Para reduzir maioridade penal, mídia espalha medo e preconceito. Porém, país prende como nunca — e não se tornou mais seguro
Por Andressa Pellanda
Ele era um menino de ainda 10 anos. Não teve a presença de um pai ou
de uma mãe em sua vida. Morava às vezes com a avó, às vezes com a tia,
na periferia de São Paulo. Era mais um entre 41,90 milhões de habitantes
(21,60% da população brasileira). Frequentava, obrigado, a escola
pública da região. Em sua turma eram ele e mais quarenta colegas de
classe. A professora tinha outras cinco turmas para cuidar e não dava
conta. Ele ainda não sabia ler palavras inteiras, lia letra por letra,
engasgadas no caminho. No dia em que teve pneumonia, sua avó percorreu
tantos e tantos hospitais da região em busca de uma vaga de internamento
nas pediatrias lotadas do sistema público de saúde, o SUS. Sua casa era
feita de alvenaria, cheia de frestas, por onde o vento frio corria
durante a noite. Ele se encolhia ao lado de mais três irmãos, que
dividiam a cama no único cômodo da casa. Foi crescendo e, cedo, sentiu
apertar a necessidade da vida. Fez uns bicos aqui e ali e logo entrou
para o tráfico. Essa situação hipotética ilustra a realidade de inúmeros
jovens brasileiros.
Terça-feira, 9 de abril de 2013. Victor Hugo Deppman, 19, jovem
estudante universitário de classe média, é morto com um tiro na cabeça
durante um assalto na porta de casa, no Belém, zona leste de São Paulo. O
jovem foi abordado por volta das 21h na porta do edifício onde morava.
Testemunhas disseram à polícia que um homem atirou contra o estudante,
em um assalto. Em seguida, o suspeito fugiu na garupa de uma moto. Um
adolescente, que completou 18 anos na sexta-feira seguinte, dia 12, é
suspeito de ter cometido o crime. A ação foi registrada por uma câmera
de segurança, que mostra que a vítima não reagiu. O disparo em direção à
cabeça foi dado segundos após o jovem entregar o celular. Segundo a
polícia, o suspeito só procurou a Vara da Infância e da Juventude, na
companhia da mãe, após o irmão ter sido levado para a delegacia.
Todos os meses, brasileiros, frutos de um estado de injustiça social,
cometem crimes como este. Muitos deles são menores de 18 anos, idade da
maioridade penal nacional. Apenas 5% são mulheres, e o perfil desses
jovens é o retrato do preconceito no Brasil: a maioria é negra e
moradora da periferia de São Paulo e do interior. Segundo o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), 43% dos adolescentes infratores foram criados
apenas pela mãe, e 17% pelos avós. 86% dos adolescentes que cumpriam
internação declararam não ter concluído o ensino fundamental. E assim se
dá a intersecção entre as duas histórias.
No Brasil, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, denominada
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dispõe sobre a proteção
integral à parcela da população que tem até 18 anos de idade
incompletos. Nela são assegurados os direitos fundamentais, mas também a
proteção em casos de ação ou omissão da sociedade ou do Estado, dos
pais ou responsável, e em razão de sua conduta. Em seu título III, o ECA
prevê a inimputabilidade de adolescentes e crianças menores de 18 anos,
assim como as medidas socioeducativas em seu capítulo IV, como
advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à
comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade, ou
internação em estabelecimento educacional.
A Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA)
é uma instituição vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e da
Defesa da Cidadania e tem por missão aplicar medidas socioeducativas de
acordo com as diretrizes e normas previstas no ECA e no Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (SINASE) – sistema regulamentador da
execução das medidas. A Fundação CASA presta assistência a jovens de 12 a
21 anos incompletos no Estado de São Paulo (já que o período máximo de
internação não pode exceder três anos, de acordo com o Artigo 121 do ECA
e, assim, a liberação aos 21 anos se torna compulsória). Hoje, a
Fundação CASA atende quase 10 mil jovens, segundo dados da própria
instituição.
O caso de Deppman trouxe à tona o debate em torno da idade da
maioridade penal. A grande mídia brasileira, de caráter concentrado e
conservador, encheu seus noticiários com reportagens, artigos e
programas em torno do assunto. Os adjetivos mais ouvidos eram “absurdo”,
“terrível”, “lamentável”, referindo-se não à imensa desigualdade social
no país, que gera mais violência, mas aos índices crescentes e
alarmantes da criminalidade, ressaltando o sentimento de impunidade
desses jovens. A Fundação CASA cumpre, entretanto, o papel de
responsabilização de jovens infratores pelos crimes por eles cometidos,
como previsto no ECA. Há aí, portanto, uma confusão entre impunidade e
imputabilidade que, segundo o Direito Penal, é a capacidade da pessoa em
entender que o fato é ilícito e agir de acordo com este entendimento.
Depois de alguns dias de contínuo endosso nas televisões e jornais, o
Datafolha, órgão de pesquisa ligado à Folha de São Paulo – maior jornal
diário de circulação nacional do país -, divulgou a conclusão de uma
pesquisa à população: “contra ou a favor da redução da maioridade
penal”. O resultado já era esperado. 93% dos paulistanos concordam com a
redução da maioridade penal, 6% são contra, e 1% não soube responder.
Foram ouvidas 600 pessoas e a margem de erro é de 4 pontos. “A
demonstração de apoio à redução da maioridade penal revela um apoio a
uma solução mais imediatista”, afirmou Mauro Paulino, diretor-geral do
Datafolha. Para Luís Fernando Veríssimo, escritor brasileiro, esses
casos “extremos” testam a razão da humanidade. Para ele, muitas vezes
acabamos “retrocedendo ao tempo da reciprocidade bíblica”. Leonardo
Sakamoto, importante jornalista brasileiro e fundador da ONG Repórter
Brasil1,
declarou, em um de seus artigos sobre o tema que tem medo de
“indivíduos maníacos por sangue”, mas tem mais medo ainda de “uma
sociedade maníaca por sangue”. “Vingança não é Justiça”, complementa.
Além da mídia, partidos e alas do governo também apoiam a redução. O
governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), defende que o ECA “não
consegue atender às novas demandas” e deve haver punições maiores para
crimes hediondos, como homicídios, estupros e latrocínios, defendendo
mudanças para aumentar o tempo máximo de medida sócio-educativa para 8
anos e transferência do adolescente, ao completar 18 anos, da Fundação
CASA ao sistema penitenciário tradicional. Durante a gestão do partido
em São Paulo, há 18 anos no governo, o aumento da população carcerária
foi intenso. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN), o crescimento no número de presos em São Paulo nesses 18 anos
foi de 247%. O número total de presos em penitenciárias e delegacias
brasileiras subiu de 514.582 em dezembro de 2011 para 549.577 em julho
de 2012. Os índices de criminalidade, entretanto, não diminuíram.
Segundo dados da Secretaria da Segurança Pública, o número de vítimas de
homicídios dolosos cresceu 37,3%, de 91 em fevereiro para 125 em março
de 2013. Na comparação com março de 2012, a alta foi de 26,2%. O total
de ocorrências registradas teve uma alta de 0,7% entre o primeiro
trimestre de 2012 e o de 2013.
Além desses dados alarmantes, o índice de reincidência nas prisões no
país é de 70%, de acordo com estatísticas do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ). O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, só
ficando atrás dos EUA, China e Rússia, respectivamente. Depois de
visita inédita ao Brasil, em abril deste ano, uma comitiva da
Organização das Nações Unidas (ONU) concluiu que há excessiva privação
da liberdade no país, baixíssima aplicação de medidas alternativas à
prisão e grave deficiência de defensores públicos para os detentos. A
maior parte da população amontoada nos superlotados e degradantes
presídios brasileiros é negra (60%). Cerca de 80% da população prisional
está presa por crimes contra o patrimônio ou tráfico de drogas,
condutas imputadas às pessoas pobres para quem resta ou procurar um
ofício miserável dentro da legalidade ou se socorrer de caminhos
informais. “De acordo com as normas do Direito internacional, prisão é
exceção, e não regra. A principal medida provisória no Brasil ainda é a
prisão. Os juízes relutam em adotar medidas alternativas, pois não há
mecanismos de controle dessas medidas”, disse Vladimir Tochilovsky,
membro da comissão de inspeção da ONU.
É possível, dessa forma, verificar que não há relação direta entre
punições repressivas e diminuição da violência, muito pelo contrário.
Está cada vez mais comprovado que educar é mais eficiente – e humano –
que punir. Em seis anos de funcionamento do novo modelo da Fundação
CASA, ele apresentou uma série de avanços. Dentre eles, a queda
expressiva nas taxas de reincidência e na ocorrência de rebeliões. Em
2006, antes da reformulação, 29% dos jovens em internação reincidiam.
Hoje, a taxa está em torno de 13%. As rebeliões caíram de 80 ocorrências
em 2003 para apenas uma, em 2009. Latrocínio e homicídio representam,
cada um, menos de 1% dos casos de internação de jovens para cumprimento
de medida socioeducativa, sendo a maioria dos casos de internação por
crimes contra o patrimônio (roubo e furto) e tráfico de drogas.
Geralmente são pequenos traficantes, viciados que vendem drogas para
sustentar seu vício e não controlam a lógica do tráfico. Com a redução
da maioridade, muitos jovens deixarão de ter acesso a um tratamento
reinclusivo, passarão a integrar a já inflada e desumana situação
carcerária no Brasil e, portanto, terão menos chances de sair de uma
vida de crime.
Não é só no Brasil que a maioridade penal é aos 18 anos. 42 países,
de 53 pesquisados por um levantamento da Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República, adotam esta faixa etária. Em
países como a Noruega, a taxa de reincidência prisional é de 20%. A
diferença de reincidência entre os países está nas teorias que sustentam
seus sistemas de execução penal. Nesta, a que prevalece é da
reabilitação, reforma e correção, em que a ideia é reformar deficiências
do indivíduo (não o sistema) para que ele retorne à sociedade como um
membro produtivo.
Diversos órgãos especializados, tratados e códigos são contra a
redução. A Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da
Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração Internacional dos
Direitos da Criança, compromissos assinados pelo Brasil, defendem a
maioridade aos 18 anos. O Unicef expressa posição contrária à redução,
assim como à qualquer redução desta natureza. A nível nacional, a
redução atinge a Constituição Federal Brasileira, com sua Doutrina da
Proteção Integral, tornando a criança e o adolescente sujeitos de
direitos, passando a tratar os mesmos como pessoas em especial condição
de desenvolvimento. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA), o Conselho Regional de Psicologia (CRP) de São
Paulo, a Confederação Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), a Fundação Abrinq, o governo federal, entre outras instituições, defendem um debate ampliado para que a legislação não seja modificada no país.
Reduzir a maioridade penal é tratar o efeito e não a causa. Trata-se
de um discurso politicamente conveniente, uma resposta fácil à
indignação popular com a violência, mas sabidamente uma medida inócua,
que ignora o cerne da questão. O problema está na base estrutural dos
direitos fundamentais negados a tantos jovens pelo país. Assim, reduzir a
maioridade é transferir o problema, isentando o Estado do compromisso
com a juventude e com a construção social.
–
1A Repórter Brasil foi fundada em 2001 por jornalistas, cientistas sociais e educadores com o objetivo de fomentar a reflexão e ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos povos e trabalhadores no Brasil. Devido ao seu trabalho, tornou-se um das mais importantes fontes de informação sobre trabalho escravo no país. Suas reportagens, investigações jornalísticas, pesquisas e metodologias educacionais têm sido usadas por lideranças do poder público, do setor empresarial e da sociedade civil como instrumentos para combater a escravidão contemporânea, um problema que afeta milhares de pessoas.
Fonte: Outras Palavras
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