terça-feira, 16 de abril de 2013

A cidade e o futuro do mundo, segundo Aaron Swartz

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Crônica do “The New Yorker” sobre vida do grande ativista pela liberdade na internet é magnífica. Mas provavelmente erra sobre verdadeira causa de seu suicídio

Por Rafael Zanatta, em E-mancipação

Há menos de um mês, a revista estadunidense The New Yorker publicou uma matéria sobre Aaron Swartz intitulada Requem for a Dream. Trata-se de uma belíssima crônica escrita por Larissa MacFarquhar, resultante de um robusto trabalho investigativo sobre a genialidade do cyberativista tragicamente morto em janeiro de 2013 e as percepções das pessoas próximas a Aaron com relação ao modo como ele enfrentou o polêmico processo criminal (iniciado em razão do download de milhares de artigos acadêmicos pela plataforma JSTOR, através de um computador ligado na rede do Massachusetts Institute of Technology) que motivou sua morte.

A crônica, entretanto, erra ao focar no “lado sombrio” de Swartz e nas relações de causalidade que podem explicar seu suicídio. Ao meu ver, o caso de Aaron Swartz não deve ser objeto de reflexão para possíveis explicações causais (quais fatores psicológicos e biológicos levaram ao suicídio?). Buscar uma explicação é colocar-se em uma posição de conforto (construir sentido). Na minha leitura, o suicídio de Swartz – ocorrido há quase três meses – deve levar ao desconforto reflexivo e um debate sério sobre cidadania e engajamento político. Os projetos nos quais Aaron se envolveu e as causas pelas quais ele lutou (compartilhamento de informação, modelos alternativos de copyright e aproveitamento do potencial conectivo da internet para ativismo cívico) forçam um trabalho constante de questionamento sobre as limitações do status quo e o potencial de empoderamento ligado a inovações.


O que diz o texto do The New Yorker?

Requiem for a Dream é um impressionante trabalho jornalístico com características de literatura. O texto mistura relatos de pessoas próximas a Swartz, antes e depois de seu suicídio, com dados e informações pouco discutidas sobre a formação educacional transgressora de Aaron, sua condição de saúde, sua fragilidade emocional e o impacto do processo criminal em sua vida.

MacFarquhar constrói uma narrativa de modo a tentar convencer o leitor de que há ligações entre a colite ulcerosa de Aaron (doença que pode levar a comportamentos impulsivos) e seu espírito livre, nunca preso a padrões comportamentais comuns. Para a jornalista, o fato de Swartz nunca ter se acostumado com as regras e imposições do sistema educacional estadunidense – Aaron abandonou não somente a escola, mas também a Universidade de Stanford, por considerar tais instituições dotadas de rotinas estúpidas e pessoas limitadas a formas de pensar pré-estabelecidas – pode ter gerado duas consequências: ao mesmo tempo que garantiu liberdade e autonomia intelectual a Aaron, diminuiu sua paciência e capacidade de lidar com procedimentos burocratizados. A análise corrobora a interpretação do professor Lawrence Lessig, um dos idealizadores do Creative Commons. Na opinião de Lessig, “[Aaron] estava livre de todas as experiências disciplinadoras da vida. Seus pais o tiraram da escola cedo, o que foi ótimo pois isso permitiu que ele se tornasse alguém que não era o produto da puberdade em uma escola pública. Mas isso foi ruim no sentido de que deu a ele a confiança sobre seus próprios julgamentos, o que é perigoso“.

MacFarquhar inicia o texto com um recurso narrativo interessante. A jornalista constrói uma espécie de mosaico, com frases de pessoas próximas a Swartz – como Ben Wikler, Taren Kauffman (namorada) e Quinn Norton (ex-namorada de Aaron) – centradas no mesmo tema: o alto risco de suicídio de Aaron. Os depoimentos são colocados propositalmente no início do texto para construir uma tese: as pessoas mais próximas de Aaron temiam o suicídio. Essa tese é desenvolvida a partir de uma narrativa que envolve um clima de tensão em torno da morte de Swartz. Não há uma explicação linear ou cronológica sobre os fatos. Depoimentos após o suicídio são intercalados com trechos de textos escritos por Aaron em seu blog entre os anos de 2004 e 2012. Através deste recurso, a autora tenta demonstrar que há indícios de um comportamento potencialmente suicida nas percepções de Aaron sobre a vida. Larissa MacFarquhar usa colagens de posts para reforçar a ideia de que Swartz enxergava sua vida como uma imposição (“I’m not such a nuisance to the world, and the kick I get out of living can, I suppose, justify the impositions I make on it. But when life isn’t so fun, well, then I start to wonder. What’s the point of going on if it’s just trouble for us both? My friends will miss me, I am told… But even so, I feel reticent. Even among my closest friends, I still feel like something of an imposition, and the slightest shock, the slightest hint that I’m correct, sends me scurrying back into my hole“). A ideia defendida é de que o suicídio, considerado trágico e inesperado, era uma preocupação recente dos mais próximos.

A crônica é rica em depoimentos de amigos, parentes e colegas de trabalho sobre o modo como Aaron se comportava. Há detalhes interessantes sobre como que Swartz enxergava as relações de poder. Na juventude, ele sentia um tremendo desconforto em estar em uma posição de comando, mesmo nos casos em que tais relações  eram previsíveis e mediadas por instituições formais ou informais. Aaron, por exemplo, não gostava de restaurantes em razão do desconforto de ser atendido por um garçom. Ele considerava humilhante estar na posição de receber ordens, preparar e servir outrem. Em bibliotecas, Aaron raramente pedia ajuda para a bibliotecária. Por incrível que pareça, ele sentia um enorme desconforto em interromper a atividade da funcionária, mesmo sabendo que ela estava ali justamente para atendê-lo (e sendo paga para isso). De certo modo, através destes exemplos, MacFarquhar tentar apresentar uma outra tese na crônica: Aaron Swartz sentia-se repelido por relações de dependência e pela relação comando-obediência.

Aparentemente, a matéria do The New Yorker tenta relacionar essa tese com o suicídio. O texto é muito rico ao relatar como ocorreu a prisão de Swartz em 2011, em razão do processo criminal iniciado pela promotoria de Massachusetts. O processo forçou uma primeira relação de dependência de Swartz com profissionais da área jurídica, em especial advogados. Após o pagamento da fiança, Swartz tornou-se dependente destes profissionais, que recomendaram sigilo total para enfrentar o caso. De acordo com a estratégia de defesa, tornar o caso público poderia piorar a situação. Para Aaron, era inconcebível que suas ações fossem consideradas ilegais. Ele tinha uma concepção muito clara de que download não era roubo. Ainda, Aaron não conseguia encontrar um motivo razoável para a existência do processo penal e do pedido de condenação de 35 anos de prisão. Como é sabido, o Massachusetts Institute of Technology retirou a ação civil movida contra Swartz pelo download dos artigos acadêmicos e Aaron assinou um termo de compromisso em que prometia não disponibilizar tais arquivos publicamente. Os promotores queriam que Aaron se declarasse culpado. Entretanto, ele se recusou a fazer tal declaração (plea guilty).

A crônica tenta mostrar que o processo destruiu Aaron psicologicamente. Nesse aspecto, concordo com MacFarquhar. Após a repercussão que foi dada no Brasil ao texto que escrevi sobre Aaron, passei a ler cuidadosamente alguns posts de seu bloge a resenha de alguns livros. Swartz lia muito, mais de cem livros por ano. Curiosamente, em meados de 2011 – após o início do processo criminal -, Swartz leu o livro The Trial (O Processo), do escritor tcheco Franz KafkaHá ali uma relato particular que deixa claro como Swartz sentia-se angustiado pela pavorosa e surreal burocracia do sistema judiciário. O trecho a seguir, em especial, é brilhante e revela o desespero kafkiano diante do sistema: “O Processo, por Franz Kafka. Uma obra profunda e magnífica. Eu nunca tinha lido muito Kafka e havia sido levado a crer que era uma obra paranoica e hiperbólica, uma ficção distópica no estilo de George Orwell. No entanto, eu a li e a achei precisamente exata – cada detalhe singular perfeitamente espelhado na minha própria experiência. Isso não é ficção, mas sim documentário. (…) Uma vívida ilustração de que burocracias, uma vez iniciadas, continuam a fazer qualquer coisa sem sentido que foram programadas a fazer, independentemente se as pessoas dentro dela particularmente querem fazer ou mesmo se é uma boa ideia“.

Para a matéria do The New Yorker, a morte do “gênio” Aaron Swartz é melhor compreendida diante de alguns fatores específicos, como a doença intestinal de Aaron e a propensão a comportamentos impulsivos, seu desconforto com relações de poder, sua alta privacidade para determinados temas, sua reclusão diante do processo penal, a dependência diante dos advogados e o pavor de ser considerado criminoso (felon) diante de suas ambições de reforma da política estadunidense para construção de um mundo melhor. A matéria tenta não somente informar, mas também apresentar uma espécie de tese a partir de métodos empíricos qualitativos. A partir da percepção das pessoas mais próximas de Aaron Swartz (suas interpretações e narrativas), MacFarquhar tenta defender a ideia de que o suicídio foi uma saída impulsiva diante da incapacidade de Swartz de lidar com os problemas existentes. Trata-se de um patchwork narrativo com pretensão explicativa.

Indo além da explicação: o legado de Swartz

Apesar dos aspectos elogiáveis do texto do The New Yorker, acredito que o caso de Swartz é muito mais do que uma simples história de suicídio, marcada pelas angústias psicológicas de uma pessoa supostamente fragilizada. Está claro, diante dos relatos disponíveis, que Swartz era uma pessoa diferente e frágil. Mas sua meteórica trajetória de vida – dos 26 anos de vida, 13 foram dedicados a questões ligadas à sociedade e à internet – mostra algo muito maior para o futuro da humanidade. Swartz queria mudar o mundo. Ele não queria desperdiçar sua vida com questões consideradas por ele desimportantes. Ele queria enfrentar as grandes questões de seu tempo (como compartilhar informação, criar arranjos de propriedade diferentes da lógica de um período passado, melhorar o bem-estar das pessoas, combater a corrupção da política e tornar a internet um instrumento de participação cívica). Ele se definia como um sociólogo aplicado - e acho que essa definição é bastante cabível: Swartz não queria simplesmente compreender como a sociedade se organiza e produz vida, queria também solucionar problemas sociais.

Seria o projeto swartziano um idealismo típico de um jovem? Pouco importa saber se essa ideia é ou não típica da juventude. Levar a sério Swartz não é discutir se ele era um idealista. Levar a sério Swartz é dar continuidade ao projeto de utilizar o conhecimento técnico para avançar o bem comum. É reconhecer que acidadania envolve uma obrigação moral de lutar contra a corrupção do sistema político.

Recentemente, o professor Lawrence Lessig deu uma grande contribuição ao legado de Aaron Swartz. No dia 19 de fevereiro, Lessig foi contemplado com a Roy Furman Chair na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Nos Estados Unidos, ao invés de se tornaram “professores titulares”, os docentes são homenageados com a cadeira - chair - de um antecessor. Trata-se do maior posto acadêmico dentro de uma instituição. Ao receber o prêmio da reitora Martha Minow, Lawrence Lessig realizou uma palestra intitulada Aaron’s Laws. A aula foi organizada às pressas e de forma turbulenta após o suicídio de Aaron Swartz, com quem Lessig conviveu por mais de dez anos. É admirável notar que Lessig aproveitou um momento de altíssimo prestígio pessoal (em uma das mais renomadas instituições de ensino do mundo) para explicar por que um rapaz de vinte e poucos anos era seu “mentor intelectual”.

A palestra de Lawrence Lessig estrutura-se em uma tese central e contra-intuitiva:os juristas deveriam celebrar hackers como Aaron Swartz. Para Lessig, utilizar o conhecimento técnico para avançar o bem comum deveria ser a preocupação por excelência dos juristas, bem como a preocupação de qualquer cidadão. Swartz – ironicamente processado por pessoas que fazem parte do staff responsável pela aplicação de sanções a quem descumpre normas impostas pelo Estado – deveria ser um ícone do que devemos fazer (e como devemos fazer).
Lessig faz uma excelente análise das áreas de atuação de Swartz em seus treze anos de ativismo. Ele a divide em três momentos (antes dos assuntos copyright/assuntos copyright/depois dos assuntos copyright). Lessig e Swartz trabalharam juntos no “segundo momento” da vida prática de Aaron (assuntos copyright) e desenvolveram o modelo Creative Commons. No entanto, Lessig ressalta que os atos mais significativos de Aaron ocorreram no “terceiro momento”, interrompido por seu suicídio. Swartz identificou que as questões de direitos autorais não eram tão importantes quando comparados com as questões do sistema político estadunidense, em especial a corrupção por interesses econômicos. Swartz utilizou de toda sua capacidade de solução de problemas e desenvolvimento de códigos para pensar em como os cidadãos poderiam ter uma participação política maior. Aaron mostrou a força do grassroot movement, do engajamento cívico de base. Foram suas ações iniciais contra o Stop Online Piracy Act (SOPA) que resultaram nos gigantescos protestos de janeiro de 2012. Tanto Aaron quanto Lessig focaram em grandes questões políticas (como hackear o sistema? como participar do processo legislativo? como garantir que o direito atenda ao bem comum?).

Analisar a vida de Aaron Swartz implica em dar atenção especial a essas questões. Na correta interpretação de Lessig, Swartz não estava preocupado em corrigir “leis estúpidas” de propriedade intelectual, mas sim em corrigir a forma como são feitas leis estúpidas. Daí sua preocupação com o conhecimento e a informação. O insightteórico swartziano é claro: as pessoas precisam não somente entender como as coisas funcionam, mas precisam de ferramentas de participação e controle da democracia. Em síntese, Swartz tinha em mente uma noção idealizada de cidadania, pautada na ampla formação intelectual e na participação política. De diferentes modos, Swartz tentou concretizar esse ideal. Infelizmente, optou pelo suicídio como saída diante da opressão do sistema judiciário em um caso particular.

Não importa discutir se o suicídio foi um erro, tampouco compreendê-lo. O legado de Swartz é muito maior do que a decisão de 11 de janeiro. Ele é uma inspiração para a ação colaborativa transformadora. Ele sintetiza o que resta de esperança e idealismo em cada um de nós e impulsiona a ação prática voltada ao bem comum. Se o desafio contemporâneo é o combate à corrupção e o aprofundamento da democracia diante das tecnologias disponíveis, talvez não haja exemplo maior do que Aaron Swartz. Ele foi um exemplo de cidadão.


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