Por Laura Olivieri
No dia 4 de abril de 2013, agentes da Polícia Federal e do Batalhão
de choque da PM chegaram ao Horto Florestal do Rio de Janeiro, a mando
de uma juíza federal da 23ª Vara Federal, Maria Amélia Almeida Senos de
Carvalho, que sentenciou uma liminar a favor da reintegração de posse
para o Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IPJBRJ)
de uma casa que estaria em “área de risco” e “dentro do parque”.
Essa injustiça aconteceu a despeito de a Superintendência de
Patrimônio da União (SPU) —legítima gestora das terras da União em
conflito fundiário nesse caso— ter determinado na Advocacia Geral da
União (AGU) a suspensão de todas as ações de reintegração de posse
referentes à essa querela, justamente por entender que cabe a ela, SPU,
legislar sobre a posse de terras que são propriedade da União e que as
mesmas podem e devem, desde a constituição de 1988, assumir a
responsabilidade social do Estado em benefício de trabalhadores
residentes há mais de cinco anos no lugar.
No Horto, as famílias de moradores são posseiras históricas, visto
que residem há décadas e, em alguns casos, há séculos na região.
Igualmente posseiro histórico dessas terras é o Jardim Botânico, apesar
do equívoco reafirmado constantemente pelo discurso hegemônico de
atribuir a propriedade das terras do Estado a essa instituição.
Portanto, a primeira construção que esse artigo busca desmobilizar é de
que a comunidade do Horto estaria “dentro do Jardim Botânico”. Isso não é
verdade e essa falácia precisa ser desconstruída, a partir do
conhecimento histórico sobre a região do Horto e divulgada.
O Horto Florestal do Rio de Janeiro existe oficialmente no mapa da
cidade desde 1875. Antes, contudo, a região já era ocupada por senhores e
trabalhadores escravos de um Engenho de açúcar fundado em 1578 por Mem
de Sá, chamado Engenho D´El Rey —e que mudou de nome e de sede em 1695,
passando a se chamar Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa. Já no
século XVIII o Horto sediava uma Fazenda de café cuja casa Grande era
pioneira no Brasil em seu estilo arquitetônico: O Solar da Imperatriz.
O Parque Jardim Botânico foi fundado por D. João VI em 1811 e trouxe a
terceira onda populacional da região, composta por trabalhadores
escravos daquela grande obra, a terceira oficialmente fundada no local
pela Coroa.
O Horto sempre foi palco da história oficial de nossa cidade.
Igualmente, foi lugar do quilombismo histórico nas matas da Freguesia da
Gávea, tendo abrigado, perto de 1888, um importante reduto de
quilombolas [2]: o mocambo das Margaridas (SILVA, 2003, p. 74)
[3], rota de fuga para os Quilombos da Sacopã (na atual Fonte da
Saudade) e das Camélias (no atual Alto Leblon). Os moradores guardam
essa memória e são resilientes em sua resistência histórica.
No dia quatro de abril houve cinco horas de negociações pacíficas,
embora as forças federais e militares estivesses presentes nas
trincheiras do conflito. Encontravam-se também alguns parlamentares e
seus representantes bem como quadros da SPU, da OAB e da Comissão
parlamentar de Direitos Humanos, os quais intermediavam as negociações
de paz entre moradores, lideranças comunitárias e agentes federais
encarregados da ordem de despejo.
Graças à adesão dos intermediários e à atuação da presidente da
AMAHOR e do advogado que apoia esta associação de moradores foi possível
a construção de um acordo em que os moradores se mudaram
temporariamente para dois imóveis da União enquanto aguardam a
autorização para retornarem ao Horto, seu lugar de origem e de
identidade, quando da implementação da Regularização Fundiária proposta
pela SPU, a legítima gestora das terras em conflito.
A SPU contratou uma pesquisa de mapeamento e diagnóstico da UFRJ que,
em dezembro de 2010 concluiu sua análise e a encaminhou para avaliação
das partes envolvidas na querela. A comunidade aprovou a proposta, ainda
que nela houvesse algumas orientações de remanejamento de casas em que
estivessem em locais de risco (risco aqui entendido como socioambiental,
ou seja, para o meio ambiente e sobretudo para o próprio morador devido
a condições adversas de moradia). O IPJBRJ a recusou alegando que
precisava de espaço para expandir o seu arboreto, patrimônio público
natural, e para o avanço das pesquisas botânicas. Causas nobres de fato,
mas não mais importantes do que a vida humana e o direito humano
fundamental à moradia de famílias tradicionalmente enraizadas no
território.
A proposta de Regularização Fundiária apresentada pela SPU foi
conduzida com ética administrativa, competência acadêmica e conhecimento
técnico suficientemente notórios e com a legitimidade política da
instituição gestora das terras da União e responsabilidade social. O
estudo ainda levou em consideração um levantamento realizado pelo ITERJ,
em 2005 e se baseou nos critérios do direito à moradia e das obrigações
sociais do Estado e suas propriedades, ambos referenciais importantes
da constituição brasileira de 1988 e marcos teóricos do processo de
democratização das instituições nacionais. Portanto, afirmar que a SPU
teria conduzido com improbidade administrativa o processo acima exposto é
um outro construto falacioso que esse texto busca desmentir.
Voltando à primeira desconstrução a que nos propusemos, é importante
que se rememorem dados. Até os anos 1950 havia uma fronteira espessa e
pantanosa entre o parque e a comunidade. No final dessa década, uma
tempestade arrancou o bambuzal que fazia a divisa natural.
Nessa época, após o temporal, o Jardim Botânico permitiu que os
trabalhadores do parque e moradores do Horto construíssem casas mais
perto do trabalho e muitos residentes da região do entorno do Solar da
Imperatriz e do chamado Hortão se mudaram para a localidade adjacente,
batizada de Caxinguelê. Para atender esses moradores do Horto, foi
erguida a Escola Municipal Julia Kubitschek, fundada pelo presidente
Juscelino Kubitschek e que era um dos marcos da fronteira. Do outro
lado, no sopé da colina por onde passa o Aqueduto histórico do Horto
(construído por escravos no século XVIII para o abastecimento de água na
região da Lagoa Rodrigo de Freitas [4]) havia um portão que delimitava os dois espaços, hoje conflitantes.
Mas foi somente nos anos 1990 que o Jardim Botânico se tornou
Instituto de pesquisa e começou a expandir o seu arboreto, justamente em
direção à comunidade. Se hoje algumas casas do Caxinguelê estão “dentro
do parque” como se afirma no discurso hegemônico, elas assim estão
porque foi o IPJBRJ que avançou e as incorporou dentro dos novos limites
de seus portões. Portanto, é imperativo desmentir que os moradores do
Horto são invasores…
Nessa mesma década, o IPJBRJ obteve a posse do Solar da Imperatriz
para nele fundar a Escola Nacional de Botânica. Dali em diante foi fácil
argumentar que a região situada entre o monumento e o arboreto era toda
território do Instituto. Mas não é assim porque nessa linha reta que o
IPJBRJ quer traçar (e vem traçando com abertura de estradas no Horto, à
beira do rio) há centenas de casas, famílias e memórias que não podem
ser suprimidas pela necessidade da pesquisa botânica e da expansão do
que quer que seja. Não sem antes se considerar as vidas e os direitos
humanos instalados ali, historicamente.
Por conhecer essa história a fundo, é meu dever, como historiadora,
repassá-la adiante. A missão de transmiti-la é do Museu do Horto,
projeto social de memória que eu construí com os moradores do Horto para
reafirmar a sua identidade histórica no lugar desse conflito. A razão
de interpretar é do leitor e a capacidade de aceitar ou não as verdades e
as injustiças é da consciência de cada cidadão.
Vale a pena assistir o vídeo em que Emília Maria de Souza, liderança
comunitária do Horto, fala as verdades à imprensa no dia da reintegração
de posse sobre os acontecimentos da manhã do dia 4 de abril. E elogia o
23º Batalhão da PMERJ. A seguir há uma galeria de fotos tiradas por
Pedro Marins Maciel e Ana Paula Amorim. Muitas das informações aqui
apresentadas foram coletadas com o trabalho de memória oral. Trechos de
depoimentos dos moradores foram selecionados e apresentados no
documentário Horto Lugar de memórias (Museu do Horto, 2010).
[1] Historiadora, doutora em Serviço Social, coordenadora técnica do Museu do Horto (www.museudohorto.org.br) e coordenadora de projeto do Museu da Pessoa ( www.museudapessoa.net ).
[2] Quilombolas eram escravos que resistiam ao sistema colonial
escravista que se refugiavam normalmente nas matas e buscavam
ressignificar costumes e crenças africanos.
[3] SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura . São Paulo: Cia das Letras, 2003.
[4] A Lagoa chamava-se nessa época de Lagoa de Sacopenapã, nome indígena.
Fonte: Universidade Nômade
Nenhum comentário:
Postar um comentário