Por Andrea Dip
Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, 10 mil casas foram
pintadas com as letras “PR”, de Príncipe Regente, abreviatura que
significava na prática que o morador teria que sair de sua casa para dar
lugar à realeza. Logo, a sigla “PR” ficou popularmente conhecida como
“Ponha-se na Rua”. Hoje, as casas removidas no Rio de Janeiro são
marcadas com as letras “SMH”, de Secretaria Municipal de Habitação. A
população também criou um apelido para a sigla: “Sai do Morro Hoje”.
Essa associação entre as duas eras de despejo – que afetam sempre a
mesma população – é feita em “Do ‘Ponha-se na Rua’ ao ‘Sai do Morro
Hoje’: das raízes históricas das remoções à construção da “cidade
olímpica”, trabalho de conclusão de curso da jornalista Paula Paiva
Paulo. Em entrevista à Pública, ela fala pela primeira vez sobre o
estudo que revê as transformações no espaço público carioca e as
remoções compulsórias que preparam o cenário. E afirma: Os despejos não
acontecem por “falta de planejamento” urbano. “É simplesmente
privilegiar a especulação imobiliária ao invés do direito a moradia”,
explicita.
Por que você escolheu esse tema para o trabalho de conclusão?
Quando comecei a pensar sobre o tema da minha monografia, não foi
difícil, o tema da habitação sempre me atraiu. A minha ideia inicial era
abordar tudo: um histórico de políticas públicas para habitação, o que
diz a Constituição sobre direito à moradia, qual o déficit do país, o
que esse déficit causa, o descaso do governo, o sonho da casa própria, e
as histórias de pessoas afetadas – pelo menos um relato de um morador
de rua, um de ocupação urbana e um de área de risco.
Em março de 2012 comecei a participar do Grupo de Trabalho (GT)
Remoções do Comitê Popular Rio para Copa e Olimpíadas, organização civil
que reúne representantes de ONGs, de movimentos sociais, estudantes e
qualquer pessoa que queira discutir e pesquisar sobre as violações de
direitos humanos na preparação para os megaeventos no Rio de Janeiro. Ao
entrar em contato com os moradores de comunidades ameaçadas, como
Arroio Pavuna e Vila Autódromo, achei o meu gancho. O meu trabalho seria
uma grande reportagem sobre as remoções que estavam acontecendo em
razão da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas em 2016.
Das comunidades removidas para os megaeventos, qual ou quais você acredita serem as mais emblemáticas desta época?
Considero duas bem emblemáticas: a Restinga, no Recreio dos
Bandeirantes, e o Metrô-Mangueira, na Mangueira. Na Restinga aconteceu
todo o processo que tem sido padrão de reclamação dos moradores das
comunidades removidas: falta de informação relativa ao projeto, falta de
participação durante as remoções, oferecimento de alternativas
desinteressantes para as famílias e truculência policial no ato da
remoção. Essa última queixa é que torna a Restinga emblemática. O dia da
remoção, dia 17 de dezembro de 2010, uma sexta-feira, foi considerado
muitíssimo traumático pelos moradores. Sem aviso prévio, com forte
aparato policial, remoções acontecendo madrugada adentro, sem as
famílias terem sido indenizadas. Para o defensor público que atendeu a
comunidade na época, Alexandre Mendes, foi a comunidade que mais sofreu
nesse processo.
Já o caso do Metrô-Mangueira, que fica a 500 metros do Maracanã é
emblemático pela situação que alguns moradores ficaram durante um ano e
meio. Após as primeiras remoções, as casas eram demolidas, e quem ficava
tinha que viver entre os entulhos, que não eram retirados, e acumulavam
lixo, água parada, ratos.Como me disse um ex- morador, Eomar Freitas:
“Se você conseguir entrar em alguma casa que ainda está de pé, vai ver o
odor de merda que tem, e a gente tinha de almoçar, a gente tinha de
jantar, a gente tinha de conviver com esse cheiro”.
O que mais te chocou ou entristeceu durante a pesquisa?
O que mais me entristeceu foi o tratamento recebido pelas famílias
removidas. É tudo feito com muita brutalidade, desde o anúncio da
remoção. É pressão o tempo inteiro, e os moradores são tratados como
“ilegais”, independente de sua situação fundiária, mesmo com os direitos
adquiridos que nossas leis nos reservam.
A moradia vai muito além de quatro paredes, ela está ligada ao
direito ao trabalho, ao lazer, à saúde. É um processo muito traumático, e
no qual não se faz nada para que ele seja menos traumático, muito pelo
contrário. O ideal seria que esses processos fossem acompanhados de
assistência psicológica aos moradores. Na verdade, ideal mesmo é que se
buscassem outras soluções em vez da remoção forçada.
Apesar de não ser novidade na história do Rio de Janeiro, agora
vivemos situação específica inaugurada por dois megaeventos esportivos e
pelas transformações urbanísticas que eles impõem à cidade. E há um
grande agravante: as remoções estão acontecendo de forma sistêmica e
integrada nas 12 cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa da
urgência e com uma paixão nacional como bandeira. É praticamente um
herege quem vai de encontro a um projeto desses.
Em seu estudo você fala de várias outras transformações no espaço
público carioca. Quais foram as principais? Elas também removeram muita
gente?
Acredito que a principal tenha sido a reforma realizada pelo
engenheiro Francisco Pereira Passos, nomeado prefeito do Rio de Janeiro
pelo então presidente Rodrigues Alves, em 1904. Inspirado em Haussmann, o
prefeito de Paris responsável pela sua reforma urbana no final do
século XIX, a reforma de Pereira Passos teve como principais
características o alargamento das principais artérias do Centro, a
criação da Avenida Beira Mar para melhorar o acesso da Zona Sul ao
Centro; a construção do Teatro Municipal; a ligação da Lapa com o
Estácio; guerra aos quiosques e ambulantes; inauguração de estátuas
imponentes e arborização no centro. Na maioria dos casos, a prefeitura
desapropriou mais prédios do que eram necessários para depois vender o
que ficou valorizado. Em paralelo às obras da prefeitura, a União também
realizou grandes obras, como a construção da Avenida Central, atual Rio
Branco, que demoliu de duas a três mil casas, o novo porto do Rio de
Janeiro, e a abertura das avenidas que lhe davam acesso, a Francisco
Bicalho e a Rodrigues Alves. É a partir daí que os morros do Centro
(Providência, Santo Antônio, Castelo e outros) até então pouco
habitados, passam a ser rapidamente ocupados. Ainda assim, a maior parte
das pessoas que perderam suas casas não foi para as favelas centrais, e
sim para o subúrbio, principalmente Engenho Novo e Inhaúma.
O que você chama de era das remoções?
Esse termo foi retirado do excelente livro do historiador Mário Brum,
“Cidade Alta – História, memórias e estigma de favela num conjunto
habitacional do Rio de Janeiro”.
Ele se refere ao período de 1963 a 1975, no qual foram removidas mais
de 175 mil pessoas somente no Rio de Janeiro. O então governador do
Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, trabalhou com as duas perspectivas,
primeiro, com o criado Serviço Especial de Recuperação de Favelas e
Habitações Anti-Higiênicas (Serfha), com a perspectiva da urbanização.
Depois, com a extinção do Serfha e a subordinação dos órgãos
habitacionais à Secretaria de Serviços Sociais, criada em 1963, a
política habitacional passou a trabalhar com muito empenho com a
perspectiva remocionista, já que, com a especulação imobiliária,
políticos e construtoras tinham interesse na “desfavelização” da Zona
Sul.
De acordo com Mário Brum, as primeiras remoções foram em áreas de
obras, como as favelas da Avenida Brasil, removidas para a construção do
Mercado de São Sebastião, e a favela do Esqueleto, retirada para a
construção da UERJ, no Maracanã. Em um segundo momento, as remoções
visaram favelas em terrenos de alto valor imobiliário, como o caso da
Favela do Pasmado, em Botafogo.
Com o financiamento americano (Usaid), entre 1962 e 1965, foram
construídas a Cidade de Deus e as Vilas Kennedy, Aliança e Esperança.
Por outro lado, algumas favelas foram urbanizadas. Em 1964, com o golpe
militar e o início da ditadura no Brasil, o fechamento dos canais
democráticos criou as condições necessárias para as remoções
arbitrárias. Além disso, na conjuntura da Guerra Fria, o favelado era um
revolucionário em potencial aos olhos do governo.
Nesse mesmo ano foi criado o Banco Nacional de Habitação (BNH), órgão
financiador e responsável por programas habitacionais. As construções
dos conjuntos habitacionais acompanhavam a remoção de favelas. Em 1964,
2273 famílias perderiam suas casas com a remoção completa de comunidades
em Botafogo, Leblon, Ramos, Duque de Caxias; e despejos parciais no
Humaitá, na Gávea, no Caju.
E as remoções continuaram no ano seguinte, sendo a maior delas a da
comunidade do Esqueleto, no Maracanã. Segundo dados da Cohab, no governo
Lacerda foram removidas 6.290 famílias, sendo 4.800 de janeiro de 64 a
julho de 65. Até 1965, 30 mil pessoas foram removidas, o que foi pouco
perto do que estava por vir.
Em 1968, a Federação das Associações de Favelas do Estado da
Guanabara (Fafeg) ainda realizou seu 2º Congresso. No entanto, com
traumáticas remoções na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, a
resistência perdeu espaço para o receio: a resistência dos moradores da
Praia do Pinto, por exemplo, terminou com um misterioso incêndio na
favela. Nese mesmo ano, o governo federal criou a Coordenação da
Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio
(Chisam), com o objetivo de criar uma política única de favela para o
Rio. A Chisam definia a favela como um “espaço urbano deformado” e sua
missão declarada era erradicá-las. Na ditadura, a Chisam virou a
“autoridade” do programa remocionista. Era ela quem decidia quais
favelas a serem removidas e onde ficariam os conjuntos, pois muitos
terrenos eram do governo federal. E, na prática, quem executava as
coisas era o governo do Estado.
A Chisam, extinta em 1973, removeu mais de 175 mil moradores de 62
favelas (remoção total ou parcial), transferindo-os para novas 35.517
unidades habitacionais em conjuntos nas zonas Norte e Oeste. A
construção desses conjuntos habitacionais nem de longe resolveu o
problema da habitação popular, mas modificou substancialmente a
forma-aparência dos subúrbios, além de levar uma demanda grande de
pessoas para onde não havia a infraestrutura necessária.
Após esse período, houve o esvaziamento do programa de remoções que
tinha um alto custo político pela resistência dos moradores e que já
tinha cumprido sua função de desocupar áreas de grande valor imobiliário
e desmantelar a organização política dos favelados. Com a
redemocratização do país, houve a revalorização da “moeda voto”.
O que você vê de diferente entre este histórico de remoções no Rio e o que está acontecendo agora? Há diferença de abordagem?
Antes era imperativa a ideia de remoção total das favelas como
solução para a cidade. Isso foi superado depois da grande força dos
movimentos sociais dos anos 80 e da nossa Constituição de 88. No Plano
Diretor do Rio de Janeiro de 1992 se consolida o pensamento de
integração das favelas à cidade; o Plano prevê a urbanização e a
regularização fundiária, e a favela é definida por características
técnicas de sua estrutura, e não mais por características morais dos
moradores. Sem dúvida isso é uma evolução e deu partida a projetos como o
Favela-Bairro.
No entanto, os movimentos que lutam pelos direitos humanos, sendo o
direito à moradia um deles, não conseguir garantir esse direito na
prática. E esse é um grande passo para trás. Outro passo para trás:
apesar de não haver mais a justificativa da remoção como solução
urbanística, ela está mais mascarada. E há um grande agravante, que são
as remoções acontecendo de forma sistêmica e integrada nas 12
cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa da urgência e com
uma paixão nacional como bandeira. As obras para mobilidade urbana e
construção de equipamentos esportivos não são consideradas
questionáveis, e quem questiona é chamado de “do contra, baderneiro”.
A que você acha que se deve este histórico?
A primeira coisa que me vem à cabeça é “falta de planejamento
urbano”. Mas na verdade o que não faltou foi planejamento. Acho que esse
histórico se deve a predominância do interesse do capital na construção
e ocupação da cidade. Preferiu-se e ainda se prefere privilegiar a
especulação imobiliária ao direito à moradia.
Fonte: Pública
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