido-alto / Só vai cabrocha que samba de fato / Só vai mulato filho de bahiana / E gente rica de Copacabana
2- Por mais que estejamos afirmando aqui que pelos anos de 1920 o samba do morro começa a ganhar cenário, uma matéria de jornal de 1929 mostra que este ainda é visto com muito preconceito frente as outras manifestações carnavalescas, veja só: "Pernas finas e tornas escolhem sempre calções curtos e camisetas que deixam ver pobres peitos deprimidos. Tem-se a impressão de esqueletos cobertos com uma camada lacônica de pele e carne mumificada. Por outro lado, indivíduos de origem muito recente na Ethiopia, com as mesmas camisetas de meia, axilas à mostra onde parecem localizar-se ninhos de rato". (Poubel, 2004) Não podemos confundir as coisas, afirmação mesmo, só lá para 1940/50 em diante. A condição melhora, mas não é um mar de rosas.
3- É importante entender que este desejo por legitimidade não é só pressão das "autoridades". A idéia de morro 'ordeiro' nas entrevistas e textos que pesquisei me parece também um processo que atinge a vontade da comunidade. Quanto mais ordeiro, mais aceito, e, me parece, por ambos os lados.
4- Não estamos dizendo que o governo Vargas amplia a participação popular, mas o povo amplia seu poder de barganha no consenso político que se formava. A alcunha de pai dos pobre tem este sentido. Concessões e trocas, favores e apoio.
5- Cartola faz um pequeno discurso para o "povo" da Escola quanto a preservação e defesa da Mangueira.

Um comentário:

  1. Homi Bahabha, Marshal Sahlins, Thompson,Natalie Davis, Geertz têm contribuições a dar à interpretação da Cultura. Não concordam necessariamente, mas trazem questões bastante interessantes sobre a discussão sobre Cultura, que é vasta....

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