Por Eva Belmonte
Imagine que um executivo de alto escalão em um dos bancos mais
importantes do mundo manda empresários para a prisão, em artimanha
combinada com um juiz corrupto, para chantageá-los e cobrar algumas
dívidas. Imagine que o engodo é descoberto e que o banqueiro é
condenado, mas os sucessivos governos de seu país – todos, das mais
diferentes cores – fazem e desfazem conforme sua vontade para evitar que
ele cumpra a pena. Imagine que ele continue no cargo durante mais de
dois anos, inatingível, apesar de seus antecedentes criminais. Imagine,
além disso, que por esse cargo ele recebeu € 11,604 milhões em 2011 (mais de US$ 15 milhões), remuneração superior a do CEO do Morgan Stanley (US$ 13 milhões), por exemplo.
Parece uma história de filme, de poderosos modificando as leis de
acordo com sua vontade, reescrevendo as normas do Estado de direito em
seu próprio benefício. Mas esse homem é Alfredo Sáenz, o CEO do banco
Santander – o maior banco da zona do euro – até sua renúncia neste 29 de
abril. A saída
“voluntária” do braço direito de Emílio Botín deu-se momentos antes do
Banco da Espanha decidir se ele deveria ser impedido de exercer o cargo,
em um processo que pôs fim a uma longa história de favores políticos
destinados a garantir a posição do executivo depois de uma sentença
judicial que o havia tornado inabilitado para dirigir bancos.
Chantagens através de denúncias falsas para cobrar uma dívida
Já faz mais de dois anos que Sáenz foi condenado por mover falsa
acusação e denúncia. Pode parecer um delito pequeno, mas este enredo é
complicado e complexo desde o primeiro minuto. Em 1994, Sáenz utilizou
documentos manipulados para incriminar um grupo de empresários. Seu
objetivo era chantageá-los para que pagassem uma dívida contraída com
Banesto, empresa da qual era presidente.
Suas táticas mafiosas contaram com um cúmplice de luxo: o juiz Luís
Pascual Estevill, que durante anos utilizou sua posição para extorquir,
condenar inocentes e dar sentenças em troco de quantidades apetitosas de
dinheiro. Os investigadores mostraram que, juntos, denunciante e juiz, e
outros altos executivos do Banesto, conseguiram enviar injustamente
para a prisão três empresários: Pedro Olabarría, Luis Fernando Romero e
Modesto González.
O plano daquele que se tornaria o número dois de Botín teria sido
perfeito se não fosse o fato de os empresários não cederem à chantagem, e
da Procuradoria Anticorrupção ter descoberto o crime logo depois do
desmantelamento da rede de corrupção do juiz Estevill, protagonista de
uma das histórias mais obscuras da justiça espanhola (foi condenado por
suborno, extorsão, transgressão e detenção ilegal).
Após a denúncia dos empresários, David Martinez Madero
(um dos fiscais anticorrupção mais agressivos da Espanha, morto
recentemente) se juntou à causa e conseguiu uma vitória parcial: o
Tribunal Provincial de Barcelona sentenciou Sáenz a seis meses de prisão
e desqualificação (inscrição no registro criminal), uma pena que teria
sido muito maior se tivesse sido demonstrada uma conexão direta entre o
juiz corrupto e o empresário bancário, ou seja, se os investigadores
tivessem encontrado provas dos pagamentos do banqueiro ao magistrado por
seus serviços. Quando veio a sentença, Sáenz já era conselheiro
delegado do Santander. Emilio Botín não o demitiu.
Sáenz recorreu da decisão ao Supremo Tribunal, que reduziu sua sentença
para três meses por razões formais, mas manteve a desqualificação,
chave nesta história. O problema não eram os três meses de prisão (que
não cumpriria se não tivesse antecedentes criminais), mas a sua
inscrição no registro penal de presos e rebeldes. A lei espanhola não
permite que pessoas com antecedentes criminais exerçam funções de alto
escalão nos bancos. A regra é clara, a “reconhecida honorabilidade
comercial e profissional” exigida não poderia incluir uma condenação.
O banqueiro deveria ser expulso de sua função como conselheiro
delegado do Santander. Mas não se deu por vencido e, logo depois de
falhar na tentativa de se esquivar da pena através do poder judicial,
solicitou indulto ao poder Executivo. Em paralelo, também pediu que
paralisassem seu processo de expulsão do cargo até que o governo
decidisse se concederia a graça ou não. Ainda assim, a Procuradoria
Provincial de Barcelona decidiu, num exemplo de firmeza judicial,
inscrever seu nome no registro de condenados.
Primeiro favor: o indulto do governo socialista
O governo da Espanha, liderado então por José Luís Rodríguez
Zapatero, do Partido Socialista Trabalhador Espanhol (PSOE, na sigla em
espanhol), foi muito mais indulgente que os juízes. Em 25 de novembro de
2011 concedeu um indulto ao
número dois do Santander. A decisão foi tomada no último Conselho de
Ministros do governo socialista, reunido depois de perder as eleições.
Como o governo fundamentou essa decisão de última hora para o
representante do Santander? “Entendeu-se que era razoável. E pronto”, argumentou Zapatero na época.
O indulto
na Espanha é fruto de uma lei assinada em 1870 intitulada “Medida
provisória do exercício do direito da graça”. Mas o texto da norma – que
nenhum governo se atreveu em reformar – deixa claro que se trata de uma
medida excepcional. Ou deveria sê-lo.
Desde 1996 os governos espanhóis concederam mais de 10 mil indultos, conforme indica o Indultômetro da Fundação Cidadã Civio. A medida de concessão de graças já foi aplicada também a policiais condenados por torturas, a políticos corruptos e a juízes transgressores, entre outros.
Assim, o governo se utilizou mais uma vez de uma prerrogativa que
deveria ser usada em raras ocasiões para salvar Sáenz da
desqualificação. Mas o Supremo Tribunal, uma vez mais, se interpôs no
caminho do banqueiro. Em decisão inédita,
o juiz determinou que o governo não tinha poder para remover a
desqualificação implícita na sentença e o acusou de “extrapolar” suas
funções. Os argumentos eram claros e consistentes com a lei: o governo
pode indultar a pena de prisão, mas não pode evitar que seu exercício
como banqueiro fosse proibido, pois não pode apagar os antecedentes
criminais do condenado.
Segundo favor: como as leis mudam, graças ao PP
Quando a sentença do Supremo chegou, o governo da Espanha já estava
nas mãos do Partido Popular (PP), de Mariano Rajoy. Se o PSOE fez o que
pôde para salvar Sáenz logo antes de deixar La Moncloa, o que faria o
PP? Reescrever as leis, sem mais nem menos.
No último 12 de abril, o Conselho de Ministros aprovou um
Decreto Real para que os antecedentes criminais não interfiram na
declaração de honorabilidade de um banqueiro. Se até o momento os
banqueiros de alto escalão com antecedentes criminais eram expulsos
imediatamente, agora é o Banco da Espanha que decide se a sentença
imposta fere a honorabilidade do personagem em questão.
Se o PSOE não apresentou motivos para o indulto de Saénz, as razões
que o PP apresentou para mudar a lei foram, no mínimo, falsas. A
vice-presidenta do governo espanhol afirma que a reforma foi imposta por
uma mudança na legislação europeia. Na verdade, as regras europeias
mudaram, mas apenas para permitir que os Estados-Membros decidam
autonomamente os critérios sobre a honra de um banqueiro. E o governo
espanhol tomou sua decisão livre e voluntariamente: antecedentes
criminais não ofuscam a reputação.
A bola passou então para o telhado da entidade que controla o mercado
financeiro espanhol, mas diante da possibilidade do Banco da Espanha
decretar sua cassação, Sáenz abandonou voluntariamente o cargo no dia 29
de abril. A diretoria o dispensou com um “apreço e agradecimento ao
trabalho extraordinário” que ele tinha feito durante os seus quase 20
anos de trabalho para a entidade.
A influência do Santander
Mas que influência tem o Banco Santander para fazer com que os dois
partidos políticos que chegaram ao poder nos últimos anos na Espanha
reescrevam leis e assinem indultos para salvar um executivo?
A empresa, a mais importante da Espanha, é uma das muitas que já perdoou, durante anos, dívidas de partidos políticos.
Quanto, em dinheiro, o Santander já perdoou ao PP e ao PSOE? Impossível
saber exatamente. O Banco da Espanha se recusa a fornecer informações
e, no momento, as negociações entre o banco e os partidos são fechadas mesmo com o questionamento dos cidadãos sobre o assunto por meio do site Seu Direito de Saber e pelo Tribunal de Contas.
De acordo com relatórios do Tribunal de Contas, tanto o PP como o PSOE somavam
cada um cerca de 60 milhões de dívidas com o banco em 2007, data do
último relatório. O perdão das dívidas aos partidos, em uma época
marcada por despejos diários na Espanha para aqueles que não podem pagar
hipoteca, agora tem alguns limites: uma reforma legal limita as
isenções em 100 mil euros por ano, ainda assim uma cifra que está longe
de ser desprezível.
Amigos nos governos e na monarquia
Além de ser habitué nas reuniões em La Moncloa (o palácio do
governo espanhol), o Banco Santander também tem boas relações com a
monarquia espanhola. De fato, seu vice-presidente, Matías Rodríguez
Inciarte, também é presidente desde 2008 da Fundação Príncipe de
Asturias, criada para vincular a imagem do herdeiro do trono com
atividades positivas, como o esporte, a cultura e a paz. Como um dos
patrocinadores – junto com a Telefonica, Cepsa, Repsol, El Corte Inglés –
o Santander colabora com o financiamento da entidade, que em 2011 teve
uma receita de € 6.314.104
(mais de US$ 8 milhões). Nesse orçamento, 63% vêm de doações privadas,
ou seja, da contribuição de seus patrocinadores, embora o montante pago
por cada um deles seja um mistério. Além disso, Emilio Botín é um dos
acompanhantes habituais do rei em suas viagens e reuniões, públicas e
privadas.
Graças a esses apoios políticos, Sáenz tem sido, há mais de dois
anos, o único executivo em um cargo de alto escalão em um banco espanhol
que possui antecedentes criminais. E o Santander é o único banco que
teve em suas fileiras um CEO condenado por enviar inocentes para a
prisão.
A renúncia de Sáenz põe fim a esta história, mas é apenas o começo de
uma era de ouro para a aposentadoria do ex-CEO, que irá cobrar uma
pensão por conta do Banco Santander no valor de € 88.174.000, a maior do grupo, ainda muito mais substancial do que a de seu patrono e protetor, Emilio Botin (€ 25.566.000).
* Eva Belmonte é jornalista e diretora de projetos na Civio (www.civio.es), uma fundação espanhola que trabalha pela transparência e pela abertura de dados públicos.
Fonte: Pública
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